Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
117/10.3TBVLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: CAUSA DE PEDIR
ALTERAÇÃO
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VILA NOVA DE FOZ CÔA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGO 664º DO CPC. ARTIGOS 220.º; 289.º, N.º 1 DO CC
Sumário: 1. A causa de pedir não pode ser alterada nas alegações de recurso e constituir fundamento para nova decisão;
2. Não pode convolar-se o pedido de restituição da coisa por nulidade de contrato para o pedido de restituição correspondente à acção de reivindicação, não bastando, para esta, a prova da aquisição derivada traduzida no pagamento do trespasse de estabelecimento comercial, antes a prova de que o direito de propriedade já existia no anterior transmitente (trespassante).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A....e mulher B...., propuseram, no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Foz Côa, acção com forma de processo ordinário contra C....e “D.....”, pedindo fosse declarado nulo por vício de forma o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, verbalmente celebrado entre AA. e RR., ser o 1.º R. condenado a pagar o montante de € 23.200,00 correspondente às prestações devidas por tal contrato, já vencidas e nas vincendas, serem os RR. condenados a entregar o estabelecimento comercial aos AA. e ser o 1.º R. condenado a pagar juros de mora vencidos, no montante de € 4.258,88 e nos vincendos e, subsidiariamente, ser declarado resolvido, por incumprimento definitivo, esse contrato e ser o 1.º R. condenado no pagamento daquelas prestações e ambos os RR. condenados a entregar o estabelecimento comercial e ser o 1.º R. condenado a pagar juros de mora vencidos, no montante de € 4.258,88.

Alegaram, para tanto, em resumo, ser donos e legítimos proprietários do estabelecimento comercial, bar e restaurante, denominado “Dallas”, por o terem adquirido em 21 de Janeiro de 1994, por trespasse, encontrando-se o mesmo instalado em prédio arrendado, mediante o pagamento da renda mensal de € 500,00, sendo que naquela data os AA. cederam verbalmente e com o conhecimento do dono do prédio arrendado, a exploração do estabelecimento ao 1.º R. mediante o pagamento da quantia anual de € 4.800,00 e a ser feito no mês Agosto de cada ano e que o pagamento das quantias devidas pela ocupação do imóvel ficariam a cargo do 1.º R., que faria directamente o pagamento aos senhorios.

Mais alegaram que, desde a altura da celebração do negócio, o 1.º R. começou a explorar o referido estabelecimento comercial e efectuou o pagamento aos AA. da referida quantia anual, até ao ano de 2005, inclusive, data a partir da qual mais nenhum pagamento foi efectuado, encontrando-se devedor da quantia global de € 23.200,00 (rendas vencidas e não pagas dos anos de 2006, 2007, 2008 e 2009 que deveriam ter sido pagas nos correspondentes meses de Agosto e a quantia de € 4.000,00 relativa às prestações devidas em relação ao período entre Agosto de 2009 e Junho de 2010) e que a exploração do estabelecimento comercial está a ser efectuada pela 2.ª R., da qual o 1.º R. é sócio, desde pelo menos 2007, desconhecendo os AA. qual o título que fundamenta essa exploração pela 2.ª R., porque com ela nunca realizaram qualquer negócio e nunca autorizaram o 1.º R. a transferir a sua posição contratual para aquela sociedade e nunca foi dado pelos RR. aos AA. conhecimento do motivo pelo qual a R. explora o estabelecimento comercial, pelo que os AA., em consequência da falta de pagamento e desse desconhecimento, alegadamente perderam o interesse na manutenção do negócio.

