Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3867/16.7T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: EXECUÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA
AVALISTA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DA PROVA
CONTRATO
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 06/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.342, 433, 436, 762 CC, 70 LULL, 195, 196, 199 CPC
Sumário: 1. - De nulidade processual ocorrida em sessão de audiência final, na presença dos mandatários das partes, deve a parte interessada reclamar no próprio ato, enquanto este não terminar, sob pena de sanação e impossibilidade de invocação no posterior recurso da sentença.

2. - É à parte embargante, na oposição à execução, que invoca o preenchimento abusivo da livrança dada à execução (matéria de exceção), que cabe o ónus da prova dos factos ilustrativos do abuso invocado (no caso, preenchimento por valor superior ao acordado).

3. - O incumprimento contratual não tem como consequência automática a resolução do contrato, cabendo à parte adimplente a opção pela extinção do contrato, exercendo a via resolutiva, ou pela sua manutenção.

4. - Assim, o que extingue o contrato incumprido não é o facto do seu incumprimento (enquanto tal), que é apenas a causa, sendo a resolução, naquele fundada, o facto extintivo.

5. - Prescrevendo o n.º 2 do art.º 436.º do CCiv. que, não havendo prazo convencionado para a resolução do contrato, pode a outra parte fixar ao titular do direito de resolução um prazo razoável para que o exerça, sob pena de caducidade, é o próprio legislador que, na arquitetura do sistema, dá a solução (por si prevista a situação e ponderados os interesses atendíveis das partes) para casos de demora ou abuso do credor no exercício do direito potestativo resolutivo.

6. - Por isso, em tais casos não se justifica convocar o princípio da boa-fé para proteger a parte inadimplente (sancionando a outra parte) que não lançou mão, por inércia sua, da faculdade que aquele art.º 436.º, n.º 2, lhe conferia.

7. - Assim sendo, a data a considerar como de extinção do vínculo contratual não é a do verificado incumprimento – que, por si só, não tem efeito extintivo do negócio –, mas a da sua resolução pelo credor com fundamento em tal incumprimento.

8. - Caso em que o devedor (ou o seu garante) não fica inexoravelmente nas mãos do credor quanto ao tempo – porventura desproporcionado – de exercício do direito potestativo resolutivo, podendo até conseguir a caducidade desse direito, por inércia do credor, se este o não exercer em prazo razoável que lhe seja fixado.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Por apenso aos autos de execução que lhe move o “Banco B (…)  .”, com os sinais dos autos,

veio a executada M (…), também com os sinais dos autos,

deduzir oposição a tal execução (mediante embargos de executado),

concluindo pela procedência da oposição e consequente extinção da execução.

Alegou, para tanto, em síntese:

- ter ocorrido preenchimento abusivo da livrança que serve de base à execução – preenchimento por valor superior ao acordado no pacto de preenchimento;

- serem peticionados juros usurários, nada sendo referido quanto ao cálculo de juros;

- não ter o Exequente interpelado a Executada (avalista), sendo o título inexequível.

Contestou o Exequente/Embargado, concluindo pela total improcedência da oposição, para o que alegou, no essencial:

- não ocorrer preenchimento abusivo, por serem também devidos juros (remuneratórios e moratórios), como previsto no acordo de preenchimento;

- ter sido efetuada a comunicação que a Embargante diz faltar, a qual nem sequer é vista como obrigatória (ao avalista) por parte significativa da jurisprudência;

- não serem usurários os juros peticionados.

Realizada a audiência prévia, foi depois proferido despacho saneador, com enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova.

Procedeu-se à audiência final, com produção de provas, seguida de sentença, na qual, conhecendo de meritis, se formulou o seguinte dispositivo:

“(…) julgo os embargos parcialmente procedentes, por provados e, em consequência, determino o prosseguimento da execução no tocante ao valor de € 9.103,46 (nove mil, cento e três euros e quarenta e seis cêntimos), correspondente ao capital em divida na data do incumprimento, 10/09/2012, imposto de selo (€ 10,62), acrescido de juros desde a data da interpelação (22/10/2015), à taxa legal de 4%, até integral pagamento.”.

