Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
187/20.6TXCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 10/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 2.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10 DE ABRIL
Sumário: Os elementos interpretativos de ordem literal, lógica, sistemática e histórica projectam a teleologia da norma contida no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, no sentido de recluso ser o enclausurado em estabelecimento prisional, não podendo, por isso, beneficiar do perdão previsto naquela disposição legal o condenado que não esteja nessa situação.
Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. Em 12 de Maio de 2020, foi perdoada a pena de dois anos de prisão aplicada ao condenado D., no âmbito do processo nº 2089/10.5PCCBR, por sentença transitada em julgado em 14 de fevereiro de 2014, ao abrigo do disposto no artigo   2º, da Lei nº 9/2020, de 10 de abril.

2. Inconformado, recorre o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

1ª - O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional;

2ª - O artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1- A/2020, de 19 de março, de 6 de abril, suspendeu todos os prazos para a prática de actos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19;

3ª - Pelo que, enquanto durar a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-Co V - 2 e da doença COVID¬19, está suspensa toda a tramitação processual tendente à emissão e execução de mandados de captura na sequência de condenação transitada em julgado;

4ª - Desta forma se evitará que, durante esse mesmo período, ingressem no estabelecimento prisional novos reclusos, e assim se logrará garantir que não seja ocupado o espaço prisional deixado livre pela libertação dos reclusos abrangidos pelo perdão;

5ª - Restringir a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 9/2020 aos condenados que se encontram já recluídos à data da entrada em vigor daquela mesma lei, excluindo os condenados ainda não recluídos, não viola o princípio da igualdade plasmado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa;

6ª - Ao perdoar a pena de prisão aplicada ao arguido D. no âmbito do Processo n" 2089/1O.5PCCBR, não estando este preso à data da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, o tribunal proferiu decisão ilegal, por violação no disposto no art. 2º, nº 1, desse mesmo diploma legal.

3. Nesta Relação, o Digno Procurador – Geral Adjunto, secundando os argumentos aduzidos em primeira instância pelo Ministério Público, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.

II. A DECISÃO RECORRIDA

D. foi condenado, por decisão proferida em 02/11/2011, no âmbito do processo n? 2089/1 0.5PCCBR, já transitada em julgado, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de crimes de roubo, simples e roubo tentado.

Por decisão proferida em 13/12/2013, transitada em julgado em 14/02/2014, foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão, determinando-se o cumprimento de 2 anos de prisão.

O condenado ainda não iniciou o cumprimento da aludida pena.

Do exame do respectivo CRC resulta que o condenado não tem qualquer outra pena de prisão para cumprir.

Em 11 de Abril de 2020 entrou em vigor a L 9/2020, de 10 de abril, que no art. 2° estatui que "1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igualou inferior a dois anos. /2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igualou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena. /3 - O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena. /4- Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igualou inferior a dois anos./5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão./6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.ºs 1 e 2 os condenados pela prática: a) Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.°, 132.° e 133.° do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual; b) Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.° e 152.0-A do Código Penal; c) De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal; d) De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal; e) Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.° do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.° do mesmo Código; f) De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal; g) Dos crimes previstos nos artigos 272.°, 273.° e 274.° do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo; h) Do crime previsto no artigo 299.° do Código Penal; i) Pelo crime previsto no artigo 368.0-A do Código Penal; j) Dos crimes previstos nos artigos 372.°, 373.° e 374.° do Código Penal; k) Dos crimes previstos nos artigos 21.°,22.° e 28.° do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual; I) De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena; m) De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas; n) Dos crimes previstos nos artigos 144.°, 145.°, n.? 1, alínea c), e 147. ° do Código Penal. /7 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada. 18 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente. 19 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado."

Questão que se coloca, assim, é a de se saber se o predito perdão concedido pela citada Lei é, ou não, aplicável no caso dos autos.

Com efeito, o crime por que o arguido foi condenado no processo nº 2089/10.5PCCBR, não é um daqueles excluído do referido perdão nos termos do citado art. 2°, nº 6 e, por outro lado, a pena que lhe foi aplicada e que terá de cumprir é inferior a dois anos de prisão.

No entanto, o mesmo, neste momento, não se encontra ainda recluído em estabelecimento prisional.

Salvo o devido respeito, na esteira do que defende o Sr. Desembargador José Quaresma - em artigo publicado em e-book do CEJ, em edição actualizada em 22 de abril de 2020, disponível na página do CEJ - pugnar que no caso dos autos não é aplicável o perdão, não se afigura constituir orientação conforme de um ponto de vista constitucional.

