Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
436/07.6TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: COMPENSAÇÃO DE DÍVIDA
REQUISITOS
PROCESSO
Data do Acordão: 12/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 847º, Nº 1, C. CIV.
Sumário: I – De harmonia com o disposto no nº 1 do artº 847º, do C. Civ. e observados os requisitos estabelecidos nas diversas alíneas desse número, quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor.

II – De entre os requisitos que enumera, impõe o referido normativo que o crédito do compensante seja exigível judicialmente e que contra ele não proceda qualquer excepção de direito material.

III – O requisito de compensação que se traduz na necessidade de o crédito ser exigível judicialmente, significa tão só que o mesmo deve ser susceptível de ser reconhecido em acção de cumprimento, assim se concordando plenamente com o entendimento plasmado no Ac. da Rel. Porto de 9/05/2007 (in Col. Jur., Ano 2007, tomo III, pg. 172).

IV – Ou seja, o crédito invocado para operar a compensação (crédito activo) não tem de se mostrar aceite pela parte contra o qual se pretende fazer valer – e também não tem de ser um crédito que previamente haja sido judicialmente reconhecido.

V – Invocada por via de excepção, na contestação, a compensação fundada em crédito activo susceptível de ser reconhecido em acção de cumprimento, na hipótese de este não se poder ter por indiscutido tal compensação só se poderá considerar eficaz caso na sentença a proferir esse mesmo crédito activo venha a ser reconhecido.

VI – Porém, se o credor já exigiu o seu crédito em acção que para tal intentou contra o devedor, contestada por este e estando pendente, não pode aquele exigir, de novo, tal crédito litigioso, ou parte dele, sob a capa da compensação, em acção em que, posteriormente, seja demandado por esse devedor.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:

A) - A...., com sede na ...., intentou, em 2/04/2007, no Tribunal Judicial da Comarca de Tomar, contra “B....”, com sede na ...., acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, nos termos do DL n.º 269/98, de 1 de Setembro (na redacção introduzida pelo DL n.º 107/2005, de 1/7), pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 6.173,13, respeitante ao capital em dívida, acrescida dos juros de mora já vencidos, no montante de € 1.288,556, bem como dos vincendos, desde a citação e até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que, no desenvolvimento das respectivas actividades de comerciantes, a pedido da Ré a Autora forneceu-lhe e esta adquiriu, diversas quantidades de Betão C 20725 S3 25, serviços de betão, entre o período compreendido entre 17/11/2004 e 24/11/2004, na quantia global de € 6.173,13, cujas facturas a ré não pagou.

Na contestação que apresentou, a ré, aceitando o restante alegado pela autora, discordou do facto de esta afirmar que lhe devia a quantia peticionada, já que, tal dívida seria de ter por extinta, uma vez que ela, Ré, detém um crédito sobre a Autora no valor de € 46.264,54, que pretende compensar, crédito este, que, adiantou, encontra-se por si peticionado em acção instaurada contra a A., a correr termos no 3º Juízo do T.J. de Tomar sob o n.º X.

Sustentou que a decisão da acção acima referida constituía causa prejudicial relativamente à decisão da matéria relativa à compensação de créditos aqui invocada, pelo que requereu, a suspensão da instância nos termos do artigo 279° do CPC, até que fosse proferida decisão no aludido processo n° X, pedindo, subsidiariamente, para o caso dessa suspensão não ser deferida, a procedência da excepção da compensação, com a sua absolvição do pedido.

A autora, negando ser devedora da Ré, opôs-se à invocada compensação de créditos, sustentando verificar-se a litispendência, no que concerne à apreciação da respectiva matéria.

Sustentou, por outro lado, não ocorrer motivo justificado para se atender à requerida suspensão.

Em despacho de 21/05/2008, proferido a fls. 233, que não foi impugnado, indeferiu-se a requerida suspensão da instância, entendendo-se, para o efeito, que não estavam preenchidos os pressupostos que permitissem concluir pela existência de causa prejudicial, nem havia motivo justificado que exigisse a suspensão da instância.

Em 06/08/2008 (fls. 267 a 275), referindo que o estado dos autos o habilitava a conhecer do mérito da causa, o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo” proferiu sentença, onde, considerando improcedente a compensação de créditos, julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar à A. o preço das mercadorias que esta lhe vendera, e dos serviços que lhe prestara, no montante de € 6.173,13, acrescidos dos juros de mora, vencidos e vincendos, a contar da data de vencimento de cada uma das facturas, à taxa legal prevista para a as obrigações comerciais, até integral pagamento.