Inconformado, o banco Exequente/Embargado apela do assim decidido, apresentando alegação recursiva, onde formula as seguintes

Conclusões ([1]):

(…)

A Recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela total improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([2]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime e efeito fixados. 

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados das partes – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([4]) –, está em causa na presente apelação saber:

a) Se ocorre a invocada causa de nulidade processual (por irregularidade/omissão de diligências probatórias que coubesse ao Juiz levar a cabo, à luz das exigências do princípio do inquisitório);

b) Se está demonstrado preenchimento abusivo da livrança (agora, quanto à data aposta como de vencimento);

c) Se era necessária e foi omitida a interpelação da avalista (Embargante) e qual a data da constituição em mora.

III – FUNDAMENTAÇÃO

          A) Da nulidade processual

Da irregularidade/omissão de diligências probatórias impostas pelo princípio do inquisitório

Vem o Recorrente esgrimir, em matéria de nulidade processual, que o Tribunal incorreu em omissão de diligências de obtenção de prova a seu cargo, pois que estava obrigado a levá-las a cabo por força do princípio do inquisitório e não o fez (cfr. conclusões 10.ª e segs. da apelação).

Ora, cabe dizer que é verdade ter o Tribunal recorrido tomado, à luz das regras do ónus da prova (art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), posição decisória em sessão de audiência final, esta datada de 21/11/2018 (cfr. fls. 45 e v.º do processo físico), no sentido da notificação – que ordenou – do Exequente (ora Recorrente) para, em prazo, “juntar aos autos o extracto que contenha o momento a partir do qual o descoberto se tornou exigível”.

O Exequente/Embargado veio responder que a informação pretendida está abrangida pelo sigilo bancário, por se reportar a documentos referentes a conta titulada por terceiros, sendo, por isso, necessário o consentimento do respetivo titular para levantamento do sigilo bancário. Nesse âmbito, requereu tal Exequente a notificação de “M (…), também executada nos autos, para vir prestar o seu consentimento ao levantamento do sigilo bancário com vista à junção do extrato” (cfr. fls. 46 e v.º do processo físico).

Perante isso, foi proferido despacho a ordenar a notificação pretendida (cfr. fls. 50 do processo físico).

Porém, a carta para notificação veio devolvida, face ao que, na sessão seguinte da audiência final (em 10/01/2019, como consta da ata de fls. 51-A e v.º, havendo manifesto lapso de escrita na datação de “10 de Janeiro de 2018”), na presença das Exm.ªs Mandatárias das partes (também, pois, da parte Exequente/Embargada), foi proferido o seguinte despacho: “Considerando a impossibilidade de obtenção da autorização necessária à obtenção das informações requeridas, dá-se sem efeito a diligência solicitada. // Notifique.”.

Consta ainda de tal ata que, notificados os presentes, estes disseram ficar cientes, sendo que nada então requereram, pelo que logo foram proferidas alegações orais, seguidas do encerramento da audiência e ordem de conclusão dos autos para prolação de sentença, a qual viria a ser proferida em 25/01/2019.

Só na alegação e nas conclusões de recurso o Apelante veio, então, invocar a dita nulidade processual (em 26/02/2019, como consta a fls. 72 do processo físico).

Ora, se é certo que as regras do ónus da prova continuam vigentes (cfr., com relevância para o caso, o disposto no art.º 342.º, n.º 1, do NCPCiv.), não sendo de abrangência ilimitada – obviamente – o princípio do inquisitório, que, ademais, deve ser compatibilizado/harmonizado com o princípio da autorresponsabilidade das partes (cada uma delas onerada com o respetivo ónus probatório, nos moldes legais), no caso nem sequer é necessário entrar na substância da matéria de nulidade processual invocada.

