Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
872/08.0TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: ARRENDAMENTO
FALTA DE PAGAMENTO
RENDA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
FALTA
INTERESSE EM AGIR
REVELIA
RÉU
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTºS 14º, Nº 4, DO NRAU; 1083º, Nº 3, E 1084º, Nº 1, C. CIV.; 484º, Nº 1, CPC
Sumário: I – Mesmo nas situações em que o senhorio, em violação da imposição legal que o vincula a recorrer à via extrajudicial para que possa despejar o inquilino – artº 14º, nº 4, do NRAU, e 1084º, nº 1, do C. Civ. –, recorra à via judicial, desde que verificada uma situação de revelia absoluta não pode o Tribunal a quo, sob pena de violação do disposto na al. b) do artº 485º, al. a) do nº 1 do artº 510º e 511º, todos do CPC, conhecer da excepção dilatória de falta de interesse em agir, porque ao fazê-lo está a ter em consideração, para dizermos como provado, um facto não abrangido pelo efeito cominatório vazado no nº 1 do artº 484º do CPC, ou seja, que o inquilino está em mora com rendas em atraso há mais de três meses.

II – Encontrando-se o réu em revelia absoluta e fazendo a Lei nº 6/2006, de 27/02, depender a cessação do contrato de arrendamento, por resolução com base na falta de pagamento de rendas há mais de 3 meses (artºs 1083º, nº 3, e 1084º, nº 1, do C. Civ.), do êxito da comunicação a que aludem os artºs 9º, nº 7, e 14º, nº 4, dessa lei, então nenhum sentido faz estar a remeter-se o autor para a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas para a via extrajudicial quando são os próprios autos a darem indicação segura que aquela comunicação não mais chegaria ao conhecimento do inquilino, por ser desconhecido o seu paradeiro, o que implica o recurso, de novo, à via judicial, embora com a prévia informação de ser desconhecido o paradeiro do inquilino, o que impossibilita o recurso à via extrajudicial.

III – Neste caso, deve dar-se prevalência ao princípio da economia processual e assim seleccionarem-se os factos assentes e elaborar-se a base instrutória, seguindo-se o julgamento e prolação de sentença.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Coimbra.

1. Relatório

            A..... intentou a presente acção de despejo sob a forma de processo sumário, alegando para o efeito e, em síntese, que, por escritura pública lavrada no cartório notarial da ..... em 29.05.1972, o seu falecido pai deu de arrendamento ao réu o primeiro andar, salas dois, três, quatro e cinco do prédio urbano sito na Rua...., inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo .... (anterior ....). Mais alegou que o contrato de arrendamento acima referido teve início no dia 1 de Janeiro de 1972, tendo sido celebrado pelo prazo de 1 ano, prorrogável por iguais períodos de tempo, contra o pagamento de uma renda mensal no valor de 1500$00, com vencimento no primeiro dia útil de cada mês, anualmente actualizável nos termos legais e que hoje é de 201,31 €. Desde Setembro de 2006, o réu deixou de pagar as rendas, mostrando-se em dívida os valores correspondentes aos meses de Setembro a Dezembro de 2006 e Junho a Outubro de 2007, no valor global de 1.409,17 €, sendo que, não obstante as várias tentativas efectuadas junto do réu com vista à cobrança do valor em dívida, este ainda não efectuou o pagamento.

            Concluiu pela procedência da acção e pela condenação do réu:

            a) A ver reconhecido o direito do autor à resolução do contrato de arrendamento.

b) A entregar ao autor o local arrendado, totalmente livre de pessoas e bens.

c) A pagar ao autor a importância de 1.409,17 €, por conta do montante global das rendas vencidas e não pagas.


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            O réu foi citado editalmente.

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            O Ministério Público foi citado mas não apresentou contestação.

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            No despacho saneador julgou-se a instância válida e regular e absolveu-se o réu da instância com fundamento na falta de interesse em agir por parte do autor à luz do disposto no nº 1 do artigo 14º do NRAU ex vi artigo 1084º, nº 1 do CC e artigos 493º, nº2, 494º e 495 do CPC.

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            Notificado do saneador/sentença o autor mostrou o seu inconformismo interpondo o necessário recurso que instruiu com as respectivas alegações que rematou formulando as seguintes conclusões:

[……………………………………………………………]


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            O Ministério Público não contra alegou.

