Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
262/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO F. MARTINS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
SERVIÇO DOMÉSTICO
RETRIBUIÇÃO EM ESPÉCIE
Data do Acordão: 07/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 9º, Nº 2, DO DL Nº 235/92, DE 24/10; 81º E 82º DA LCT .
Sumário: I – Nos termos do artº 13º, nºs 1 e 2, do DL 508/80, de 21/10, diploma que definiu o contrato de serviço doméstico e estabeleceu as regras aplicáveis ao mesmo, a retribuição podia ser paga parte em dinheiro e parte em espécie, designadamente por alojamento condigno e por alimentação adequada .

II – Do diploma que hoje regula o contrato de serviço doméstico, o DL nº 235/92, de 24/10, consta normativo idêntico, já que no seu artº 9º, nº 2, se estabelece igual princípio .

III – Estando provado que uma trabalhadora doméstica tomava as suas refeições e dormia em casa da entidade patronal todos os dias da semana, mesmo quando esta estava ausente para férias, devem qualificar-se esse alojamento e alimentação da trabalhadora como uma prestação regular e periódica, presumindo-se constituir retribuição, nos termos dos artºs 81º, nº 2, e 82º, nº 3, da LCT .

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juizes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra:
I- RELATÓRIO
1. A... instaurou contra Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de B..., representada pelos seus únicos e universais herdeiros C... e Outros, a presente acção declarativa sob a forma de processo comum[ Proc. nº 424/04.4TAAGD da Secção Única do Tribunal de Trabalho de Águeda ], pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 46 969,99, acrescida de juros vincendos à taxa legal de 4% ao ano que se vencerem desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Estriba a sua pretensão, em resumo, no facto de ter sido admitida ao serviço de B..., em 21.08.78, mediante contrato que caracteriza como de serviço doméstico, o qual cessou por caducidade com a morte deste em 19.07.2003.
Considera-se credora daquela importância global, a titulo de indemnização por férias não gozadas, férias e subsidio de férias não pagos, férias, subsidio de férias vencidos e não pagos, bem como os proporcionais a este titulo, retribuição de trabalho prestado em dias feriados e de descanso semanal, compensação por caducidade. Engloba ainda naquela verba o montante de € 31 416,29, a titulo de diferenças salariais daquilo que efectivamente lhe foi pago entre os anos de 1985 e o fim do contrato e aquilo que deveria ter recebido, o salário mínimo nacional em vigor, já que as refeições e o alojamento não faziam parte integrante da sua retribuição.
Contestaram os RR. C... e Outros, em representação da Herança aberta por óbito de B..., pedindo que a R. seja condenada como litigante de má fé.
Começaram por deduzir a excepção de incompetência em razão da matéria, invocando que não estamos perante um contrato de trabalho mas antes perante um contrato de prestação de serviços.
Depois impugnam a generalidade dos factos alegados pela A e insistem na alegação de que o contrato celebrado entre a A e o falecido era um contrato de prestação de serviços e que, a não se entender assim, é de considerar que a A, desde Junho de 1985, e por força do contrato passou a tomar as suas refeições e a dormir em casa do falecido, fazendo assim parte integrante da sua retribuição quer a alimentação quer o alojamento.
Concluem, finalmente, que o falecido sempre pagou, ao longo dos anos, a retribuição e demais créditos da A.
Na réplica a A. pugna pela improcedência das excepções deduzidas, quer a da incompetência material quer a excepção material do pagamento.
2. Prosseguindo o processo os seus regulares termos, nomeadamente com despacho saneador que julgou improcedente a excepção dilatória de incompetência material, veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou “os réus, na qualidade de únicos e universais herdeiros da herança aberta por óbito de B..., a pagar à autora a quantia global de € 8 794,95 euros ...”
3. É desta decisão que, inconformados, os RR. vêem apelar, pretendo a alteração ou correcção da sentença, considerando-se o alojamento como retribuição e a ora recorrente a não ser obrigada a pagar o valor correspondente a tal alojamento, computado no montante de € 6 822,72.