Com efeito, a arguição (apenas) no recurso deve ser tida por extemporânea, levando à sanação do eventual vício processual (caso existisse).

É que, se irregularidade/omissão houvesse, em termos relevantes para os efeitos do disposto no art.º 195.º, n.º 1, do NCPCiv., ela teria de ser objeto de reclamação da parte interessada, não sendo, pois, de conhecimento oficioso do Tribunal (art.º 196.º do NCPCiv.), e reclamação, por as partes se considerarem presentes (através das respetivas Mandatárias) no momento em que o vício teria sido cometido, no próprio ato, enquanto este não terminasse (cfr. art.º 199.º, n.º 1, primeira parte, do NCPCiv.).

Isto é, a reclamação teria de ser apresentada na própria sessão de audiência final de 10/01/2019, enquanto esta não terminasse, sob pena de extemporaneidade e decorrente sanação.

Ora, nessa sessão, onde foi proferido o despacho que deu sem efeito a diligência solicitada – decisão que consubstanciaria o invocado vício/omissão/irregularidade processual –, as partes, presentes e devidamente notificadas, nada requereram.

Donde que seja claramente extemporânea, salvo o devido respeito, a arguição muito posterior, em sede de recurso da sentença, devendo considerar-se, assim, sanado o vício invocado.

Em suma, improcedem as conclusões do Apelante em contrário.

B) Do caráter conclusivo em sede de parte fáctica da sentença

Visto o quadro fáctico da decisão em crise, nota-se que do adotado elenco de factos julgados não provados consta:

“- Que as demais quantias integradas na livrança, para além do capital aludido em 3), em 10 de Setembro de 2012 fossem devidas”.

Ora, se determinadas quantias integradas na livrança dada à execução são, ou não, devidas – devem ou não ser atendidas no âmbito da quantia exequenda – é clara matéria conclusiva/valorativa e não de pendor fáctico.

E é sabido que no elenco fáctico da sentença só devem ter assento factos concretos e não conclusões, designadamente se estas contendem com a decisão da causa, com o desfecho do litígio, em termos de a resposta a determinada questão do processo resultar logo do modo como se respondeu (ou elencou) a factualidade relevante (provada ou não provada).

Na verdade, do preceituado no art.º 607.º, n.ºs 3 a 5, do NCPCiv., resulta que a decisão sobre a matéria de facto apenas incide sobre factos, sendo, por isso, factos concretos que serão submetidos à prova e elencados, como provados ou não provados, na parte fáctica da sentença, para depois – só depois –, já em sede de fundamentação jurídica, se proceder à aplicação dos preceitos de direito, extraindo-se as conclusões jurídicas e operando as valorações de direito, que levarão à boa solução da causa.

Daí que, por conclusivo/valorativo e determinante para a sorte do pleito, não possa constar do elenco fáctico (provado ou mesmo não provado) se determinadas quantias integradas na livrança, em 10 de setembro de 2012 eram, ou não, “devidas”.

Donde que este ponto do elenco dos factos não provados seja dele suprimido/eliminado, como se fará, oficiosamente, de seguida.

C) Da matéria de facto

Na 1.ª instância foi considerada – sem controvérsia – a seguinte factualidade como provada:

«1 – O exequente/embargado Banco (…), S.A. é portador de uma livrança da qual consta como data de vencimento 17/11/2015, com o montante de € 13.806,17 (treze mil, oitocentos e seis euros e dezassete cêntimos), figurando como tomador, o B(…), no lugar do subscritor consta o nome de M (…) e A (…), constando do verso “Bom para aval aos subscritores (…) M (…)”, dando-se aqui por integralmente reproduzida a livrança constante de fls. 23 dos autos de execução a que os presentes autos se encontram apensos.

