Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
945/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: ADMOESTAÇÃO
Data do Acordão: 05/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 3º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 60º, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: A pena de admoestação, a mais leve do nosso ordenamento jurídico, só pode ser cominada se o tribunal se convencer, através da emissão de um juízo de prognose favorável, que o delinquente alcançará por tal via a sua (re)socialização e que a sua aplicação não porá em causa os limiares mínimos das expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico, sem esquecer que a mesma só deve ser cominada para censura de factos de escassa gravidade, gravidade que deve ser aferida em função do bem ou do interesse jurídico tutelado e o grau e a intensidade da violação ou lesão nele produzida.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
Após a realização de contraditório no âmbito do processo comum singular n.º 752/99, do 3º Juízo Criminal de Leiria, foi proferida sentença que condenou o arguido A..., com os sinais dos autos, como autor material de um crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, previsto e punível pelo artigo 355º, do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão substituída por pena de multa por igual tempo à taxa diária de € 10 ( - Na sentença foi absolvida da prática em autoria material do mesmo crime a arguida B....).
Interpôs recurso o arguido tendo formulado as seguintes conclusões na motivação apresentada:
1. O artigo 355º, do Código Penal pode ser preenchido por duas formas distintas.
2. Na forma de descaminho de objecto colocado sob o poder público.
3. Caso em que o bem é subtraído ao poder público, desaparecendo do seu controlo físico efectivo.
4. Ou na forma de destruição de objecto colocado sob o poder público.
5. Caso em que o bem é desfigurado e tornado não apto para o fim a que se destina, assim se inutilizando.
6. O recorrente estava acusado de preencher o tipo do referido artigo na forma de descaminho.
7. Mas não se provou que o recorrente tivesse subtraído o bem em causa (o Renault) ao controlo do poder público, pelo contrário foi a arguida B... quem o fez.
8. Pelo que o arguido não podia ser condenado por um comportamento desse tipo (tipo legal de crime).
9. Devendo, assim, ser absolvido.
10. A sentença recorrida, aliás, é imprecisa e, até, incorrecta, ao condenar o recorrente pelo crime de “descaminho ou destruição”, uma vez que o crime se consuma de uma forma ou de outra, mas não das duas em simultâneo.
11. Resulta da matéria provada que o recorrente tinha razão nos seus protestos contra a apreensão do FIAT, pois esta veio a ser considerada irregular e mandada levantar.
12. Do que se conclui que a censura de que possa ser merecedor é muito reduzida.
13. Pelo que, a manter-se a condenação do arguido, deve a pena ser aplicada pelo mínimo legal possível.
14. Pedindo que, a manter-se a condenação, o recorrente seja admoestado, nos termos do artigo 60º, do Código Penal.
15. Ou, em alternativa, que venha a cumprir trabalho a favor da comunidade, nos termos previstos no artigo 58º, do Código Penal, o que o recorrente, desde já, declara aceitar.
O recurso foi admitido.
Na contra-motivação apresentada o Digno Procurador-Adjunto pugna pela improcedência do recurso, com integral confirmação da sentença recorrida.
Foram apresentadas alegações escritas nas quais o recorrente reafirma o invocado na motivação de recurso.
Contra-alegou o Exm.º Procurador-Geral Adjunto pronunciando-se, uma vez mais, pela confirmação da sentença impugnada.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Começando por delimitar o objecto do recurso, o qual se circunscreve ao reexame da matéria de direito, verifica-se serem duas as questões submetidas à nossa apreciação e julgamento, quais sejam a da inexistência do crime pelo qual o recorrente foi condenado e a da espécie e medida da pena cominada.
