Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
65142/19.3YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: INTERVENÇÃO DE TERCEIRO
LITISCONSÓRCIO
Data do Acordão: 09/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 33º, 266º, 316º E 318º NCPC.
Sumário: A intervenção de terceiro passou a estar confinada às situações de litisconsórcio. Este refere-se à situação em que a mesma e única relação material controvertida tem uma pluralidade de partes.
No caso, não há litisconsórcio ou interesse igual que legitime colocar autora e chamado na mesma posição passiva, relativamente à reconvenção.
Decisão Texto Integral:



Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

Na presente ação declarativa com processo comum, que teve início como injunção, que M..., CONSTRUÇÕES, S.A. move contra S..., LDA., em sede de Oposição/Reconvenção, pretendendo dirigir pedido contra terceiro, a Ré deduziu o incidente de intervenção principal provocada de J..., alegando para o efeito e em síntese que a construção da obra em causa foi acompanhada pelo Eng.º J... na qualidade de fiscalizador de acordo com a cláusula 1.ª/5 do Doc. n.º 1, a quem imputa actos de validação de trabalhos que sabia não terem sido executados ou executados incorretamente, que deve o identificado Eng. J... ser citado para a presente instância reconvencional, sendo condenado solidariamente com a Requerente no pagamento das quantias ora reclamadas e que se liquidarão em incidente próprio, que o referido engenheiro civil atuou como “delegado do DONO DA OBRA” (cfr. mesma cláusula 1.ª/5 do contrato de empreitada); que foi expressamente nomeado como representante da ora Requerida para inspecionar e fiscalizar a correta e atempada execução dos trabalhos e não acautelou os seus interesses.

Cumprido o disposto no art. 318.º do CPC, a Autora nada tem a opor ao chamamento do terceiro.

Nos termos do disposto no art. 316.º do CPC:

“1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.

3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:

a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;

b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.”

A propósito do litisconsórcio voluntário dispõe o art. 32.º do CPC o seguinte:

“1 - Se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a ação respetiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados; mas se a lei ou o negócio for omisso a ação pode também ser proposta por um só ou contra um só dos interessados, devendo o tribunal, nesse caso, conhecer apenas da respetiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade.

2 - Se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade.”.

E a propósito do litisconsórcio necessário dispõe o art. 33.º do CPC o seguinte:

1 - Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade

2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal

3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.

Ora, no caso concreto em apreciação, sempre com o devido respeito, não se verifica qualquer dos pressupostos legais para intervenção de terceiro, pelos seguintes motivos:

A relação material controvertida, tal como configurada pela Autora ou mesmo pela Ré (já que o chamamento diz respeito a pedido reconvencional), não diz respeito ao terceiro que se pretende chamar.

A Autora alega a celebração de contrato de empreitada com a Ré, a realização de obras e a falta de pagamento desta e, por sua vez, a Ré invoca defeitos e desconformidades, entre outros aspectos, que imputa à Autora e pretende a sua condenação em determinada quantia, contudo, já quanto ao terceiro pretende relegar para liquidação, ou seja, o pedido nem sequer é o mesmo.

Com efeito, o que caracteriza a intervenção do lado passivo é a circunstância do chamado ser (também) titular da relação jurídica invocada pelo autor e que consubstancia a causa de pedir, a par daquele que é demandado inicialmente.

Ora, mesmo tendo em conta a defesa da Ré e não apenas a relação material controvertida como é configurada pela Autora, continua a não haver qualquer relação com o chamado que permita a sua intervenção, não existe uma situação jurídica titulada pelo chamado e pela Autora, pelo que não se trata de uma situação de litisconsórcio voluntário.

De igual modo, não existe litisconsórcio necessário, não existindo qualquer preceito legal que imponha a intervenção conjunta da autora e do chamado e não se verifica qualquer negócio jurídico que ligue o chamado à autora.

Não há qualquer relação entre o chamado e a autora, aliás, a posição do chamado será antagónica à da autora, uma vez que o chamado é-o na qualidade de fiscal representa a Ré.

Em abstrato, os eventuais fiscais e representantes da Ré e o director técnico da obra terão todo o interesse em imputar a responsabilidade dos defeitos à Autora, para afastar a sua responsabilidade, a função do chamamento é o auxílio à parte que efectua o chamamento e não o dificultar mais a posição que se detém.

