Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
400/10.8TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITO FISCAL
APROVAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO EMPRESARIAL
Data do Acordão: 09/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 192º E 218º DO CIRE
Sumário: I – No âmbito de processo de insolvência, a existência de normas tributárias que a isso obstassem no plano da relação Estado-empresa contribuinte, não impede, “per se”, mesmo que com o voto contrário da Fazenda Nacional, a aprovação de um plano que, visando a manutenção em actividade da empresa e a satisfação do passivo com pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, preveja o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juros dos créditos, sejam estes créditos comuns, garantidos ou privilegiados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) -J…, Lda.”, pessoa colectiva nº , com sede na…, veio requerer, em 07/03/2010, no Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, a sua declaração de insolvência, propondo-se apresentar um plano, nos termos dos artºs 192º e seguintes do CIRE.

2) - Por sentença de 16/3/2010, transitada em julgado em 06/05/2010, foi declarada a insolvência da “J…, Lda.”, tendo-se designado dia para reunião da assembleia de credores.

3) - O Estado/Fazenda Nacional veio reclamar créditos fiscais no montante global de € 1.134.992,85, sendo que, desse valor, € 125.530,14 correspondem a créditos reconhecidos como privilegiados e € 1.009.462,71 respeitam a créditos reconhecidos como comuns.

4) - Proposto que foi o plano de insolvência - prevendo o pagamento dos créditos sobre a insolvência, com a manutenção em actividade da empresa, à custa dos respectivos rendimentos – foi o mesmo, com a rectificação introduzida na assembleia de credores de 27/10/2010, submetido a votação em 10/11/2010, vindo a ser aprovado por todos os credores, à excepção da credora M…, que se absteve, e da Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público, que votou contra.

O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, requereu, invocando o disposto no art. 218 do Código dos Processos Especiais de Insolvência e Recuperação de Empresa, a recusa oficiosa da homologação do plano, alegando em abono da sua pretensão que o plano aprovado, em face dos elementos do caso concreto apresenta-se menos favorável aos interesses do credor Estado que a liquidação da Insolvente.

5) - O plano aprovado previa, designadamente:

- No que concerne ao pagamento dos créditos privilegiados detidos pelo Estado, o pagamento do total de capital e juros em dívida, com perdão de 80% das custas, coimas e encargos, em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte à aprovação do plano de insolvência na assembleia de credores;

- No que respeita aos créditos comuns, o pagamento de 50% do capital e de custas, coimas e encargos em dívida, com perdão de juros vencidos e vincendos, a que corresponde € 158.051,69, em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte à aprovação do plano de insolvência na assembleia de credores. 

B) – Em 15/04/2011, a Mma. Juiz do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande, entendendo não se verificar qualquer dos pressupostos de recusa – oficiosa ou a pedido – de homologação do plano, julgando válida a deliberação da assembleia de credores que aprovou o plano de insolvência, homologou-o.

C) - Discordando dessa decisão, dela veio o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, interpor recurso – admitido como apelação, a subir nos próprios autos, e com efeito suspensivo - terminando as respectivas alegações, com as seguintes conclusões:

Terminou, requerendo que a decisão impugnada fosse revogada e fosse substituída por outra que recusasse a homologação do dito plano de insolvência no que concerne aos créditos fiscais reclamados pela Fazenda Nacional.

II - Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).

Assim, a questão a solucionar consiste em saber se a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” deveria ter recusado a homologação do plano de insolvência aprovado por deliberação da assembleia de credores.

III – A) - O circunstancialismo fáctico-processual a atender é o que consta de “I” supra.

B) – Entre outras hipóteses prevê o CIRE que o pagamento dos créditos sobre a insolvência possa ser regulado num plano de insolvência em derrogação das normas desse código, podendo, a satisfação dos credores, em lugar de ser obtida através de liquidação da massa insolvente, ser alcançada com a manutenção em actividade da empresa, na titularidade do devedor, com pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, com perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, e com a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos (artºs 192º, 195º e 196º do CIRE).

A comprovação do acerto da decisão impugnada passa por saber se o plano de insolvência pode contrariar normas tributárias impeditivas da redução dos créditos fiscais ou da modificação dos respectivos prazos de vencimento.

Repare-se que uma resposta negativa a esta questão, em face do peso relativo dos créditos do Estado na totalidade do passivo, dificilmente deixará de ter como consequência a liquidação da empresa, com o inerente encerramento do respectivo estabelecimento e perda dos postos de trabalho dos seus empregados.

Será que um tal custo económico – posto que a solução afasta a empresa do tecido produtivo – e social, pode, razoavelmente, ver-se imposto pelos preceitos fiscais que, antes da declaração de insolvência, regulavam a relação tributária entre a empresa e o Estado, quando, mais a mais, é este, nas normas do CIRE respeitantes ao plano de insolvência, que prevê a hipótese de manutenção em actividade da empresa e a obtenção da satisfação dos credores por via de pagamentos efectuados à custa dos respectivos rendimentos?

