Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
776/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: CURA MARIANO
Descritores: EXAME DE ADN
PODER DISCRICIONÁRIO
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
Data do Acordão: 05/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 679º CPC; 1817º C.CIV. .
Sumário: I – A marcação, pelo Tribunal, de um exame pericial para determinação da filiação, através da realização de testes de ADN à mãe da autora, a si própria e às irmãs desta, traduz-se da determinação oficiosa desse exame e na necessidade da colaboração dessas pessoas, pelo que deve tal diligência ser considerada como uma decisão proferida no uso legal de um poder dIscricionário e, portanto, insusceptível de recurso - 679º do CPC .
II – O C. Civ. de 1966, no seu artº 1854º, estabeleceu um sistema de prazos de caducidade para a propositura das acções de investigação da filiação, sistema esse que, com pequenas alterações e o aditamento de normas interpretativas, se mantém na redacção actual do artº 1817º C. Civ.

III – O prazo-regra para instaurar estas acções de investigação da filiação passou, então, a ser de dois anos após o investigante ter atingido a maioridade e a emancipação, com excepção das situações em que existe um registo contrário, caso em que o prazo é de um ano após a remoção desse obstáculo; quando a acção se funda em escrito do progenitor reconhecendo a filiação, pode ser intentada nos seis meses posteriores à data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito; se o investigante for tratado como filho pelo investigado, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte deste .

IV – O Ac. Trib. Constitucional com o nº 23/2006, de 10/01 (publicado no D.R. nº 28.série I-A, de 8/02/2006), declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artº 1817º do C. Civ., na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artºs 16º, nº 1; 36º, nº 1; e 18º, nº 2, da C.R.P. .

V – Até nova intervenção do legislador nesta matéria, o filho poderá exercitar a todo o tempo, durante toda a sua vida, o seu direito a ver judicialmente reconhecida a sua filiação (dado que, com aquela declaração de inconstitucionalidade, deixou de existir qualquer prazo de caducidade para a propositura destas acções).

Decisão Texto Integral:

Autora: A...

Réus: B...
C... e D...


A Autora intentou a presente acção de investigação de paternidade con-tra os Réus pedindo que seja declarada como filha de E... e de F....
Alegou, para tanto, em síntese, o seguinte:
- No dia 13 de Julho de 1997 faleceu em Currelos, Carregal do Sal, F..., com 72 anos de idade, sendo as Rés suas filhas.
- A Autora encontra-se apenas registada como filha de E..., sua mãe natural.
- Quando a mãe da Autora e o falecido F... tinham 19 e 20 anos de idade, respectivamente, estabeleceu-se entre eles um relacionamento que se transformou em namoro que com o seu decurso se tornou conhecido da generali-dade das pessoas.
- Ambos gostavam um do outro e tornou-se num namoro sério, relacio-namento que se manteve durante alguns anos, e até para além do nascimento da Autora, nomeadamente, dentro do período de Setembro de 1948 a Fevereiro de 1949, tendo a Autora nascido das relações de sexo entre os referidos progenitores.
- A mãe da Autora era uma mulher de irrepreensível comportamento moral e sexual, não tendo tido qualquer relacionamento sexual com qualquer outro homem, durante esse período.
- Sendo na altura os bens de fortuna argumento essencial para se fazer ou desfazer um casamento, o falecido F... veio por tal motivo a casar com outra mulher, de nome G..., mas nunca esqueceu a mãe da Autora e, de vez em quando, ainda lhe fazia convites furtivos para ela estar com ele, insistindo para que fosse viver com ele após a morte da sua mulher, o que aquela recusou.
- Quer o falecido F..., quer os seus familiares, incluindo os seus próprios pais, sempre reputaram e consideraram a Autora como filha do F..., sendo tal facto também indiscutível na povoação e nas redondezas, ninguém lhe apontando outra paternidade.
- A mãe da Autora sempre manteve o melhor relacionamento com a família do falecido F..., pegando estes muitas vezes na Autora ao colo e dizendo “anda cá ao tio”, “anda cá à tia”, “eu pego-te”, fazendo-lhe carinhos.
- Os pais do falecido F... muitas vezes chamavam a mãe da Autora a quem ofereciam comida e a própria G... também considerava a Autora como filha do F....
- O falecido F..., embora de feitio reservado, auxiliou várias vezes a mãe da Autora para ajudar a criar a Autora.
- A Autora emigrou com 20 anos para França, donde regressou há cerca de dezassete, tendo instalado um estabelecimento de café na localidade de Pinheiro.
- O falecido F... ia a tal estabelecimento todos os dias, onde con-versava com a Autora e com o filho desta, H..., sempre que ele ali se encontrava e comprava-lhe guloseimas, como rebuçados e chocolates que lhe dava.
- Almoçava muitas vezes em casa da Autora e tinha liberdade de convi-dar amigos para o efeito, convidando também amigos para irem até uma Quinta que a Autora possui na localidade de Pinheiro, convidando-os para irem à Quinta da filha ou ao café da filha.
- Sempre aceitou que todas as pessoas, designadamente os seus amigos, se referissem à Autora como sendo sua filha.
- Tratava-a como filha, tendo-lhe oferecido a primeira máquina de cos-tura quando a Autora tinha cerca de 13/14 anos e fez questão de no ano transacto à propositura da acção de lhe oferecer um fogão.

Contestou a Ré B... que impugnou, com base no desconhecimento, os factos com base nos quais a Autora sustenta o seu pedido, alegando, contudo, ter sido contactada, após a morte do pai, pela Autora, a qual lhe revelou ser sua irmã, ao que lhe respondeu que fizesse valer os seus direitos em sede judicial.

