Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CARDOSO DE ALBUQUERQUE | ||
Descritores: | MATÉRIA DE FACTO REAPRECIAÇÃO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO NULIDADE DE SENTENÇA RESPONSABILIDADE CIVIL AQUILIANA: SEUS REQUISITOS CULPA PRESUMIDA | ||
Data do Acordão: | 11/22/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE AVEIRO - 1º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 668, Nº 1, AL. C), 690º-A, Nº 1, E 712º, Nº 1, DO CPC ; 483º DO C. CIV. | ||
Sumário: | I – O artº 712º do CPC refere nas três alíneas do seu nº 1 quais as situações em que o Tribunal da Relação pode alterar a decisão da matéria de facto firmada pela 1ª instância, indicando-se no nº 1 do artº 690º-A do mesmo diploma quais os procedimentos que o recorrente deve assumir para que tal reapreciação possa verificar-se . II – A nulidade de sentença prevista no artº 668º, nº 1, al. c), do CPC, não se verifica quando o resultado a que o juiz chega na sentença deriva, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados . III – No quadro da responsabilidade civil extra contratual ou aquiliana, a factualidade integrante do direito à indemnização traduz-se, de acordo com o artº 483º do C. Civ. e conforme a sistematização de Antunes Varela e de Menezes Leitão, nas respectivas Lições de Direito das Obrigações, no preenchimento dos seguintes requisitos : a) a existência de um facto voluntário; b) a ilicitude do facto; c) a culpa; d) a existência de um dano reparável e de um nexo causal entre o facto e o dano . IV – A inobservância das leis e regulamentos e particularmente o desrespeito das normas preventivas reguladoras da circulação rodoviária, faz presumir a culpa na produção dos danos derivados de acidente de viação . | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Relação de Coimbra: I – A... residente na Residencial Complexo Turístico João Capela , Bungalow 7, Qta do Picado Aveiro, propôs no tribunal da comarca supra mencionado e em 2004/04/15, acção declarativa na forma sumária contra a B... com sede em Lisboa para efectivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, pedindo a condenação desta ao pagamento da quantia de € 4.952,12, acrescida de juros de mora desde a citação. Alega que em 2003/09/19, pelas 17 h foi interveniente num acidente quando tripulava o veículo automóvel ligeiro 72- 70-JH, que colidiu com um outro 00- 07- AD, conduzido por C... no interesse e sob as ordens do respectivo proprietário D..., seguro na R, por este surgir inesperadamente à sua frente quando ia completar a manobra de ultrapassagem de um outro veículo na R. Direita, em Aradas, sentido Aveiro-Qta do Picado, saindo de um parque de estacionamento existente do lado direito para tomar uma estrada que ali entronca do lado esquerdo com a dita rua. A A ainda travou e tentou o mais possível desviar-se para a sua esquerda, mas acabou por colidir com a frente do JH com o a parte lateral direita do AD a meio da hemifaixa de rodagem esquerda, resultando do acidente causado pois por exclusiva culpa da condutora do AD, danos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo o custo da reparação do JH e os derivados do tempo em que dele esteve privado, para conserto, além de incómodos que a tentativa da resolução extra judicial da questão lhe causou. Citada , a R contestou negando a versão dos factos descrita pela A, visto que a condutora do veículo seguro que seguia à frente de outro que a A ultrapassou, ter iniciado uma manobra de mudança de direcção para a esquerda, no dito entroncamento, devidamente sinalizada, antes da ultrapassagem, sendo a própria A que não tomou as devidas cautelas, ao iniciar e proceder a tal manobra, imprimindo grande velocidade, superior a 70 Klms /hora, concluindo pela improcedência. O processo seguiu termos com saneador e organização da base instrutória e no final , após julgamento com gravação da audiência , proferiu a Mma Juiza que a ela presidiu e na esteira da decisão sobre a matéria de facto, a douta sentença de fls em que absolveu a R do pedido. Inconformada a A recorreu de apelação, pedindo a revogação da sentença tendo concluído a respectiva alegação, nos termos seguintes : 1 – Nenhuma culpa pode ser imputada à A pela produção do acidente dos autos . 