Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
475/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. FERREIRA DE BARROS
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 06/08/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DECLARAÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ARTIGOS 58° E 60°, N.º2, DO CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES (DL N.O 168/99, DE 18.09) E ARTIGOS 104°, N.º2,106°, ALÍNEA B) E 108° DA LEI N.O 3/99 (LOFTJ) E ARTIGOS 68°, 110°, N.º4 E 111 °, N. °2, DO CPC.
Sumário:

1. O conflito negativo de competência entre o tribunal singular e o tribunal colectivo configura uma incompetência em razão da estrutura ou do funcionamento do tribunal de 1 a instância.
2. Tal incompetência é de qualificar como uma incompetência relativa atípica, implicando a remessa do processo para o tribunal competente em razão da estrutura.
3. A decisão primeiramente transitada em julgado no tocante à questão da competência relativa, resolve definitivamente a questão.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)-RELATÓRIO

O Ex.mo Magistrado do M.P., junto desta Relação, requereu a resolução do conflito negativo de competência suscitado entre os Srs. Juizes do 1º Juízo do Tribunal de Cantanhede e do Círculo Judicial da Figueira da Foz, por ambos reciprocamente se atribuírem competência, negando a própria, para os termos de um processo de expropriação por utilidade pública.


Ambos os despachos transitaram em julgado.

Notificados os Srs. Juizes em conflito, nos termos e para efeitos do disposto no art. 118º do CPC, responderam ambos, mantendo a sua posição.

O Ex. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da atribuição de competência ao Sr. Juiz do 1º Juízo do Tribunal de Cantanhede.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS

Com interesse à decisão a proferir decorrem dos autos os seguintes factos:

1-No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede corre termos um processo de expropriação por utilidade pública em que é expropriante EE e são expropriados BB, CC e mulher DD;
2-O processo foi distribuído a esse Juízo com o n.º 621-B/2001;
3-No dia 18 de Abril de 2002, o expropriado BB interpôs recurso da decisão arbitral proferida em 07.07.2001, tendo requerido a intervenção do tribunal colectivo;
4-O valor da causa é de € 24.382,58, como consta de fls. 21;
5-Tendo o processo sido remetido ao Sr. Juiz de Círculo da Figueira da Foz, por despacho de 21.10.03, o Sr. Juiz declarou-se incompetente e competente o Sr. Juiz do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede;
6-Remetido o processo ao 1º Juízo citado, o Sr. Juiz, por despacho de 21.11.03, declarou-se incompetente para o julgamento do recurso de arbitragem e competente o Juiz de Círculo;
7-Ambos os despachos transitaram em julgado.


III)- O DIREITO

A questão que se coloca consiste em saber se no julgamento do recurso de arbitragem no processo expropriativo em apreço deve intervir o tribunal singular ou antes o tribunal colectivo.

A discordância dos Srs. Juizes, reporta a competência em razão da estrutura do tribunal, singular ou colectivo. Argumenta o Sr. Juiz do 1º Juízo do Tribunal de Cantanhede, ser suficiente o requerimento de intervenção do tribunal colectivo por parte do recorrente, nos termos do art. 58º do Código das Expropriações, para logo ficar afastada a competência do tribunal singular. Ao invés, o Sr. Juiz de Círculo defende que a intervenção do tribunal colectivo no recurso a interpor da decisão arbitral, terá de ser requerida por ambas as partes, por aplicação subsidiária do art. 646º, n.º1 do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 183/2000, de 10/08, não bastando, pois, a intervenção do tribunal colectivo ser apenas requerida pelo recorrente