Alegando, concluem:
O Código do Trabalho, como toda a legislação que ele revogou considera como retribuição (artigo 249° do Código do Trabalho) - “aquilo que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho”. E para melhor delimitação do conceito consagra o n°3 do mesmo artigo que - até prova em contrário, presume constituir retribuição toda e qualquer, prestação do empregador ao trabalhador’.
Ora, sendo o contrato de serviço doméstico, também, um contrato sinalagmático e de carácter intuitus personae”, não colhe a teoria vertida na douta sentença recorrida de que a trabalhadora usufruía de alojamento em casa da entidade patronal por conveniência deste, porquanto:
1. O facto de a empregada doméstica ter instalações de alojamento na casa do empregador, implica para este, desde logo, uma limitação do direito de propriedade, pelo direito de uso que o empregado possa ter sobre as instalações que lhe estão reservadas.
2. O empregador ao ceder instalações para alojamento da trabalhadora (quando mobiladas e com instalações sanitárias como era o caso) passa também a ter os gastos inerentes a essa cedência e seu uso, nomeadamente:
- fornecimento de água quente e electricidade
- fornecimento de consumíveis ( papel higiénico. etc.)
- fornecimento de roupas de cama, lençóis, toalhas, etc.
-manutenção das instalações em estado habitável
3. A vida social e familiar do empregador fica condicionada ao facto de uma pessoa extra familiar estar aí alojada, com a consequente falta de privacidade, nomeadamente dos filhos e netos do empregador que com a Autora não têm confiança.
4. A própria Autora retira do facto de estar alojada na casa do empregador inegáveis vantagens, nomeadamente e desde logo:
a) pela qualidade e comodidade do alojamento que lhe é fornecido pelo empregador
b) pelo que deixa de consumir na sua própria habitação (água, electricidade. telefone, etc.)
c) pelo facto de, com frio e com chuva, de noite e sozinha, não ter de se deslocar entre a sua casa e a habitação do empregador
Os factos provados nos pontos 31, 32, e 33, apelando a este conceito de retribuição, não nos deixariam qualificar o alojamento, senão como retribuição
Bem decidiu a Relação de Évora ( Ac. RE de 05.02.2002, CJ 2002, 1º, 289) quando refere que — “Não tem direito a diferenças salariais a empregada de serviço doméstico, que, habitando em casa fornecida pelos empregadores e pagando estes as despesas da habitação, incluindo água, luz, telefone, e, ainda, as despesas com produtos para a horta e criação de animais, auferia uma remuneração mensal e compreendida dentro dos 50% da retribuição mínima mensal garantida por vários diplomas legais do salário mínimo nacional’
E aproveitamos para referir que, se inicialmente, como é referido na douta sentença, o fornecimento da alimentação completa era de 35% e o de alojamento 12%, tais percentagens vieram posteriormente a serem alteradas e a valer no seu conjunto 50% da retribuição.
Por último, mas não menos importante, no n° 31 da matéria dada como provada na douta sentença refere-se que - ‘A Autora, desde Junho de 1985, por força do contrato, passou a tomar as suas refeições e a dormir em casa do falecido B... que habitava sozinho em casa”.
Ora, toda a anterior argumentação releva, porquanto o facto de a Autora, desde 1985, dormir em casa do empregador, por força do contrato, torna legalmente obrigatório que tal facto seja considerado como retribuição.
Dúvidas não existem de que sendo o fornecimento de alojamento consequência do contrato entre as partes, tal cedência de alojamento é nos termos do artigo 7° e artigo 9º do DL 235/92 considerada retribuição com todas as consequências legais.