Citados, contestaram os RR. e apresentaram reconvenção, sustentando que os AA. litigam de má fé e não respeitaram a decisão e factos assentes no processo 4/08.5TBVLF, violando o caso julgado e impugnaram os demais factos, alegando que a quantia anual de 960.000$00 que o R. lhes pagou até 2005 e que perfez o montante de € 52.690,00, foi efectuado não como renda da cessão de exploração comercial, mas por conta do empréstimo que aqueles lhe concederam para cumprimento do contrato-promessa de trespasse, que juntaram, celebrado com E....e mulher, nunca tendo sido intenção dos AA. adquirir para si o referido estabelecimento, tendo o contrato de trespasse sido celebrado em nome dos AA. apenas para garantir o seu pagamento,  pelo que nem sequer assumiram a posição de arrendatários do imóvel, tendo sido sempre o R. ou a Ré sociedade quem pagou directamente as rendas ao respectivo senhorio, sendo os RR. (Ré) que actualmente detém o respectivo Alvará.

Alegaram ainda que o R. solicitou uma reunião com os AA. para acertarem as contas e a fim de lhes restituírem o trespasse e a transmissão de arrendamento, porém nunca se mostraram disponíveis para tal.

Em reconvenção, pediram que os AA. fossem condenados, a reconhecer os reconvintes como titulares do direito ao arrendamento e trespasse integrante das escrituras juntas, negócios jurídicos que se destinaram a garantir/caucionar o pagamento do mútuo efectuado pelos AA. aos RR., que se encontra extinto pelo pagamento, a praticarem em 10 dias úteis após trânsito em julgado da presente acção todos os actos jurídicos necessários à investidura legal e formal definitiva dos reconvintes nas qualidades de titulares do direito ao trespasse e ao arrendamento.

Cumulativamente e caso não cumprido esse prazo, serem os reconvindos condenados na celebração daqueles negócios, nos termos do artigo 830º do Código Civil, fixando-se uma sanção pecuniária compulsória não inferior a € 1.000,00 por cada infracção diária por parte dos reconvindos quanto ao cumprimento daquela prestação de facto e destinada a assegurar a sua respectiva efectividade e condenados ainda em multa e indemnização aos RR., não inferior a 20 UC, por litigância de má fé.

Os autores replicaram no sentido da improcedência da excepção do caso julgado e da reconvenção e condenação por litigância de má fé.

Foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, de que houve reclamação dos AA., contudo, indeferida.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão sobre a matéria de facto, que não foi objecto de reclamação.

Proferida sentença foi a acção e a reconvenção julgadas improcedentes e os RR. e os AA. absolvidos dos correspondente pedidos.

Discordantes, recorreram os AA., apresentando alegações de onde extraíram as seguintes relevantes conclusões:

a) – A matéria de facto dos art.ºs 1.º a 3.º da base instrutória (b. i) foi incorrectamente julgada, tendo em conta o depoimento gravado da testemunha (….), que não constituiu um depoimento indirecto, antes relatou factos traduzidos em conversas e atitudes por ela presenciadas comprovativos do contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial em causa;

b) – Ainda que de depoimento indirecto se tratasse seria o mesmo de valorizar, por, o que ouviu, ter partido das próprias partes e numa ocasião em que não era previsível a emergência de qualquer litígio entre elas;

c) – Por outro lado, porque dos factos dados como provados os recorrentes são os únicos donos e legítimos proprietários do estabelecimento em questão (“Dallas”) e que os recorridos não têm qualquer título que justifique a sua detenção, nos termos dos art.ºs 664.º do CPC e 1305.º e 1311.º, n.º 1, do CC o tribunal a quo deveria ter julgado procedente a acção quanto ao pedido de entrega do estabelecimento, ainda que por fundamento diverso do invocado, de inexistência de título legítimo.

Não houve lugar a resposta pelos recorridos.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

a) – A impugnação da matéria de facto quanto às respostas de não provado dadas aos art.ºs 1.º a 3.º da b. i.

b) – A reapreciação do mérito da causa consequente a essa eventual alteração, no sentido da procedência da acção ou, sem tal alteração, a sua procedência, mas no âmbito das normas atinentes à acção de reivindicação.

Vejamos.