B) - Inconformada com esta decisão, dela apelou a Ré, findando as respectivas e doutas alegações com as seguintes conclusões:

[……………………………………………………………]

         Pugnando pelo provimento do recurso, terminou defendendo a sua absolvição do pedido.

Contra-alegando, pugnou a Apelada pela improcedência do recurso e confirmação da sentença impugnada.

C) - Questões a resolver:

Em face do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 4, 690, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).

Assim, a questão a resolver consiste em saber se o Tribunal “a quo”, ao desentender a compensação invocada pela Ré, julgando a acção procedente, nos termos decididos, agiu em desconformidade com os preceitos legais cuja violação a ora Apelante lhe imputa.

II - Fundamentação:

A) - Os factos:

Na sentença da 1.ª Instância foi considerada como factualidade provada, a seguinte matéria:

[…………………………………………………………………]

B) - O direito:

A condenação da Ré nos termos decididos na sentença recorrida decorreu da circunstância de, evidenciando-se estar-se perante contrato misto, de compra e venda e de prestação de serviços (com retribuição) e reconhecendo-se o crédito exigido pela autora, derivado da falta de pagamento a que a Ré estava obrigada, do preço mercadorias que lhe foram vendidas e entregues (artºs. 874º e 879º do CC) e da retribuição correspondente aos serviços que a Autora lhe prestara (art.ºs 1167º, b), aplicável «ex vi» do art. 1156º, ambos do CC), ter sido julgada improcedente a compensação de créditos invocada pela ora Apelante.

Ora, o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, para julgar improcedente a aludida compensação - e é esta a discordância desta improcedência, decidida logo após os articulados, sem prévia audiência de julgamento, que constituí, afinal, o ponto fulcral da defesa da Ré no sentido da sua absolvição do pedido - entendeu, em síntese, que:

- A Ré não possuía qualquer crédito reconhecido judicialmente (não obtivera, até então, vencimento na acção judicial identificada) que pudesse opor à Autora mediante simples declaração;

- Esse eventual crédito, uma vez que se encontrava a ser apreciado judicialmente, levaria a que se concluísse estarmos na presença de uma situação de litispendência quanto à questão em causa;

- Nos casos em que o valor crédito a compensar é superior ao crédito peticionado o meio processual adequado é a dedução de pedido reconvencional que, na tramitação destes autos, se mostrava inadmissível (arts. 1º e ss do regime anexo ao DL n.º 269/98 de 1 de Setembro).

Vejamos:

A absolvição da ré decorreria da circunstância de, reconhecendo-se o crédito exigido pela autora, se reconhecer, também, a existência de um contra-crédito da ré sobre esta, crédito este que, embora de valor superior, se pretendia fazer valer em montante igual ao peticionado, de forma que, operando-se a compensação invocada pela ré, extinguir-se-ia este crédito da autora.

De harmonia com o disposto no n.º 1, do art.º 847º e observados os requisitos estabelecidos nas diversas alíneas desse número, quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor.

De entre os requisitos que enumera, impõe o referido normativo, que o crédito do compensante seja exigível judicialmente e que contra ele não proceda qualquer excepção de direito material.

O requisito de compensação que se traduz na necessidade de o crédito ser exigível judicialmente, significa tão só que o mesmo deve ser susceptível de ser reconhecido em acção de cumprimento, assim se concordando plenamente com o entendimento plasmado no Acórdão da Relação do Porto de 09/05/2007 (in Col. Jur., Tomo III, Ano 2007, pág 172 e ss.).

Ou seja, o crédito invocado para operar a compensação (crédito activo), não tem de se mostrar aceite pela parte contra o qual se pretende fazer valer. E também não tem de ser, afigura-se-nos, um crédito que prévimante haja sido judicialmente reconhecido.[3]

Com efeito, conforme se salienta no citado Acórdão de 09/05/2007 “…exigibilidade judicial do crédito activo (imposta pelo art. 847°, n° 1) e o reconhecimento judicial do mesmo, para efeitos do funcionamento do mecanismo da compensação, são realidades distintas: a primeira é requisito da declaração de compensação; a segunda é condição da sua eficácia.

Constituiria verdadeiro paradoxo aceitar-se o exercício, pelo credor passivo, do seu direito de crédito, através da competente acção de cumprimento, e exigir-se ao declarante da compensação na mesma acção (réu) que a invocação em juízo do seu crédito carecesse de reconhecimento judicial prévio.”.