2 – A embargante, M (…), subscreveu, na qualidade de avalista o contrato de mútuo cuja cópia consta de fls. 7 a 16 dos autos de execução e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

3 – Pelo menos, desde 9 de agosto de 2012 já estavam em incumprimento das prestações vencidas, sendo que, o capital em divida em 30 de agosto de 2012 ascendia ao montante de 9.103,46 (nove mil, cento e três euros e quarenta e seis cêntimos).

4 – Do artigo 13º do contrato aludido em 2) consta que “1- Sem prejuízo doutros casos previstos na lei ou neste contrato, o B(…) poderá resolver o presente contrato, declarando vencidas todas as obrigações dele decorrentes e exigir o seu cumprimento imediato, por notificação escrita aos mutuários, sempre que se verifique alguma das seguintes situações: (…) h) se os mutuários incumprirem quer no pagamento de capital, quer no pagamento de juros, nos termos deste contrato, por prazo superior a 30 dias”.

5 – Pela executada/embargante foi assinada a autorização de preenchimento da livrança, cuja cópia consta de fls. 16 dos autos de execução e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, da qual consta, além do mais que a mesma é “destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em divida a V.ª Ex.ª por crédito concedido e/ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados, até ao limite de € 11.760, acrescido dos respectivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V.ª Ex.ª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização”.

5 – Pela exequente foram enviadas à executada/embargante as cartas datadas de 22 de outubro de 2015 e 9 de novembro de 2015 para as moradas constantes do contrato aludido em 2), cujas cópias constam de fls. 13 verso a 20 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, as quais foram recepcionadas, na morada indicada.».

E persiste julgado não provado:

«Não resultaram provados os demais factos alegados nos articulados, designadamente:

- Que a exequente não tenha procedido à interpelação da executada/embargante.

- Que em 10 de Setembro de 2012 o valor relativo ao descoberto (€ 381,27) que foi integrado no valor pelo qual foi preenchida a livrança já estivesse vencido.

- Que desde 10 de Setembro de 2012 até 22 de outubro de 2015 a exequente e os executados tivessem estado em negociações.» ([5]).

D) Da substância jurídica do recurso

1. - Do preenchimento abusivo da livrança

Defende o Apelante inexistir qualquer preenchimento abusivo da livrança, designadamente quanto à data aposta como de vencimento do título cambiário ([6]).

Na sentença, em perspetiva divergente, pode ler-se:

«De acordo com o pacto de preenchimento, a livrança poderia ser validamente preenchida segundo critérios de oportunidade do credor. Mas esse critério de oportunidade terá de ser balizado e interpretado segundo as regras da boa-fé que presidem à celebração dos negócios jurídicos, pelo conteúdo do próprio negócio jurídico subjacente à entrega dessa livrança e ter em conta o que foi convencionado pelas partes quanto ao prazo de reembolso desse crédito e ao que seria expectável que o banco fizesse, no uso dos poderes de preenchimento que lhe foram concedidos.

(…)

A embargante, ao declarar que o banco ficava autorizado a completar o preenchimento do título, “destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em divida a V.ª Ex.ª por crédito concedido e/ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados, até ao limite de € 11.760, acrescido dos respectivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V.ª Ex.ª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização” aceitou e quis que esse preenchimento fosse feito pelo embargado, pelo menos, no momento em que [a] dívida se pudesse considerar integralmente vencida.

Acresce que, entre a data da celebração do contrato e a citação apenas resultou provado o envio das cartas de 22 de outubro de 2015 e 9 de novembro de 2015.

O pacto de preenchimento desta livrança constituiu um negócio jurídico sujeito ao princípio geral atinente ao cumprimento das obrigações, tal como enunciado no artigo 762º, nº 2, Código Civil, segundo o qual no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.

Daí que não possa este tribunal aceitar que o Banco, obrigado a proceder de boa fé, na interpretação e execução dos poderes que lhe foram dados, tenha entendido que poderia colocar como data de vencimento, na livrança, qualquer data e muito menos uma data que se situa quase três anos depois de o contrato de crédito ter deixado de ser cumprido.