A resposta, quanto a nós, não pode deixar de ser negativa.

Versando caso idêntico ao presente, escreveu-se no Acórdão da Relação do Porto, de 17/03/2011 (Apelação nº 309/10.5TBSJM-E.P1 - 3ª Sec)[3]:

«…Quando em causa devedores ao fisco, com processo de insolvência pendente e declarada a insolvência, são sustados os processos tributários para a cobrança desses créditos que, para irem ao processo concursal, terão de nele ser reclamados e reconhecidos. Nessa situação, determina o CPPT, no seu artigo 180º, a sustação de qualquer execução fiscal, contra esse devedor insolvente, sendo tais processos avocados pelo tribunal judicial da insolvência, e sendo pelas normas do CIRE que passam a ser "cobrados" os créditos fiscais reclamados, afastando-se, nesse âmbito e consequentemente, as normas daquele processo (tributário) que não vinculam no processo de insolvência, inoperante sendo o apelo a tais preceitos para afastar o conteúdo do plano de insolvência e a não vinculação do Estado pelo mesmo.

É por este processo que os créditos da insolvência, entre eles os créditos fiscais, comuns ou privilegiados, obterão pagamento, em concorrência com os demais, por força liquidação do património do devedor, por regra insuficiente para a liquidação integral também dos créditos fiscais (independentemente da sua indisponibilidade), ou nos termos de um plano aprovado pela assembleia de credores e homologado pelo juiz.

4.10) - Como, a propósito das citadas normas dos arts. 30º/2 e 36º/3 da LGT[5] e artigo 196º do CPPT, se sintetiza no Ac. do STJ, de 02/03/2010[6] estas "têm o seu campo de aplicação na relação tributária, em sentido estrito, ou seja, no domínio das relações entre a administração tributária, agindo como tal, e os contribuintes, não encontrando apoio no contexto do processo especial, como é o processo de insolvência, onde a actuação da Fazenda Nacional se situa num plano perfeitamente distinto, pois, ao intervir nesse processo, aceita o concurso dos demais credores de determinado contribuinte num quadro em que releva a incapacidade do devedor insolvente para satisfazer as suas dívidas, inclusive das dívidas ao estado, mesmo de natureza fiscal, devendo em consequência este intervir como credor, tendo em conta a existência dos demais credores e aquela situação de incapacidade, e em observância do tendencial princípio de igualdade, despido do jus imperii, que o colocaria numa situação privilegiada perante os demais".

Ora, atenta a especificidade do processo de insolvência, os valores e interesses que ao mesmo presidem, à particularidade da situação do devedor insolvente, numa situação de penúria que afecta todos os credores (incluindo o Estado), sem se questionar a imperatividade de tais normas no âmbito das relações da administração tributária e os contribuintes, é de concluir que, por aplicação das normas do CIRE, ficam derrogadas as prerrogativas do Estado emergentes desses outros preceitos legais.».

De modo similar se veio a entender nos Acórdãos de 02/01/2011 (Apelação nº 788/09.3TBMGR-C.C1) e de 18 de Janeiro de 2011 (Apelação nº 294/10.3TBVNO-G.C1) desta Relação[4], tendo-se escrito neste último: «Atenta a especialidade do regime do CIRE, não se verificando a previsão dos artigos 215º e 216º, nº 1, do CIRE, não deve ser recusada a homologação do plano de insolvência, aprovado em assembleia de credores pela maioria legal, apesar de a credora Fazenda Pública ter votado contra e ter requerido a não homologação com base na ofensa de normas imperativas de direito fiscal.».

Semelhantemente, entendeu esta Relação de Coimbra, no Acórdão de 06/01/2010 (Apelação nº 4091/08.8TBAVR-C.C1): «Considerando a natureza e as finalidades do CIRE e porque no regime deste não se previu qualquer excepcional tratamento privilegiado para os créditos fiscais do Estado ou os da Segurança Social – antes dele determinantemente emergindo a par conditio creditorum - a imperatividade das normas a estes créditos atinentes cede ou não pode ser invocada para impedir, vg., que os credores, no plano de insolvência, condicionem ou limitem, quantitativa e temporalmente, o pagamento de tais créditos.».

Conforme disse o Tribunal da Relação de Guimarães, no seu acórdão de 26/10/2006 (Apelação nº 1930/06-2)[5], “no contexto do processo de insolvência está acolhido o princípio da igualdade dos credores e, destarte, tanto o «perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros» como a «modificação dos prazos de vencimento ou as taxas de juros dos créditos, sejam créditos comuns, garantidos ou privilegiados», podem ser aprovados no âmbito de um plano de insolvência”.

Em face do entendimento expendido nos Acórdãos acima citados e com o qual concordamos, importa concluir, dizendo, como se fez no Acórdão do STJ de 04 de Junho de 2009 (Revista nº 464/07.1 TBSJM-L.S1), que “não ocorre, nesta situação, qualquer derrogação de normas legais imperativas (fiscais ou outras) por vontade dos credores ou partes, pois a derrogação é operada pela própria lei da insolvência que estabelece um regime especial e, na medida em que se trata de uma lei especial, derroga o regime normativo geral (lex specialis derogat legi generali), fruto da opção político-legislativa que, tendo em conta a relevância do tecido empresarial na estrutura económica da sociedade e, do mesmo passo, a necessidade de obviar, na medida do possível, ao prejuízo da insatisfação dos créditos concedidos…”.