2 – A condutora do AD agiu, pelo menos , negligentemente, aquando da realização da manobra de mudança de direcção para a esquerda, porquanto antes de a iniciar, não se certificou se estava a ser ultrapassada. 3 - Face aos depoimentos de Maria Armanda Fernanda Almeida (segue-se a indicação da gravação ), Pompeu Jorge Gonçalves Gomes ( idem ) e António Manuel da Silva Cavaleiro (idem) resulta inequívocamente demonstrada a culpa da condutora do AD pela produção do acidente ( doc. nº1) 4 – Na procedência do recurso quanto à matéria do acidente , deverá a Relação fixar os danos sofridos por aquele , o que deverá ser feito tendo em conta os factos provados sob os pontos 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36 e 37. 5 – Ao decidir nos termos da douta sentença em recurso, o Tribunal “a quo” violou o disposto nos artºs 35º , 36º, 38º e 44º do C Estrada , dos quais fez uma incorrecta interpretação e aplicação, sendo manifesto o erro na apreciação da prova (artº 690º, -A, nº1 do CPC). 6 – A sentença em recurso está ferida de nulidade prevista no artº 668º, nº1 aln c) do CPC A R contralegou de forma muito sucinta, sustentando o acerto da sentença . Nesta instância, foram colhidos os vistos legais. Cumpre, pois, apreciar e decidir. II – São os seguintes os factos dados como assentes e provados na sentença : 1 – No dia 19 de Setembro de 2003, pelas 17horas, na R. Direita, Aradas, Aveiro, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, matrícula 72-70-JH, conduzido pela A , sua proprietária e o veículo ligeiro de passageiros , conduzido por C... e propriedade de D....(aln A). 2 – No local onde ocorreu o acidente, a estrada é plana (aln B). 3 – Apresente pavimento asfaltado, em bom estado de conservação (aln C) 4 – Dispõe de duas hemi faixas de rodagem (aln D) 5 – E dois sentidos de marcha , delimitados por um risco descontínuo no eixo da via (na lnm E) 6 – Desenvolve-se numa recta de boa visibilidade (qaln F). 7 – Na altura em que ocorreu o acidente era de dia e estava bom tempo (aln G). 8 – O JH circulava no sentido Aveiro – Qta do Picado(aln H). 9 – O embate ocorreu entre a frente do JH e a parte lateral direita do AD (aln I). 10 – Em consequência do acidente , o veículo JH sofreu danos (aln J). 11 – A responsabilidade civil extracontratual por danos causados a terceiros pela circulação do AD encontrava-se transferida para a R na altura do acidente por contrato de seguro titulado pela Apólice nº 6.6923549 – doc de fls 37 (aln L). 12 - No local onde ocorreu o acidente, a estrada tem cerca de 6mtrs de largura (1º) 13 – E bermas de ambos os lados da via com a largura de 1m.(2º) 14 – A referida estrada entronca pelo seu lado esquerdo, sentido Aveiro – Qta do Picado com a R da Primagera, cujo piso é de pedra e alcatrão e que dá acesso a uma fábrica de faianças e tem continuidade para além dessa fábrica (3º ) 15 – Na R. Direita não existe nenhuma sinalização de trânsito informativa da aproximação do entroncamento referido (5º ) 16 – A R. Direita naquele local é marginada de ambos os lados por diversas edificações urbanas (6º) 17 – Do lado direito de tal arruamento e no sentido indicado existe à frente dos prédios ali edificados um local destinado ao estacionamento de veículos (7º) 18 – A A circulava pela hemi-faixa direita, atento o sentido Aveiro- Qta do Picado (9º) 19 – E deparou-se com um veículo que seguia à sua frente, no mesmo sentido, mas em marcha mais lenta , pelo que resolveu ultrapassá-lo(11º). 20 – Não circulava nenhum veículo na hemi faixa esquerda (sentido da A) quando ela iniciou a manobra de ultrapassagem ao dito veículo de marcha lenta (13º) 21 – Transpôs a A o eixo da via e passou a circular pela hemi-faixa de rodagem esquerda (15º) 22 – Tendo acelerado ligeiramente a marcha do JH, afim de efectuar adequadamente e com segurança a ultrapassagem (16º). 