Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
940/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. COELHO DE MATOS
Descritores: CHEQUE POST-DATADO
GARANTIA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 05/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 22.º E 28.º DA LUC; 46.º C) DO CPC E 595.º DO C.C.
Sumário:

1. O cheque post-datado constitui título executivo cambiário quando apresentado a pagamento antes da data nele mencionada.
2. Tendo o obrigado cambiário entregue a um filho o cheque, após o subscrever, e tendo este, por sua vez, entregue o mesmo cheque a outrem, para garantia de pagamento da sua dívida, deve entender-se que o sacador assumiu a dívida do filho, considerando-se ele próprio como um terceiro (assuntor) que se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem (artigo 595º do C. Civil), ocorrendo mesmo uma assunção cumulativa de dívida na falta de declaração expressa no sentido da liberação do primitivo devedor.
3. Por isso e pela autonomia da relação cartular, não pode o obrigado cambiário opor ao tomador a excepção de favor ou garantia que porventura lhe poderia opor o filho, a quem antes havia entregue o cheque.
4. Por conseguinte devem improceder os embargos de executado opostos à execução pela sacadora do cheque, com o fundamento de que nada deve ao exequente.
Decisão Texto Integral:
4

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. BB, na comarca de Viseu, deduziu embargos de executado, por apenso à execução ordinária para pagamento de quantia certa, n.º 315/98, que lhe move CC, tendo, como título executivo, um cheque de 1.600.000$00 sacado pela aqui embargante.
Alega por fundamento, em síntese, que assinou o cheque a pedido do seu filho DD que lhe disse ser para garantia de uma dívida deste ao ora embargado e que nunca seria apresentado a pagamento. Quer com isto dizer a embargante que nada deve ao embargado.
Mais alega ainda que a dívida do DD ao embargante está a ser discutida num outro processo em que o mesmo exequente pretende reaver um crédito no qual o destes autos está contido, assim tentando pagar-se duplamente.

2. O embargado contestou, opondo a existência da dívida titulada pelo cheque e o não cumprimento. Saneado o processo e chegado que foi a julgamento, foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes e mandou prosseguir a execução.
A embargante discorda da decisão e apela a esta Relação, concluindo:
1) Ficou provado, maxime através de prova pericial, que o cheque objecto da acção principal foi assinado pela Embargante - BB - que o entregou ao seu filho - DD - tendo sido este que preencheu o cheque e entregou-o ao exequente - CC.
2) Do respectivo registo fonográfico verifica-se que as testemunhas arroladas sob os n.ºs 1, 2 e 3 EE, declararam sem qualquer hesitação que o exequente - CC - desempenhava uma actividade como "banqueiro particular", isto é, emprestava quantias em dinheiro a terceiros, cobrando juros a uma taxa variável e por ele fixada, exigindo apenas como garantia cheques pré-datados.
3) Ficou também provado, através das declarações das testemunhas DD e Amir EE, que no âmbito dessa actividade o exequente emprestou a ambas as testemunhas, as quantias em dinheiro de 380.000$00 e cerca de 350.000$00 respectivamente.
4) Para garantia dessa dívida, o filho da Recorrente - DD - acedeu a preencher o cheque objecto dos autos pela importância de 1.600.000$00.
5) Da prova produzida resulta claro que o exequente não emprestou dinheiro à executada e que esta não preencheu, nem tão pouco entregou o mesmo ao exequente para pagamento de qualquer quantia em dívida como este refere na petição inicial.
6) Na realidade, entre a Recorrente e o Recorrido nunca existiu qualquer negócio jurídico, qualquer relação substancial que estivesse subjacente à emissão do cheque.
7) É que, no caso em apreço, a embargante ao assinar o cheque em questão não assumiu qualquer obrigação para com o executado.
8) Por outro lado, mesmo que se entendesse existir uma obrigação exequenda esta, na data de apresentação do cheque a pagamento, não era exigível.
9) Ficou provado que o cheque objecto dos autos, datado de 20/10/95, foi apresentado a pagamento antes daquela data, veio a ser devolvido por falta da provisão verificada em 20/12/94 e em 24/04/95.
10) Da prova produzida em julgamento - através das declarações da testemunha DD - foi testemunhado que o embargado tinha acordado com a testemunha não apresentar o cheque a pagamento antes da data nele aposta. O embargado, ora Recorrido, tinha perfeito conhecimento de que a embargante era alheia ao acordado com a testemunha. Pelo que, obviamente, a conta bancária daquela não estava devidamente provisionada.
11) Donde se pode tirar a ilação que a obrigação não era exigível e esta só seria exigível em Dezembro de 1995 (e não em Dezembro de 1998 como alegado inicialmente pela embargante).
12) Por fim, quanto ao facto de que parte da quantia exequenda já está a ser executada no processo n.º 237/98 do 1.º Juízo Cível do Tribunal de Comarca de Viseu, pelo que o exequente está a pagar-se duas vezes pela mesma dívida, é nosso entendimento que o alegado pela Embargante ficou provado pela junção aos autos, por requerimento datado de 01/07/1999, documentos de fls. (..) e que se tratam de certidões do referido processo.
13) Verificam-se nos autos em apreço factos modificativos, extintivos ou impeditivos do credito executado pelo embargado nos autos principais, pelo que os embargos apresentados pela ora Recorrente deveriam ter sido considerados procedentes.
14) A isto acresce que face aos embargos apresentados pela Recorrente, caberia ao embargado alegar e provar os factos constitutivos do seu direito. O que não aconteceu no processo ora em apreço.