Contestaram os Réus C... e marido D..., impugnando os factos alegados pela autora, negando ser a mesma reputada e tratada como filha pelo investigado, contrapondo aos mesmos os seguintes argumentos:
- Já na época de 1946, o falecido F... namorava com a G..., com quem casou, namoro conhecido da generalidade das pessoas, apenas existindo entre a mãe da Autora e o falecido F..., como com outras pessoas da aldeia, uma relação de mera cortesia.
- Na época em que o falecido F... namorava com a G..., a mãe da Autora tinha “namoricos”, vindo a manter um namoro sério com um senhor de nome José da Regada, tendo sido nesse período em que namorou com tal senhor, e o falecido F... se encontrava já casado, que a mãe da Autora se ausentou para Lisboa e aquando do seu regresso se constatou que se encontrava grávida.
- O falecido F... após contrair matrimónio mudou a sua residência para a aldeia de Sobral, no concelho de Carregal do Sal, aí ficando a morar com a sua esposa, deslocando-se à localidade de Pinheiro apenas esporadicamente para visitar os seus familiares.
- Enquanto casado o falecido tomava as suas refeições em casa com a sua esposa e após a morte desta ele próprio confeccionava as refeições ou solici-tava-o a uma empregada doméstica.
- O falecido F... nunca convidou a Autora para ir a sua casa tomar refeições com ele, nem a presenteou em épocas festivas, nomeadamente no Natal e seu aniversário, o que fazia às suas filhas B... e C....
- Nunca a Autora foi chamada por quem quer que fosse para cuidar do F..., nem aquela se preocupou com o seu estado de saúde, tendo estado internado no ano de 1993 durante o período de um mês no Hospital Distrital de Viseu, não tendo recebido qualquer visita da Autora
- A Autora não o acompanhou no período de convalescença, nem mani-festou qualquer interesse pelo seu estado de saúde, nunca tendo o F... soli-citado a presença da Autora no Hospital ou em sua casa, não a tratando como filha, o que fazia em relação às Rés B... e C....
- Concluem assim não beneficiar a Autora da presunção prevista no art.1871º, nº1, a), do C.Civil, mais invocando a caducidade da presente acção, nos termos do nº4, do preceito legal citado.

Em sede de réplica e quanto à excepção da caducidade invocada pelos 2ºs Réus, veio Autora alegar não ter a mesma qualquer fundamento, uma vez que os actos de reputação e tratamento como filha do investigado foram mantidos até à sua morte, concluindo como na petição inicial.

Elaborada base instrutória e após terem as partes arrolado os meios de prova cuja produção pretendiam veio a Autora informar que apesar da morte do pretenso pai era possível determinar a sua filiação através da realização de testes de ADN à sua mãe, a si própria e às suas irmãs, requerendo que estas fossem notifi-cada para informar se aceitavam sujeitar-se aos referidos testes.
Notificadas as Rés, estas vieram opor-se a realização daquele exame peri-cial e declarar que não aceitavam sujeitar-se aos respectivos testes.
Foi proferido despacho no sentido de ser solicitado ao I.M.L. informa-ção sobre se era viável a realização do referido exame, tendo aquele instituto res-pondido afirmativamente.
Perante esta resposta foi proferido o seguinte despacho, que foi notifi-cado às partes:
“Notifiquem-se as Rés de que a recusa de ambas em facultarem material orgâ-nico proveniente do organismo de cada uma delas, podendo ser alguns fios de cabelo, urina, saliva ou sangue, com o fim de estabelecer se a Autora A... é irmã delas pode fazê-las incorrer nas seguintes consequências:
- Numa pena de multa, para cada uma delas, que vai de 7.000$00 a 140.000$00, nos termos do artº 519º, nº 1 e 2, do C.P.C. e 102, b), do C.C.J.
- Na possibilidade de o tribunal valorar a sua recusa como meio de prova no sentido de formar a convicção do tribunal de que efectivamente a Autora é irmã das Rés (cfr. artº 519º, nº 1 e 2, do C.P.C.).
- Na inversão do ónus da prova, nos termos do artº 344º, nº 2, do C.C., os seja, passando elas a arcar com o ónus de provar que a Autora não é irmã delas (cfr. artº 519º, nº 1 e 2, do C.P.C.).
Caso pretendam reconsiderar a posição que já tomaram deverão dizê-lo em 10 dias, com vista à marcação de data para colheita de material orgânico.
Caso não seja recebida uma resposta positiva por parte de alguma das Autoras (há lapso manifesto de escrita, visando referir-se as Rés), no sentido de facultar os elementos orgânicos, solicite-se informação à respectiva Câmara Municipal sobre se é ela ou a junta de freguesia respectiva que têm a seu cargo a administração do cemitério onde está enterrado o pai das Rés.
A secção deverá ainda averiguar sobre a identidade da autoridade de saúde que abrange a área do referido cemitério (delegado concelhio de saúde)”.
Deste despacho recorreram os 2º Réus, tendo esse recurso sido recebido como de agravo, com subida diferida.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento perante tribunal colec-tivo.
Terminada esta foi proferida sentença que julgou procedente a acção, tendo reconhecido que a Autora era filha de F....

Desta sentença interpuseram recurso os 2º Réus, que foi recebido como de apelação.
Nas respectivas alegações os 2º Réus manifestaram o seu interesse na apreciação do recurso de agravo anteriormente interposto.

