Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
151/10.3GAALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: CRIME DE DANO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
LEGITIMIDADE PASSIVA
Data do Acordão: 09/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – ALBERGARIA-A-VELHA – JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 4, Nº 1, 12º, 15º, 27º, Nº 1, ALÍNEA A), 64º, Nº 1, ALÍNEA A), DO DECRETO-LEI 291/2007, DE 21 DE AGOSTO
Sumário: 1.- As ações destinadas à efetivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a seguradora, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital do seguro obrigatório;
2.- Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente;
3.- O demandado ( arguido) é parte ilegítima para contra ele ser deduzido pedido cível com fundamento na prática de um crime de dano por si provocado dolosamente com a utilização de um veículo numa outra viatura.
Decisão Texto Integral: 10

pág. 23
No processo supra identificado foi proferida sentença que julgou procedente a acusação deduzida pelo Magistrado do Mº Pº, contra o arguido:
A..., residente na Rua …, Aveiro;
Sendo decidido:
- Parte crime:
1.Condenar o arguido pela prática de um crime de dano p. e p. pelo art. 212 nº1 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros), o que perfaz o total de €840,00 (oitocentos e quarenta euros);
- Parte cível:
1. Julgar o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e em consequência condenar o demandado A... a pagar ao demandante B... a quantia de € 4918,53 (quatro mil novecentos e dezoito euros e cinquenta e três cêntimos) acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a notificação até integral pagamento;
***
Inconformado, da sentença interpôs recurso o arguido formulando as seguintes conclusões na motivação do mesmo e, que delimitam o objeto:
Matéria de facto
1.Entende o Recorrente que foram incorretamente julgados os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida.
2.Considerando que não foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento prova suficiente para poder conduzir a que fossem os factos em análise julgados como provados e o arguido condenado pelo crime de dano.
3.De facto, com interesse para os factos em análise prestaram depoimento o Recorrente, o ofendido B...e a testemunha ....
4.As declarações do Recorrente encontram-se gravadas no sistema integrado de gravação digital do Habilus Media Studio, no dia 10-01-2012, com início às 15:19:31 e fim às 15:41:48, com a duração de 00.22.16.
5.O depoimento do ofendido B... encontra-se gravado no sistema integrado de gravação digital do Habilus Media Studio, no dia 10-01-2012, com início às 15:42:34 e fim às 16:17:35, com a duração de 00.35.00.
6.Tais depoimentos apresentam-se contraditórios entre si, revelando versões diametralmente opostas dos factos ocorridos - veja-se a motivação da douta sentença recorrida, pág. 4, bem como a título de exemplo a passagem do depoimento do Recorrente de minutos e segundos 00:00:15 a 00:01:19 e a passagem do depoimento do ofendido de minutos e segundos 00:01:27 a 00:02:58.
7.Não sendo assim possível, com o devido respeito por entendimento diverso, valorar mais um depoimento que outro, atendendo ao facto de ambos se revelarem partes interessadas no processo.
8.Acresce que, prestou ainda depoimento a testemunha … , testemunha esta, que como se referiu supra, veio a ser indicada nos autos pelo ofendido B...e cujo depoimento se encontra gravado no sistema integrado de gravação digital do Habilus Media Studio, no dia 10-01-2012, com inicio às 16:19:33 e fim às 16:56:13, com a duração de 00.36.39.
9.Sendo que, a condenação do ora Recorrente e a inclusão dos factos referidos na matéria de facto provada, resultou essencialmente do depoimento da testemunha ... que corroborou a versão apresentada pelo ofendido.
10.Sendo no entanto de referir que tal testemunha é cunhado do ofendido, tendo apresentado no modesto entendimento do Recorrente uma versão, bastante inverosímil dos factos.
11.Sendo de qualificar no mínimo como estranho que num local onde como veio o ofendido e a testemunha alegar, não se encontrava mais ninguém se encontrasse a passar precisamente naquele momento o cunhado do ofendido.
12.Ademais note-se que a versão pela testemunha apresentada ainda se torna mais inverosímil considerando que, apesar de ter alegadamente presenciado todos os factos (sendo aliás na tese do ofendido e deste a única pessoa que terá presenciado), foi-se embora após o acidente, não se deslocando sequer junto aos intervenientes para perceber como se encontravam, ou se algum se encontrava ferido.
13.Nem tendo aguardado pela chegada da GNR, não constando assim na participação do acidente elaborada, como testemunha.