Já nesta linha de raciocínio se tinha pronunciado esta Relação de Coimbra, no Acórdão de 03/07/2007, proferido no processo n.º 347/06.2TBANS.C1, onde se referiu: “…uma coisa é a compensação que se declara extrajudicialmente e outra, diversa, tem que ser a compensação operada/declarada em processo judicial.” E mais adiante, em jeito de conclusão: “…quando num processo a compensação é, por via reconvencional, invocada, os requisitos do art. 847.º do CC têm de verificar-se no momento da sentença e não no momento da propositura da acção e/ou no da dedução da defesa/reconvenção.”[4]. O mesmo se aplica, “mutatis mutandis”, diremos nós agora - pois sendo a situação idêntica, não há razões para entender de outro modo -, quando a compensação é invocada por via de excepção.

Ou seja, fazendo a síntese dos entendimentos seguidos nestes dois arestos e à semelhança do que se refere num deles (no Acórdão de 09/05/2007), diremos que: invocada por via de excepção, na contestação, a compensação fundada em crédito activo susceptível de ser reconhecido em acção de cumprimento, na hipótese de este não se poder ter por indiscutido[5], tal compensação só se poderá considerar eficaz, caso na sentença a proferir esse mesmo crédito activo venha a ser reconhecido.

Só que, ao que se nos afigura, sobre o aludido crédito não poderá recair esse reconhecimento na presente acção.

Efectivamente, afigura-nos que o credor que já exigiu o seu crédito em acção que para tal intentou contra o devedor e que, tendo sido contestada por este, se encontra pendente, não pode exigir, de novo, tal crédito litigioso, ou parte dele, sob a capa da compensação, em acção em que, posteriormente, seja demandado por esse devedor. Isto, pois, independentemente dessa conduta se materializar por via de excepção ou, antes, concretizar-se na dedução de pedido reconvencional, sucedendo apenas, neste último caso, que a constatação manifesta da litispendência, verificada a tríplice identidade prevista no art.º 498º nº 1, do CPC, acresce a obstar a pretensão de quem, assim, invoca o contra-crédito compensante.

Sem embargo do exposto, vejamos, o que dizer sobre o modo de exercitar a compensação - se como excepção ou, antes, deduzindo pedido reconvencional -, com vista a perscrutar o que de útil, “ex abundanti” se poderá acrescentar no caso “sub judice”.

Nesta matéria, adianta-se já, perfilha-se o entendimento expendido no recente Acórdão do STJ de 28/5/2009 (Agravo n.º 09B0676 ), assim sumariado: «I- Nos casos em que estamos perante um contracrédito do réu de montante superior ao do autor e aquele pede, na contestação da acção que lhe foi movida por este, a compensação de tal crédito, estaremos perante um pedido de natureza reconvencional (compensação pedido).

Porém, nos casos em que, sendo o contracrédito do réu de montante inferior ao crédito do autor, aquele apenas alega tal crédito, não pedindo a condenação do autor no seu pagamento, mas invocando matéria factual que, em caso de provada, reduzirá ou impedirá a produção dos efeitos jurídicos dos factos alegados pelo autor, estaremos perante a dedução de uma excepção peremptória ( compensação excepção).».

Explicitando a opção por este entendimento, prossegue-se nesse aresto dizendo, com apelo à jurisprudência e à doutrina:”…no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 14 de Janeiro de 1974, ponderou-se que «a reconvenção supõe um pedido formulado pela Ré contra o autor, artº 274º, nº 1 do Código de Processo Civil; admitir que a lei (este preceito, nº 2, alínea b)) faz sempre da compensação caso de reconvenção, é entendimento que não se pode aceitar, segundo o Prof. Anselmo de Castro, «pelas aberrantes consequências, inadmissíveis em qualquer sistema legal, a que conduz, pois que converte a simples compensação-defesa numa artificial reconvenção com todas as inerentes e inaceitáveis implicações: - a modificação da forma do processo e da alçada em razão do aumento do valor da acção pela adição do contracrédito ao valor inicial; - e a impossibilidade da invocação da compensação em processo sumaríssimo, ou com base em crédito para que o Tribunal não tenha competência em razão da matéria com a consequente decisão da causa em desconformidade com o direito objectivo».