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2. Fundamentação

a) - De facto

Foi a seguinte e nos seus precisos termos a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:

1. O estabelecimento comercial “Dallas”, sito na Estrada Nacional n.º 222, n.º 14, em Vila Nova de Foz Côa, foi adquirido pelos autores A....e mulher, B.... a 20 de Janeiro de 1994, por contrato de trespasse celebrado com E....e esposa, F...., cfr. documento de fls.18 a 20 que se dá por integralmente reproduzido – A) dos factos assentes;

2. Em 20 de Janeiro de 1994, os autores celebraram com E....e mulher, F...., um contrato de arrendamento do espaço onde se encontra instalado o estabelecimento comercial “Dallas”, conforme documento de fls. 21 a 24 que se dá por integralmente reproduzido – B) dos factos assentes;

3. No contrato de arrendamento referido em 2. foi acordada uma renda mensal de 100.000$00 (cem mil escudos)mensais – C) dos factos assentes;

4. O réu, C…., é sócio da ré, D…. – D) dos factos assentes;

5. A ré D....., encontra-se a explorar o estabelecimento comercial “Dallas” desde 1993 – E) dos factos assentes;

6. No Tribunal Judicial de Vila Nova de Foz Côa correu termos sob o n.º 4/08.5TBVLF o processo de prestação de contas intentado por A....e B.... contra C…., nos termos do qual foi decidido em sede de sentença julgar: “A acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência:

a) Declaro não verificada a obrigação de o réu C....prestar contas aos autores A....e B.... quanto à exploração do estabelecimento comercial denominado “Restaurante Dallas”, instalado no rés-do-chão do prédio urbano, composto de cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andares, sito na Estrada Nacional n.º 222, da freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa, inscrito na matriz predial sob o artigo 2303.º.

b) Absolvo o réu do pagamento aos autores da quantia de € 75.000,00, a título de dívida decorrente da prestação de contas pela exploração desse estabelecimento comercial” – F) dos factos assentes;

7. A 30 de Dezembro de 1992, E…, na qualidade de promitente cedente, e C….., na qualidade de promitente cessionário, celebraram o acordo denominado “contrato promessa de trespasse”, nos termos do qual consta que:

 “1ª Cláusula

Pelo primeiro contraente foi dito que é presentemente único representante do restaurante denominado Dallas com sede na Estrada Nacional 222, lote 3, na freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa.

2ª Cláusula

Pelo presente contrato, o1.º contraente promete ceder o trespasse livre de quaisquer ónus ou encargos ao segundo contraente que promete adquirir o mesmo para si ou pessoa (s) por si indicada (s), nas condições constantes neste contrato.

3ª Cláusula

O preço pelo qual é efectuado o trespasse é de Esc.7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos), que serão pagos da seguinte forma:

No acto da assinatura deste contrato foi paga a importância de Esc. 3.750.000$00 (três milhões e quinhentos mil escudos), do qual é da respectiva quitação, a restante parte do preço será paga no acto da escritura pública a realizar no prazo de 30 dias, a contar da data deste contrato, com cheque visado.

4ª Cláusula

O primeiro contraente autoriza desde já a razão social da firma.

5ª Cláusula

A entrega das chaves do estabelecimento terá lugar no dia 1.01.1993.

6ª Cláusula

Este trespasse é efectuado com todo o património, nomeadamente máquinas, utensílios, direito de arrendamento, alvará e restantes licenças de funcionamento.

7ª Cláusula

Todas as dívidas relativas em posse e contribuições são da responsabilidade do 1º contraente até à realização da escritura. As dívidas de águas, luz, telefone, rendas, mercadorias e outros indeterminados são da responsabilidade do 1.º contraente até a entrega das chaves do estabelecimento.

8ª Cláusula

O 1º contraente declara que a renda do estabelecimento é de100.000$00 (cem mil escudos mensais).

9ª Cláusula

Para dirimir quaisquer questões emergentes deste contrato, as partes designam o foro da comarca de Vila Nova de Foz Côa, com expressa renúncia a qualquer outro.