14.Acresce que, também os restantes factos alegados pela testemunha e a justificação pelo mesmo apresentada para se encontrar no local naquele momento se afigura como improvável.
15.Sendo relevantes a este propósito as passagens do depoimento do mesmo, gravadas a minutos e segundos - 00:00:46 a 00:01 :18; 00:02:23 a 00:04:07; 00:30:11 a 00:30:29; 00:35:44 a 00:36:39.
16.Vindo de facto a testemunha alegar que vinha às "sete e tal" da noite de uma terra sua, onde tinha ido apanhar "couves para dar ao porco".
17.O que foi fazer a um Domingo, do mês de Fevereiro, à noite e a chover.
18.Referindo além disso que, o veículo automóvel, que não reconheceu na primeira passagem, seguiu o seu caminho, e apareceu alguns minutos mais tarde.
19.Tendo no entanto a testemunha, que vinha, note-se, de motorizada, ficado no local à noite, com frio e chuva à espera sem qualquer razão aparente, atendendo a que nada indicava que o veículo fosse passar novamente.
20.Ora, entende o Recorrente que, como resulta do supra exposto, não poderiam a partir de tal prova vir a ser dados como provados os factos acima indicados, não existindo de facto no seu modesto entendimento prova suficiente que pudesse alicerçar a condenação do Recorrente.
21.Pelo que, entende o Recorrente que tendo em consideração a prova produzida, foram os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 dos factos provados incorretamente julgados, devendo em consequência, a matéria de facto ser alterada nos seguintes termos e o Recorrente absolvido:
-O ponto 1. dos factos provados deverá ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:"1. No dia 28 de Fevereiro de 2010, pelas 19h30m, o arguido circulava na Rua …, ao volante do veículo com a matrícula … ;
-Os restantes factos atualmente constantes do ponto 1. dos factos provados, mais precisamente: "tendo, a dada altura, desligado as luzes do mesmo, o qual estacionou, de frente para o entroncamento com a Rua …." deverão ser eliminados dos factos provados e acrescentados aos factos não provados;
-Os factos constantes dos pontos 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 dos factos provados deverão ser eliminados da matéria de facto provada, sendo acrescentados nos factos não provados.
DO DIREITO:
22.Entende o Recorrente que não se verificou a apresentação de queixa válida nos presentes autos pelo titular do direito.
23.Com efeito, quem apresentou a queixa pelo crime de dano foi o ofendido B… , sendo no entanto o veículo automóvel de matrícula … propriedade de … tal como resulta da participação de acidente junta aos presentes autos.
24. Ora, na qualidade de proprietária do veículo, ... ., seria quem teria a legitimidade para apresentar queixa pela prática do crime de dano, por ser a mesma a titular do bem jurídico violado e protegido pelo artigo 212 do Código Penal.
25.Pelo que, não tendo a proprietária do veículo automóvel de matrícula … tido qualquer intervenção nos presentes autos como tal, não tendo apresentado a queixa como se impunha de acordo com o n.º 3 do artigo 49 do Código de Processo Penal, conjugado com o referido artigo 212, terá de se concluir pela falta de queixa, e assim pela absolvição do Recorrente.
26.Acresce ainda que, no que concerne ao pedido de indemnização civil entende o Recorrente verificar-se ilegitimidade ativa e passiva.
27.De facto, no que concerne à legitimidade ativa, deveria o pedido de indemnização ter sido deduzido em cumprimento do n.º 1 do artigo 74 do Código de Processo Penal por ... ., na qualidade de proprietária do veículo automóvel.
28. Tendo no entanto o mesmo sido deduzido pelo ofendido B....
29.Pelo que, deverá entender-se existir ilegitimidade ativa no que concerne aos danos do veículo automóvel de matrícula ..., por não ser o demandante B...proprietário do veículo em questão, sendo em consequência a sentença também neste ponto alterada e o Recorrente absolvido do pedido de indemnização civil.
30.Relativamente à ilegitimidade passiva no âmbito do pedido de indemnização civil, encontrava-se a responsabilidade civil transferida para uma seguradora.
31.Sendo que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 64 do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto, o pedido de indemnização formulado, em processo civil ou penal, dentro do capital mínimo obrigatório do seguro, tem obrigatoriamente de ser deduzido contra a empresa de seguros para a qual se encontra transferida a responsabilidade civil.