Neste sentido, em situação em tudo semelhante, para mais desenvolvimentos, pode ser consultado o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/09/2011 (relatado pela Senhora Desembargadora Helena Melo, processo n.º 173/10.4TBVLN-A.G1, www.dgsi.pt), onde para além do mais, se sumariou o seguinte:

«Não deve ser admitida a intervenção principal dos chamados que alegadamente terão dado instruções ao réu, empreiteiro a quem os autores, donos da obra, imputam defeitos de construção, assim como do chamado responsável técnico da obra, por não estarem reunidos os pressupostos da alínea a) do artº 320º do CPC nem do artº 330º do CPC.».

Nesta sequência, pelos apontados motivos, sem necessidade de mais desenvolvimentos, impõe-se não admitir a intervenção de terceiro.

Nos termos e fundamentos expostos,

Não se admite a Intervenção Principal de J...” (fim da citação.)


*

Inconformada, a Ré recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

            ...

            Não foram apresentadas contra-alegações.

Importa decidir da admissibilidade da intervenção principal, provocada pela Ré.

            Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e ainda do despacho que admitiu a reconvenção, a seguir citado:

Decorre do teor da petição inicial que a autora peticiona, em síntese, a condenação da ré no pagamento da quantia global de €24.158,43, alegando que lhe vendeu bens e prestou serviços descriminados nas facturas que identifica - trabalhos executados da empreitada Construção de Hotel ... – e que os serviços foram realizados e os equipamentos colocados e entregues à ré, não tendo sido pagos os montantes inscritos nas facturas remetidas à ré.

Contestou a ré por impugnação, deduzindo ainda pedido reconvencional, peticionando a condenação da autora-reconvinda no pagamento da quantia – que, entretanto, concretizou nos autos – de €532.940,58 -, alegando, em síntese, que a empreitada foi executada de forma defeituosa e gerando prejuízos à ré-reconvinte, sendo esta credora do diferencial correspondente à diferença entre o preço que pagou à autora e o preço correspondente à percentagem da obra efetivamente construída no montante de €149.690,58; que apenas foi executada uma parte da obra pelo que a reconvinda deve ser condenada a restituir à reconvinte, a título de indemnização a quantia de €70.308,66; que o valor da empreitada respeitante ao aterro, de €3.219,61, que a reconvinte pagou à reconvinda, deve ser por esta restituído, bem como o que se vier a apurar em liquidação de sentença; que a reconvinte terá de incorrer em custos para realizar enchimentos de reboco no montante de €19.689,86 (nas unidades de alojamento) e €20.715,16 (no edifício principal); que o revestimento foi incorretamente executado, tratando-se de erro grave de construção, devendo a reconvinda ser condenada a restituir à reconvinte o montante sobrefacturado de €21.105,50; que o fornecimento e aplicação de tout venant não foi executado, apesar de a reconvinte o ter pago, devendo a reconvinda ser condenada a pagar à reconvinte a quantia de €5.598,00; que houve atraso na conclusão da obra, pelo que a reconvinda deve ser condenada a pagar à reconvinte o montante de €383.250,00.

A autora contestou o pedido reconvencional, impugnando a respetiva matéria que lhe serve de causa de pedir, concluindo, a final, que o mesmo não deve ser admitido e a reconvinda dele absolvida – cf. refª citius n.º ...

“A lei permite a dedução de pedido reconvencional em determinados casos, entre os quais avulta a hipótese de o pedido do réu emergir do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa e quando o réu pretende o reconhecimento de um contracrédito, ainda que de valor superior ao reclamado pelo autor – cf. CPC, art.º 266º-1-2-a)-c).

Da causa de pedir que constitui o substrato da acção, bem como daquele em que se apoia o pedido reconvencional, verifica-se que são diferentes os efeitos jurídicos pretendidos: a autora, por seu lado, pretende, em síntese, no essencial, que se reconheça o seu direito de crédito quanto à execução de uma empreitada (serviços e materiais que incorporou numa obra) que alega ter cumprido; a ré-reconvinte, por seu turno, pede, em síntese, a condenação da autora-reconvinda no montante de €532.940,58, alegando defeitos da obra e prejuízos causados por aquela no decurso da execução contratual da empreitada, relacionados com a execução parcial da obra e com custos que alega ter ainda de realizar para enchimentos de reboco, que face à má execução da obra e à falta de execução de alguns dos seus segmentos, existem montantes sobrefacturados, devendo a reconvinda ser condenada a pagar à reconvinte determinadas quantias, sendo que houve ainda atraso na conclusão da obra o que acarreta prejuízo contratual que a autora deve ser responsabilizada.