5. A estes factos acresce que, no caso concreto, o empregador, com excepção do pequeno período em que foi operado, sempre foi uma pessoa saudável, auto-suficiente e ciente das suas responsabilidades;
6. Por último e não menos importante acresce que a Autora independentemente de estar alojada em casa do empregador, por força do estipulado no n°4 do artigo 4° do DL 508/80 (tal como o empregador, facto que aqui não está em causa) tinha um dever especial de prestação de apoio nos casos em que ele se tornou exigível;
Pelo que forçoso é concluir que a Autora tinha um dever de prestação de apoio ao empregador quando este esteve doente, dever esse que resulta directamente da lei e que não tem qualquer relação com vantagem ou interesse deste empregador em conceder alojamento.
A Autora aqui recorrida, todos os dias do ano se alimentava e dormia na casa da entidade patronal, ( nºs 31 e 32 e 33 da matéria de facto provada e constante da douta sentença).
Estamos deste modo perante uma prestação regular e periódica da entidade patronal.
Assim sendo, este fornecimento de alojamento, regular e periódico, quando o empregador estava doente e quando não estava, quando o empregador estava em casa e quando este se ausentava de férias ou para casa dos filhos, dúvidas não restam de que tal facto tem de ser considerado como retribuição.
O facto de a Autora aqui recorrida, todos os dias do ano se alimentar e dormir na casa da entidade patronal, (nºs 31 e 32 e 33 da matéria de facto provada e constante da douta sentença), resultaria estarmos perante retribuição em espécie.
4. A A não usou do direito de contra-alegar.
5. Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, pronunciou-se o Exmº Procurador Geral Adjunto no sentido de que deve ser confirmada a sentença impugnada.
Os RR não responderam a este parecer.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
1. De facto
Do despacho de fls. 304/7, que decidiu a matéria de facto e do qual não houve reclamações, é a seguinte a factualidade que vem dada como provada:
1. Em 19 de Julho de 2003, faleceu, na freguesia de Valongo do Vouga, concelho de Águeda, B...;
2. No estado de viúvo e com descendentes vivos;
3. Sucederam-lhe como únicos e universais herdeiros:
- C..., nascida em 7/9/1946;
- D..., nascida em 22/10/1947;
- E..., nascido em 2/6/1951;
- F..., nascido em 3/6/1958;
4. A autora foi admitida ao serviço do falecido B..., em 21 de Agosto de 1978, para, mediante retribuição, prestar àquele, com carácter regular e sob a sua direcção, autoridade e fiscalização, todo o tipo de serviço doméstico, conforme infra se passa a descrever;
5. Fazia todo o trabalho de casa, confeccionando as refeições para o falecido B...;
6. Lavava-lhe as roupas, fazia a limpeza e o arrumo da casa;
7. Tratava igualmente de alguns animais domésticos que o falecido possuía, tais como galinhas, um porco, coelhos;
8. Ajudava e orientava o amanho da terra, bem como também ajudava a agricultar as terras que o falecido possuía, semeando, plantando, colhendo e orientando os outros trabalhadores contratados;
9. Apanhava e tratava da comida que era para dar aos já referidos animais domésticos;
10. Quando o falecido B... foi operado a uma perna e mais tarde à próstata, também foi a autora que cuidou dele nos períodos em que a enfermeira não vinha;
11. Até porque a enfermeira apenas vinha para efectuar os tratamentos da sua especialidade, sendo a autora a dar-lhe todo o apoio e cuidados de alimentação e higiene de que ele precisava;
12. A autora, apesar de ter a sua casa a curta distância, dormia na casa do falecido, de forma a poder acorrer a qualquer necessidade urgente do dono da casa;
13. Ao longo da vigência do contrato, a autora nunca se ausentou por mais do que um dia da localidade de Lanheses, onde vivia e trabalhava;
14. A autora fazia as suas refeições na casa do falecido e também lá dormia, embora não porque precisasse de alojamento, mas por conveniência do dono da casa;
15. E sempre a autora tratou o falecido, até à morte deste, com todo o carinho e desvelo que uma empregada doméstica nutre pelo seu patrão, tantos são os anos de serviço;