32.Tendo no entanto o pedido de indemnização sido formulado apenas contra o ora Recorrente, pelo que, se verifica a exceção de ilegitimidade passiva.
33.Sendo que, tendo tal exceção sido alegada pelo Recorrente aquando da sua contestação, deveria a mesma ter sido julgada procedente e em consequência o Recorrente absolvido do pedido de indemnização civil contra si formulado.
34.Pelo exposto, deverá a exceção de ilegitimidade passiva ser julgada procedente, sendo em consequência a douta sentença recorrida alterada e o Recorrente absolvido do pedido de indemnização civil.
35.Acresce ainda que e sem prescindir do exposto, que considera o Recorrente que, com a sua condenação pela prática do crime de dano, foi violado o princípio in dubio pro reo.
36. Na verdade, entende o Recorrente não ter sido produzida prova em audiência de discussão e julgamento que permitisse a sua condenação.
37.Sendo que, nomeadamente no que concerne à testemunha ..., o mesmo apresenta no modesto entendimento do Recorrente uma versão inverosímil e bastante duvidosa.
38. Não havendo mais ninguém que confirme que se encontrou no local e não tendo sequer sido indicado como testemunha na participação do acidente.
39.Assim, entende o Recorrente que não resultou da prova produzida, que tenha efetivamente este praticado o crime pelo qual foi condenado.
40.Ora, o princípio in dubio pro reo é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver a certeza sobre factos decisivos para a solução da causa, sendo unanimemente reconhecido entre nós como princípio fundamental do direito processual penal.
41.Na verdade, gozando o arguido da presunção de inocência, toda e qualquer dúvida com que o Tribunal fique reverterá a favor daquele - Vide Acórdão TRC 02/10/2002.
42.De facto, o princípio in dúbio pró reo, no nosso direito processual penal tem consagração constitucional emergente do princípio da presunção da inocência previsto no artigo 32, n.º 2, da C.R.P, estabelecendo que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o réu.
43.Pelo que, tendo em consideração as contradições e divergências existentes entre os depoimentos prestados, considera o Recorrente não ter resultado provado com certeza que o mesmo praticou efetivamente o crime de que vinha acusado.
44.Assim, atendendo a toda a prova produzida, entende o Recorrente com o devido respeito pela opinião contrária que a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, violou o artigo 32 n.º 2 da Constituição, devendo em consequência ser o Recorrente absolvido da prática do crime de dano.
45.Assim, foram violados os artigos 32 da CRP, 212 do Código Penal, n.º 3 do artigo 49 e artigo 74 do Código de Processo Penal e alínea a) do n.º 1 do artigo 64 do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto.
Deve o Recurso ser julgado procedente por provado, devendo a decisão recorrida ser revogada nos termos expostos.
Respondeu o Magistrado do Mº Pº, concluindo:
1- O recorrente cinge-se a questionar a valoração da prova pelo tribunal recorrido, em concreto, da credibilidade que lhe mereceu o depoimento de determinada testemunha.
2- Constitui jurisprudência uniforme dos tribunais superiores que quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.
3- Na situação em apreço, tal não sucede, resultando da análise da motivação de facto da sentença recorrida, que o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objetiva e motivada, de acordo com um processo lógico e racional de valoração da prova.
4- No caso dos autos a livre apreciação da prova não conduziu à subsistência de qualquer dúvida razoável sobre a existência do facto e do seu autor. Por isso, não há lugar a invocar aqui o princípio do in dubio pro reo.
5- O ofendido era o titular do bem jurídico violado e protegido pelo artigo 212 n° 1 do Código Penal, assistindo-lhe, pois, legitimidade para apresentar a queixa que deu início ao presente processo.
6- A decisão recorrida não viola o disposto nos artigos 32 da Constituição, 212 do Código Penal e 49 do Código de Processo Penal.
Não deve o recurso interposto pelo arguido A... merecer qualquer provimento, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
Respondeu o demandante cível, concluindo:
1)Todos os factos dados como provados estão conformes à prova produzida pelo que deverão manter-se como provados,
2)Na verdade, e quanto à matéria de facto, o tribunal a quo, no uso dos seus poderes de cognição e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, interpretou corretamente as declarações do ofendido, do arguido e das testemunhas, condenando o arguido apenas por um dos crimes por que vinha acusado e absolvendo-o do outro crime (127 do CPP).
3)Não foi pois violado o princípio do in dúbio pro reo, não tendo ao tribunal a quo restado qualquer dúvida sobre a forma como os factos aconteceram.