23 – Quando estava a terminar a ultrapassagem, surgiu-lhe à sua frente e numa posição perpendicular ao eixo da via , o veículo AD ( 17º e 21º) 24 – A A travou e desviou o JH o mais que pôde para a sua esquerda , tentando assim, sem sucesso, evitar o acidente (22º) 25 – O acidente ocorreu na hemi-faixa esquerda, atento o sentido já indicado(23º). 26 –O JH em consequência do acidente sofreu danos na transmissão, manga do eixo, suspensão direita, braço da suspensão, canga, guarda .lamas e farolim do pisca pisca (24º) 27 – Cuja reparação importou em € 749,12 (25º) 28 – O JH é um ligeiro de passageiros de marca Fiat e mod. PUNTO(26º) 29 – À data do acidente estava o veículo em regular estado de conservação (27º) 30 – Nunca sofrera antes qualquer acidente (28º) 31 – Na altura (...) tinha um valor comercial de cerca de €3.500,00(29º). 32 – Em virtude do acidente , a A esteve privada de utilizar o JH desde a data do mesmo até 17 de Outubro seguinte, data em que lhe foi entregue depois de reparado (31º) 33 – A A exerce a profissão de empregada doméstica (33º) 34 – Necessitava do veículo diariamente nas suas deslocações de e para o trabalho(33º) 35 – E para levar a filha todos os dias ao infantário(34º). 36 – E nas suas deslocações com a família, para tratar de assuntos particulares, em saídas de descanso e lazer(35º) 37 – A A na perspectiva de resolução do assunto e ressarcimento dos danos contactou a GNR a fim de obter informações e a R , tendo perdido tempo com estas diligências(37º e 38º) 38 – O AD circulava pela R. Direita , no mesmo sentido do JH (41º) 39 – E pela hemi-faixa direita, atento tal sentido (42º) 40 – A velocidade não superior a 50Klms /hora (43º) 41 – Quando se aproximava do entroncamento que pela esquerda dà acesso à R de a Primagera , a sua condutora reduziu a velocidade (44º ) 42 – Encostou ao eixo da via (45º). 43 – E accionou o pisca-pisca do lado esquerdo, já que pretendia penetrar naquela rua (46º) 44 – À retaguarda do AD seguia outro veículo e só depois é que transitava o veiculo da A (47º) 45 – No sentido Qta do Picado – Aveiro não havia qualquer veículo em circulação (48º) 46 – A condutora do AD iniciou a manobra de mudança de direcção para a esquerda e quando já se encontrava com a frente do veículo apontada para a R da Primagera , surgiu , vindo da retaguarda, o JH que embateu no AD , projectando-o cerca de 2/3 mtrs para a frente, tendo este veículo ficado vol tado no sentido Aveiro- Qta do Picado (49º a 51º e 54º). 47 –O JH deixou vincado no pavimento um rasto de travagem superior a 18 mtrs de extensão, antes de embater no AD (55º) Além destes factos, considero igualmente demonstrado por acordo das partes e prova documental que : - Na R da Primagera e junto ao seu entroncamento com a R Direita existe no lado direito um sinal de STOP IV – O objecto do recurso é delimitado, como bem se sabe, pelas conclusões da respectiva alegação (artºs 660º,nº2, 684º,nº3 e 690º,nº1 do Cod de Proc. Civil) sendo as seguintes as questões nelas colocadas pela A: · Incorrecto julgamento da matéria de facto · Nulidade da sentença · Culpa na eclosão do acidente Apreciemos, pois, tais questões. 1ª Questão A apelante embora diga em jeito de conclusão que houve um incorrecto julgamento da matéria de facto e até para justificar tal discordância refira dois dos depoimentos gravados, acaba por não esclarecer devidamente que pontos da base instrutória entende deverem ser modificados por erradamente decididos. E semelhante omissão obviamente que desqualifica a impugnação deduzida, parecendo-nos mesmo que o que a apelante discorda é do juizo formulado pela Mma Juiza sobre a culpa do acidente que na sua perspectiva devia, sim, recair e em exclusivo, sobre a condutora do veículo seguro. Com efeito, o artº 712º do CPC refere nas três alíneas do seu nº 1 quais as situações em que o Tribunal da Relação pode alterar a decisão da matéria de facto firmada pela 1ª instância , indicando-se por seu turno no nº1 do artº 690º-A do mesmo diploma legal quais os procedimentos que o (a ) recorrernte deve assumir para que tal reapreciação possa verificar.