Com efeito, a mesma potencia diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, como tal lesando drasticamente o principio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13° da Constituição da República Portuguesa.

De facto, o uso legal da expressão recluso nos preceitos constantes da Lei 9/2020 mais não poderá significar do que reportar-se à situação daquelas pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena susceptível de ser executada em estabelecimento prisional e, assim, passíveis de serem objecto de mandados de detenção para cumprimento da referida pena.

Note-se que, neste momento e apesar da cessação do estado de emergência, ainda não foi publicado o diploma legal a que alude o art. 10° da L 9/2029, de 10 de abril e que haverá de determinar a cessação da vigência da lei citada.

Na verdade, a defender-se a interpretação da norma que apenas integre no seu âmbito de destinatários efectivos aqueles já em cumprimento de pena, estaria criada a possibilidade de se estar a devolver à liberdade pessoas com tempo de prisão para cumprir inferior ou igual a dois anos para, depois, ocupar o espaço prisional assim deixado livre com a reclusão de pessoas autores de factos idênticos aos libertados e punidos com penas iguais - ou até inferiores. Além de a solução ser manifestamente indefensável de um ponto de vista material e constitucional, faria gorar a intenção do legislador de criar condições de salubridade no meio prisional, dado que impediria a criação do espaço suficiente para permitir uma gestão sanitariamente adequada da prisão.

Assim sendo, a única leitura admitida pela norma em causa - sobre o ponto de vista constitucional, mas também pragmático - é a do perdão ser aplicável a todos os cidadãos punidos com penas e crimes abrangidos pelo âmbito da norma com decisões transitadas em julgado à data da entrada em vigor do examinado instrumento legal.

Dir-se-á, todavia, que as objecções supra referidas serão ultrapassadas desde que a emissão dos mandados e a detenção assim ordenada sejam suspensos, ficando a aguardar a cessação da vigência da L 9/2020. Dessa forma, de facto, a actual situação - legalmente impeditiva da entrada de condenados em penas iguais ou inferiores a dois anos nos estabelecimentos prisionais - deixará de existir, permitindo a prisão posterior dos arguidos nessas referidas condições.

Considera-se, no entanto, que tal hipotética actuação não se coaduna com os ditames do estado de direito, bem como desatende as razões que motivaram a existência do perdão constante da Lei 9/2020.

Começando pela última das afirmações efectuadas, deve assinalar-se que o perdão de penas se legitimou pela condição sanitária provocada pela pandemia Covid 19 e foi adoptado no contexto da declaração do estado de emergência. É certo que, entretanto, terminou o estado de emergência, mas infelizmente tal não representou o afastamento integral da pandemia e a restauração de uma situação de inexistência da possibilidade de propagação do vírus que a causa.

Assim sendo, a delicada situação de saúde do país e o condicionalismo especifico dos estabelecimentos prisionais continuarão a justificar a adopção de especiais cautelas contrárias a uma qualquer espécie de gestão temporal de mandados de detenção. Com efeito, o estado de saúde pública do país - e particularmente o de espaços públicos como as prisões - manterá a necessidade de se observar prudência nos contactos e cautelas com a segurança de todos, desaconselhando a normal densidade de ocupação dos estabelecimentos prisionais.

Por outro lado, a sustação e adiamento, da emissão dos mandados de detenção são práticas de passiveis de, também elas, colidirem frontalmente com as implicações do principio da igualdade. Equivalem, até, a uma manobra feita propositadamente para impedir que um eventual condenado com decisão transitada em julgado, cuja pena ainda não tenha começado a respectiva execução, seja tratado de forma diferente de outro, eventualmente condenado até em pena mais grave, com emissão de mandados de detenção mais lesta e, por isso, já recluso. Ora tal prática não pode, em caso algum, ser admitida.

Sempre se dirá ainda que também não faz qualquer sentido deter e conduzir a estabelecimento prisional condenados na situação daquele em causa nos autos, pois nesse momento já se encontrariam na situação de "reclusos" a quem então poderia ser aplicado o perdão previsto na L 9/2020 de 10 de abril, ainda vigente.

Finalmente, acrescenta-se, nos termos da L 9/2020 cabe ao TEP a declaração do perdão previsto na lei citada.