Se é verdade que a embargante pretendeu cometer o preenchimento do título ao embargado, em face da alegação feita pelo embargante e da prova que fizeram, teremos de concluir que, extinto o contrato em 10 de setembro de 2012 (mais de trinta dias após o incumprimento nos termos da cláusula 13ª al h) do contrato aludido em 2), o embargado tinha todas as condições para liquidar a obrigação, e cobrar o seu crédito, utilizando o título que lhe foi entregue.

Sendo certo que, estando contratualmente previsto que, a exequente poderia resolver o contrato face a um incumprimento por prazo superior a trinta dias, natural seria que as partes contassem com tal accionamento decorrido aquele prazo.

Pelos fundamentos supra expostos, julgamos que se verifica, no vertente caso, um abuso no preenchimento da livrança (por violação do pacto de preenchimento), no que respeita à data do vencimento que nela foi aposta, concluindo-se, em face dos factos provados, que o banco embargado, no uso dos poderes que lhe foram concedidos, a deveria ter preenchido com uma data de vencimento reportada a 10 de setembro de 2012 e, partindo desse pressuposto, calcular os juros de mora devidos, a partir dessa data, à taxa legal em vigor (4%, de acordo com a Portaria nº 291/2003), acrescida dos valores relativos a imposto de selo e selagem.

(…), no caso a data de vencimento aposta na livrança e que vale para efeitos do disposto no artigo 70º da LULL é diversa do prazo de vencimento da obrigação, sendo que, terá que valer o prazo de vencimento da obrigação (10 de Setembro de 2012) e o valor do capital em dívida nessa data (€ 9.103,46).» (sublinhado aditado).

Que dizer?

Em primeiro lugar, dir-se-á – para além da menção anterior quanto à circunstância de o preenchimento abusivo invocado na petição de embargos se prender com o valor aposto na livrança – que deve atender-se, seguindo a lógica da sentença, à data de extinção do vínculo contratual, a qual pode assumir modalidade resolutiva fundada em incumprimento definitivo [cfr., na lei, os art.ºs 798.º e 808.º do CCiv., e, no contrato em discussão, o art.º 13.º, n.º 1, al.ª h), citado no ponto 4 dos factos provados, constituindo uma cláusula resolutiva convencional].

Em qualquer dos casos, trata-se, então, de extinção contratual por via resolutiva fundada em incumprimento do devedor.

Com efeito, importa clarificar que o que extingue o contrato subjacente não é o facto do seu incumprimento (enquanto tal), pois que, perante este, o credor pode optar pela manutenção do contrato ou pela sua extinção, nesta caso fazendo uso de uma forma extintiva, como a resolução.

Na verdade, não é o incumprimento que é causa automática da extinção do contrato.

A este (inadimplemento) pode seguir-se a opção resolutiva – se o credor assim o entender –, que tem de ser declarada à contraparte ([7]).

Ou pode não se seguir essa opção extintiva (trata-se de um direito potestativo, que o credor é livre de exercer ou não), como por exemplo, no caso de o credor pretender manter, ainda assim, o vínculo contratual em vigor, dando uma nova oportunidade ao devedor, designadamente renegociando o modo e o tempo do reembolso (prazo prestacional mais alargado ou outra modalidade adequada).

E também é certo prescrever o n.º 2 do art.º 436.º do CCiv. que, não havendo prazo convencionado para a resolução do contrato, pode a outra parte fixar ao titular do direito de resolução um prazo razoável para que o exerça, sob pena de caducidade.

Importa, então, perscrutar os factos provados (os únicos a atender para a decisão da causa).

E vem provado que, desde 09/08/2012, já ocorria incumprimento das prestações vencidas, sendo que, o capital em dívida em 30/08/2012 ascendia ao montante de 9.103,46. Quer dizer, havia incumprimento do contrato pelo devedor, temporalmente situado em agosto de 2012.