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Atento o disposto no artº 710º, nº 1, do C.P.C., cumpre apreciar em primeiro lugar o mérito do recurso de agravo interposto pelos 2º Réus.

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1. O recurso de agravo
Os 2º Réus fundamentaram o seu recurso com as seguintes conclusões:
- O despacho recorrido enferma de uma ausência total de fundamentação, por-quanto:
a) não se pronuncia nem fundamenta a sua decisão, porque motivo foi aceite o requerimento formulado pela Autora, pese embora os Réus tivessem invocado a extempora-neidade daquele requerimento, violando o disposto no artº 512º, do C.P.C..
b) não se pronuncia nem fundamenta a sua decisão de admitir a realização dos exames requeridos, apesar de os Réus terem invocado o que vem disposto no artº 577º, do C.P.C., pelo que houve violação desta disposição legal.
c) Não se tendo pronunciado nem fundamentado a sua decisão, houve violação do disposto nos artº 158º, 659º, 668º, nº 1, b), e 668º, nº 1, d), todos do C.P.C..
- Tendo os Réus invocado a posição assumida por um especialista em genética do Instituto de Patologia e Imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e ainda a posição assumida pela Ré C..., quanto à realização dos exames requeridos, não se pronunciou o Meretíssimo Juiz a quo aquando da sua decisão, pelo que deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria ter apreciado, não cumprindo o disposto no artº 668º, nº 1, d), do C.P.C..
- O Meretíssimo Juiz a quo, ao decidir como decidiu, não se pronunciou nem fun-damentou sobre a necessidade da realização dos exames requeridos, violando assim o preceituado nos artº 158º, 659º, 668º, nº 1, b) e d), todos do C.P.C..
- A omissão das formalidades aqui invocadas, bem como o conhecimento de todas as questões relevantes, são essenciais à decisão de mérito.
- A sua omissão constitui nulidade.
- O Meretíssimo Juiz a quo, deveria ter decidido pela não realização dos exames, por os mesmos não serem considerados necessários à boa decisão da causa, pelo que violou o disposto no nº 1, do artº 519º, do C.P.C..
- A Autora fundamentou o seu pedido no artº 1871º, nº 1, a), do C.C., alegando para tal que era tratada como filha pelo pretenso pai e reputada como filha também pelo público.
- Não podia a Autora fundamentar esse mesmo pedido em qualquer outra cir-cunstância, por não estar já em tempo – artº 1817º, do C.C..
- O exame de ADN requerido pela Autora, além de extemporâneo, não tem qual-quer relevância para a boa decisão da causa, por não poder provar que a Autora era tratada como filha pelo pretenso pai e reputada como filha também pelo público.
- Ainda que o exame de ADN venha a realizar-se na pessoa das requeridas, o Meretíssimo Juiz a quo não o poderá valorar para efeitos de prova, por não estar de acordo, nem poder provar o fundamento invocado pela Autora no seu pedido.
- O exame requerido é assim totalmente desnecessário e dispensável para a boa decisão da causa, revelando-se uma diligência dilatória e dispicienda, violando o artº 519º, nº 1, do C.P.C.”.
Concluíram, pedindo a revogação da decisão recorrida.

Foram apresentadas contra-alegações, invocando a irrecorribilidade da decisão recorrida e, subsidiariamente, defendendo a sua manutenção.

O despacho recorrido apesar de se limitar a ordenar a notificação das Rés para declararem se estão dispostas a sujeitarem-se aos testes necessários à realização de exame pericial com vista a determinar se a Autora é filha de F..., advertindo-as das consequências da respectiva recusa, contém insíta, uma decisão de realização do referido exame, oficiosamente determinado, e da necessidade da colaboração das Rés na realização desse exame.
A determinação oficiosa do exame pericial deve ser considerada uma decisão proferida no uso legal de um poder descricionário e, portanto, insusceptível de recurso (artº 679º, do C.P.C.), e a convocação das Rés para colaborarem na realização desse exame, com advertência das consequências que poderão resultar dessa falta de colaboração, deve ser considerado um despacho de mero expediente, também ele irrecorrível (artº 679º, do C.P.C.), que apenas visa assegurar as condi-ções necessárias à realização do exame pericial, não contendo ainda qualquer juízo definitivo sobre as consequências da eventual recusa das Rés em colaborarem.
Revelando-se irrecorrível o despacho impugnado, não deve ser apreciado o seu mérito.