10ª Cláusula

A escritura de trespasse será nos termos da legislação em vigor paga pelo promitente cessionário ou por quem ele indicar”, cfr. documento de fls. 109 a 111 que se dá por integralmente reproduzido. – G) dos factos assentes;

8. A dia 22 de Novembro de 1993, C…., na qualidade de primeiro outorgante, e A....e mulher B.... na qualidade de segundos outorgantes, celebraram o acordo denominado "contrato promessa de trespasse (adicional)", nos termos do qual consta que:

“a) O primeiro outorgante C....já se encontra obrigado, na qualidade de promitente-cessionário, a celebrar contrato de trespasse do denominado "Restaurante Dallas”, sito nesta Vila de Vila Nova de Foz Côa, através de contrato promessa com o senhorio cedente E…., de 30 de Dezembro de 1992.

b) Na cláusula 2ª do referido contrato-promessa, o outorgante C....compromete-se a adquirir o referido "Restaurante Dallas"para si ou pessoa por si indicada.

c) Pelo presente contrato adicional, que fará parte integrante do referido contrato inicial, o outorgante C....indica desde já para o dito contrato prometido os ora 2º outorgante A....e mulher, bem como se obriga e compromete a que o referido contrato definitivo seja feito em favor deles como cessionários (na respectiva escritura pública).

d) O primeiro outorgante do referido contrato inicial E....toma conhecimento do presente contrato adicional através do Sr. G...., casado, residente nesta Vila Nova de Foz Côa, que exibiu a respectiva procuração para providenciar e outorgar o referido contrato definitivo e cuja fotocópia fica anexa a este contrato”, cfr. documento de fls. 112 e 113 que se dá por integralmente reproduzido – H) dos factos assentes;

9. Autores e primeiro réu acordaram que o pagamento das quantias devidas pela ocupação do imóvel ficaria a cargo do réu C....– I) dos factos assentes;

10. O qual deveria proceder ao pagamento directamente aos senhorios E....e esposa, F.... – J) dos factos assentes;

11. Desde o ano de 1992 que o réu C....começou a explorar o referido estabelecimento comercial – L) dos factos assentes;

12. Entre 1994 a 2005 o réu C....pagou aos autores anualmente a quantia de 960.000$00 (novecentos e sessenta mil escudos) – M) dos factos assentes;

13. A partir de 2005, o réu C....não pagou qualquer quantia aos autores – N) dos factos assentes;

14. Em nome da pessoa colectiva “D….” foi emitida pela Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, em 1994, o Alvará de Licença n.º 99, relativamente ao “estabelecimento de café-restaurante que possui em Estrada Nacional n.º 222, 5150 Vila Nova de Foz Côa”, cfr. documento de fls. 82 que se dá por integralmente reproduzido - O) dos factos assentes;

15. O réu pagou em Agosto de cada ano aos autores a quantia mencionada em 12. – resposta ao quesito 3º da base instrutória;

16. Os autores nunca celebraram qualquer contrato com a ré D….– resposta ao quesito 5º da base instrutória.


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            b) – De direito

            Como é sabido, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito e objecto deste, não podendo conhecer-se de quaisquer outras nelas não versadas, salvo se forem de conhecimento oficioso (art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do CPC na versão aplicável ao presente processo do DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto).

            Apreciemos, assim, a 1.ª questão antes enunciada.

1. Perguntava-se no art.º 1.º da b. i. se “em 21 de Janeiro de 1994 os AA. acordaram verbalmente com o R. C....na cedência da exploração do estabelecimento comercial “Dallas”, no 2.º se “pela cedência do referido estabelecimento o R. C....acordou pagar ao A. a quantia anual de 960 000$00” e, no 3.º, “a qual seria paga anualmente e na totalidade no mês de Agosto”.