Vejamos.
Com efeito, o art. 58º do Código das Expropriações (DL n.º 168/99, de 18.09) estabelece que “no requerimento de interposição do recurso da decisão arbitral, o recorrente deve expor logo as razões da discordância, oferecer todos os documentos, requerer as demais provas, incluindo a prova testemunhal, requerer a intervenção do Tribunal colectivo, designar o seu perito e dar cumprimento ao disposto no art. 577º do Código de Processo Civil”. Por seu turno, nos termos do n.º 2 do art. 60º do mesmo diploma, “com o recurso subordinado ou com a resposta devem ser oferecidos todos os documentos, requeridas as demais provas, incluindo a prova testemunhal, requerida a intervenção do Tribunal colectivo e designado o perito, dando-se cumprimento, quando for caso, ao disposto no art. 577º do Código de Processo Civil.” Por seu turno, o n.º 1 do art. 646º do CPC, na redacção que lhe foi conferida pelo DL n.º 183/2000, de 10.08, determina que “a discussão e julgamento da causa são feitos com intervenção do tribunal colectivo se ambas as partes assim o tiverem requerido”. Sobre a matéria em que vem delineado o presente conflito negativo de competência se pronunciou o STJ através do acórdão de 25.09.2003, publicado na CJ 2003, 3º, p. 63 a 66 e a Relação do Porto, através de inúmeros arestos, estando um deles publicado na CJ 2003, 1º, p. 200 a 206. E esta Relação, por acórdão recentemente proferido, em que foi Relator o Ex. mo Desembargador Serra Batista, apreciou conflito negativo de competência, também suscitado em processo de expropriação, entre os ditos Tribunal Singular de Cantanhede e Tribunal Colectivo, abonando-se os Srs. Juizes nas mesmas razões para recusar a competência própria.

QUESTÃO PRÉVIA
Mas, como se verá, ocorre circunstância que obsta ao conhecimento do mérito do decidendo conflito negativo de competência entre o Tribunal Singular e o Tribunal Colectivo para o julgamento do recurso da arbitragem no processo expropriativo.