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2. O recurso de apelação
Os 2º Réus fundamentaram o seu recurso com as seguintes conclusões:
- O tribunal A Quo incorreu em erro na apreciação da prova, e na fixação dos factos materiais da causa.
- O tribunal A Quo, na formação da sua convicção, não atendeu, como deveria ter feito, a toda a prova produzida no âmbito dos presentes autos.
- O tribunal A Quo ignorou, pura e simplesmente, o depoimento da testemunha JOSÉ LUCAS ALVES VELOSO.
- Tal omissão é em si mesma grave e, caso não tivesse sucedido, poderia e deve-ria ter originado respostas diferentes à matéria de facto, que pela sua relevância poderiam, e deveriam, determinar uma solução de direito diametralmente oposta àquela que veio a ser adoptada.
- Por imperativos de justiça tal omissa deve ser corrigida, devendo tal depoi-mento ser considerado na fixação dos factos materiais da causa.
- Verifica-se na decisão dos autos, insuficiência da matéria de facto dada como provada para fundamento da decisão.
- Não podia, como sucedeu, o tribunal A Quo dar como provados os artigos 6º e 8º da Base Instrutória unicamente com base na perícia de investigação de paternidade, baseada no exame do sangue feito às pessoas da autora, mãe da autora e da Ré, B....
- A admissibilidade de tal exame aguarda decisão, em sede de recurso de agravo.
- O referido exame foi realizado com recurso unicamente a material orgânico retirado à Autora e sua mãe, e à Ré B....
- No exame pericial não foi analisado material orgânico do investigado.
- Desconhece-se se no mencionado exame, os marcadores genéticos coincidentes entre a A. e a R. B... provieram do investigado ou, se pelo contrário, provieram da mãe das RR..
- O exame pericial efectuado não é fiável, pelo que não poderia o tribunal A Quo fundamentar, unicamente nas conclusões do exame pericial efectuado, a resposta afirmativa que deu aos artigos 6º e 8º da base instrutória.
- Tendo-o feito, como na realidade sucedeu, tal decisão deverá ser alterada em conformidade, respondendo-se negativamente a tais quesitos.
- O tribunal A Quo deveria ter dado como não provado o artigo 19º da Base Ins-trutória.
- As provas produzidas sobre tal matéria, especificadas na fundamentação da resposta à Base Instrutória, não são suficientes para que, como sucedeu, o tribunal A Quo formasse a sua convicção da forma referida.
- Tendo-o feito, como na realidade sucedeu, tal decisão deverá ser alterada em conformidade, respondendo-se negativamente a tal quesito.
- O tribunal A quo cometeu um erro na aplicação do direito, ao concluir que se verificavam, no caso em concreto, os requisitos necessários e suficientes da presunção de POSSE DE ESTADO.
- Não existe matéria de facto provada bastante, por forma a que se possa concluir pelo preenchimento, ainda para mais cumulativo, dos mencionados requisitos.
- A factualidade provada é manifestamente insuficiente para se poder concluir que existiu por parte do investigado, e em relação à A., um conjunto de actos claros e positi-vos de protecção, amparo, e solicitude.
- Os actos que, no acórdão recorrido são atribuídos ao investigado não são sufi-cientes, quer em quantidade, quer em qualidade, para fundamentar o preenchimento dos requisitos da POSSE DE ESTADO.
- Tais actos são meramente episódicos e isolados, não revelando um carácter de continuidade e estabilidade temporais que permitam afirmar que o investigado tinha a convicção íntima e firme de ser o pai da A., como a lei exige.
- Não tendo a A. provado tais actos, claros e positivos, a acção teria forçosa-mente que improceder .
- Não se tendo provado, como não se provou, o requisito essencial do tratamento - e com ele a presunção da POSSE DE ESTADO - não pode a A. beneficiar do disposto no nº 4 do art. 1817º do C. Civil.
- Qualquer pretensão da A. relativamente ao investigado teria que ter sido exer-cida até dois anos após esta atingir a maioridade, nos termos do disposto no nº 1 do art. 1817º do C. Civil, o que não sucedeu.
- Não o tendo sido, ficou precludido o seu direito, e a presente acção terá que improceder, devendo tal ser reconhecido”.
Concluíram pelo provimento do recurso.

A Autora apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção da sentença recorrida.

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2.1. O objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes deve este tribunal apreciar as seguintes questões:
O tribunal colectivo, na 1ª instância, não ponderou o conteúdo do depoimento de José Lucas Alves Veloso, na decisão da matéria de facto ?
A prova produzida não permitia as respostas dadas aos quesitos 6º, 8º e 19º ?
O direito de ser judicialmente reconhecida a paternidade da Autora já caducou ?

2.2. Os factos
◘ Os 2║ RÚus alegaram que o tribunal nÒo valorou o depoimento pres-tado antecipadamente pela testemunha JOS╔ LUCAS ALVES VELOSO, o que se tivesse acontecido alteraria o conte·do dos factos considerados provados.
Apesar de na fundamentação das respostas aos quesitos não existir uma referência específica ao depoimento desta testemunha, daí não se pode retirar a conclusão que tal depoimento não foi valorado pelo tribunal.
Esta testemunha, arrolada pelos 2º Réus, depôs sobre a matéria dos que-sitos 1º a 13º, 15º a 19º, 26º e 30º a 36º.
Da audição do depoimento desta testemunha verifica-se que o conteúdo do seu depoimento apesar de não confirmar o sentido das respostas dadas aos quesitos 2º, 3º, 5º, 6º, 8º, 9º, 10º, 15º, 16º, 18º, 19º e 26º, também não o contraria de forma insanável, uma vez que a testemunha apenas refere não se ter apercebido desses factos apesar da relação próxima que na altura tinha com o seu irmão, não acreditando, em termos de mera convicção pessoal, que os mesmos tenham ocor-rido. Deste modo, apesar de não existir uma valoração específica deste depoimento, isso não significa que o mesmo não tenha sido ponderado pelo tribunal colectivo, não lhe tendo sido dada relevância suficiente para infirmar os meios de prova que conduziram às respostas dadas aos mencionados quesitos. Aliás, na motivação a algumas dessas respostas, refere-se genericamente que os depoimentos das teste-munhas arroladas pelos Réus “não foram suficientes para abalar a credibilidade dos meios de prova” que fundamentaram as respostas a esses quesitos.
Relativamente às respostas de não provado dadas aos quesitos 30º a 32º, 34º e 36º, apesar desta testemunha ter no seu depoimento referido esses factos, o tribunal colectivo justificou essas respostas de forma genérica, “pela pouca consis-tência da prova produzida quanto a eles”, não sendo, pois, possível também aqui afirmar que o tribunal não valorou tal depoimento, apesar de não o referir especifi-camente.
Não é possível, pois, concluir, da fundamentação dada pelo tribunal colectivo às respostas aos quesitos da base instrutória, que não tenha sido apreciado e valorado o depoimento da testemunha José Lucas Alves Veloso e dado não terem sido objecto de registo os restantes depoimentos prestados em audiência não pode este tribunal de recurso ajuizar da correcção da valoração da prova realizada, incluindo a desse depoimento, atento o disposto no artº 712º, do C.P.C.
◘ Os RÚus tambÚm discordam do teor das respostas aos quesitos 6║ e 8║, alegando que o relat¾rio do exame pericial realizado s¾ por si nÒo permite essa conclusÒo.
O tribunal recorrido fundamentou as respostas a estes quesitos nas con-clusões da perícia de investigação realizada pelo I.M.L. de Coimbra, as quais foram esclarecidas na audiência de julgamento pelas peritas Maria Conceição Vide e Ana Mónica Carvalho.
Uma vez que os depoimentos prestados em audiência de julgamento não foram gravados não pode o tribunal de recurso alterar a resposta dada a quesitos fundamentadas em meios de prova que não pode apreciar, nos termos do artº 712º, do C.P.C..
◘ Os RÚus discordaram ainda do teor da resposta dada ao quesito 19║, alegando que os meios de prova produzidos a este quesito nÒo permitiam a res-posta dada.
O tribunal fundamentou esta resposta nos depoimentos de A... e Maria José Ribeiro. Como não houve gravação da audiência também estes depoimentos não se encontram registados, estando assim este tribunal de recurso impedido de alterar a resposta a este quesito, atento o disposto no artº 712º, do C.P.C..