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            Por despacho de folhas 122 foi o recurso admitido como apelação com subida imediata e nos autos e com efeito suspensivo.

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2. Delimitação do recurso

A questão a decidir na apelação e em função da qual se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 685ºA, todos do Código de Processo Civil, é a seguinte:

¨ Resolução do contrato de arrendamento com fundamento em mora superior a três por falta de pagamento de rendas. Vinculação à via extrajudicial. Opção conferida por lei para recorrer à via judicial e intentar a acção declarativa de resolução do arrendamento e subsequente despejo do arrendatário.


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            3. Colhidos os vistos, aprecia-se e decide-se

            3.1 - Revelia absoluta. Efeitos no despacho saneador que conheceu oficiosamente da excepção inominada da falta de interesse em agir

            Antes de entrarmos no conhecimento da questão de fundo – possibilidade ou não do senhorio em face do quadro legal que emerge da NRAU, lançar mão da via judicial para lograr a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas – impõe-se que teçamos um breve comentário sobre as consequências que a revelia absoluta tem para a acção e se consequentemente se podia ou não a Exma. Juiz ter conhecido no saneador da excepção dilatória de falta de interesse em agir escorando-se na aplicação aos autos do regime previsto no NRAU por via do disposto nos artigos 26º e 59º, nº 1 da Lei nº 6/2006, de 27.2.

            Compulsando os autos verificamos que o autor alegou a existência de um contrato de arrendamento, celebrado por escritura pública, das salas, 2, 3, 4 e 5 do 1º andar do prédio urbano sito na Rua ...,..., destinando-se as instalações a escritórios de seguros, comerciais, representações e consignações. Foi acordado que o contrato vigorava pelo prazo de 1 ano renovável e mediante o pagamento de uma renda que à data da propositura da acção era de € 201,31. A partir de Setembro de 2006, o inquilino deixou de pagar as rendas que em Outubro de 2007 totalizavam a quantia de € 1.409,17 em dívida e consequentemente formulou o pedido de resolução do contrato de arrendamento com a entrega do locado e pagamento daquela importância com juros.

           

3.1.1 – Enviada carta registada com aviso de recepção para citação do réu veio a mesma devolvida com o fundamento de «não atendeu». Ordenada a citação por meio de funcionário judicial foi consignado na certidão negativa de folhas 38 «não ter sido atendido por ninguém (…) já não se encontra nesta morada há 5/6 anos, altura em que passou a residir na Figueira da Foz, não tendo contudo morada». Ordenou-se o cumprimento do disposto no artigo 244º, nº 1 do CPC e na sequência da informação de folhas 54, ordenou-se que se oficiasse às autoridades policiais competentes que informaram não ser conhecido na morada indicada, nem em outro lugar, daí que tenha sido citado editalmente.

              Encontrando-se o réu numa situação de revelia absoluta, por ter sido citado editalmente, por não ter constituído mandatário judicial e por não ter intervindo, por qualquer modo, no processo no prazo da contestação - alínea c) do artigo 485º do CPC – o efeito cominatório mencionada no artigo 484º do CPC é inaplicável.

            Embora a Exma. Juiz não tenha individualizado na decisão recorrida os factos provados acabou, como não podia deixar de ser, atendo o disposto nos artigos 9º, nº 7 e 14º, nº 4 do NRAU, por partir da existência de um contrato de arrendamento e de rendas em atraso por um período superior a três meses, para concluir pela vinculação legal do senhorio ao procedimento vazado no nº 4 do artigo 14º do NRAU e nos artigos 1047º e 1083º, ambos do CC e daí que tenha, no seguimento do decidido pelo acórdão desta Relação, datado de 15 de Abril de 2008[1], entendido que o apelante tem falta de interesse em agir e consequentemente absolveu o réu da instância.