4)Aderindo-se integralmente à fundamentação dada pelo tribunal a quo à sua decisão, deverá a doura sentença em crise, ser mantida nos seus precisos termos.
5)O veículo conduzido pelo ofendido ... e bem comum do casal, pelo que é parte legítima para apresentação de queixa e também para dedução do pedido de indemnização civil, o ofendido B...., apesar do veículo estar registado em nome da sua mulher, ... ..
6)Teve pois origem o presente processo numa queixa validamente apresentada e o ofendido possui legitimidade ativa para demandar civilmente o arguido.
7)A atuação do arguido, foi considerada, dolosa pelo tribunal a quo.
8)O existência/verificação do dolo exclui a responsabilidade da seguradora,
9)É pois responsável civilmente, pelo facto ilícito, o arguido, havendo de considerar-se a sua legitimidade passiva.
Nesta Relação, o Ex.mº PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417 do CPP.
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:
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São os seguintes os factos que o Tribunal recorrido deu como provados e sua motivação:
II. Fundamentação:
1. Factos provados:
1.No dia 28 de Fevereiro de 2010, pelas 19h30m, o arguido circulava na Rua dos … , ao volante do veículo com a matrícula … , tendo, a dada altura, desligado as luzes do mesmo, o qual estacionou, de frente para o entroncamento com a Rua da Gândara.
2.Ao se aperceber da chegada de B...., pai da sua ex-mulher, ao referido entroncamento, ao volante do veículo com a matrícula ..., e quando o mesmo se preparava para entrar na Rua … , o arguido ligou as luzes do veículo por si conduzido e reiniciou a marcha, a uma velocidade elevada, vindo a embater na parte lateral esquerda do veículo conduzido pelo B...., a qual ficou danificada.
3.Logo depois, o arguido e o B.... saíram do interior dos respetivos veículos e envolveram-se em discussão, tendo o arguido dito ao B...que o mesmo se tinha atravessado à sua frente e que «o matava».
4.Na sequência de tal embate, o veículo com a matrícula ... sofreu estragos no valor de 4.418,53€.
5.O arguido quis, o que conseguiu, estragar, nos moldes atrás descritos, o veículo automóvel pertencente ao ofendido B...., apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e que, nessa conformidade, estava a agir contra a vontade do proprietário do mesmo.
6.Por outro lado, ao proferir a referida expressão, nas circunstâncias em questão, após embater, da forma descrita, no veículo do B...., sabia o arguido que a mesma era adequada, como foi, a causar àquele, medo e receio pela própria vida, tendo procedido assim com a intenção de perturbar o sentimento de segurança daquele e de afetá-lo na sua liberdade.
7.O arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou:
8.Em consequência da conduta do arguido o ofendido temeu pela sua vida e integridade física;
9.Ofendido e arguido são ex-sogro e ex-genro um do outro;
10.O relacionamento entre ambos degradou-se em virtude do divórcio ocorrido entre o arguido e a filha do ofendido;
11.O arguido é gerente comercial;
12.Aufere a quantia mensal de € 1190,00
13.É divorciado;
14.Paga € 200,00 relativos à despesa com a casa;
15.Paga € 250,00 mensais de pensão de alimentos às suas filhas menores;
16.Não tem antecedentes criminais;
2. Factos não provados
Não há factos não provados.
3. Motivação
A convicção do tribunal fundou-se no conjunto de prova produzida em sede de audiência de julgamento analisada criticamente à luz das regras da experiência.
As versões apresentadas pelo arguido e pelo ofendido são, como seria de esperar opostas. Cada um deles acusa o outro de, propositadamente, ter provocado o embate ocorrido entre as suas viaturas.
A testemunha ... confirmou a versão trazida pelo ofendido, de que o embate foi provocado propositadamente pelo arguido, que aguardava a passagem do ofendido naquele local, parado, de luzes apagadas e que, em face do surgimento do mesmo, arrancou e foi em sua direção, guinando à esquerda com a clara intenção de o embater. Mais afirmou que depois do embate ouviu o arguido dizer ao ofendido “atravessas-te à minha frente eu mato-te”, entre outros insultos que ouviu serem proferidos de parte a parte. Esta testemunha mereceu ao tribunal toda a credibilidade pois prestou um depoimento claro e direto, revelando espontaneidade na forma como descreveu a dinâmica dos factos.