3. Não foram apresentadas contra-alegações. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir.
Os factos provados, são os seguintes:
1. O exequente, ora embargado, é portador do cheque junto a fls. 8 do processo principal, cujo teor se dá por reproduzido, com o nº 8245883699, no valor de 1.600.000$00, datado de 20/10/1995, sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, agência da Praça do Comércio, Lisboa.
2. No local destinado à assinatura do sacador, encontra-se aposta assinatura da executada, ora embargante.
3. Apresentado a pagamento, o dito cheque veio a ser devolvido ao Serviço de Compensação do Banco de Portugal por falta de provisão verificada em 20/12/94.
4. E em 24/4/95.
5. A executada assinou o cheque dos autos.
6. A executada, após assinar o referido cheque, entregou-o ao seu filho DD.
7. Logo no dia imediato, o cheque foi posto à cobrança.
8. Tendo sido devolvido na data referida em 3.
9. Só então é que o filho da executada lhe disse que o cheque se destinava a garantir o pagamento da importância de cerca de 380.000$00.
10. O filho DD disse à executada que se comprometera a pagar a quantia dita em 9º ao exequente em prestações mensais.
11. O exequente tinha emprestado dinheiro ao outro filho da executada, o Amir.
12. O DD acedeu a preencher o cheque pela importância de 1.600.000$00.



4. Os factos provados e a ter em conta são os que se acabam de mencionar, não obstante a referência ao registo fonográfico de algumas testemunhas, feita na alegação da recorrente. E isto porque só a impugnação do julgamento de facto feita na forma expressa no artigo 690.º- A do Código de Processo Civil é relevante. Não tendo sido dado cumprimento a tal normativo não há que reapreciar a matéria de facto vinda da 1.ª instância e assim temos de conhecer da causa nos limites desse quadro factual.
Com base nele o sr. Juiz teve em conta a obrigação cambiária resultante do cheque e qualificou-o como de favor ou garantia; não entre a sacadora e o tomador exequente, mas entre este e o anterior tomador, filho da embargante, a favor de quem esta o emitiu.
Em traços gerais foi decidido que a embargante é estranha à relação de favor e por esse motivo não pode opor ao exequente as excepções que porventura lhe poderia opor o anterior tomador (seu filho). E tem razão o sr. juiz.
Na verdade, não se questiona a validade do título executivo, aqui consubstanciado num título cambiário que vale pela sua autonomia. O cheque é aqui usado como título executivo consubstanciador duma relação cambiária e não como mero documento particular assinado pelo devedor, que importe a constituição ou reconhecimento duma obrigação pecuniária - artigo 46.º, al. c) do Código de Processo Civil – (caso em que a jurisprudência está longe de ser unânime na sua aceitação, como título executivo).
É naquele contexto, e bem, que aqui está a ser reconhecido, porque, não só encerra os requisitos do artigo 1.º da respectiva Lei Uniforme, como ainda não deixa de se verificar o requisito da sua apresentação atempada a pagamento. Na verdade, tratando-se embora de cheque post-datado, sempre seria pagável na data da apresentação (artigo 28.º da LUC) e nos oito dias posteriores (artigo 29.º).
O facto de ter sido apresentado antes dessa data apenas relevaria para efeitos penais, deixando o tomador de gozar dessa tutela, face ao disposto no artigo 11.º, n.º 3 do Dec. Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro. Já quanto à tutela civil não deixa de dela gozar o tomador que apresenta a pagamento o cheque antes da data nele aposta, com a diferença de que só a partir de então se torna exigível o crédito.