           

            3.1.2 – Em nossa modesta opinião, nos casos de revelia absoluta é claramente inaplicável a previsão do nº 4 do artigo 14º do NRAU, pela basilar razão de ser impossível dar cumprimento à comunicação a que alude o nº 7 do artigo 9º daquele diploma legal. Na verdade, se não foi possível citá-lo pessoalmente para a acção o que levou que fosse citado editalmente, então, não vislumbramos fundamento para considerar como possível a sua notificação judicial avulsa ou contacto pessoal através de advogado, solicitador ou solicitador de execução. Embora continuemos a considerar válidos – mas não indiscutíveis - os argumentos aduzidos no acórdão desta Relação quando confrontados com o entendimento maioritário de diversos acórdãos dos Tribunais da Relação de Lisboa e Porto[2] que nos parecem estruturar o seu entendimento “na opção” que é conferida por lei ao senhorio de percorrer/escolher o caminho extrajudicial ou judicial – artigos 9º e 1047º do CC – conforme o seu interesse, a verdade é que mesmo nas situações em que o senhorio, em violação do disposto no nº 4 do artigo 14º do NRAU, seguiu a via judicial, não pode ser declarado oficiosamente no despacho saneador a excepção dilatória da falta de interesse em agir, quando se verifica uma situação de revelia absoluta e subsequente inaplicabilidade do efeito cominatório, na medida em que ao fazê-lo a Exma. Juiz passou a tomar como provados[3] factos que não o podiam ser à luz do disposto na alínea b) do artigo 485º do CPC.

            3.1.3 – Significa isto que optando o senhorio pelo recurso à via judicial, só é de conhecer a excepção dilatória da falta de interesse em agir desde que o arrendatário seja citado para contestar e quer o faça quer não, desde que o Tribunal possa concluir que se o senhorio tivesse seguido a via extrajudicial estava assegurado o êxito da comunicação a que alude o nº 7 do artigo 9º do NRAU.

Ou seja, mesmo nas situações em que o senhorio, em violação da imposição legal que o vincula a recorrer à via extrajudicial para que possa despejar o inquilino – artigo 14º, nº 4 do NRAU e 1084º, nº 1 do CC – recorra à via judicial, desde que verificada uma situação de revelia absoluta não pode o Tribunal a quo sob pena de violação do disposto na alínea b) do artigo 485º, alínea a) do nº 1 do artigo 510º e 511º, todos do CPC conhecer da excepção dilatória de falta de interesse em agir, porque ao fazê-lo está a ter em consideração, para não dizermos como provado, um facto não abrangido pelo efeito cominatório vazado no nº 1 do artigo 484º do CPC, ou seja, que o inquilino está em mora com rendas, em atraso, há mais de três meses.

Assim e embora a excepção dilatória seja de conhecimento oficioso – artigo 495º e alínea a) do nº 1 do artigo 510º ambos do CPC – a verdade é que o conhecimento da excepção de falta de interesse em agir, desde que não suscitado pela parte, só deve ser conhecida no despacho saneador se a tal o permitirem os elementos constantes dos autos. Integra em nosso modesto ver a categoria de «elemento constante dos autos» a citação do réu para a acção, já que só através deste meio é possível concluir que tivesse o autor lançado mão da via extrajudicial estava assegurada a comunicação a que se faz referência no nº 4 do artigo 14º do NRAU. Encontrando-se o réu em revelia absoluta e fazendo depender a lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro do êxito da comunicação a que aludem os artigos 9º, nº 7 e 14º, nº 4, então, nenhum sentido faz estar a remeter-se o autor/apelante para a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas para a via extrajudicial quando são os próprios autos a darem indicação segura que aquela comunicação não mais chegava ao conhecimento do inquilino, por ser desconhecido o seu paradeiro, o que implicaria o recurso, de novo, à via judicial, embora com a prévia informação de ser desconhecido o paradeiro do inquilino o que impossibilitada o recurso à via extrajudicial. Neste caso deve dar-se prevalência ao princípio da economia processual e assim seleccionar-se os factos assentes e a base instrutória, seguido de julgamento e prolação de decisão, o que se determina ao abrigo do disposto nos artigos 712º, nº 4, 485º, b) e 511º, nº 1 do CPC.

            4. Resolução do contrato de arrendamento com fundamento em mora superior a três meses por falta de pagamento de rendas. Vinculação ou não à via extrajudicial.

