Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
72/07.7TBCTB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: RECURSO
RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE
PODER DISCRICIONÁRIO
REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
Data do Acordão: 10/31/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º J DO TRIBUNAL DE COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: DEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 156º, N.º 4 E 679º DO CÓD. PROC. CIVIL E 157º DA OTM
Sumário: 1. O princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais tem excepções, entre elas figurando os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário (art.º 679º do Cód. Proc. Civil).

2. Está-se perante um poder discricionário ou de livre resolução do tribunal, se for atribuída uma faculdade que o juiz exercita ou não de acordo com o seu prudente arbítrio, enquanto que se lhe for imposta uma obrigação funcional, então, tratar-se-á não de uma mera faculdade, mas antes de um poder vinculado.

3. No âmbito do processo de regulação do exercício do poder paternal a lei faculta ao tribunal a tomada de medidas provisórias que constituem nítidas providências cautelares específicas dos processos tutelares cíveis. Ora, enquanto a oportunidade ou conveniência da prolação da referida decisão provisória traduz o exercício de um poder discricionário e, nessa medida, é irrecorrível, ultrapassado esse momento, o conteúdo concreto do regime provisório fixado exorbita dessa discricionariedade e é, por isso, susceptível de impugnação perante tribunal superior.

Decisão Texto Integral: Reclamação n.º 72/07.7TBCTB-B.C1
2º Juízo do Tribunal da Comarca da Castelo Branco

*

I – Na acção de regulação do exercício do poder paternal respeitante aos menores A... e B... instaurada por C....contra D..., a correr termos no 2º Juízo do Tribunal da Comarca de Castelo Branco sob o n.º X...TBCTB, com conferência entre os progenitores aprazada para 2 de Março de 2007, o requerente apresentou, no dia 22 de Fevereiro de 2007, requerimento em que, depois de longa exposição sobre as suas divergências com a requerida e do relato da situação dos menores, que teriam sido levados por esta para local desconhecido, pediu que ao processo fosse atribuído carácter urgente e os menores lhe fossem confiados provisoriamente, tomando-se as providências necessárias a assegurar tal medida.

 No dia 27 desse mês, o requerente veio comunicar que os menores haviam já regressado à sua residência habitual, mas reiterou a necessidade de, na conferência já aprazada, ser estabelecido um regime provisório.

No dia 2 de Março de 2007, a requerida deu entrada também a um requerimento em que relatou a sua versão sobre diversas peripécias da vida do casal e dos menores, pedindo a fixação de regime provisório, confiando-lhe os filhos, estabelecendo o regime de visitas do pai e determinando-se o montante dos alimentos a suportar por este.

No decurso da conferência, frustrado o acordo entre os pais, a Mm.ª Juíza, depois de ordenar a notificação destes, para alegarem o que tivessem por conveniente quanto à regulação, confiou provisoriamente os menores ao pai, estabeleceu o regime de visitas da mãe e fixou os alimentos devidos por esta.

No fim da conferência, a Mm.ª Juíza proferiu o despacho seguinte: «Atento o teor do incidente suscitado pelo requerente a fls. 12 e seguintes de modo a habilitar o Tribunal a decidir mais documentadamente acerca do regime provisório da regulação do poder paternal, até à realização do julgamento, sendo certo que o atrás fixado se fundou única e exclusivamente em critérios equitativos tendo como fim último a prossecução do interesse superior das crianças, designo para inquirição das testemunhas arroladas pelo requerente e requerida o dia 27/04/2007 pelas 14.00 horas».

Nesse dia, durante a inquirição da primeira testemunha arrolada pelo requerente, a Mm.ª Juíza ditou para a acta o seguinte despacho: «Uma vez que as perguntas formuladas pelas partes às testemunhas se têm vindo a afastar do objecto da presente diligência fixado de forma clara e inequívoca na acta de folhas 65 e seguintes dos autos e que se prende com a fixação do regime provisório do exercício do poder paternal, o Tribunal passa a inquirir directamente todas as testemunhas sem prejuízo obviamente da sugestão de questões, cuja pertinência para o caso será aquilatado pelo Tribunal, formuladas pelo Ministério Público e pelos Ilustres Mandatários das partes».