É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto ( - O texto que a seguir se transcreve corresponde ipsis verbis ao da sentença recorrida.):
«1. No dia 05.07.1999, pelas 17,30 horas, no âmbito do Processo de Contra-Ordenação Aduaneira n.º 417/99 que correu termos no Agrupamento Fiscal, a GNR apreendeu dois veículos automóveis, ligeiros de passageiros, pertencentes à arguida B...;
2. Um deles era de marca Renault, no valor de 600.000$00 e tinha matrícula francesa, com o n.º 2689-LX-94; e
3. O outro era de marca FIAT, com o valor de 1.000.000$00 ( - Do texto da sentença consta o valor de 1.000$00, o que constitui manifesto lapso, como resulta do exame do processo, designadamente da acusação de fls.31/33 e do auto de apreensão de fls.21, lapso que se corrige nos termos do artigo 380º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do Código de Processo Penal.), e tinha matrícula francesa, com o n.º 2912-QZ-94;
4. Na altura da apreensão foi constituído fiel depositário dos veículos o arguido A...;
5. O qual, na mesma ocasião, foi esclarecido dos deveres que, na aludida qualidade, lhe incumbiam, designadamente que não podia remover, alterar o estado, utilizar ou vender os aludidos veículos e que os devia entregar quando a autoridade administrativa, à ordem da qual estavam apreendidos, lho exigisse;
6. O arguido compreendeu o significado e alcance das aludidas funções de fiel depositário e informou a proprietária dos veículos, a arguida B..., da situação em que eles se encontravam;
7. Posteriormente, no dia 29.07.1999, a proprietária do veículo da marca Renault passou a circular com ele;
8. No dia 04.08.1999, pelas 14,15 horas, na Quinta do Retiro, Barreira, o arguido colocou o veículo de marca FIAT em funcionamento e mandou-o contra um pilar da edificação onde o mesmo se encontrava guardado;
9. Ao agir pela forma descrita, o arguido quis subtrair ao poder público os aludidos veículos, como conseguiu, agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida por lei;
10. O arguido é empresário por conta própria no ramo automóvel e é proprietário de uma casa de pneus denominada “Auto Ranger, Lda.”, com sede na Rua do Forno da Telha, Quinta do Retiro, Barreiro, Leiria; tem dois empregados ao seu serviço pagando o vencimento, a cada um, de 400,00 euros mensais; vive em casa própria e as instalações onde funciona a referida casa de pneus são sua propriedade; a sua mulher trabalha na referida firma e aufere o vencimento de 400,00 euros mensais; paga uma renda de um armazém no montante mensal de 500,00 euros;
11. Encontram-se registados em nome do arguido os seguintes automóveis:
11.1 Nissan, ligeiro de passageiros, a gasóleo, do ano de 1990, de matrícula 41-85-LO;
11.2 Peugeot, ligeiro de passageiros, modelo 205 Cabriolet, a gasolina, do ano de 1987, de matrícula 30-69-NS;
11.3 Austin, modelo Healby Sprite, ligeiro de passageiros, a gasolina do ano de 1958, de matrícula LC-47-55;
11.4 Renault, ligeiro misto, a gasolina, modelo 4L, do ano de 1976, de matrícula IT-36-24;
11.5 Renault, modelo Clio, do ano de 1996;
11.6 Citroen, modelo 2 cavalos;
12. A arguida é porteira em França e aufere o vencimento mensal de 600,00 euros; o seu marido encontra-se de baixa e aufere da Caixa francesa a quantia mensal de cerca de 800,00 euros; tem uma filha deficiente mental com uma incapacidade de 80% a viver consigo, a suas expensas;
13. A arguida tinha a intenção de usar o veículo Renault quando se deslocasse a férias a Portugal, o que aconteceu em Agosto de 1999;
14. Em meados de Julho de 1999 a arguida foi contactada pelo arguido A... que a informou que seria necessária uma procuração e duas declarações que justificassem a presença dos veículos em Portugal e que lhe pediu;
15. A arguida foi informada pelo arguido que os veículos haviam sido apreendidos pela Guarda Fiscal, mas que com aqueles documentos poderiam circular;
16. Em 08.07.1999 assinou as declarações onde fez reconhecer as assinaturas no Consulado de Portugal em Nogent Sur Marne;
17. Ainda no mês de Julho de 1999 passou uma procuração e enviou-a ao arguido juntamente com as referidas declarações;
18. E que com tais documentos solucionar-se-ia o problema;
19. À medida que o tempo ia passando e porque não mais foi informada relativamente à situação dos veículos, a arguida convenceu-se que o assunto ficaria resolvido;
20. Em Agosto de 1999 a arguida veio a Portugal e, sem ter estabelecido qualquer contacto com o arguido, foi buscar a viatura Renault pois tinha necessidade de a utilizar, convencida de que já não se encontrava apreendida, utilizando o dito Renault durante as férias;
21. A arguida é pessoa respeitada na comunidade onde vive e na qual se encontra bem inserida;
22. O Comandante do Agrupamento Fiscal de Lisboa da Brigada Fiscal da GNR proferiu, em 19.10.1999, um despacho onde, além do mais, determinou que a viatura FIAT fosse desapreendida e entregue, juntamente com o respectivo livrete, ao seu legítimo detentor, o arguido, por a considerar uma situação regular em Portugal;