Assim, face ao exposto, julga-se a pena aplicada no âmbito do processo nº 2089/10.5PCCBR, perdoada nos termos dos mencionados preceitos, mas sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente, caso em que, a pena aplicada a tal infracção, acrescerá à agora perdoada.

III. Do mérito do recurso

A questão a decidir consiste em saber se o condenado em dois anos de prisão, por sentença transitada em julgado em data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, que ainda não deu entrada no estabelecimento prisional para cumprimento da pena, beneficia do perdão a que alude o artigo 2º, do diploma citado.

Dispõe este preceito, no que ao caso interessa.

São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

A controvérsia centra-se no alcance e sentido do conceito normativo de reclusos condenados.

Para o tribunal recorrido, os reclusos condenados abrangem, não só, os condenados que já estejam em cumprimento de pena no estabelecimento prisional, mas também, os que foram condenados em pena de prisão por sentença transitada em julgado, que ainda não se encontrem recluídos em estabelecimento prisional, beneficiando, todos eles, do perdão, desde que verificados os demais pressupostos.

Já o Ministério Público delimitou o conceito condenados reclusos àqueles que se encontrem dentro do estabelecimento prisional.

Que dizer?

Sobre esta questão já se pronunciou esta Relação, defendendo a posição do Recorrente.

Assim decidiram:

O Acórdão datado de 9 de setembro de 2020 (Rel: Rosa Pinto):

O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional.

O Acórdão datado de 30 de setembro de 2020 (Rel. Maria José Nogueira):

O perdão de penas consagrado no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só é concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, ficando excluídos, consequentemente, da medida de graça referida os condenados que não tenham ingressado fisicamente em estabelecimento prisional.

O Acórdão 30 de Setembro de 2020 (Rel. José Eduardo Martins):

 O perdão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, pode ser aplicado tanto a condenados que sejam reclusos à data da entrada em vigor daquele diploma (11-04-2020), como a condenados que, no decurso da vigência da mesma Lei, venham a estar na situação de reclusão.

O Acórdão de 7 de outubro de 2020 (Rel. Luís Teixeira):

I. O perdão de pena previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional.

II. Todavia, o perdão do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos substantivos legais, pode ser igualmente aplicado a condenados que, no decurso da vigência daquela Lei, venham a estar na situação de reclusão.

Também nós, seguimos esta orientação e os fundamentos que a sustentam, em especial a natureza jurídica diploma e as regras de interpretação das normas jurídicas, em matéria penal.

Neste particular, escreve-se no Acórdão desta Relação de 30 de novembro de 2020, (relatado pelo Exmº Desembargador, José Eduardo Martins acessível in dgsi.pt).

Como princípio geral de direito com relevo para o que agora ocupa a nossa atenção, tem sido entendido, pela doutrina e pela jurisprudência, que as medidas de graça, como providências de exceção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.

Por isso mesmo, são excecionais as normas que estabelecem perdões, não comportando, por isso mesmo, aplicação analógica (artigo 11.º, do Código Civil), nem admitindo interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa.

Neste sentido, por considerarmos pertinente, citamos, de seguida, parte do Acórdão de Fixação de Jurisprudência, datado de 25/10/2001, Processo n.º P00P3209, in www.dgsi.pt:

“(…) Com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os atos de graça são atos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. O que se refletiu nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto, evidenciando que na primeira se trata sempre de uma medida formalmente legal (competindo às câmaras legislativas) e, deste modo, dotada das características de objetividade, generalidade e impessoalidade, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, reduzidas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, transitada em julgado.

É assim que a Constituição dispõe hoje que «compete à Assembleia da República [...] conceder amnistias e perdões genéricos» - artigo 161.º, alínea f) -, competindo ao Presidente da República «na prática de atos próprios [...] indultar e comutar penas, ouvido o Governo» - artigo 134.º, alínea f).

Em ambos os casos fica derrogado o sistema legal punitivo; daí o intitular-se, por vezes, o regime das medidas de graça como um jus non puniendi. O direito de graça é, no seu sentido global e abrangente, «a contra face do direito de punir estadual» (Figueiredo Dias, Direito Penal ..., parte geral II, 1993, p. 685).

Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.

Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «exceção», revestindo-se de «excecionais» todas as normas que o enformam.

É pela natureza excecional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de exceção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de exceção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas suscetíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).

Sendo, assim, insuscetíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo.

Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto direta e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo.»