16. A autora, ao longo da duração do contrato, recebia do Sr. B..., em dinheiro, metade da remuneração mínima mensal garantida para o sector do serviço doméstico, em cada ano vigente, 12 meses por ano, excepto quando se encontrava de baixa prolongada por doença;
17. Das quantias recebidas pela autora a título de retribuição base, nunca lhe foram emitidos quaisquer recibos;
18. E no que respeita a descontos para a Segurança Social, estes só começaram a ser efectuados após o ano de 1985;
19. Após o falecimento do Sr. B..., a autora tentou receber junto dos herdeiros os montantes a que se achava com direito;
20. A autora recebeu a carta junta aos autos a fl. 35, como documento nº6 da p.i.;
21. A autora foi trabalhadora assalariada durante vários anos, desenvolvendo diariamente trabalhos na agricultura, recebendo o seu salário ao dia, sendo que quem lhe dava bastante trabalho agrícola era o falecido B...;
22. A partir de 1978, quando a autora passou a fazer as tarefas domésticas do “de cujus”, não ficou acordado, entre as partes, qualquer horário diário ou semanal;
23. A autora manteve a sua própria residência, onde ia frequentemente;
24. A autora tratava ou ajudava a tratar dos seus próprios animais acomodados nos currais anexos à sua casa;
25. A autora cultivava ou ajudava a cultivar o terreno agrícola de que era e ainda é proprietária;
26. A autora ajudou a cuidar da sua mãe quando esta deixou de poder cuidar de si e da casa da família;
27. Enquanto ao serviço do falecido B..., a autora exercia, quando para tal era solicitada e com o conhecimento e tolerância daquele, acção de ajuda às pessoas da aldeia e de aldeias vizinhas, nomeadamente através de aconselhamento, a que as pessoas da aldeia chamavam “ bruxaria”;
28. Tal actividade ocupava-lhe, apesar de irregular e sem horário, algum tempo;
29. As refeições do falecido Sr. B..., por vezes, careciam de pontualidade, por a autora se atrasar em algum serviço de “aconselhamento” a pessoas que a consultavam na casa da sua família;
30. A autora fazia as tarefas domésticas em casa do Sr. B..., contando com alguma condescendência deste relativamente às actividades que aquela exercia por conta própria;
31. A autora, desde Junho de 1985, por força do contrato, passou a tomar as suas refeições e a dormir em casa do falecido B..., que habitava sozinho a casa;
32. A autora alimentava-se e dormia na casa do Sr. B... todos os dias da semana e do ano;
33. A autora sempre lá dormiu e comeu, mesmo quando o “de cujus” estava ausente em passeios ou de férias;
34. A autora tinha necessidade de, para si própria, confeccionar as refeições todos os dias da semana;
35. Das retribuições pagas à autora, sempre o Sr. B... fez os descontos para a Segurança Social;
36. Quer na parte respeitante à entidade patronal, quer na parte respeitante ao trabalhador;
37. Sendo alguns desses impressos preenchidos e entregues na Segurança Social pela própria autora;
38. Sendo este pagamento feito com total e mútua confiança que lhe era conferida pelo Sr. B..., a ponto de este lhe confiar regularmente, ao longo de muitos anos, valores em cheques e numerário, tanto para depósito como em levantamentos nas instituições bancárias do concelho;
39. Sem qualquer reclamação ou manifestação de desagrado por parte da autora;
40. Não havendo, naturalmente, qualquer recibo, em virtude de estarmos perante um ambiente rural, em que a palavra dada vale mais que os documentos, e de estarmos perante relações pessoais de absoluta confiança (viviam sozinhos na mesma casa), em que a obrigatoriedade de assinar qualquer recibo representaria um desrespeito e uma quebra dessa mesma confiança, não sendo bem entendida e aceite pela autora;
41. A autora sempre teceu, até perante terceiros, rasgados elogios ao falecido Sr. Quaresma, como pessoa e como patrão;
42. Todos os anos e por mais de uma vez, o Sr. B... ausentava-se, por períodos mais ou menos longos, em férias ou viagens no estrangeiro ou no território nacional;
43. A autora ficava então em Lanheses, com disponibilidade para fazer o que lhe apetecesse;
44. Pela confiança que a autora lhe merecia e apesar de a autora ter casa próxima, esta, nesses períodos de viagem e férias, ficava sempre com as chaves da casa do Sr. B..., com a permissão de aí confeccionar as suas refeições e pernoitar.