23. O arguido é respeitador e respeitado por quem com ele se relaciona;
24. Os arguidos não têm antecedentes criminais».
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Inexistência do Crime
Alega o recorrente que o crime do artigo 355º, do Código Penal, pelo qual foi condenado pode ser preenchido por duas formas distintas, mediante descaminho, caso em que o objecto é subtraído ao poder público, ou através de destruição, caso em que o objecto é desfigurado, sendo certo que apenas foi acusado do preenchimento do respectivo tipo na forma de descaminho, pelo que não se tendo provado ter subtraído o veículo Renault, veículo que foi objecto de descaminho por parte da arguida B..., não pode ser censurado pela autoria material daquele facto típico.
Decidindo, dir-se-á.
Primeira observação a fazer é a de que ao recorrente, segundo consta da acusação pública de fls.31/33, foram imputados factos preenchentes do tipo legal de crime do artigo 355º, do Código Penal, nas duas modalidades ou formas pelo mesmo referidas.
Com efeito, o mesmo foi acusado de haver entregue à co-arguida B... o veículo Renault – artigo 9º do requerimento acusatório – e de haver destruído a frente do veículo FIAT – artigos 11º a 13º da acusação.
Segunda observação a fazer é a de que, conquanto não se tenha provado em sede de audiência que o arguido entregou o veículo Renault à co-arguida B..., a verdade é que se entendeu na decisão impugnada, e bem, que ao permitir, por falta da devida vigilância, a saída do mesmo da sua posse, e ao não dar conhecimento da manutenção da situação de apreensão do mesmo à co-arguida e proprietária do veículo, incorreu aquele na prática do crime.
Terceira observação a fazer é a de que, como da sentença impugnada também consta, o arguido danificou o veículo FIAT, deliberadamente, para além de que impediu que a remoção do mesmo se processasse, o que fez com intenção de o subtrair ao poder público, factos que, obviamente, integram a autoria material do crime do artigo 355º, do Código Penal, posto que aquele veículo se encontrava apreendido (sob o poder público), sendo seu fiel depositário o próprio arguido.
Deste modo, é evidente que carece de total fundamento a alegação do recorrente segundo a qual não cometeu o crime pelo qual foi condenado.
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Espécie e Medida da Pena
Entende o recorrente que a censura de que é merecedor é muito reduzida, sob a alegação de que tinha razão nos seus protestos contra a apreensão do veículo FIAT, consabido esta ter sido considerada irregular e mandada levantar, razão pela qual lhe deve ser cominada pena de admoestação ou pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, sendo que em qualquer caso a pena aplicada deve ser reduzida ao mínimo legal.
Começando por verificar se ao recorrente devia ter sido aplicada pena de admoestação, dir-se-á que esta pena, a mais leve do nosso ordenamento jurídico-penal, só deve e pode ser cominada se o tribunal concluir que, através dela, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 60º, n.º 2 in fine, do Código Penal –, o que vale por exigir que o tribunal se convença, através da emissão de um juízo de prognose favorável, que o delinquente alcançará por tal via a sua (re)socialização e que a sua aplicação não porá em causa os limiares mínimos de expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico ( - Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 387.).