Na verdade, segundo Anselmo de Castro, «há que restringir o âmbito da disposição sobre a reconvenção aos casos em que a compensação é uma verdadeira reconvenção (compensação-pedido), isto é, em que o contracrédito (líquido ou ilíquido) seja de montante superior ao do autor e o réu peça a condenação ou a declaração do crédito, quanto ao excedente.”»[6] [7].

Dir-se-ia que, aparentemente, se poderia concluir “in casu”, que, muito embora o contra-crédito que a Ré diz possuir sobre a Autora fosse de valor superior ao do crédito cujo pagamento esta peticiona, não havendo qualquer pedido de condenação (no sentido técnico-jurídico do nº 3 do artº 498º do CPC) formulado pela Ré contra a Autora, não se colocaria a questão da litispendência, que supõe repetição de causas com identidade de pedidos.

Adiante retornaremos a esta matéria, cabendo agora concluir que, não tendo a Ré formulado reconvenção - que, também como vimos, não seria adequada à pretensão de fazer valer a compensação invocando crédito de valor não superior ao do crédito peticionado -, mas tão só, contraposto o montante do seu crédito na medida daquilo que lhe era exigido pela Autora, não assume relevância a asserção do Mmo. Juiz - correcta, no entanto - de que o tipo de processo em causa não admite tal acção cruzada.

Atente-se, no entanto, nas palavras do Prof. Varela[8], que o referido Acórdão de 28/5/2009 reproduz: «sendo compensação de créditos (independentemente do seu valor) uma figura híbrida, um produto misto de reconvenção e de excepção peremptória, o seu regime deve ser determinado, nos vários aspectos em que a problemática da compensação no processo se desdobra, de acordo com os critérios da integração das lacunas da lei estabelecidos no artº 10º do Código Civil, salvo se outra for, num e noutro aspecto, a intenção expressa da lei».

Esta similitude é particularmente patente em casos como o presente em que a negação da formação de caso julgado (ou da constatação da litispendência, não havendo, ainda, decisão transitada em qualquer dos processos), se apoia na circunstância de, na compensação formulada por via de excepção não haver “pedido” que possa completar o preenchimento da tríplice identidade exigida no art.º 498º nº 1, do CPC.

É certo que não existe pedido de condenação da contraparte, mas não deixa de haver solicitação ao tribunal no sentido de reconhecer o contra-crédito e de o compensar com o da Autora, de modo que o efeito prático é equivalente ao do reconhecimento do direito na compensação deduzida por via reconvencional.

Vejamos.

Estabelece o artigo 497º, nº 1, do CPC, que as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar há litispendência.

Por outro lado, o artigo 498º do CPC prescreve:

1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (...).

O caso julgado material pressupõe, assim, a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, ou seja, que tenha transitado em julgado.

A litispendência - tal como o caso julgado -, tem, essencialmente, por fundamento uma razão de certeza ou segurança jurídica, e ocorre quando se dá a repetição de uma causa, encontrando-se a anterior ainda pendente.[9]

Vejamos, fazendo o raciocínio em torno do caso julgado, isto é, pressupondo que transita a decisão proferida numa das acções em causa.

É certo que a decisão sobre as questões suscitadas pelo Réu, designadamente por via de excepção, em princípio, só forma caso julgado fora do processo, caso julgado material, portanto, se pedido for por alguma das partes o julgamento com essa amplitude e inexistirem os óbices referidos na parte final do n.º 2 do art.º 96º do CPC.

Importará atentar, também, que, não obstante o artigo 673.º do CPC dispor que «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga», existe divergência de entendimentos quanto aos limites objectivos do caso julgado.

Há consenso no que respeita a entender que a eficácia do caso julgado da sentença não se estende a todos os motivos objectivos da mesma. Contudo, enquanto para uns, os fundamentos ou motivos que constituírem antecedente lógico, necessário e imprescindível da decisão final, estão também cobertos pelo caso julgado, este, para outros, abrange apenas aquela decisão.

Quanto a nós afigura-se que o caso julgado embora se forme, em regra, apenas sobre a parte decisória da sentença, é susceptível de abranger também as questões preliminares que, tendo sido decididas expressamente na fundamentação da sentença, constituam antecedente lógico, necessário e imprescindível da decisão final. É este, aliás, com uma ou outra pequena variação, o entendimento dominante na jurisprudência do STJ (Cfr., Acórdão de 24-04-2002, Revista n.º 671/02 - 7.ª Secção, Acórdão de 09-05-2002, Agravo n.º 1031/02 - 6.ª Secção, Acórdão de 17-05-2001, Revista n.º 1220/01 - 7.ª Secção, e Acórdão de 30-10-2001, Agravo n.º 2831/01 - 6.ª Secção)[10] [11].