            No acórdão desta Relação proferido no âmbito do processo nº 947/07.7 também do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, houve o cuidado de manifestar no item VI do sumário, as dúvidas manifestadas pelo relator e naturalmente extensíveis aos adjuntos quanto à existência de vinculação legal do senhorio à via extrajudicial sempre que se verifiquem os requisitos enunciados no nº 4 do artigo 14º do NRAU, tanto mais que os direitos do inquilino nunca seriam postos em causa, já que em sede de oposição à execução sempre podia defender os seus direitos. Todavia, como o conhecimento desta questão está claramente prejudicada, uma vez que se anulou a decisão recorrida com o fundamento na deficiência da matéria de facto por referência ao facto alegado pelo autor/apelante como estruturante do pedido de resolução do contrato de arrendamento, ou seja, o não pagamento de renda por parte do inquilino por período superior a 3 meses.


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            Sumariando:

I. Mesmo nas situações em que o senhorio, em violação da imposição legal que o vincula a recorrer à via extrajudicial para que possa despejar o inquilino – artigo 14º, nº 4 do NRAU e 1084º, nº 1 do CC – recorra à via judicial, desde que verificada uma situação de revelia absoluta não pode o Tribunal a quo sob pena de violação do disposto na alínea b) do artigo 485º, alínea a) do nº 1 do artigo 510º e 511º, todos do CPC conhecer da excepção dilatória de falta de interesse em agir, porque ao fazê-lo está a ter em consideração, para dizermos como provado, um facto não abrangido pelo efeito cominatório vazado no nº 1 do artigo 484º do CPC, ou seja, que o inquilino está em mora com rendas, em atraso, há mais de três meses.

II. Encontrando-se o réu em revelia absoluta e fazendo depender a lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro do êxito da comunicação a que aludem os artigos 9º, nº 7 e 14º, nº 4, então, nenhum sentido faz estar a remeter-se o autor/apelante para a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas para a via extrajudicial quando são os próprios autos a darem indicação segura que aquela comunicação não mais chegava ao conhecimento do inquilino, por ser desconhecido o seu paradeiro, o que implicaria o recurso, de novo, à via judicial, embora com a prévia informação de ser desconhecido o paradeiro do inquilino o que impossibilitada o recurso à via extrajudicial.

III. Neste caso deve dar-se prevalência ao princípio da economia processual e assim seleccionar-se os factos assentes e a base instrutória, seguido de julgamento e prolação de decisão, o que se determina anulando-se a decisão recorrida ao abrigo do disposto nos artigos 712º, nº 4, 485º, b) e 511º, nº 1 do CPC.


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            Decisão

            Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, anulando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que elabore despacho saneador, factos assentes e base instrutória.


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            Custas a cargo da parte vencida a final.

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            Notifique.


[1] Acórdão proferido no âmbito do processo nº 937/07.6 TBGRD.C1, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Isaías Pádua e por nós subscrito enquanto seu adjunto, disponível no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[2] Em sentido contrário - Ac. RP datado de 20 de Abril de 2009, proferido no âmbito do processo nº 0837636, relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Deolinda Varão; Ac. RP datado de 19 de Fevereiro de 2009, proferido no âmbito do processo nº 459/08.8 TJVNF e relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Amaral Ferreira; Ac. RP, datado de 26 de Fevereiro de 2008, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Cândido Lemos; Ac. RP datado de 31 de Janeiro de 2008, proferido no âmbito do processo nº 0736573 e relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Madeira Pinto; Ac. RL datado de 17 de Abril de 2008, proferido no âmbito do processo nº 2308/08-2 e relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Lúcia Sousa. Ac. RL datado de 28 de Maio de 2009, proferido no âmbito do processo nº 3896/07-2 e relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Neto Neves. Ac. RL datado de 18 de Junho de 2009, proferido no âmbito do processo nº438/08.05 YYLSB.L1-8 e relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Ana Luísa Geraldes. Ac. RL datado de 31 de Março de 2009, proferido no âmbito do processo nº 2150/08.6 TBBRR.L1-7 e relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Ana Resende. Ac. RL datado de 13 de Março de 2008, proferido no âmbito do processo nº 1154/2008-6 e relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Fernanda Isabel Pereira. Ac. RL datado de 25 de Fevereiro de 2008, proferido no âmbito do processo nº 469/2008-7 e relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Graça Amaral, todos disponíveis no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[3] Falta de pagamento de rendas por período superior a 3 meses.