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2. De direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil[Adiante designado abreviadamente de CPC.].
Decorre do exposto que a única questão que vem equacionada nas conclusões das alegações dos recorrentes e que, assim importaria dilucidar e resolver, pode equacionar-se da seguinte forma:
O alojamento que o falecido proporcionava à A e de que esta beneficiava, deve ou não ser considerado retribuição em espécie?
Porém, previamente à análise desta questão, como também já tínhamos deixado anunciado pelo despacho de fls. 349/350, é importante resolver a contradição ou obscuridade na matéria de facto.
Vejamos pois.
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a) Resolução da contradição ou obscuridade na matéria de facto
Como se disse no despacho de fls. 349/350 a factualidade que vem dada como provada nos nºs 4, 12 e 14 dos factos provados, por contraposição com a factualidade igualmente considerada provada nos nºs 31 a 33, 42 e 44 é contraditória, ou pelo menos obscura.
Com efeito, perante os nºs 4, 12 e 14 dos factos dados como provados na 1ª instância retira-se que o alojamento proporcionado à A ocorria por mera conveniência do dono da casa, o empregador, e sem que isso constituísse qualquer interesse ou contrapartida em relação ao serviço prestado pela A.
Aliás, foi com base nesta factualidade e com a argumentação de que, assim sendo, tal constituía uma vantagem para a entidade patronal e não para a trabalhadora, que se concluiu na sentença recorrida que o alojamento não devia ser considerada uma parte não pecuniária da retribuição.
Por outro lado, perante o que está plasmado como provado nos nºs 31 a 33, 42 e 44, daí decorre que o alojamento da A fazia parte do acordo de contrato de trabalho doméstico existente, pelo menos a partir de Junho de 1985, constituindo tal alojamento uma obrigação do empregador e um direito da A, de tal forma que era exercido mesmo quando aquele, estando de férias, não beneficiava dos serviços da A.
Ora, esta factualidade não temos dúvidas que é contraditória com aquela outra, nem se nos afigura necessário outra demonstração do que a consequência que dela se retira. Com efeito, perante esta outra factualidade, a conclusão a retirar é a oposta, isto é, o alojamento faria parte da retribuição.
Na sequência do referido despacho de fls. 349/350 foram notificadas as partes e o Mº Pº, para se pronunciarem querendo sobre esta questão e a reapreciação da matéria de facto por este Tribunal da Relação, e nada disseram.
Este é um dos casos, cremos, em que é possível a decisão do tribunal de 1ª instância ser alterada pela Relação, ao abrigo do art. 712º nºs 1 al. a) e 4 do CPC.
Com efeito, encontrando-se gravada toda a prova testemunhal e constando dos autos toda a outra prova, documental, temos como certo poder afirmar-se que está preenchida a previsão da primeira parte da al. a) do nº 1 do art. 712º: “se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa”.
Por outro lado, nos termos do nº 4 do mesmo art. 712º, só é caso de anular a decisão proferida na 1ª instância por contradição na decisão sobre determinados pontos da matéria de facto no caso de não constarem do processo todos os elementos probatórios que permitam a reapreciação da matéria de facto, ou quando se considere indispensável a ampliação daquela matéria de facto. Não é o caso, pois não se considera necessária tal ampliação e, como vimos, constam dos autos todos os elementos probatórios necessários à reapreciação da matéria de facto.
Impõe-se assim proceder a tal trabalho de reapreciação da matéria de facto, no que tange aqueles concretos pontos de facto que se mostram em contradição.