Ora, em casos como aquele que se analisa, a relação jurídica creditícia que o Réu, por via de excepção, traz aos autos para ver reconhecido o seu crédito e compensado este com aquele que confessa ter sobre ele a Autora, com vista a obstar à condenação do respectivo pagamento, está compreendido na relação jurídica que ela, Ré, anteriormente, submeteu à apreciação do Tribunal noutra acção em que demandou a aqui Autora, para pagamento do crédito de cujo montante global faz parte aquele que aqui pretende compensar, acção essa contestada e ainda pendente.

Parece inequívoco que, caso fosse atendido o pedido da aqui Ré, a decisão da improcedência da acção passaria, inevitavelmente, pelo reconhecimento do seu crédito e pela afirmação da relevância deste para compensar o crédito cujo pagamento fora peticionada pela autora. A decisão quanto ao contra-crédito invocado pelo Réu para exercitar a compensação, assumir-se-ia, pois, como antecedente lógico, necessário e imprescindível da sentença.

Não se vê como, sendo aqui apreciadas a existência e a eficácia compensante do crédito que a Ré sustentar possuir sobre a Autora, se poderia, na acção que corre termos com o n.º X, decidir, sem, em parte, contrariar ou repetir, o que entendido havia sido nos presentes autos quanto a essa matéria.

E semelhante possibilidade de repetição ou de contradição parcial ocorreria, com aquilo que viesse a ser decidido nos presentes autos, se julgada em primeiro lugar a referida acção n.º X.

A situação seria, a nosso ver, análoga à do caso julgado, ocorrendo o trânsito de alguma dessas decisões, ou, estando ambas as causas em curso, como aqui sucede, à litispendência.

A consequência da dedução de uma excepção que a tais resultados conduz, só pode ter, como correspondência à absolvição da instância da Autora, caso a compensação fosse formulada em pedido reconvencional, a respectiva improcedência.

Dir-se-ia que a suspensão da instância na presente acção, com base no preceituado no art.º 279º, n.º 1, do CPC - entendendo-se, v.g., configurar-se motivo justificado para tal - poderia ser solução equacionável.

Trata-se, contudo, não obstante a incursão da Apelante em tal matéria, de solução arredada pelo caso julgado formal constituído pela decisão de indeferimento, não impugnada, que mereceu o requerimento de suspensão de instância em tempos apresentado.
A antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em causa matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas (cfr. art.º 510, n.º 1, b) do CPC). A mesma razão está subjacente à decisão de mérito que se prevê no art.º 3, nº1, do regime aprovado pelo DL 269/98, de 1/9.
Tal conhecimento, deve ocorrer, pois, nas situações (sem nos determos noutras que ao caso são inaplicáveis) em que seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos.
Na verdade, conforme refere Abrantes Geraldes (in Temas da Reforma de Processo Civil, II vol. 4.ª edição, pág. 132), “Se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afectada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na elaboração da base instrutória e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito.
Tanto faz que esta decisão seja favorável ao autor como ao réu. Se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da acção torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil toda a tarefa de selecção da matéria de facto, instrução e julgamento da mesma.”.
Ora, de tudo o que se explanou extrai-se a conclusão de que a excepção da compensação não poderia proceder, por razões que, tendo a ver apenas com a interpretação das normas aplicáveis, em nada poderiam ser afectadas pela susceptibilidade da prova dos factos que integravam tal excepção.
Assim, votada ao fracasso a excepção “sub judice”, o adequado não era o prosseguimento da acção para prova de factos controvertidos, mas antes julgá-la improcedente logo na ocasião em que o foi, bem tendo andado o Tribunal “a quo” ao assim proceder.

Em suma: Em face de tudo o exposto tem-se por correcta a decidida procedência da acção, com improcedência da excepção da compensação, entendendo-se que na sentença recorrida o Tribunal “a quo” não infringiu qualquer preceito legal, nomeadamente, aqueles cuja violação a Apelante lhe imputa.
Improcedem, pois, as doutas conclusões da Apelante, sendo de manter “in totum” a sentença da 1.ª Instância.

III - Decisão:
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida.
 
Custas pela Apelante.