Tal incumprimento facultava ao credor a opção resolutiva, desde logo com base em cláusula resolutiva convencional [referido art.º 13.º, n.º 1, al.ª h), do contrato, citado no ponto 4 dos factos provados]: o credor “poderá resolver o presente contrato, declarando vencidas todas as obrigações dele decorrentes e exigir o seu cumprimento imediato, por notificação escrita aos mutuários”, em caso de incumprimento por estes “quer no pagamento de capital, quer no pagamento de juros, nos termos deste contrato, por prazo superior a 30 dias”.

Sabe-se ainda (facto do ponto 5) que pela Embargante/Apelada foi assinada a autorização de preenchimento da livrança, da qual consta ser a mesma “destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em divida a V.ª Ex.ª por crédito concedido e/ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados, até ao limite de € 11.760, acrescido dos respectivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V.ª Ex.ª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização” (destaques aditados).

Por fim, vem provado que pela Exequente foram enviadas à Executada/Embargante as cartas datadas de 22/10/2015 e 09/11/2015 – cujas cópias constam de fls. 13 verso a 20 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido –, as quais foram rececionadas, ali se aludindo à resolução do contrato, “com efeitos a partir de 30 de Outubro de 2015”, nos termos do art.º 13.º, n.º 1, al.ªs h) e i), do mesmo contrato.

Assim sendo, a data a considerar como de extinção do vínculo contratual não é a do verificado incumprimento – que, por si só, não tem efeito extintivo do negócio –, mas a da sua resolução pelo credor com fundamento em tal incumprimento pela contraparte.

Se o incumprimento é o fundamento, a resolução é, assim, o facto extintivo e traduz, como dito, um direito potestativo credor.

Ao devedor, se assim o entender, cabe lançar mão do disposto no citado art.º 436.º, n.º 2, do CCiv.: não havendo prazo convencionado para a resolução do contrato, pode ele fixar ao credor (titular do direito de resolução) um prazo razoável para que exerça o direito extintivo, sob pena até de caducidade.

Quer dizer, o devedor não fica (ou não tem de ficar) inexoravelmente nas mãos do credor quanto ao tempo – porventura desproporcionado – de exercício do direito potestativo resolutivo.

Pode até conseguir a caducidade desse direito, em caso de flagrante inércia do credor, se este o não exercer em prazo razoável fixado pelo devedor (isto, obviamente, na falta de prazo convencionado).

No caso dos autos, não resulta que a Embargante/Apelada – ou outro dos obrigados – tenha fixado ao credor um tal prazo razoável para exercício do direito extintivo/resolutivo, tal como não resulta que tenha sido violado convenção/acordo/pacto sobre o tempo da resolução e data de vencimento da livrança.

Assim sendo, ante a factualidade que vem provada e os contornos da figura resolutiva, tal como prevista na lei (e no contrato), mormente o dito art.º 436.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv., não se vê que ocorra violação do princípio da boa-fé, em sede de cumprimento/execução e extinção contratual, não demonstrando os factos uma situação clara de exercício abusivo do direito de crédito ou de violação da regra de conduta que postula um agir honesto, correto e leal para com a contraparte ou sequer a violação de uma confiança legitimamente investida e defraudada de forma desproporcionada, a merecer ser tutelada, em favor da ora Embargante/Apelada ([8]).

Se esta entendia desproporcionado o tempo (eventual demora) na consumação da resolução contratual (e decorrente preenchimento da livrança entregue), perante já antigo incumprimento fundante, deveria ter lançado mão do preceito do n.º 2 do art.º 436.º citado, fixando prazo razoável para o exercício do direito resolutivo/extintivo, sob pena de caducidade.