Finda a inquirição das testemunhas oferecidas pelo requerente, com respeito do atrás enunciado, o Advogado da requerida solicitou que lhe fosse permitido interrogar directamente as testemunhas e que estas pudessem depor sobre toda a matéria que interessa à regulação do poder paternal e, como a Mm.ª Juíza entendesse que seria de manter o procedimento até aí adoptado, já que haveria apenas que acautelar provisoriamente uma situação que só a final viria a ser decidida de forma definitiva, prescindiu da inquirição das testemunhas que tinha arrolado.

Inconformada com os aludidos despachos que determinaram a forma como deveria processar-se a inquirição das testemunhas, a requerida interpôs recurso, mas a Mm.ª Juíza não o admitiu, o que motivou a dedução de reclamação não atendida.

Na prossecução do processo, a Mm.ª Juíza proferiu, no dia 17 de Maio de 2007, o seguinte despacho: «Determinada, que foi, a produção de prova quanto ao modo provisório do exercício do poder paternal relativo aos menores……..da mesma resultou que os direitos e interesses superiores dos menores se encontram devidamente acautelados com o regime do exercício do poder paternal definido a fls. 66, pelo que se decide mantê-lo transitoriamente até se encontrar definitivamente regulado o modo de exercício de tal poder».

Inconformada com o predito despacho, a requerida interpôs recurso, visando a sua revogação.

A Mm.ª Juíza, porém, não admitiu o recurso, por considerar que aquele despacho foi proferido no exercício de um poder discricionário, e, na sequência, a requerida apresentou a presente reclamação em ordem a obter o recebimento do recurso.

Não foi oferecida resposta à reclamação e a Mm.ª Juíza manteve o despacho reclamado.

II – Perante estes elementos há, agora, que apreciar da bondade da decisão de não admitir o recurso.

Como se sabe, o princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais, estabelecido no art.º 676º do Cód. Proc. Civil, tem excepções, entre elas figurando os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário (art.º 679º do Cód. Proc. Civil). E bem se compreende que assim seja, pois, envolvendo tais despachos matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador, é patente que não interferem no conflito de interesses entre as partes (art.º 156º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil), nem definem os direitos que a cada uma delas cabe.

Assume tal natureza, a decisão relativamente à qual a lei atribui ao juiz “a livre escolha quer da oportunidade da sua prática, quer da solução a dar ao caso concreto”[1], sendo bem distinta da que resulta do exercício de poderes vinculados. Nestes o juiz não tem margem de manobra, mas naqueles confia-lhe a escolha quer da oportunidade quer da solução a dar ao caso concreto.

Do ponto de vista da técnica legislativa, a explicitação e formulação da discricionariedade ou submissão de determinadas matérias à livre resolução do tribunal ou prudente arbítrio do julgador é feita através da utilização de expressões como «pode o juiz», «o tribunal pode ordenar», «como o juiz reputar mais conveniente» e «o tribunal, sempre que o julgar conveniente, pode…». Por sua vez, quando quer referir-se a poder vinculado, a técnica legislativa faz uso de fórmulas diferentes daquelas, mas nelas detecta-se sempre uma clara imposição ao juiz, como por exemplo, «os actos decisórios são sempre fundamentados», «o juiz designa imediatamente» e «cumpre ao juiz».

Do cotejo de tais fórmulas resulta que se está perante um poder discricionário ou de livre resolução do tribunal, se for atribuída uma faculdade que o juiz exercita ou não de acordo com o seu prudente arbítrio, enquanto que se lhe for imposta uma obrigação funcional, então, tratar-se-á não de uma mera faculdade, mas antes de um poder vinculado.

No caso, o despacho que a reclamante pretende impugnar, através do recurso, respeita à manutenção da regulação provisória do exercício do poder paternal, medida tomada, ao abrigo do disposto no art.º 157º, nº. 1 da OTM, que textua o seguinte: «em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, o tribunal pode decidir, a título provisório, relativamente a matérias que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efectiva da decisão». Tal disposição insere-se na parte geral do capítulo I referente aos vários processos tutelares cíveis e é aplicável também ao processo de regulação do exercício do poder paternal (art.ºs 174º e seguintes da OTM). Através dela, faculta-se ao tribunal a tomada de medidas provisórias que constituem nítidas providências cautelares específicas dos processos tutelares cíveis.