São, pois, os seguintes os factos provados neste processo:

I - No dia 13 de Julho de 1997, faleceu em Currelos, Carregal do Sal, F..., com 72 anos de idade (al.A) da factualidade assente).

II - As Rés B.... e C... são filhas do falecido F... (al.B) da factualidade assente).

III - A Autora nasceu no dia 25/06/49, é filha de E..., sendo o seu registo de nascimento omisso quanto à paternidade. (al. C) da factualidade assente).

IV - A mãe da Autora E... nasceu no dia 27/02/1926 ( al. D) da factualidade assente).

V - O falecido F... casou no dia 30 de Agosto de 1947 com G.... (al.E) da factualidade assente).

VI - A referida G... faleceu no dia 05 de Setembro de 1983 (al.F) da factualidade assente).

VII - Por escritura pública outorgada no dia 23/07/1997, no Cartório Notarial de Carregal do Sal, as Rés habilitaram-se como únicas e universais herdei-ras do falecido F... (al.G) da factualidade assente).

VIII - Quando a mãe da autora e o falecido F... tinham 19 e 20 anos de idade, respectivamente, viviam na mesma terra, em Pinheiro - Carregal do Sal, sendo vizinhos, com casas afastadas cerca de 150 metros (resp. ao quesito 1º).

IX - Entre a mãe da Autora e o falecido estabeleceu-se entre eles um relacionamento que se transformou em namoro que com o seu decurso se tornou conhecido de algumas pessoas (resp. ao quesito 2º).

X - Ambos gostavam um do outro e tornou-se num namoro sério, esta-belecendo-se cada vez maior intimidade entre eles (resp. ao quesito 3º).

XI - O falecido F... enviou à mãe da Autora uma carta datada de 4-3-1948, com o seguinte conteúdo:
“Diz-me porque não escreves. Escrevi-te para aí em dia dos teus anos, pedindo-te resposta na segunda ou terça feira adiante. Até hoje todos os dias tenho esperado o carteiro, e não obtive qualquer resposta tua. Não sei porquê. Certamente foram os meus cálculos que me saíram certos. Mas enfim, bem depressa te aborreceste. É ditado dos antigos que longe da vista longe do coração. Paciência… Continuo a esperar notícias tuas até segunda feira. Termino enviando-te os meus cumprimentos. (resp. ao quesito 5º).

XII - Mantiveram relações íntimas de sexo, nomeadamente, dentro do período de Setembro de 1948 a Fevereiro de 1949 (resp. aos quesitos 6º e 8º).

XIII - A mãe da Autora era tida como uma mulher de irrepreensível comportamento moral e sexual, tendo a Autora nascido das relações de sexo exis-tentes entre ambos (resp. aos quesitos 9º e 10º).

XIV - Na povoação de Pinheiro e nas redondezas ninguém apontava outra paternidade à Autora que não fosse o falecido F... Lucas (resp. ao quesito 14º).

XV - A mãe da Autora sempre manteve um bom relacionamento com a família do falecido F..., pegando os familiares, designadamente, o Francisco, irmão do F..., na Autora ao colo ao mesmo tempo que lhe fazia carinhos e a chamava de minha sobrinha (resp. ao quesito 15º).

XVI - Os pais do falecido F... muitas vezes chamavam a mãe da Autora a quem ofereciam comida (resp. ao quesito 16º).

XVII - A Autora possui parecenças físicas com o F... (resp. ao quesito 18º).

XVIII - O falecido F... auxiliou a mãe da Autora para ajudar a criar esta (resp. ao quesito 19º).

XIX - A Autora emigrou com cerca de 20 anos para França, donde regressou há dezassete tendo instalado um estabelecimento de café na localidade de Pinheiro (resp. ao quesito 20º).

XX - O referido F... até falecer ia frequentemente a tal estabelecimento onde conversava com a Autora, deslocando-se igualmente à quinta que esta possuía na localidade de Pinheiro onde conversava igualmente com o marido desta (resp. aos quesitos 21º e 46º).