-se. Assim , deverá o (a ) ver corrente especificar “quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” (aln a)do nº1 deste último dispositivo), bem como “quais os meios probatórios , constantes do processo ou do registo e gravalção da prova , quer imponham decisão diversa da recorrida “ (aln b) do mesmo normativo ) Ora a recorrente, nem nas conclusões da alegação , nem no arrazoado que as antecede precisa os pontos em que se verificou erro na apreciação da prova testemunhal e outra ( como a inspecção judicial) produzida no decurso da audiência, o que se limita muito singelamente é a invocar de forma global e genérica a existência de um incorrecto julgamento da matéria de facto, mas deixando entrever que a crítica não é tanto dirigida aos factos apurados sobre a génese e circunstâncias do acidente, antes à não valoração do comportamento negligente da condutora do veículo seguro que ao virar para a esquerda no entroncamento não se certificara seguramente da aproximação do veiculo da A , que ultrapassava naquele momento o veículo que circulava atrás de si. Deste modo estamos perante uma equivocada impugnação da decisão da matéria de facto, o que no fundo a recorrente questiona é a aplicação do direito, por erro de julgamento na valoração das manobras dos condutores que deram origem ao embate à luz do direito estradal aplicável, questão que iremos pois apreciar mas que nada tem que ver com a apreciação da prova, ou com qualquer omissão da sentença no que concerne ao exame crítico da mesma 2 ª Questão Também a A ataca a sentença, por via desta estar contaminada pela nulidade prevista no artº 668º, nº1 , aln c) do CPC. Esta nulidade verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Significa isto que a decisão proferida padecerá de erro lógico na conclusão do raciocínio jurídico se a argumentação desenvolvida ao longo da sentença apontar claramente num determinado sentido e, não obstante, a decisão for no sentido oposto Cfr Amâncio Ferreira , Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª ed , 49 e Ac.s do Supremo de 20/06/2000, Sumários 42º, 21e de 11/04/2002, Sumários, 4º, 2002. . Não se verifica, porém essa nulidade quando o resultado a que o juiz chega na sentença deriva, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão , mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados Cfr ac. desta Relação de 19/06/2001, JTRC1371/djsi/Net, entre muitos outros.. Assim, saber se a conclusão a que a Mma Juíza “a quo” chegou quanto à culpa na eclosão do acidente e que atribuiu em exclusivo à manobra feita pela A é ou não acertada e decidir se o enquadramento jurídico por ela feito é ou não o correcto constitui matéria de que não cabe curar em sede de nulidade da sentença. No caso, a Mma Juiza entendeu que perante os factos considerados provados a culpa deveria recair em exclusivo sobre a A e corolário lógico desse entendimento era a inevitável absolvição da R do pedido contra ela formulado. E foi isso precisamente que se decidiu na sentença recorrida que não se encontra, por isso inquinada da nulidade decorrente da contradição entre a decisão e os seus fundamentos. 3ª Questão Insurge-se , por último, a recorrente contra a atribuição da culpa feita na douta sentença. Nesta, entendeu-se que a A ao proceder à ultrapassagem do veículo que transitava à sua frente, na referida R Direita deveria ter em conta que à frente deste seguia um outro que intentava virar à esquerda no entroncamento onde se deu o embate e que sinalizara a manobra e mais, a ultrapassagem era-lhe vedada por lei – artº41º,nº1 aln c) do C. Estrada de 1994 então em vigor – , agindo pois de forma descuidada e imprevidente, não lhe sendo possível apesar da travagem, parar a tempo de evitar o embate com o veículo seguro que no momento ( do embate ) tinha já a sua frente apontada para a R da Primagera. Discordando em absoluto deste entendimento, a A defende que a culpa foi da condutora do veículo seguro na R, visto que ao proceder à dita manobra de mudança de direcção para a sua esquerda não se certificou de que atrás de si circulavam além do veículo que foi ultrapassado, o por ela tripulado que rodava na dita faixa esquerda da estrada e a uma distância e velocidade que não lhe permitiam deter a tempo o mesmo, tornando inevitável o embate. Vejamos . No quadro da responsabilidade