[1] Os preceitos que deste Código forem citados, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ, ou os correspondentes sumários, citados sem referência de publicação.
[3] Na linha do entendimento seguido pelo STJ no Acórdão de 30/09/2008, Revista n.º 2001/08 - 1.ª Secção, assim sumariado na parte que ora releva:« I - A compensação pode ser invocada quer a título de acção, de reconvenção ou de mera excepção, sendo judicialmente exigível a dívida cujo pagamento pode ser exigido em juízo, e não sendo necessária a prévia condenação no pagamento para se poder invocar o crédito nesta sede.».
[4] Acórdão a cujo texto integral se pode aceder através do endereço http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/.
[5] A posição a assumir perante a invocada compensação, (que pode ser a de aceitação), deverá ocorrer no articulado subsequente à contestação, havendo lugar a ele, ou, caso seja aquela seja invocada no último articulado, na resposta que a tal excepção o art.º 3.º, n.º 4, do CPC, permite dar na audiência preliminar ou no início da audiência de julgamento.
[6] Cfr. tb. Acórdão do STJ de 01/04/2008, Revista n.º 4684/07 - 1.ª Secção, assim sumariado, na parte que ora releva: «III - A defesa por compensação deve ser deduzida por via de excepção quando o crédito do contestante é inferior ao crédito do autor; e por via de reconvenção, quando lhe é superior. Quando nesses casos, proceda simultaneamente a acção e a reconvenção pode o Tribunal, a final, determinar a compensação judiciária.».
[7] Cfr., explicitando a problemática, o Acórdão da Relação do Porto de 20/03/2001 (Apelação n.º 0021322), onde se diz: «Nos casos em que o crédito invocado excede o montante do crédito do autor e o réu pretende a condenação daquele no quantitativo correspondente à diferença, deve naturalmente a compensação operar-se por via de reconvenção, nos termos do artigo 274º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
As divergências surgem, porém, nos casos em que o crédito do réu é de montante igual ou inferior ao do autor ou, sendo de montante superior, o réu não pretende todavia a condenação do autor no montante excedente.
Neste caso, pretendendo o réu, com a compensação invocada, obter apenas a improcedência total ou parcial da acção, a maioria da doutrina defende que aquela pode ser deduzida como excepção peremptória.
É nesse sentido que se fixou a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça depois do Acórdão de 2-7-74, tirado por unanimidade em reunião conjunta das secções cíveis e publicado no BMJ nº 239, pág.120 (conf. Acórdãos de 8-2-77, 7-6-79, 14-1-82, 2-7-85 e 24-1-91, publicados no citado BMJ nº 264, pág. 134, nº 288, pág. 302, nº 313, pág. 288, nº 349, pág. 440, e nº 403, pág. 364).
Entende-se que, não obstante no citado artigo 274º, nº 2, alínea b) se dispor que é admissível a reconvenção quando o réu se propõe obter a compensação, deve esta, por regra, ser oposta por via de excepção.
A reconvenção apenas será de utilizar no caso de o crédito do réu ser de montante superior ao do autor e aquele pretender exigir a este o pagamento da parte excedente. (Acórdão consultável, tal como os restantes da RP que se citarem sem referência de publicação, em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”».
[8] Manual de Processo Civil, 2ª ed. 2004.
[9] Contudo, para que se verifique identidade de pedido entre duas acções não é necessária uma rigorosa identidade formal entre um e outro, sendo suficiente que sejam coincidentes o objectivo fundamental de que dependa o êxito de cada uma delas - Cfr. Calvão da Silva, "Estudos de Direito Civil e Processual Civil", 1996, pág. 234.
[10] Sumários consultáveis nos endereços “http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Anuais/Civieis/Civeis2001.pdf “ e “http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Anuais/Civieis/Civeis2002.pdf”.
[11] Em idêntico sentido, o Acórdão do STJ de 9/06/1989, no BMJ n.º 388, págs. 377 e ss.:”… a eficácia do caso julgado da sentença não se estende a todos os motivos objectivos da mesma, mas abrange as questões preliminares que constituiriam as premissas necessárias e indispensáveis à prolação do juízo final, da parte injuntiva da decisão, contanto que se verifiquem os outros pressupostos do caso julgado material. Esta formulação evita a incoerência dos julgamentos, em homenagem ao prestígio da justiça e prejuízo da estabilidade e certeza nas relações jurídicas, além de importar evidente economia processual.”.