O tribunal a quo, na resposta, limitou-se quanto ao 1.º e 2.º a remeter para as alín.s A) a L) dos factos assentes (FA) e, quanto ao 3.º, “que o R. pagou em Agosto de cada ano aos AA. a quantia mencionada em M) dos factos assentes”, o mesmo é dizer, não deu como provada a versão dos AA. de terem acordado verbalmente com o R. Acácio a cedência da exploração do estabelecimento comercial mediante o pagamento da renda anual, então, de 960 000$00.

A motivação assentou em que as testemunhas oferecidas pelos AA. (e era sobre eles que incidia o ónus probatório – art.º 342.º, n.º 1, do CC) se limitaram a prestar depoimentos indirectos quanto ao alegado acordo de cessão de exploração mediante renda e, por outro lado e no que respeita à testemunha ora indicada na impugnação, (…..) tomou em conta tratar-se de filha dos AA.[1]

Fundamento da impugnação é que o depoimento em causa se trata de um depoimento directo, que não indirecto.

Ouvida a gravação (e confrontados os excertos da transcrição vertidos nas alegações recursivas), o que ressalta do depoimento da testemunha é um conhecimento transmitido pelos pais e com um fio condutor a ir de encontro à versão destes, em suma, que os AA., com a venda do “Verde Gaio” e por indicação do R., seu primo, compraram o “Dallas”, que ficou em nome dos pais, pagando o R. a renda de 80 contos por mês, que lhes entregava todos os meses de Agosto de cada ano, pondo o mesmo a circular, a partir de 2005, que o restaurante já estava pago, por si… deixando de pagar a renda.

Trata-se de uma versão que não queremos dizer ensaiada, mas cuja razão de ciência não partiu da percepção de quaisquer factos, isto é, não houve participação da testemunha em qualquer momento do iter contratual, nem por si, nem como acompanhante de seus pais.

Uma ou outra pergunta concreta esbarrou no seu desconhecimento, como o valor de compra do estabelecimento, ou o destino do trespassante ou sobre a sociedade que, afinal, explora o estabelecimento, o que também não admira uma vez que faz a sua vida emigrada em França.

É, pois, um depoimento indirecto.

As conversas naturalmente mantidas com os pais não retiram a natureza indirecta ao depoimento prestado.

Já Manuel de Andrade[2] referia que “são de mais peso em geral as testemunhas directas (presenciais; vista) do que as indirectas (de outiva)”.

Também Anselmo de Castro[3] chama a atenção de que “é mais importante o testemunho presencial (directo) do que o de ouvido (indirecto)”.

Todavia, o valor probatório do depoimento testemunhal não depende tanto da sua natureza directa ou indirecta, mas da credibilidade de quem o presta, a avaliar de acordo com as regras da experiência, mormente tendo em conta a condição afectiva determinada pelo parentesco.

Ora, para lá da vaguidade do depoimento, a qualidade de filha dos AA. naturalmente não deixou à testemunha liberdade psicológica ou racional para depor diferentemente da posição por eles sustentada nos articulados, não sendo, portanto, o seu depoimento imparcial, por isso não podendo suportar um juízo diverso do alcançado pelo tribunal a quo, num conjunto de depoimentos (cuja gravação também se ouviu) de outiva e sem convicção.

Razão por que se mantêm as respostas impugnadas.


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            2. Quanto à outra questão, os AA., na petição inicial, indicaram como causa de pedir principal a nulidade decorrente de vício de forma (art.º 220.º do CC) de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, celebrado verbalmente com o 1.º R., por inobservância da então legalmente exigida escritura pública (art.º 89.º, alín. k) do CN), fazendo derivar do carácter retroactivo da nulidade a restituição de tudo o que foi prestado, mormente o valor das rendas em falta e entrega do estabelecimento aos donos e legítimos proprietários (art.º 289.º, n.º 1, do CC), com juros à taxa comercial desde a mora reportada ao ano de 2005 (juros à partida sempre indevidos no quadro legal traçado, antes devendo reportar-se à citação e à taxa normal geral, enquanto frutos civis – art.ºs 289.º, n.º 3 e 1270.º, n.º 1, do CC).