A ré deduz, assim, um pedido diverso, distinto do que é deduzido pela autora, ou seja, deduz um pedido autónomo e novo, emergente de facto jurídico que serve de fundamento, simultaneamente, à acção e à defesa.

Atento o exposto, por se verificarem os respectivos pressupostos de natureza processual e substantiva, decide-se admitir o pedido reconvencional.” (fim da citação.)


*

Na intervenção principal, o terceiro é chamado a ocupar na lide a posição de parte principal, ou seja, a mesma posição da parte principal primitiva a que se associa, fazendo valer um direito próprio (artigo 312º do Código de Processo Civil (CPC)).

O terceiro, relativamente ao objeto da causa, tem um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32º, 33º e 34º do CPC (art.311º desta lei).

O novo Código de Processo Civil alterou a configuração do incidente.

Conforme a exposição de motivos da Proposta de Lei que gerou a Lei n.º 41/2013, o legislador deixou claro ter optado por eliminar “a intervenção coligatória ativa, ou seja a possibilidade de titulares de direitos paralelos e meramente conexos com a do autor deduzirem supervenientemente as suas pretensões, autónomas relativamente ao pedido do autor, na acção pendente, perturbando o andamento desta”.

A intervenção do terceiro passou a estar confinada às situações de litisconsórcio.

Esta figura refere-se à situação em que a mesma e única relação material controvertida tem uma pluralidade de partes (A coligação refere-se às situações em que a pluralidade de partes corresponde a uma pluralidade de relações materiais controvertidas).

Por seu lado, no que respeita à reconvenção, sem prejuízo dos requisitos iniciais, nos termos do n.º 4 do art. 266º do CPC, se aquela envolver outros sujeitos que, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se ao reconvinte ou ao reconvindo, pode o réu suscitar a respectiva intervenção. E nos termos do n.º 5, nessa situação, não se tratando de litisconsórcio necessário, se o tribunal entender que, não obstante a verificação dos requisitos da reconvenção, há inconveniente grave na instrução, discussão e julgamento conjuntos, determina em despacho fundamentado a absolvição da instância quanto ao pedido reconvencional de quem não seja parte primitiva na causa.

Resulta do conjunto normativo que também para a reconvenção é necessária a existência de uma situação de litisconsórcio, ou seja, torna-se necessário que a relação material controvertida alegada na reconvenção e que serve de causa de pedir do pedido reconvencional respeite a uma pluralidade de pessoas em situação de litisconsórcio.

            Com este enquadramento, vejamos o caso concreto:

            Quer a ação, quer a reconvenção que foi admitida (por referência ao art.266º, nº 2, a) e c), do CPC), dizem respeito ao contrato de empreitada, no qual a Autora é empreiteira e a Ré dona de obra. Os pedidos respetivos assentam no incumprimento daquele contrato.

            Já a causa de pedir que justifica o chamamento diz respeito a uma relação de mandato conferido pela dona de obra ao seu fiscal (representante), J... O pedido respetivo assenta no incumprimento da representação (São invocados os arts.1157 e 1161 do Código Civil e a cláusula 1.ª/5 do contrato de empreitada, que exara: O dono da obra nomeia como seu representante para inspecionar e fiscalizar a correta e atempada execução dos trabalhos…)

            Este J... não é parte no contrato de empreitada.

            A Autora não é parte no contrato de mandato.

            Assim, estas relações jurídicas são diversas e os seus sujeitos também diversos.

            O incumprimento invocado é diverso para com a autora e para com o chamado, conduzindo a prejuízos diferentes, apenas em parte conexos (os relativos à obra medida: a autora não fez tanta obra como alega e o chamado validou mal (falsamente) os autos de medição da obra).

            Neste contexto, não há litisconsórcio ou interesse igual que legitime colocar autora e chamado na mesma posição passiva, relativamente à reconvenção.

Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas do recurso, que não tem encargos ou custas de parte, pela Recorrente, vencida.

            Coimbra, 2021-09-22


(Fernando Monteiro)

 (Carlos Moreira)

(Moreira do Carmo)