É esta a solução legal, de proteção do devedor inadimplente/garante perante abusos/demoras injustificadas da contraparte na resolução do contrato em incumprimento, pelo que, salvo o devido respeito, não caberia apelar, havendo solução legal expressa, à válvula de escape do sistema, o princípio da boa-fé, que só deve atuar em situações limite (manifestamente desproporcionadas, chocantes, intoleráveis), designadamente sem resposta legal do sistema.

O abuso de preenchimento da livrança constitui matéria de exceção, pelo que o ónus da prova dos factos tendentes a demonstrá-lo cabia à Embargante/Apelada (art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.), termos em que, na falta desses factos de suporte, tem a exceção de improceder.

Em suma, não pode acompanhar-se o decidido na sentença nesta parte, havendo de dar-se razão, neste âmbito, à pretensão do Apelante.

2. - Da (não) interpelação da avalista

Colocava-se ainda a questão da necessidade, ou não, de interpelação da avalista (Embargante) e se a mesma foi omitida, bem como a de saber qual a data da constituição em mora.

Ora, a questão da existência da interpelação está resolvida na sentença, tanto no plano fáctico fundante (cfr. o último dos pontos provados), como no plano jurídico, constando da fundamentação da sentença que resultou “provada a interpelação extrajudicial” (cfr. fls. 58 do processo físico).

A controvérsia recursiva centra-se, então, agora sobre desde quando são devidos os juros de mora peticionados, concluindo a sentença que são devidos desde 22/10/2015, à taxa de 4% e até integral pagamento.

O Apelante, por sua vez, refere que os juros moratórios são devidos desde a data do incumprimento (09/08/2012), por se tratar de dívida com reembolso em prestações mensais (60 meses), segundo plano financeiro, com vencimento em datas predefinidas (obrigação com prazo certo), pelo que haveria vencimento no prazo convencionado independentemente de interpelação.

E, de facto, consta provado que em 09/08/2012 já havia incumprimento, o que implica, logicamente, ultrapassagem dos prazos de pagamento, com o capital em dívida em 30/08/2012 a ascender a € 9.103,46 (facto provado 3).

Assim, parece assistir razão ao Apelante, por se tratar de obrigação com prazo certo (prestações mensais determinadas/acordadas), pelo que haverá mora, independentemente de interpelação, logo que excedido tal prazo certo prefixado [art.º 805.º, n.º 2, al.ª a), do CCiv.].

Donde que não possa sufragar-se, também nesta parte, o entendimento da sentença em crise.

3. - Do controverso valor relativo ao descoberto

Onde o Apelante não mostra ter razão é no referente ao dito valor relativo ao descoberto de € 381,27.

Com efeito, consta dos factos não provados, sem impugnação, que em 10 de Setembro de 2012 o valor relativo ao descoberto (€ 381,27) que foi integrado no valor pelo qual foi preenchida a livrança já estivesse vencido.

Donde que improceda nesta parte, por não provada, a pretensão do Recorrente, com as legais consequências.

IV – SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - De nulidade processual ocorrida em sessão de audiência final, na presença dos mandatários das partes, deve a parte interessada reclamar no próprio ato, enquanto este não terminar, sob pena de sanação e impossibilidade de invocação no posterior recurso da sentença.

2. - É à parte embargante, na oposição à execução, que invoca o preenchimento abusivo da livrança dada à execução (matéria de exceção), que cabe o ónus da prova dos factos ilustrativos do abuso invocado (no caso, preenchimento por valor superior ao acordado).

3. - O incumprimento contratual não tem como consequência automática a resolução do contrato, cabendo à parte adimplente a opção pela extinção do contrato, exercendo a via resolutiva, ou pela sua manutenção.

4. - Assim, o que extingue o contrato incumprido não é o facto do seu incumprimento (enquanto tal), que é apenas a causa, sendo a resolução, naquele fundada, o facto extintivo.