XXI - Quando o falecido F... se deslocava ao referido estabele-cimento e aí encontrava o filho da Autora, H..., na altura ainda criança, comprava-lhe por vezes guloseimas (resp. ao quesito 22º).

XXII - A Autora oferecia, por vezes, uma bebida ao falecido F... quando este se deslocava ao seu estabelecimento (resp. ao quesito 23º).

XXIII - O falecido F... almoçava por vezes no estabelecimento da Autora, deslocando-se também à referida quinta na companhia de amigos seus (resp. ao quesito 24º).

XXIV - O falecido F... sempre aceitou que todas as pessoas, designadamente os seus amigos, se referissem à Autora tratando-a por filha, tendo-lhe oferecido a primeira máquina de costura quando ela tinha cerca de 13/14 anos (resp. aos quesitos 25º e 26º).

XXV - O falecido F... no ano anterior ao seu falecimento ofere-ceu um fogão à mãe da Autora (resp. ao quesito 27º).

XXVI - Quando a Autora nasceu o falecido F... já se encontrava casado com a G... (resp. ao quesito 33º).

XXVII - O falecido F... já depois de ter contraído matrimónio veio a mudar a sua residência para a aldeia do Sobral, na Carregal do Sal, aí ficando a morar com a sua esposa (resp. ao quesito 35º).

XXVIII - O falecido ficou triste a amargurado com a morte da esposa (resp. ao quesito 37º).

XXIX - O falecido F..., enquanto casado, tomava a maior parte das suas refeições em casa com a sua esposa e, após a morte desta, ora ele próprio confeccionava algumas refeições, ora solicitava a uma empregada doméstica, ora almoçava e jantava, entre outros, num estabelecimento comercial situado no rés-do-chão da sua casa de habitação (resp. ao quesito 38º).

XXX - Quando o falecido F... adoecia e dado que as suas filhas Rés não residiam no concelho de Carregal do Sal eram os amigos daquele e a empregada que telefonavam para casa da ré C... para que esta se inteirasse do seu estado de saúde (resp. ao quesito 40º).

XXXI - O falecido F... esteve internado no ano de 1993, durante o período de um mês no Hospital Distrital de Viseu, período durante o qual foi visitado por vários amigos e familiares (resp. ao quesito 42º).

XXXII - A Autora visitou o falecido F... quando este esteve internado em 1993, tendo o seu marido, na eventualidade de ser necessário, manifestado disponibilidade de arranjar pessoas para lhe dar sangue bem como ele próprio (resp. ao quesito 45º).