No que toca à interpretação declarativa há que atender ao imperativo do no artigo 9º do Código Civil, estatuindo:

1. A interpretação da norma não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

O texto da norma, dentro do fim, da ratio e sistema em que se insere, constitui, assim, os limites que o intérprete não ultrapassar. «Só até onde chegue a tolerância do texto e a elasticidade do sistema é que o intérprete se pode resolver pela interpretação que dê à lei um sentido mais justo e apropriado às exigências da vida.» (Manuel de Andrade, Ensaio Sobre A Teoria Da Interpretação Das Leis).

Dito isto;

No elemento literal artigo 2º, nº 1 – o vocábulo recluso – mostra-se claro no seu significado. O recluso é aquele que está preso e não o que é susceptível de vir a ser preso.

No elemento histórico, há que ponderar os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência, reiterando-se que uma lei que disciplina o perdão de penas devido à conjuntura pandémica global não pode deixar de ser considerada como lei excepcional e temporária, com tudo o que isso implica, como já vimos, nos seus apertados limites.

Na interpretação lógico, racional ou teleológica e sistemática, adquirem especial relevância as circunstâncias em que a lei em causa surgiu -  inserida numa panóplia de legislação diversificada visando responder à situação de emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID19 que tem provocado a vaga de pandemia a nível mundial -  na tentativa de impedir o surto e a propagação da doença, designadamente, na população prisional, um dos grupos mais expostos ao contágio e alastramento do coronavírus devido ao funcionamento e características do sistema prisional.

A substituição da reclusão por medidas não preventivas da liberdade, temporárias, antecipatórias ou mesmos definitivas, afastando os condenados das prisões tornou-se, assim, uma exigência de salvaguarda dos calamitosos perigos dos surtos e disseminação do coronavírus em ambiente penitenciário.

É neste circunstancialismo que surge o Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, aprovado pela Lei nº 9/2020, de 10 de Abril, com o objectivo principal de conter a expansão da doença COVID-19 na população prisional, através da libertação dos reclusos que deixariam de estar expostos aos perigos acrescidos da disseminação da doença, ao mesmo tempo que se reduzia os riscos da contaminação dentro das prisões, por diminuição da respectiva lotação.

Pode ler-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, de 2 de abril de 2020:

«As especificidades do meio prisional, quer no plano estrutural, quer considerando a elevada prevalência de problemas de saúde e o envelhecimento da população que acolhe, aconselham que se acautele, ativa e estrategicamente, o surgimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais e se previna o risco do seu alastramento. … Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade.

Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito.».

Daqui inferimos que, na Proposta de Lei do Governo, o fundamento do perdão da pena, como aliás, a medida especial do indulto, o regime extraordinário de concessão de licença de saída e a antecipação da liberdade condicional, radicava na exigência da libertação dos condenados recluídos, salvaguardando, desta forma, o distanciamento físico entre as pessoas (uma das medidas sanitárias de prevenção da expansão da doença do coronavírus), impossível de concretizar nos estabelecimentos prisionais por inexistência de condições que evitassem a concentração dos reclusos.

Pretende-se, assim, evitar um perigo efectivo de propagação por contágio do COVID19 do condenado recluso no estabelecimento prisional, o que não sucede com os condenados na pena de prisão por sentença em julgado em liberdade, pois enquanto o condenado estiver em liberdade não potencia o perigo de contágio no meio prisional. [Acórdão desta Relação de 30 de setembro de 2020 (Rel. Maria José Nogueira)].

Com tais medidas, cumprir-se-ia o dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito.

Libertação a que, todavia, o legislador pretendeu impor um limite: “sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade”. Daí as opções legislativas no que respeita quer às concretas penas a que deveria ser aplicado o perdão, nomeadamente no que respeita à efetiva medida da pena bem como aos demais requisitos substantivos enumerados na lei de exclusão dos crimes não abrangidos pelo perdão (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de outubro de 2020).

Sublinhe-se, ainda:

A saída administrativa de reclusos; a colocação do recluso em liberdade condicional, o indulto excepcional aos condenados vulneráveis e o modo como se processa libertação do condenado [artigo 1º, c) e d), 3º, 1 e 8º], só serão exequíveis relativamente a condenados dentro de um estabelecimento prisional.

O regresso do condenado ao estabelecimento prisional inculca a ideia de estada em meio prisional, do qual saiu e para o qual regressa, se, observados os termos do artigo 6º.