5. - Prescrevendo o n.º 2 do art.º 436.º do CCiv. que, não havendo prazo convencionado para a resolução do contrato, pode a outra parte fixar ao titular do direito de resolução um prazo razoável para que o exerça, sob pena de caducidade, é o próprio legislador que, na arquitetura do sistema, dá a solução (por si prevista a situação e ponderados os interesses atendíveis das partes) para casos de demora ou abuso do credor no exercício do direito potestativo resolutivo.

6. - Por isso, em tais casos não se justifica convocar o princípio da boa-fé para proteger a parte inadimplente (sancionando a outra parte) que não lançou mão, por inércia sua, da faculdade que aquele art.º 436.º, n.º 2, lhe conferia.

7. - Assim sendo, a data a considerar como de extinção do vínculo contratual não é a do verificado incumprimento – que, por si só, não tem efeito extintivo do negócio –, mas a da sua resolução pelo credor com fundamento em tal incumprimento.

8. - Caso em que o devedor (ou o seu garante) não fica inexoravelmente nas mãos do credor quanto ao tempo – porventura desproporcionado – de exercício do direito potestativo resolutivo, podendo até conseguir a caducidade desse direito, por inércia do credor, se este o não exercer em prazo razoável que lhe seja fixado.


***

V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em, na parcial procedência da apelação, revogar a decisão recorrida, julgando os embargos procedentes apenas no referente ao montante de € 381,27, relativo ao invocado descoberto bancário, parte esta em que fica extinta a execução, devendo prosseguir quanto à demais quantia exequenda.

Custas da apelação e dos embargos por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento (dependente de simples cálculo aritmético).

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Coimbra, 25/06/2019

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

          Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Que se deixam transcritas.
([2]) Subida imediata, nos próprios autos (de embargos) e com efeito meramente devolutivo.
([3]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Processo executivo instaurado em 2016 (atento o n.º de registo dos autos) – cfr. art.ºs 1.º e 8.º, ambos daquela Lei n.º 41/2013.

([5]) Fez-se ainda constar que: “À demais matéria dos articulados à qual não se responde afirmativa nem negativamente tal deve-se ao facto de se tratar de matéria conclusiva ou de direito.”.
([6]) De notar que o preenchimento abusivo invocado na petição de embargos prendia-se com o valor aposto na livrança (preenchimento por valor superior ao acordado no pacto de preenchimento) – cfr. art.ºs 3.º e segs. desse articulado.
([7]) Como expressa o art.º 432.º, n.º 1, do CCiv., é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção das partes, resolução essa que tem efeito extintivo do vínculo contratual (como refere o art.º 433.º do CCiv., é equiparada, por regra, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico) e que opera mediante declaração à contraparte – é uma declaração unilateral recetícia (art.º 436.º, n.º 1, do CCiv.).
([8]) É sabido que, tanto na negociação/formação como no cumprimento/execução, ou na própria extinção, dos contratos e, bem assim, no exercício de direitos correspondentes (designadamente, o direito de resolução do contrato), devem as partes conformar-se com o princípio da boa-fé (cfr. art.ºs 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, ambos do CCiv., respetivamente), aliás, aludido na sentença recorrida, adotando aquelas, nesse âmbito e em geral, conduta honesta, correta e leal, e, a mais disso, comprometida, não só com a confiança gerada na contraparte (com correspondente investimento desta última), mas em geral com o interesse contratual de ambas as partes (aquele que visam atingir/satisfazer com o cumprimento do negócio), de molde a que não resulte manifesta e desnecessariamente prejudicado/comprometido o interesse contratual de qualquer delas. Cabia, pois, ao Exequente/Apelante (credor), neste contexto negocial/contratual, não frustrar a confiança da contraparte em sede resolutiva e de preenchimento da livrança, não se vendo, porém, que se apresente a resolução do contrato, encetada pelo credor, e o tempo encontrado para o efeito, com decorrente preenchimento da livrança, ante o condicionalismo/circunstancialismo fáctico aludido, como abusiva ou, ao menos, excessiva face às condições da relação contratual e de garantia e às decorrentes expectativas atendíveis.