Esta interpretação dos preceitos em causa não viola preceitos ou princípios constitucionais, não infringindo, designadamente, o disposto nos artºs 13.°, 103.° e 104.° da Constituição da República Portuguesa.

A esse propósito transcreve-se o que se escreveu no citado Acórdão da Relação do Porto de 17/03/2011: «A decisão recorrida e a interpretação nela feita dos arts. 192º e 196º do CIRE nenhuma afronta fazem ao disposto no artigo 104º da CRP, que se limita a prever as quatro mais importantes espécies de impostos, definindo a sua incidência e os objectivos a alcançar com cada um deles.

No artigo 103º/2 e 3, da Lei Fundamental garante-se o princípio da legalidade fiscal que se traduz "desde logo, na reserva de lei para a criação e definição dos elementos essenciais dos impostos, não podendo eles deixar de constar de diploma legislativo. Isso implica a tipicidade legal, devendo o imposto ser desenhado na lei de forma suficientemente determinada, sem margem para desenvolvimento regulamentar, nem para discricionariedade administrativa quanto aos seus elementos essenciais"[8]. E o nº 3 efectiva esse princípio da legalidade ao conferir aos cidadãos o direito de não pagar impostos criados de forma inconstitucional e não liquidados e cobrados nos termos prescritos em lei.

Desde logo, nos citados dispositivo do CIRE não se dispõe sobre criação de impostos, taxas, benefícios fiscais ou garantias dos contribuintes nem a decisão impugnada os interpretou em sentido diverso.

E é a própria lei (CIRE) a prever a possibilidade não só dos créditos (fiscais) do Estado perderem as garantias de que beneficiavam, fora da insolvência, como a sua vinculação às medidas do plano.

Por outro lado, não se verifica violação do princípio da igualdade (arts. 13º da CRP e 30º/2 da LGT), entendido este em sentido material, que permite diferenciações objectivamente justificadas, as quais, no processo de insolvência devem ter em conta a particular situação do devedor insolvente, o concurso dos diversos credores a um património insuficiente para a todos pagar, a exigência da (tendencial) igualdade dos credores e o interesse público da manutenção do regular funcionamento da actividade económica. O que justifica que alguns benefícios do Estado e de outros credores possam ser afectados por um plano de insolvência regulamente aprovado.».

Por último importa dizer que, conforme refere a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, não resulta “…que a situação para o Requerente da recusa ao abrigo do plano seja previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano. Ou seja, no cenário de liquidação.”.

Explicitando este entendimento, diz a Exma. Magistrada: «Na verdade, com o plano agora em causa, irá receber os seus créditos não imediatamente, mas ao longo de um prazo razoável e perder a receita dos juros vencidos.

Sem plano apenas seria previsivelmente melhor a sua concreta situação no caso de o devedor pagar tudo o que lhe deve de imediato ou num curto espaço de tempo, o que não é expectável, dada a situação de insolvência à qual a Devedora se apresentou. Adrede em caso de liquidação da empresa e execução dos seus bens existe situação de paridade podendo gerar para a Requerente uma situação de não recebimento do seu crédito que veria ser pago com Plano de Insolvência.».

Do exposto resulta, assim, que óbice não havia à homologação do plano aprovado por deliberação da assembleia de credores em causa, não havendo qualquer dos motivos de recusa de homologação previstos nos artºs 215º e 216º do CIRE, pelo que, sem infracção ao disposto nesses preceitos legais e nos artºs 196.º e 199.ºdo Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 30.º, n.º 2 e 3 e 36.º, nº 3 da Lei Geral Tributária (LGT), bem como nos artºs 13.°, 103.° e 104.° da Constituição da República Portuguesa, agiu bem a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” ao homologar o dito plano.

Do exposto afigura-se poder sumariar-se o seguinte:

«No âmbito de processo de insolvência, a existência de normas tributárias que a isso obstassem no plano da relação Estado-empresa contribuinte, não impede, “per se”, mesmo que com o voto contrário da Fazenda Nacional, a aprovação de um plano que, visando a manutenção em actividade da empresa e a satisfação do passivo com pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, preveja o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juros dos créditos, sejam estes créditos comuns, garantidos ou privilegiados.».

IV - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida.

Sem custas.

Coimbra[6],


(Falcão de Magalhães)

(Regina Rosa)

(Jaime Ferreira)



[1] Os preceitos que deste Código forem citados, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante forem citados sem referência de publicação.
[3] Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.
[4] Consultáveis, tal como outros arestos desta Relação que venham a ser citados sem outra indicação, em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.
[5] Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase”.
[6] Processado e revisto pelo Relator.