civil extra contratual ou aquiliana, a factualidade integrante do direito à indemnização traduz-se de acordo com o artº 483º do C Civil e conforme a sistematização de Antunes Varela e de Menezes Leitão nas respectivas lições de Direito das Obrigações, no preenchimento dos seguintes requisitos : a) a existência de um facto voluntário, b) a ilicitude do facto, c) culpa d) a existência de um dano reparável e de um nexo causal entre o facto e o dano.. Desses pressupostos questiona-se no âmbito deste recurso a culpa, a qual exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente. O Código Civil consagra a tese da culpa em abstracto, ao prescrever no artº 487º que ela é apreciada pela diligência de um bom pai de família consoante as circunstâncias do caso, incumbindo a sua prova ao lesado, salvo existindo uma presunção legal que o favoreça. A tal propósito, convirá de facto ter presente que a inobservância das leis e regulamentos e particularmente o desrespeito das normas preventivas reguladoras da circulação rodoviária, no essencial condensadas no Código da Estrada faz presumir a culpa na produção dos danos derivados de acidente de viação. Essa presunção permite, assim, aliviar o ónus de prova que recai sobre o lesado, o que significa que provando-se que os danos foram causados por condutor ou pelo outro condutor, em consequência de manobra em contravenção aos preceitos estradais, cabendo ao presumido infractor a contraprova de factos que suscitem a duvida ao julgador , designadamente no que respeita à inobservância também pelo lesado das mesmas normas preventivas. Como acima assinalámos, considerou a Mma Juiza face aos factos apurados que na génese do acidente esteve unicamente a conduta culposa da A ao proceder à ultrapassagem e que a condutora do veículo seguro ao proceder a uma manobra de perigosidade similar, como é a mudança de direcção para a esquerda no seguimento de tal ultrapassagem, em nada contribuiu para o mesmo. Importa desde já afirmar que não perfilhamos este entendimento, sem quebra do devido respeito Disse- se na sentença que à A era proibida a ultrapassagem, porque feita nas proximidades de um entroncamento à esquerda da via onde se deu o embate entre a sua viatura que estava a ultimar a ultrapassagem pela faixa esquerda de outro veículo e a viatura segura que transitando adiante no mesmo sentido virara nesse entroncamento, ocupando em perpendicular, a respectiva faixa esquerda. Ora essa proibição não existia, em boa verdade. Com efeito o artº 41º , nº1 do C. da Estrada então aplicável ( de 1994,aprovado pelo DL 114/94 de 3 de Maio e revisto republicado em 1998, pelo DL 2/98 de 3/01 ) proíbe, sem dúvida, a ultrapassagem entre outras situações, imediatamente antes ou nos entroncamentos e cruzamentos (alnc). Sucede que o nº 4 da mesma disposição legal diz não ser a dita proibição aplicável, se o condutor transitar em via que lhe confira prioridade nos cruzamentos e entroncamentos e tal esteja devidamente assinalado (aln a) e que é justamente o que ocorre na situação dos autos, tendo em conta o sinal de STOP colocado na rua que entronca naquela por onde seguiam todos os veículos, incluindo o da A e à esquerda atento o seu sentido de marcha. Outrossim, não se ignora que não basta ao condutor que inicie uma ultrapassagem a outro veículo ou veículos ( em regra pela esquerda – artº 36º,nº1) fazê-lo em local que a lei expressamente não proiba, é necessário que ele adopte um certo número de cuidados e cautelas, dado o perigo objectivo que ela comporta e potencia. Por isso o Código enuncia um conjunto de regras no artº 38º e que, para melhor elucidação, se transcreve: “1 O condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com um outro veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido inverso: 2 – O condutor deve especialmente certificar-se de que : a) A faixa de rodagem se encontre livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança b) Pode retomar a sua mão de trânsito sem perigo para aqueles que ali circulem c) Nenhum condutor siga na mesma via ou na que situa imediatamente à esquerda iniciou manobra de ultrapassagem