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2.3. O direito aplicável
2.3.1. Da caducidade do direito ao reconhecimento da paternidade
Na presente acção provou-se que a Autora nasceu das relações de sexo que existiram entre a sua mãe e o investigado F..., tendo-se apurado a paternidade biológica daquela.
Contudo, os 2º Réus entendem que da matéria de facto provada não resulta uma situação que possa ser qualificada como posse de estado, pelo que caducou o direito invocado pela Autora, nos termos do artº 1817º, nº 1, do C.C., aplicável ex vi do artº 1873º, do mesmo diploma, uma vez que esta nasceu em 1949, tendo já 48 anos, quando propôs a presente acção (30-10-1997).
O estabelecimento de prazos específicos de caducidade para as acções de reconhecimento da filiação surge, de forma benévola, com o Código de Seabra ( No domínio das Ordenações não se encontrava estabelecido qualquer prazo de caducidade, existindo divergências sobre se a jurisprudência aplicava o prazo geral de caducidade dos direitos de crédito de 30 anos, ou considerava o direito imprescritível, como nos dá conta GUILHERME DE OLIVEIRA, em “Critério jurídico da paternidade”, pág. 461, da ed. de 1998, da Almedina.
Na primeira versão do Projecto do Código de Seabra, o filho só podia investigar a sua filiação nos quatro anos subsequentes à maioridade ou emancipação.), quando na sua versão original, estabeleceu que estas acções só poderiam ser pro-postas em vida dos investigados, com excepção destes falecerem durante a menori-dade dos filhos, caso em que o prazo de caducidade era de 4 anos após a maiori-dade ou emancipação, ou quando o filho obtivesse após a morte dos pais docu-mento escrito destes revelando a sua paternidade (artº 133º).
O artº 37º, do Decreto, nº 2, de 1910, veio admitir que a acção pudesse ser intentada ainda no ano seguinte à morte dos progenitores e estabeleceu um prazo de seis meses para a propositura da acção quando esta se fundasse em escrito obtido após a morte daqueles.
Perante as críticas ( Vide, por exemplo, PAULO CUNHA, em “Lições de direito de família”, II vol., pág. 238, da ed. de 1941, da Imprensa Baroeth, e GOMES DA SILVA, em “O direito de família no futuro Código Civil”, no B.M.J. nº 88, pág. 86-87.) que vinham sendo feitas à permissividade deste regime, o Código Civil de 1966, no artº 1854º, estabeleceu um sistema de prazos de caducidade mais curtos e que, com pequenas alterações e aditamento de normas interpretativas, se mantém na redacção actual do artº 1817º, do C.C. ( Esta opção não era seguida porém no artº 51º, do Anteprojecto de PIRES DE LIMA, pub. no B.M.J. nº 89, pág. 54, que não se distanciava do regime do Código de Seabra, e foi criticada por VAZ SERRA, em “Observações do Autor à segunda revisão ministerial do Anteprojecto do Código Civil (Direito de Família)”, defendendo a imprescritibilidade destas acções, conforme refere GUILHERME DE OLIVEIRA, em “Critério jurídico da paternidade”, pág. 464-465, da ed. de 1998, da Almedina.).
O prazo-regra passou a ser de dois anos após o investigante ter atingido a maioridade e a emancipação, com excepção das situações em que existe um registo contrário, caso em que o prazo é de um ano após a remoção desse obstá-culo, em que a acção se funda em escrito do progenitor reconhecendo a filiação, sendo aqui o prazo de 6 meses após o conhecimento desse escrito, e em que o investigante foi tratado como filho pelo investigado, devendo a acção ser proposta no ano seguinte à cessação desse tratamento.
Contudo, este sistema, com um prazo-regra de caducidade muito curto, se já tinha sido alvo de ataques aquando da sua adopção, com os assinaláveis pro-gressos verificados na obtenção científica da prova da paternidade passou a ser objecto de crítica ( GUILHERME DE OLIVEIRA, em “Estabelecimento da filiação”, pág. 40-41, da ed. de 1979, da Almedina, “Critério jurídico da paternidade”, pág. 470-471, da ed. de 1998, da Almedina, e em “Caducidade das acções de investigação”, em “Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, vol. I, pág. 49-58, da ed. de 2004, da Coimbra Editora.
A Provedoria de Justiça, pela Recomendação nº 36/B/99, e o partido “Os Verdes”, através do Projecto de Lei nº 92/IX, de 2002, defenderam a alteração do artº 1817º, do C.C., de modo a não se impor um prazo de caducidade, desde que o investigante renuncie aos eventuais efeitos patrimoniais do estabelecimento do vínculo.), sendo questionada a sua constitucionalidade ( Vide GUILHERME DE OLIVEIRA, no última obra citada na nota anterior, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, em “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo I, pág. 422, da ed. de 2005, da Coimbra Editora, e os Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 99/88, 413/89, 451/89, 506/99, que negaram a inconstitucionalidade do prazo fixado no artº 817º, nº 1, do C.C., e nº 486/04, confirmado pelo Acórdão do Plenário 11/2005, e as decisões sumárias nº 114/05 e 288/05, que concluíram pela inconstitucionalidade da referida norma.).
Finalmente o Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 23/2006, de 10 de Janeiro ( Publicado no D.R. nº 28, Série I - A, de 8-2-2006.), declarou “a inconstitucionalidade, com força obrigató-ria geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”.
Com esta declaração de inconstitucionalidade, pergunta-se se as acções de reconhecimento da filiação, passam a ser consideradas imprescritíveis, podendo ser interpostas a todo o tempo e se os prazos especiais de caducidade previstos nos restantes números do referido artº 1817º, do C.C., continuam a ser aplicáveis ( A declaração de voto constante do citado Acórdão do Tribunal Constitucional pode contribuir para o avolumar dessas dúvidas, ao admitir que futuramente em casos de fiscalização concreta, possam existir julgamentos de não inconstitucionalidade da referida norma.).
Apesar do citado Acórdão ter considerado inconstitucional o nº 1, do artº 817º, do C.C., não por estabelecer um prazo de caducidade, limitativo do direito ao reconhecimento da filiação, mas sim devido ao prazo que foi estipulado pelo legislador naquele dispositivo (dois anos após a maioridade ou emancipação do investigando), pela sua curta duração e rigidez, pôr em causa o núcleo essencial de direito constitucionalmente consagrado, deve considerar-se nula essa norma com efeitos desde a sua entrada em vigor (artº 282º, nº 1, da C.R.P.).
Dado que esta declaração de nulidade não implica, obviamente, a represtinação do regime de caducidade das acções de reconhecimento da filiação do Código de Seabra, nos termos do artº 282º, nº 1, in fine, da C.R.P., uma vez que não foi a norma declarada inconstitucional que havia revogado esse regime, há que concluir, sem receios, que, até nova intervenção do legislador nesta matéria, o filho poderá exercitar a todo o tempo, durante toda a sua vida, o seu direito a ver judi-cialmente reconhecida a sua filiação ( Vide, neste sentido, GUILHERME DE OLIVEIRA, em “Caducidade das acções de investigação”, em “Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, vol. I, pág. 58, nota 18, da ed. de 2004, da Coimbra Editora.).