            Como causa de pedir subsidiária invocaram o incumprimento contratual resultante da falta de pagamento das rendas correspondentes à exploração do estabelecimento e transmissão para terceiro (2.ª Ré) da posição contratual não autorizada, com igual indemnização e juros moratórios.

            Agora, nas alegações e estribados na regra do art.º 664.º do CPC, em como o juiz (neste caso a Relação) não está sujeito às alegações das partes em matéria de direito, os recorrentes convolaram o pedido de restituição do estabelecimento para a outra causa de pedir própria da acção de reivindicação, com matriz legal no art.º 1311.º do CC.

            O mesmo é dizer, alteraram a causa de pedir. De uma acção de índole obrigacional passaram para uma acção de natureza real.

            Duas ou três são as razões que levam à improcedência da pretensão.

            Em 1.º lugar, trata-se de questão nova impertinente, não confundível com os poderes de jura novit curia conferidos ao juiz pelo mencionado art.º 664.º.

            Nova, porque antes não apreciada e que não pode, hic et nunc, lograr acolhimento, uma vez que os recursos visam reapreciar questões debatidas na instância recorrida e não conhecer de matéria nova, salvo se de conhecimento oficioso, o que não é o caso.

            Depois, não pode dizer-se que, provada a propriedade do estabelecimento e não provada causa legítima de posse ou detenção, o efeito restitutivo ínsito à acção de reivindicação é o mesmo que o da nulidade por vício de forma do contrato ou da resolução por incumprimento contratual definitivo, por alegada perda de interesse em cumprir e que, não provados estes, desencadeia-se aquele.

            Não é assim.

            E não o é porque diversa é a natureza das acções.

            Como é sabido, na acção de reivindicação não basta ao autor reivindicante demonstrar a aquisição derivada, provando, por ex., que comprou a coisa, já que a compra não é constitutiva, mas apenas translativa do direito de propriedade, antes se lhe impondo a prova de que o direito já existia no transmitente, anterior proprietário, o que não está demonstrado nos autos.[4]

            Por outro lado, desde há muito que constitui jurisprudência do STJ que, sendo certo que a qualificação pertence ao juiz, não pode, contudo, substituir a causa de pedir invocada pelos autores por uma outra, desde logo, em razão da amplitude com que tem que ser encarado o princípio do contraditório da parte contrária.[5]

            Aliás e também decisivamente, como decorre do art.º 273.º do CPC, na falta de acordo, só na réplica pode ser alterada a causa de pedir, jamais em alegações de recurso.

            Eis por que, soçobrando as conclusões recursivas, importa manter a decisão recorrida.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

            I – A causa de pedir não pode ser alterada nas alegações de recurso e constituir fundamento para nova decisão;

            II – Não pode convolar-se o pedido de restituição da coisa por nulidade de contrato para o pedido de restituição correspondente à acção de reivindicação, não bastando, para esta, a prova da aquisição derivada traduzida no pagamento do trespasse de estabelecimento comercial, antes a prova de que o direito de propriedade já existia no anterior transmitente (trespassante).


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            4. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a alegação e manter a decisão recorrida.

            Custas pelos recorrentes.


[1] Fez referência a filhas, no plural, mas por manifesto lapso, já que mais nenhuma filha depos, quiçá fazendo confusão com aqueloutra testemunha, Conception, sobrinha, sim, dos AA.
[2] “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, pág. 279.
[3] “Lições de Processo Civil”. 4.º, pág. 101.
[4] V. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil, Anotado”, III, pág. 115.
[5] V. Ac. STJ de 24.10.95, BMJ.º 450.º-443 e, mais recentemente, Ac. STJ de 11.10.07, Proc. 07B2780, in www.dgsi.pt.
V., também, o Ac. RL de 7.4.05 (Proc. 2775/2005.6, na mesma base de dados) que concluiu não ser admissível alteração da causa de pedir que implique a convolação para relação jurídica diversa da controvertida.