d) O condutor que antecede na mesma via não assinalou a intenção de ultrapassar um terceiro veículo ou de contornar um obstáculo.” Mas este preceito ainda tem de ser conjugado com o do artº 35º, em que se determina que o condutor que inicie tal manobra, como a própria manobra de mudança de direcção, deve fazê-lo por forma a que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o tráfego, manobra que deve ser devida e previamente sinalizada, com uso de dispositivos luminosos como se prescreve nos arttºs 20º,nº1 60º e 61º estes do Código da Estrada e 105º do Regulamento de Sinalização de Trânsito aprovado pelo D Reg. 22-A/98 de 1/10. Descendo, de novo, à factualidade apurada, constatamos que a A inciou a ultrapassagem de um veículo que transitava à sua frente numa via pública asfaltada de traçado recto, de dia e com boa visibilidade dividida ao meio por um risco descontínuo e com uma largura de cerca de 6 mtrs, e numa altura em que nenhum trânsito havia em toda a extensão da faixa esquerda, donde parecer que tal manobra não implicava perigo aparente de colidir com outro veículo ou perturbar a segurança do tráfego. Todavia embora tivesse alegado que fizera o devido sinal de luzes ao transpôr a linha de separação das faixas, não logrou provar essa precaução, como também não logrou provar que o veículo seguro na R e de matrícula AD, contra o qual foi embater, ter subita e inesperadamente virado à sua esquerda no entroncamento, quando finalizava aquela manobra, cortando-lhe a respectiva linha de trânsito e obrigando. –o a uma travagem de emergência com um rasto de cerca de 18 mtrs. Com efeito o que ficou apenas provado foi que a condutora do AD que ao contrário do que se dizia na petição, não partira de um estacionamento existente no lado direito da rua para súbita e inesperadamente avançar em perpendicular para o entroncamento, no momento em que o JH (veículo da A)completava a manobra de ultrapassagem, antes circulava na dita rua pela faixa direita, tendo feito o sinal de mudança de direcção para a esquerda e encostado, com redução da velocidade, ao eixo da via. Ora nesta base, a A não teve pois em devida consideração o risco que a manobra de ultrapassagem podia envolver, o que necessariamente traduz que ela não observou todas as cautelas exigíveis, acelerando a marcha da viatura, depois de passar a circular na faixa esquerda da via sem tomar em conta a presença a curta distância no eixo da via do veículo seguro, junto ao entroncamento que nada indicava não ser visível e com o dispositivo do pisca indicativo da sua intenção de virar à esquerda . . Na verdade, o que temos pela frente é uma situação de um acidente resultante do concorrência quase simultânea entre duas manobras envolvendo elevado risco para a intercepção da trajectória de ambos os veículos, sendo certo que quem intente mudar de direcção para a esquerda, também não pode deixar de se certificar de que da sua execução não resulte perigo ou embaraço para o trânsito, tanto traseiro como dianteiro, sendo que para além do dever de a sinalizar devidamente e com a necessária antecedência, tem o condutor, conforme o artº 44º de se aproximar com a necessária antecedência e o mais possível do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afecta a um ou a ambos os sentidos e efectuá-la de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação. E no caso, se não se põe em causa que a condutora do AD sinalizou a manobra e se aproximou do eixo da via antes de virar à esquerda no entroncamento com a mencionada R da Primagera, não pode deixar de concluir-se que ela não se certificou da aproximação a curta distância do veículo da A já que este travou de imediato e nela acabou por embater depois de deixar um rasto relativamente alongado de 18 mtrs.e se tentar desviar, perante tal emergência, o mais possível para a esquerda. De resto, sequer a R alegou, posicionada que estava a condutora do AD junto ao eixo da via ter observado o trânsito atrás de si na faixa esquerda posição em que lhe seria fácil dar conta da aproximação do veículo da A e da velocidade em que seguia, e isto o que inculca é que lhe cabe, pese