5. O que a apelante pretende com o seu recurso é que se lhe reconheça o direito de opor ao tomador exequente a excepção de favor, pois que nada lhe deve. Quem eventualmente deve é o filho e foi a ele que ela entregou o cheque por si subscrito; não para pagar o que quer que fosse, mas para garantir o débito do filho.
Na sentença já se disse, e muito bem, que a apelante só poderia opor esta excepção ao apelado se a tivesse negociado com ele, mas o que ela fez foi assumir a eventual dívida do filho, considerando-se ela própria como um terceiro (assuntor) que se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem (artigo 595º do C. Civil), ocorrendo mesmo uma assunção cumulativa de dívida na falta, ao que tudo indica, de declaração expressa no sentido da liberação do primitivo devedor.
Como se sabe, as pessoas accionadas em virtude de um cheque não podem, em princípio, opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores – artigo 22º da LUCH. ( cfr. Acórdão do STJ, de 22/05/2003, em www.dgsi.pt , Processo n.º JSTJ000)
Logo, nunca a apelante pode eximir-se ao pagamento do cheque ao exequente, a pretexto de nada lhe dever directamente, uma vez que a sua obrigação é cartular; resulta do cheque e tem nele a sua causa. O facto de ter assinado o cheque e o ter entregue ao filho (preenchido ou aceitando o preenchimento) colocou-a na situação de assumir o que este dele fizesse, pagando, pela ordem que nele deu ao Banco sacado, a quem com ele se lhe apresentasse para receber a quantia nele titulada.
De resto, este nem sequer é propriamente um cheque de garantia ou de favor, na relação emitente tomador, porque só se está perante um “cheque de garantia” quando o cheque é entregue em garantia de pagamento, isto é, quando o emitente e o tomador acordam nessa precisa função.( cfr. Acórdão do STJ, de 15/02/99, em www.djsi.pt , Processo n.º 99P1080) É que esse acordo só terá existido entre o exequente e o anterior tomador (o filho da embargante), a ele sendo alheia a própria sacadora.
Numa coisa tem razão a apelante: o facto de o cheque estar datado para 20/10/1995 e ter sido apresentado a pagamento muito antes dessa data, não confere ao exequente o direito de considerar o seu crédito vencido antes da data prevista, o que significa que não há mora antes de 20/101995.
Concluindo:
- O cheque post-datado constitui título executivo cambiário quando apresentado a pagamento antes da data nele mencionada.
- Tendo o obrigado cambiário entregue a um filho o cheque, após o subscrever, e tendo este, por sua vez, entregue o mesmo cheque a outrem, para garantia de pagamento da sua dívida, deve entender-se que o sacador assumiu a dívida do filho, considerando-se ele próprio como um terceiro (assuntor) que se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem (artigo 595º do C. Civil), ocorrendo mesmo uma assunção cumulativa de dívida na falta de declaração expressa no sentido da liberação do primitivo devedor.
- Por isso e pela autonomia da relação cartular, não pode o obrigado cambiário opor ao tomador a excepção de favor ou garantia que porventura lhe poderia opor o filho, a quem antes havia entregue o cheque.
- Por conseguinte devem improceder os embargos de executado opostos à execução pela sacadora do cheque, com o fundamento de que nada deve ao exequente.

6. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida, com o esclarecimento que, no final do n.º anterior, se deixa consignado sobre a mora.
Custas a cargo da apelante.
Coimbra,
Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Custódio Costa e Ferreira de Barros