Para o efeito teve-se em conta a gravação da prova constante dos suportes magnéticos solicitados ao tribunal recorrido. E tendo procedido à audição dos depoimentos de parte e dos depoimentos testemunhais constantes de tais suportes magnéticos, podemos desde já adiantar que existe fundamento para alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.
Na verdade, daquela prova, considerando a generalidade dos depoimentos das testemunhas, nomeadamente das testemunhas Maria dos Anjos Morais, Maria Fernanda Bandeira, José Ferreira e António Fernandes, que depuseram com suficiente credibilidade e isenção, e face à inexistência de prova documental relevante nestes pontos, apenas é possível concluir, com segurança, que a partir de momento não concretamente apurado, mas próximo e a seguir à morte da esposa do Sr. Quaresma, a A passou a dormir na residência deste.
Ficou por apurar, com segurança suficiente, a razão ou os termos de tal alojamento, nomeadamente se era para acorrer a qualquer necessidade urgente do falecido Sr. Quaresma e por conveniência do dono da casa, ou se assim foi porque entre a A e o falecido foi acordado que passava a fazer parte do contrato a A. dormir na casa, constituindo tal alojamento uma parte da remuneração.
Ora, o ónus da prova do facto de que o alojamento não era retribuição em espécie incumbia à A., como resulta da conjugação do estatuído nos artºs 82º nº 3 do Regime Jurídico do Contrato Individual do Trabalho[ Aprovado pelo art. 1º do DL 49 408 de 24.11.69, adiante designado por LCT (Lei do Contrato de Trabalho) e diploma legal aplicável ao caso dos autos, já que o Código do Trabalho, aprovado pelo art. 1º da Lei 99/2003, de 27.08, apenas entrou em vigor em 01.12.2003 – v. art. 3º nº 1 desta Lei 99/2003.] e art. 342º nº 1 do Código Civil. Na verdade, estamos perante facto constitutivo do direito da A e os RR., enquanto sucessores da entidade patronal, beneficiam da presunção prevista no nº 2 do art. 82º citado, já que estamos perante uma prestação regular e periódica, feita em espécie.
Assim, procedendo este tribunal à reapreciação da matéria de facto, nos termos e pelos fundamentos atrás explicitados, decide-se alterar a decisão da matéria de facto da 1ª instância nos seguintes termos e quanto aos seguintes pontos:
Nº 12: A autora, apesar de ter a sua casa a curta distância, dormia na casa do falecido.
Nº 14: A autora fazia as suas refeições na casa do falecido e também lá dormia.
Nº 31: A autora, desde data não concretamente apurada, próxima e posterior à morte da esposa do Sr. Quaresma, passou a tomar as suas refeições e a dormir em casa do falecido B..., que habitava sozinho a casa.
Nº 32: A autora, a partir do momento temporal referido em 31, alimentava-se e dormia na casa do Sr. B..., todos os dias da semana e do ano.
Nº 33: A autora, a partir do momento temporal referido em 31, sempre lá dormiu e comeu, mesmo quando o “de cujus” estava ausente em passeios ou de férias.
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b) O alojamento como retribuição em espécie
A sentença impugnada, considerando que a A “pernoitava em casa do falecido B... por necessidade e conveniência deste (era pessoa de idade avançada, com saúde debilitada e que não tinha qualquer familiar a habitar consigo)” remata que “tratando-se de uma vantagem para a entidade patronal, antes que para a trabalhadora, não deve a circunstância de a autora estar alojada na casa do “de cujus” ser considerada como uma parte não pecuniária da retribuição”.
Ressalvando o devido respeito, não podemos acompanhar esta argumentação nem a conclusão dela extraída.
Cremos, pois, que a razão está com os recorrentes, como a seguir se procurará justificar.
Nos termos do art. 13º nºs 1 e 2 do DL 508/80 de 21.10, diploma que definiu o contrato de serviço doméstico e estabeleceu as regras aplicáveis ao mesmo, a retribuição podia ser paga parte em dinheiro e parte em espécie, designadamente por alojamento condigno e alimentação adequada.