embora ter feito o sinal, grande parte da culpa na produção do acidente que poderia ser evitado caso não se intrometesse logo na faixa esquerda de rodagem. Como escreveu o Dr Heitor Consciência no seu estudo sobre acidentes de viação Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel, 109, 110 e ao abordar esta problemática da concorrência das duas manobras e das suas implicações quanto à culpa, sem prejuízo de não se poderem fazer julgamentos genéricos, o condutor que vire à esquerda será normalmente o único que poderá evitar o acidente – se olhar para trás e ( ou para a retrovisor )imediatamente antes de virar. Temos assim que a condutora do veículo seguro agiu pois de forma descuidada e imprevidente, transgredindo o disposto no artº 35º do C da Estrada e a recorrente tem pois razão em criticar quanto a esse ponto a sentença recorrida. Mas se isto é certo , também é passível de censura o modo displicente como a A actuou, com efeito deveria face ao posicionamento a curta distância na via e sinais do veículo seguro junto ao entroncamento até pela boa visibilidade de que dispunha, prever o perigo da ultrapassagem, com a aceleração que imprimiu, pese embora não ficasse provado que o fizesse a velocidade superior a 70 Klms /hora e que não lhe permitiria deter o seu veículo se aquele inflectisse para a esquerda e cortasse a sua linha de trânsito. Não basta que quem inicie uma ultrapassagem se concentre na atenção do veículo à sua frente e se assegura estar livre de trânsito a faixa a faixa esquerda, deve sempre verificar se outros veículos a circular à frente do que se intenta ultrapassar pelos sinais e posição na via e distância a que se encontrarem, não possam constituir embaraço à retomada gradual e segura da faixa direita, a menos que se torne imperioso também a sua ultrapassagem, com o risco acrescido a ela associado. .Temos pois e em suma que ambos os condutores contribuíram pelo modo como procederam à execução das manobras para a verificação do acidente, julgando contudo pesar mais a culpa para o lado da condutora do veículo seguro por ser a manobra por ela feita a mais determinante para o acidente, ocorrendo tudo o indica já depois de iniciada a ultrapassagem, por ter sido provado que a travagem se efectuou no momento da respectiva finalização. donde nos parecer ajustado, ponderando tudo o mais fixar a repartição da mesma em 40% para a A e 60% para a condutora deste. E procedendo o recurso em parte, teremos consequentemente de apreciar a matéria dos danos causados pelo acidente de harmonia com as respostas aos pontos pertinentes da base instrutória. Na verdade e atento o disposto nos artºs 483º e 562º e ss do CCivil, bem como a vigência do contrato de seguro, compete á R indemnizar a A pelos danos que esta sofreu na sua esfera patrimonial. Esses danos são desde logo integrados pelo custo da reparação do veículo automóvel da A, que ascendeu a € 749, 12 – pontos 26 e 27da matéria de facto explanada na sentença. Por sua vez e em virtude do acidente , a A ficou privada da sua utilização durante 28 dias, entre 19/09 até 17 /10 /2003, sendo que tal veículo ( ligeiro de passageiros) era por ela utilizada diariamente nas suas deslocações para o trabalho e para transporte de uma filha menor para um infantário – pontos 32 a 36 Para fazer valer o seu direito à indemnização que computou em € 7,00 diários , A A alegou mas não logrou provar que foi essa a despesa em ter de recorrer a transportes de terceiros ( resposta negativa ao quesito 36º) A A ainda pretendia ser indemnizada pelos transtorno e incómodos que o acidente causou, com as diligências feitas junto da GNR e da R para a resolução amigável do caso, indicando uma verba de € 1000,00 Por último, peticionou igualmente o ressarcimento do prejuízo da desvalorização do automóvel que cifrou em € 3.000,00 e cujo quesito respectivo ( quesito 30º) não ficou provado. No que respeita aos danos não patrimoniais por via dos incómodos e perdas de dias de trabalho sofridos com as diligências apontadas nada resultou de relevante, já que a lei exige como condição da sua reparação que eles se mostrem graves – artº 