Na verdade, importa, desde logo, averiguar como deve ser qualificado o conflito em apreço emergente de duas decisões transitadas em julgado?
A Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), prevê no seu artigo 67º, n.º1 que “os tribunais judiciais de 1ª instância funcionam, conforme os casos, com tribunal singular, como tribunal colectivo ou como tribunal do júri”. Nos termos do n.º2 do art. 104º “compete ao tribunal singular julgar os processo que não devam ser julgados pelo tribunal colectivo ou do júri”, consignando-se. no art. 106º, a competência do Tribunal colectivo. Da alínea b) deste artigo decorre ser da competência do tribunal colectivo julgar “as questões de facto nas acções de valor superior à alçada dos tribunais da Relação...”, definindo-se no art. 108º a competência do presidente do tribunal colectivo.
No CPC estão previstos dois tipos de incompetência, a absoluta e a relativa. Em conformidade com o preceituado no art. 1001, “a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional, salvo quando haja mera violação de um pacto privativo de jurisdição, determina a incompetência absoluta do tribunal”.
Manifestamente que o conflito negativo de competência em causa, até pela natureza dos interesses em jogo, não é de reputar como conflito negativo de competência em razão da matéria (arts. 66º e 67º), da hierarquia (arts. 70º a 72º) ou da competência internacional ( art. 65º a 65º-A).
Prevendo o art. 68º do CPC que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo valor ou pela forma de processo aplicável, se inserem na competência dos tribunais singulares e dos tribunais colectivos, estabelecendo este Código os casos em que às partes é lícito prescindir da intervenção do colectivo”. Pela sua inserção sistemática, tal normativo respeita à competência em razão do valor e da forma de processo aplicável. É em função do valor e da forma do processo que se determina o funcionamento ou a estrutura dos tribunais de 1ª instância, como tribunal singular ou como tribunal colectivo, sendo certo que em matéria cível a intervenção do colectivo pressupõe actualmente requerimento formulado pelas partes. Como é pela forma de processo aplicável que se define a competência dos tribunais de competência específica (art. 69º do CPC) e que se enunciam no art. 96º da LOFTJ. A competência entre tribunal singular e colectivo pode ser qualificada como competência em razão da estrutura ou funcionamento do tribunal, como, aliás, emerge da explícita referência do art. 68º do CPC a “tribunais de estrutura singular e colectiva”, e assim foi entendido no acórdão da Relação de Lisboa, publicado na CJ 1996, 1º, p. 120 e no acórdão da Relação de Évora, publicado na CJ 1990, 4º, p. 273. Tal competência dos tribunais de 1ª instância, funcionando conforme os casos como tribunal singular, como tribunal colectivo ou como tribunal do júri, não se confunde com a competência em razão do valor ou da forma de processo aplicável, determinando a infracção das respectivas regras a incompetência relativa (art. 108º do CPC). Não constituindo, porém, a infracção das regras que estabelecem o funcionamento dos tribunais de 1ª instância, como tribunal singular e como tribunal colectivo, uma típica incompetência relativa, como flui do art. 108º do CPC, configurará, todavia, a nosso ver, uma incompetência relativa atípica, implicando a remessa para o tribunal competente em razão da estrutura como singular ou colectivo (cfr. “A Competência Declarativa nos Tribunais Comuns”, 1994, p. 131, de Miguel Teixeira de Sousa) ou uma excepção dilatória inominada (art. 493º, n.º2 e alínea b), ambos do CPC). A incompetência em causa não se refere a todos os termos do processo, mas apenas em relação a alguns deles, só cabendo na competência do tribunal colectivo os trâmites especificamente previstos na lei, uma vez que é residual a competência do tribunal singular (n.º2 do art. 104º e 106º da LOFTJ ). Ou seja, o processo inicia-se no tribunal singular transitando para o tribunal colectiv0 apenas para a prática dos actos que a este compete, regressando, sempre, ao tribunal singular.
E tal como preceitua o n.º 4º do art. 110º do CPC, “no caso previsto no n.º2, a incompetência do tribunal singular, por o julgamento da causa competir ao tribunal colectivo, pode ser suscitada pelas partes ou oficiosamente conhecida até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento”. Apenas se alude à incompetência do tribunal singular e não à incompetência do tribunal colectivo. Pela sua inserção sistemática, no conjunto das regras relativas à incompetência relativa, tal norma sugere que a incompetência em razão do funcionamento ou estrutura do tribunal de 1ª instância é de natureza relativa, onde surgem tipificadas a incompetência em razão do valor, em razão da forma do processo e territorial ou decorrente da infracção das regras do estipulado nas convenções previstas nos artigos 99º e 100º do CPC ( vidé art. 108º).

E nos termos do n.º2 do art. 111º do CPC “a decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada.” Respeita esta norma ao regime da incompetência relativa, tal significando que o julgamento da excepção de incompetência põe definitivamente termo a essa questão, que não pode voltar a suscitar-se, ainda que com outros fundamentos, sendo, pois, vinculativa tal decisão para o tribunal para o qual o processo é remetido. A questão da incompetência relativa não pode voltar a suscitar-se no mesmo processo (cfr. “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 1º, p. 177, de Rodrigues Bastos e “Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil”, p. 133, de Miguel Teixeira de Sousa).
Assim sendo, no caso sub judice, verifica-se ter transitado em julgado em primeiro lugar a decisão proferida pelo Sr. Juiz Presidente do Tribunal Colectivo, no dia 21.10.03. Deste modo, a questão da competência do tribunal no tocante ao seu funcionamento, como singular ou colectivo, ficou definitivamente resolvida, estando legalmente vedado ao tribunal singular (o 1º Juízo de Cantanhede) recusar a sua competência para o julgamento do recurso da arbitragem. E tal circunstância obsta ao conhecimento do mérito do pedido de resolução do conflito negativo de competência.

IV)- DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em solucionar o presente conflito negativo de competência, declarando-se competente para o julgamento do recurso de arbitragem em causa o 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede.
Sem custas.