Do diploma que regula hoje o contrato de serviço doméstico, o DL 235/92 de 24.10 consta hoje normativo semelhante, estabelecendo-se no art. 9º nº 2 do mesmo igual principio, apenas não contendo os qualificativos de “condigno” e “adequada”, o que para o caso é irrelevante.
Também nos termos da lei geral – v. art. 81º nº 2 da LCT – já se previa que a retribuição pode ser feita em dinheiro ou em espécie.
Em consonância com a previsão de retribuição em espécie, para o contrato de serviço doméstico, estabeleceu-se no nº 2 do art. 13º do DL 508/80, que “o valor máximo atribuível ao alojamento e à alimentação, para efeitos de retribuição” deveriam ser fixados em diploma especial.
Assim veio a ocorrer com a publicação do DL 69-A/87 de 09.02, nos termos do qual – art. 1º nº 4 als a) e c) – se estabeleceu que o valor das prestações em espécie, alimentação completa e alojamento, não poderiam ser superiores aos montantes de 35% e 12%, respectivamente, da remuneração mínima mensal estabelecida por lei para este sector, embora o primeiro critério de cálculo desse valor fosse o dos “preços correntes na região”.
Por outro lado, é ainda de ponderar que no nº 3 do art. 82º da LCT se prevê uma presunção, nos termos da qual e até prova em contrário, constitui “retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador”.
Aplicando agora os dispositivos legais citados à factualidade apurada, com a reapreciação já feita por este Tribunal, afigura-se-nos, ressalvada melhor opinião, que é de julgar procedente a pretensão dos RR.
Na verdade, dela decorre que a A desde data não concretamente apurada, mas próxima e posterior à morte da esposa do Sr. Quaresma, passou a tomar as suas refeições e a dormir em casa do falecido B..., que habitava sozinho a casa, todos os dias da semana e do ano, mesmo quando o “de cujus” estava ausente em passeios ou de férias – v. nºs 31 a 33 da fundamentação de facto, após reapreciação da decisão da matéria de facto.
Nesta medida, o alojamento de que a A assim beneficiava, prestado pela entidade patronal, deve qualificar-se como uma prestação regular e periódica, presumindo-se constituir retribuição, nos termos das disposições legais citadas, nomeadamente art. 82º nºs 2 e 3 da LCT.
Assim, o entendimento constante da sentença recorrida, que considerou que a A “pernoitava em casa do falecido B... por necessidade e conveniência deste” não tem apoio na factualidade agora reapreciada, pelo que também a conclusão de “ … não deve a circunstância de a autora estar alojada na casa do “de cujus” ser considerada como uma parte não pecuniária da retribuição” é falha de fundamento jurídico e, por isso, não pode subsistir.
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3. Conclusões
Tudo visto e ponderado, ressalvando o devido respeito por entendimento diverso, afigura-se-nos que ocorre uma contradição na decisão da matéria de facto, que impõe a reapreciação da matéria de facto por este Tribunal da Relação, o que se fez, alterando aquela decisão, nos termos e pelos fundamentos atrás explicitados.
Em função desta alteração da decisão da matéria de facto é de concluir que o alojamento de que a A beneficiava se presume constituir retribuição e, nessa medida, a decisão recorrida, na parte em que considerou serem os RR. devedores da quantia de € 6 822,72, a título de diferenças salariais, por considerar que o alojamento não era retribuição, não pode subsistir.
Consequentemente, procedendo no essencial as conclusões das alegações dos recorrentes, é de revogar a sentença recorrida, no segmento ora impugnado.
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III- DECISÃO
Em conformidade com o exposto, delibera-se conceder provimento parcial à apelação e, em consequência, revoga-se parcialmente a sentença, na medida em que a condenação dos RR. abrangia o pagamento da quantia de € 6 822,72 a título de diferenças salariais, pagamento do qual os RR são agora absolvidos, mantendo-se quanto ao mais a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da A.
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Coimbra,

(António F. Martins)

(Bordalo Lema)

(Fernandes da Silva)