Por outro lado, tendo em vista as considerações produzidas no n.º 12 do Preâmbulo da versão originária do Código Penal ( - Diz-se textualmente naquele n.º 12 da parte preambular da versão originária do Código, a propósito da pena de admoestação, que: « (…) trata-se de uma censura solene, feita em audiência pelo tribunal, aplicável a indivíduos culpados de factos de escassa gravidade e relativamente aos quais se entende (ou por serem delinquentes primários ou por neles ser mais vivo o sentimento da própria dignidade, por exemplo) não haver, do ponto de vista preventivo, a necessidade de serem utilizadas outras medidas penais que importem a imposição de uma sanção substancial».), certo é que esta pena só deve ser aplicada para censura de factos de escassa gravidade ( - A gravidade do facto depende em primeira linha, obviamente, do bem ou do interesse jurídico tutelado e do grau e da intensidade da violação ou lesão nele produzida.).
No caso vertente o bem jurídico tutelado pelo crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público é a autonomia intencional do Estado, concretizada através da ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública ( - Cf. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, III, 419.), bem de relevância indiscutível e significativa, sendo que o recorrente o lesou de forma deliberada e intensa, o que significa que o facto perpetrado não é de escassa gravidade.
Deste modo, tendo também por certo que a cominação da pena de admoestação não se compatibiliza in casu com as concretas exigências de prevenção geral, conclui-se ser aquela inaplicável ao recorrente.
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Relativamente à pena de prestação de trabalho a favor da comunidade há que ter atenção que se trata de uma pena de substituição só cominável quando ao arguido deva ser aplicada pena de prisão em medida não superior a um ano – artigo 58º, n.º1, do Código Penal – razão pela qual está fora de questão o equacionamento da sua eventual cominação ao recorrente, mesmo a seu pedido.
Com efeito, após a revisão operada ao Código Penal pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, conquanto se haja alargado o campo de aplicação desta pena, aumentando-se para prisão até 1 ano (anteriormente 3 meses) o máximo da pena de prisão que ela pode substituir, a verdade é que se suprimiu do texto legal a possibilidade de aplicação da mesma aos casos em que ao arguido deve ser aplicada pena de multa – eliminou-se no nº 1 a expressão ou só pena de multa ( - Cf. Simas Santos/Leal Henriques, Código Penal Anotado (1995), 1º, 492, bem como Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado 1995), 331, que expressamente refere: “ A PTFC é uma pena substitutiva da de prisão até um ano, e não de qualquer outra, pois que se trata de uma pena revestida de alguma dureza”.).
No entanto, estabelece-se agora a possibilidade de a pena de multa poder substituída por prestação de trabalho, como meio de cumprimento, ficando tal possibilidade dependente de requerimento do condenado nos termos do artigo 48º, n.º1, do Código Penal, pelo que se o recorrente assim o entender deverá, oportunamente, requerer a substituição.
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Resta verificar se a pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão se mostra ou não correctamente determinada, designadamente se ao recorrente, como o mesmo pugna, deve ser aplicada pena correspondente ao mínimo legal.
Vejamos.
A determinação da medida concreta da pena (dias de multa) faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no artigo 71º, do Código Penal, tendo em vista as finalidades das respostas punitivas em sede de Direito Penal, quais sejam a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40º, n.º1, do Código Penal –, sem esquecer, obviamente, que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena – artigo 40º, n.º 2.
Efectivamente, a partir da revisão operada em 1995 ao Código Penal, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena, no sentido de que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – artigo 18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995 ( - Vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111.).
Como refere Anabela Rodrigues ( - Problemas fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin (2002), “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, 177/208, estudo também publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2 Abril – Junho de 2002, 147/182.), o artigo 40º, do Código Penal, após a revisão de 1995, condensa em três proposições fundamentais um programa político-criminal – a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos, de que a culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento, e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena, de onde resulta que:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade da tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas» ( - Em sentido concordante, mas não totalmente coincidente, de jure constituto, veja-se Taipa de Carvalho, “Prevenção, Culpa e Pena”, Liber Discipulorum Para Jorge Figueiredo Dias (2003), 317/329, que considera a prevenção, geral e especial, o fundamento legitimador da aplicação da pena, desempenhando a culpa do infractor, apenas, o (importante) papel de pressuposto e de limite máximo da pena a aplicar, por maiores que sejam, as exigências sociais de prevenção, e entende ser correcta a afirmação de que está subjacente ao artigo 40º, do Código Penal, uma concepção preventivo-ética da pena: preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência de culpa, no entanto, acaba por defender, de forma aparentemente contraditória ou, no mínimo, dificilmente compatível, que o actual Código Penal, apesar do artigo 40º, não se opõe a uma concepção ético-preventiva da pena semelhante à que é defendida pela “teoria da margem da liberdade”, isto é, a uma concepção em que a prevenção é a finalidade legitimadora da pena, mas em que a culpa também desempenharia uma função na determinação da medida da pena, não sendo exclusivamente seu pressuposto e seu limite máximo.