A nomenclatura da Lei nº 9/2020 – flexibilização da execução das penas de prisão – enquadra as medidas preconizadas pelo legislador na fase de execução da pena de prisão, em consonância com a atribuição de competência para a aplicação do perdão aos Tribunais de Execução das Penas (artigo 2º, nº 8), a quem cabe acompanhar, fiscalizar a execução das penas privativas de liberdade ou decidir da sua modificação, substituição ou extinção (v.g. artigos  17º e 138º, do Código de Execução e Medidas Privativas de Liberdade)., corroborando, assim, a posição que aqui perfilhamos.

Com o devido respeito pela opinião contrária, o entendimento acolhido na primeira instância, estendendo o perdão a todos os cidadãos punidos com penas e crimes abrangidos pelo âmbito da norma com decisões transitadas em julgado, ultrapassa os limites máximos da interpretação, porquanto vedadas a interpretação analógica ou extensiva à norma sub judice, no contexto da redacção do diploma em geral, e do texto do artigo 2º, em particular, o termo recluso não suscita lapso ou deficiência evidentes que devam ser corrigidos pelo aplicador do direito.

Ora,

Como defende Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos (Código Penal Anotado, Vol. I, Página 93), o limite máximo da interpretação da lei penal é o “sentido literal possível” dos termos da linguísticos utilizados na redacção do texto legal. (…) Toda a interpretação que exceda este sentido literal possível (excepto quando exista um evidente defeito de redacção do texto legal) deixa de ser interpretação para se converter em criação de direito por via judicial ou doutrinal, e, viola o principio da legalidade.

A posição defendida pelo Tribunal a quo com base nos fundamentos que lhe subjazem não integra um acto de interpretação normativa, antes, parte dos constrangimentos práticos de aplicação da norma, para ampliar o âmbito de aplicação do preceito a situações não previstas pelo legislador, criando, assim, uma norma penal casuística, com violação dos princípios hermenêuticos e do princípio da legalidade, pilar do Direito Penal, constitucionalmente consagrado no artigo 29º, da Lei Fundamental (cf. Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, Vol. I, Página 93).

Relativamente à alegada violação do princípio da igualdade resultante da interpretação que defendemos, porque potenciadora de diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, diga-se que não se vislumbra a invocada identidade material entre a posição do condenado recluído em meio prisional exposto ao perigo efectivo de contágio da doença, impedido de cumprir o distanciamento físico devido às condições da prisão e a posição do condenado em total liberdade que, nesta condição  não representa o perigo para a contaminação no meio prisional que o legislador pretendeu minimizar.

A posição de um e de outro são distintas: o “recluso” representa um perigo efetivo de contágio no meio prisional, o qual o legislador, com adoção das diferentes medidas que conformam o regime excecional vazado na Lei n.º 9/2020, visou aplacar; o condenado, não recluso, pode, ou não, vir a protagonizá-lo.

De resto, tal como vem concebida, uma suposta violação do princípio da igualdade dificilmente conviveria com qualquer “marco temporal” invariavelmente presente nas sucessivas leis de amnistia, o qual sempre permitiria questionar a justeza de tão díspares soluções, em substância equivalentes, apenas separadas por escassas horas.  [Acórdão desta Relação de 30 de setembro de 2020 (Rel. Maria José Nogueira)].

De qualquer modo, colhe-se a posição sustentada pela doutrina e jurisprudência (v.g. as mencionadas na Motivação do Recorrente), no sentido de que as possíveis diferenças de tratamento em matéria de perdão ou amnistia, estão conformes com os ditames constitucionais, desde que surjam materialmente fundadas e baseadas em critérios de valor objectivo, como, notoriamente, é o caso em apreço.

Em síntese conclusiva:

Salvo melhor opinião e com o devido respeito por entendimento contrário, na esteira da recente jurisprudência desta Relação, os elementos interpretativos, de ordem literal, lógica, sistemática e histórica, projectam a teleologia da norma considerada no sentido de que reclusoscom excepção dos condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das respetivas funções (artigo 1º, nº 2, da citada Lei)são os recluídos no estabelecimento prisionalnão podendo, por isso, beneficiar do perdão aludido no nº 1, do artigo 2º, da Lei n.º 9/2020, o condenado que não esteja nessa situação.

IV. DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação julgar procedente o Recurso, revogando-se, em consequência, o despacho recorrido.

Sem tributação.

Coimbra, 30 de Outubro de 2020

Alcina da Costa Ribeiro – relatora

Jorge França - adjunto