Com a referida declaração de inconstitucionalidade, com força obrigató-ria geral, e até eventual intervenção do legislador neste domínio, deixou de existir qualquer prazo de caducidade para a propositura destas acções
Esta ausência de prazo de caducidade não reveste a natureza de qualquer vazio legislativo, até porque essa é precisamente a solução adoptada pela maior parte dos sistemas jurídicos que nos são próximos ( Consagram a imprescritibilidade das acções de reconhecimento da filiação propostas pelo filho, os artº 133, do C.C. Espanhol, 270, do C.C. Italiano, 1600, do C.C. Alemão, e 1606, do Código Civil Brasileiro.
Já o artº 263.º do Código Civil suíço prevê que a acção de investigação de paternidade pode ser intentada pela mãe até um ano após o nascimento e pelo filho até ao decurso do ano seguinte ao da sua maioridade, existindo, no entento, uma cláusula geral de salvaguarda, segundo a qual “a acção pode ser intentada depois do termo do prazo se motivos justificados tornarem o atraso desculpável”.
Também no Código Civil Francês, a acção deve ser proposta nos dois anos seguintes ao do nascimento (artigo 340-4, na redacção da Lei n.º 93-22, de 8 de Janeiro de 1993), existindo alguns casos de excepção ao prazo regra (se o pai e a mãe viveram em união de facto estável durante o período legal de concepção, ou se houve participação do pretenso pai na educação da criança). Se, porém, a acção não tiver sido exercida durante a menoridade da criança, esta pode intentá-la durante os dois anos seguintes à maioridade.
O Código Civil de Macau consagrou uma solução algo original: depois do artº 1677 declarar que a acção pode ser proposta a todo o tempo, retira-lhe os efeitos patrimoniais quando ela é proposta mais de 15 anos depois do conhecimento dos factos de onde se podia concluir a paternidade, ou quando se mostre que a intenção principal do Autor é a obtenção de benefícios patrimoniais.), competindo à figura do abuso de direito (artº 334º, do C.C.) evitar que a imprescritibilidade destas acções abra as portas a situações que ofendam a boa-fé, os bons costumes e, sobretudo, o fim social do direito ao reconhecimento da filiação ( Apontando o recurso à figura do abuso de direito como meio de evitar a existência de casos que ofendam o sentimento geral de justiça, vide GUILHERME DE OLIVEIRA, em “Caducidade das acções de investigação”, em “Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, vol. I, pág. 58, nota 18, da ed. de 2004, da Coimbra Editora, e o referido Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006.).
Tal solução encontra-se aliás de acordo com o movimento científico e social ocorrido nas últimas décadas, em direcção ao conhecimento das origens, impulsionado pelos progressos espantosos da ciência genética, que têm acentuado a importância dos vínculos biológicos. O desejo ou a necessidade de conhecer a ascendência biológica tem sido tão vincado que é notória a tendência de afastar qualquer segredo sobre a identidade dos progenitores biológicos, mesmo para os casos de reprodução assistida.
Relativamente aos prazos de caducidade consagrados nos nº 2, 3 e 4, uma vez que os mesmos só tinham sentido como excepções ao prazo-regra, apenas se aplicando quando este já tinha decorrido ( Vide, neste sentido, GUILHERME DE OLIVEIRA, em “Estabelecimento da filiação”, pág. 41-42, da ed. de 1979, da Almedina, FERREIRA PINTO, em “Filiação natural”, pág. 117, da ed. de 1983, da Coimbra Editora, TOMÁS OLIVEIRA E SILVA, “Constituição e extinção do vínculo da filiação”, pág. 86, da ed. de 1989, da Almedina, e o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 99/88, na C.J., Ano XIII, tomo 2, pág. 39, relatado por CARDOSO DA COSTA.), perante a declaração da inconstitucio-nalidade deste, com força obrigatória geral, e a consequente imprescri-tibilidade de tais acções, deixam também de ser aplicáveis, sendo abrangidos pelo efeito da nulidade do nº 1, do artº 817º, do C.C..
Feito o ponto da situação quanto à caducidade das acções de reconheci-mento da filiação, cumpre agora verificar se no caso em análise o direito da Autora em ver reconhecida a sua paternidade caducou.
Dado que a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, tem efeitos retroactivos, sendo nula, desde a sua entrada em vigor, a norma declarada inconstitucional, deve considerar-se que a Autora não estava limitada por qualquer prazo para propor a presente acção, pelo que o seu direito ao reconheci-mento da paternidade não caducou.
Resta, pois, apenas verificar se o facto da Autora ter proposto a presente acção, quando já tinha 48 anos e só após a morte do apontado pai configura uma situação de abuso de direito que impede o pretendido reconhecimento judicial.
Com estes contornos, numa apreciação imediatista poder-se-ia pensar que estaríamos perante as chamadas acções de “caça à herança”, que o C.C. de 1966 tinha visado por cobro ao estabelecer prazos curtos de caducidade.
Porém, após necessária reflexão, é nítido que o facto de um filho se ini-bir de pedir o reconhecimento judicial da sua paternidade durante 30 anos e só o fazer após a morte do pai, não significa necessariamente que agiu com um espírito exclusivamente materialista e interesseiro, aparentemente reprovável face aos bons costumes que privilegiam o carácter afectivo e solidário das relações pai-filho ( Mesmo que esse fosse o único móbil da acção, é duvidoso que a figura do abuso de direito deva intervir, para protecção dos interesses também patrimoniais da família do investigado. Vide, neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 23/2006, de 10-1.).
Tais dados permitem a construção das mais variadas hipóteses, não sendo de excluir aquelas em que à prolongada omissão do filho presidiu a vontade de não prejudicar a paz e a harmonia da família conjugal constituída pelo pai, ou que o tratamento de facto por este dado ao seu filho era de tal modo igual ao duma relação parental que não se sentia qualquer necessidade de obter um reconheci-mento jurídico dessa relação.
E nestas situações, tal como admitia implicitamente o nº 4, do artº 1817º, do C.C., relativamente à ultima, a demora compreensível na propositura da acção não justifica a extinção do respectivo direito.
No caso “sub iudice” os factos apurados apenas revelam que o investi-gado ajudou a mãe da Autora a criá-la e que após esta ter regressado de França onde esteve emigrada desde os seus 20 anos, mantinha com ela relações de conví-vio.
Não se verifica, pois, a existência de qualquer situação que torne abusivo o exercício do direito a ver reconhecida judicialmente a sua paternidade pela Autora, pelo que deve ser confirmada a sentença recorrida.

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DECISÃO
Pelo exposto não se conhece do mérito do recurso de agravo e julga-se improcedente o recurso de apelação interpostos pelos Réus C... e D... e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

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Custas dos recursos pelos Réus C... e D....