Também o nosso mais alto Tribunal se orienta em sentido concordante ao assumir que a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
Em sentido discordante veja-se Sousa Brito, “Os fins das penas no Código Penal”, Problemas fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin, 155/175, o qual entende que a retribuição da culpa continua a ser uma das finalidades da pena, constituindo a determinação da medida da culpa dentro da medida legal da pena o primeiro passo obrigatório da medida judicial da pena, defendendo, ainda, que a prevenção especial tem primazia sobre a prevenção geral, designadamente em matéria de determinação da medida judicial da pena.
).
Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a medida da culpa ( - O mínimo da pena, como já ficou dito, segundo Figueiredo Dias, é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. Em sentido coincidente pronuncia-se Anabela Rodrigues, ibidem, 178/179, bem como Taipa de Carvalho, ibidem, 328, ao defender que o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) nunca pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima, limite este que coincide com o limite mínimo da moldura penal estabelecida pelo legislador para o respectivo crime em geral.), elegendo em cada caso aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, tendo em vista os fins das penas, com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto, tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospectivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; neste sentido sendo uma razoável forma de expressão afirmar-se como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena a que o artigo 18º, n.º 2, da CRP, consagra ( - Cf. Figueiredo Dias, ibidem, 105/106.).
Quanto à pena adequada à culpabilidade, isto é, consonante com a culpa revelada – máximo inultrapassável –, certo é dever corresponder à sanção que o agente do crime merece, ou seja, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade.
Há que ter em atenção, porém, que aquilo que é “merecido” não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral ( - Vide Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.).
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Ao caso vertente cabe a pena de 10 a 360 dias de multa ( - Com efeito, a determinação da medida da pena é feita dentro dos limites definidos na lei – artigo 71º, n.º1, do Código Penal –, sendo estes na situação vertente os referidos por efeito da aplicação conjugada dos artigos 44º, n.º1 e 47º, n.º1 – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 366/368.).
O arguido agiu com dolo directo.
Sobre ele, como fiel depositário, recaía uma especial obrigação de velar e cuidar dos objectos que acabou por desencaminhar e danificar.
No sector atenuativo nenhuma circunstância relevante ocorre, posto que o facto de a apreensão sobre um dos veículos ter sido considerada irregular e mandada levantar, obviamente em data posterior aos factos objecto do processo, não mitiga a responsabilidade do arguido, consabido que o bem tutelado pelo crime não é a obediência devida ao poder público traduzido através de julgamento ou mandado legítimos, mas sim a inviolabilidade das coisas sob custódia pública ( - A eventual irregularidade ou ilegalidade de uma das apreensões não legitima nem torna menos censurável o comportamento assumido pelo arguido, tanto mais que o objecto apreendido não lhe pertencia, sendo antes fiel depositário do mesmo, qualidade que lhe acarretava, como já dito ficou, o especial dever de velar e cuidar do mesmo).
Deste modo e tendo em vista as condições pessoais do arguido, designadamente a sua primariedade, o facto de ser respeitador e respeitado por quem com ele se relaciona e a sua situação profissional, económica e familiar, bem se vê que àquele não pode, de forma alguma, ser aplicada pena correspondente ao mínimo legal, qual seja de 10 dias de multa, sendo que não nos merece qualquer reparo a pena de 120 dias de multa cominada, pena que corresponde a 1/3 do seu limite máximo e que constitui resposta às exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, ou seja, é o mínimo indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a paz jurídico-social.
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Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente – 10 UCs de taxa de justiça.
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