496ºnº1 do CCivil -o que não é o caso de meras perdas de tempo, com a inerente arrelia que foi o único facto provado ( resposta restritiva aos quesitos 37º e 38ºe negativa ao quesito 39º - ponto 37 da matéria de facto) .Resta-nos, pois, o valor objectivo da reparação do automóvel e os danos da paralisação do veículo, até ficar pronta a dita reparação.. A este respeito, a A indicando para tal, uma verba de €7,00 por dia, não conseguiu provar que fosse essa a despesa por se ter servido de veículos de terceiros. Entendemos , contudo, sem quebra do devido respeito que a A ao ficar privada do uso do seu veículo, necessário para as suas deslocações diárias de e para o trabalho entre o o local de residência e Aveiro e ainda para prover às necessidades de um filha menor confiada a um infantário ou para tratar de assuntos particulares e aceder a locais mais distantes para passeio e lazer ( resposta positiva aos quesitos 31 a 34 – pontos 32 a 36 da matéria de facto ) tem jus à pertinente indemnização. Como vem sendo dominantemente entendido na jurisprudência mais recente tanto do Supremo , como das Relações Cfr Acs do Supremo de 5/03/02, proc. Nº 3698-01 e de 9/05/ 02, proc. Nº935/02 isertos em ap^rendice em Temas de Responsabildade Civil, Vol I, de Abrantes Geraldes, 119 e ss, desta Relação de 26/11/02, CJ , Tº V, ,19e da R de Ev de 15/01/04, proc. Nº 2070/03 , inádito, também inserto naquela obra , a privação do uso de uma viatura automóvel sobretudo quando utilizado na lida diária de vida de qualquer cidadão, .traduz um dano autónomo de natureza patrimonial ou misto, conforme alguns arestos, patrimonial e não patrimonial ( este quando a privação assuma pala sua duração uma certa intolerabilidade do ponto de vista social) sempre ressarcível independentemente da prova de prejuízos concretos e quantificados. É que, como expende Abrantes Geraldes Indemnização do Dano de Privação de Uso, 9 , a privação comporta em regra um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado, correspondente à perda temporária dos poderes de fruição, raramente sendo indiferente para o lesado a manutenção intangível do uso ou da sua privação durante um determinado período de tempo . No caso ficou claramente provada a vantagem passível da avaliação pecuniária que a A retirava da utilização do veículo na organização da sua vida familiar e profissional pelo que dificilmente poderíamos deixar de concluir que essa privação se traduziu num prejuízo, que sem embargo de não ficar provada a respectiva quantificação, justifica o recurso a um critério de equidade, nos termos do atrtº 566ºnº 3 do CCivil. E nessa base, entendemos ajustada e realista, tendo em conta o tipo de utilização e as comodidades que a viatura proporcionava, tanto mais importantes quanto é certo serem dispendiosos os transportes em táxis, raros e insatisfatórios os transportes públicos fora das grandes metrópoles e nunca gratuitos, de acordo com os padrões sociais, os favores prestados por terceiros ao disponibilizarem transportes alternativos, fixar tal prejuízo na base dos € 6,00, o que se traduz numa indemnização final de € 168 ( 28 dias x 6 euros ). Somando este valor ao da reparação, temos pois que os prejuízos patrimoniais da A ascendem a apenas € 917,12 ( 168 + 749, 12) , quantia de que à R cabe pagar tendo em conta a proporção de culpas acima definida e nos termos do artº570º do CCivil, a de € 550, 42. Sobre tal montante acrescem, logicamente, os juros à taxa legal, ora de 4% que a A peticionou e que lhe são devidos nos termos das disposições combinadas dos artºs 805º , nº3 , 559º do CCivil e Port. Nº 291/2003 de 8/04. V – Nos termos e pelas razões expostas, decide-se com parcial provimento do recurso, revogar a douta sentença e como tal, condenar a R a pagar à A a quantia apontada de € 550, 42 ( quinhentos e cinquenta euros e setenta e dois cêntimos ), indo absolvida quanto ao mais pedido, excepção feita aos juros que acrescem àquele montante, contados à taxa em vigor de 4% ao ano, desde a data da citação As custas serão pagas por ambas as partes e nas duas instâncias na proporção do vencimento. Coimbra, 22-11-2005 |