O seu teor literal («… e sempre que o entenda conveniente, o tribunal pode decidir, a título provisório, relativamente a matérias que devam ser apreciadas a final) aponta no sentido de que, na realidade, reveste natureza facultativa a tomada ou não de medidas provisórias e, por conseguinte, a Mm.ª Juíza não estava vinculada a proferir a decisão em que, a título provisório, regulou o exercício do poder paternal dos menores. Como inculca a expressão «sempre que o entenda conveniente, o tribunal pode decidir, a título provisório,» é pelo critério do tribunal que se ajuizará se é ou não oportuno regular provisoriamente a situação dos menores. Vale isto por dizer que tal matéria se encontra confiada legalmente ao seu prudente arbítrio, ou seja, foi-lhe confiada a decisão de regular ou não provisoriamente o exercício do poder paternal, no decurso do respectivo processo.

Mas se é assim quanto à conveniência ou oportunidade da tomada das medidas provisórias, já o mesmo não direi relativamente ao seu conteúdo, que terá de pautar-se sempre pela salvaguarda dos superiores interesses dos menores. Quer dizer o que está contemplado na discricionariedade do tribunal é a opção por fazer uso ou não dos seus poderes de fixação de regime provisório. Contudo, optando por fixar tal regime, o respectivo conteúdo não está já coberto pelo aludido poder discricionário e há-de ser estabelecido de acordo com os superiores interesses dos menores, matéria que se me afigura susceptível de impugnação perante o tribunal superior.

Aliás, as medidas provisórias, além de incidirem sobre aspectos de primordial importância na vida e desenvolvimento dos menores, podem perdurar por longo tempo, pois muitos dos processos desta natureza arrastam-se anos, não fazendo sentido deixar o seu conteúdo insindicável. Certo que se trata de decisão provisória e só a decisão final irá definir os poderes-deveres que cabem a cada um dos progenitores. E também é verdade que a decisão ora tomada pode não coincidir qualitativamente com aquela que vier a ser proferida a final.

Tais circunstâncias, porém, não devem obstar a que se abra, de imediato, a porta da impugnação, tanto mais que o regime provisório fixado, se menos adequado à salvaguarda dos interesses dos menores, pode provocar-lhes imediatamente sérios prejuízos, o que deverá ser evitado, e, em regra, molda logo à nascença a decisão final, na medida em que tendencialmente, se entretanto não ocorrerem circunstâncias que o desaconselhem, esta decisão consistirá na manutenção da composição provisória.

A esta luz, parece poder afirmar-se que a oportunidade ou conveniência da prolação da referida decisão provisória traduz o exercício de um poder discricionário e, nessa medida, é irrecorrível. Todavia, ultrapassado esse momento, o conteúdo concreto do regime provisório fixado exorbita dessa discricionariedade e é, por isso, susceptível de impugnação perante tribunal superior.

Assiste, assim, razão à reclamante em se insurgir contra a decisão da Mm.ª Juíza, que, salvo o devido respeito, não terá feito a melhor interpretação e aplicação do disposto nos art.ºs 156º, n.º 4 e 679º do Cód. Proc. Civil e 157º da OTM, o que implica o êxito da reclamação.

Aliás, ainda que assim não fosse, sempre haveria que ponderar que a decisão que admite o recurso não vincula o tribunal superior e, não sendo totalmente inquestionável a irrecorribilidade da decisão que a reclamante pretende pôr em crise, a prudência aconselha, em sede de reclamação, a acolher a interpretação mais favorável à recorrente (odiosa restringenda favorabilia amplianda), desse modo, viabilizando que o tribunal superior, através de órgão colegial, tome posição sobre a questão controvertida.

III - Decisão

Nos termos expostos, decido deferir a reclamação e ordeno que o despacho reclamado seja substituído por outro que admita o recurso interposto pela reclamante[2].

Sem custas.

Notifique.

*

Coimbra, 31 de Outubro de 2007


[1] Cfr. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Processo Civil, Volume III, 3ª edição, pág. 217, e Castro Mendes, Direito Processo Civil, Lisboa, AAFD, 1987, III Volume, pág. 46.
[2] Se qualquer outra diferente causa a tal não obstar.