A versão do ofendido foi, pois, sustentada por esta testemunha e ainda suportada pelo croqui elaborado pelo militar da GNR, no qual se pode ver o veículo do arguido totalmente virado à esquerda, na via de trânsito oposta à do seu sentido de marcha. O militar referido confirmou que acorreu ao local e aí elaborou a participação do acidente em causa e o respetivo croqui com recurso à observação do local, das viaturas (as quais, segundo os intervenientes, não foram mexidas após o embate) e ainda às declarações dos intervenientes.
A testemunha, … , profissional de seguros, nada sabia de relevante para a prova dos factos constantes da acusação pública e nem do pedido de indemnização civil.
... ., esposa do ofendido, confirmou o custo da reparação do veículo, custo esse que consta ainda do orçamento junto aos autos. Mais confirmou esta testemunha ter o marido ficado com receio do arguido em consequência do sucedido.
Do conjunto da prova produzida, com especial relevo para as declarações do ofendido e da testemunha, sua esposa, ficou o tribunal convencido que o veículo conduzido pelo ofendido é pertença do casal, sendo o ofendido quem o usa no dia-a-dia.
No que toca à situação socioeconómicas do arguido e aos seus antecedentes criminais foram tidas em conta as suas próprias declarações, nesta parte sinceras, o documento de fls. 112 e o CRC junto aos autos.
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Conhecendo:
Analisemos as questões suscitadas:
- Errada interpretação da prova produzida relativamente aos pontos 1 a 8 dos provados.
- Violação principio in dúbio pro reo.
- Queixa.
- Legitimidade.
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Impugnação da matéria de facto:
Nas conclusões 1 a 21, o recorrente questiona a matéria de facto dos pontos 1 a 8, entendendo não devia ser dada como provada tal matéria, porque são contraditórios os depoimentos do ofendido e do arguido e, não pode valorar-se mais um que o outro.
E, que não deve ser valorado o depoimento da testemunha que depôs sobre os factos, porque é cunhado do ofendido.
Aponta-se a errada interpretação da prova produzida relativamente aos pontos 1 a 8 dos factos provados.
Alega-se o erro na análise da prova, no sentido de mal apreciada a prova produzida.
O tribunal tem de decidir, após apreciação da prova nos termos do disposto no art. 127 do CPP, e só em caso de dúvida decide em benefício do arguido.
A matéria de facto apurada (factos provados e não provados) há-de resultar da prova produzida (depoimentos, pareceres, documentos, reconstituição) conjugada com as regras da experiência comum.
Também, se dirá que o recurso não tem como funcionalidade reexaminar a matéria de facto e o recurso não serve para um novo julgamento.
O recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre matéria apontada pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa e apenas isso.
O recorrente questiona a matéria de facto, que lhe imputa a prática de um crime de dano, colocando em causa, desse modo, a prova e a apreciação da mesma.
A prova é valorada, tal qual é produzida em audiência, sendo a prova testemunhal perante os depoimentos orais e a imediação.
No nosso ordenamento jurídico/processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador -, art. 127 do C. P. Penal.
O princípio da livre apreciação da prova está intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração no art. 374 nº 2 do Código de Processo Penal.
E não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte do julgador mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objeto de formulação de deduções ou induções baseadas na correção de raciocino mediante a utilização das regras de experiência.
A atribuição de credibilidade ou da não credibilidade a uma fonte de prova por declarações assenta numa opção motivável do julgador na base da sua imediação e oralidade que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum. O juiz é livre de formar a sua convicção no depoimento de um só declarante em desfavor de testemunhos contrários, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 207.
No mesmo sentido, recurso desta Relação nº 3127/99 de 2-2-2000, no qual se refere que “as declarações da ofendida, quando credíveis e inferidas de todos os outros elementos de prova, são suficientes para, segundo as regras da experiência, dar como provados os factos”.
Assim que, se entenda que é possível dar como provados factos fundando-os num só depoimento, desde que o mesmo seja convincente.
E, a alegação do recorrente insiste nisso, de que se valorou o depoimento do ofendido em detrimento das suas declarações.
Concretizando:
O arguido não questiona que o depoimento do ofendido foi no sentido do que veio a ser dado como provado, apenas discorda da valoração do teor do depoimento dizendo que foi indevidamente valorado o depoimento do ofendido, e que “a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento era manifestamente insuficiente para poder conduzir a que fossem os factos em análise julgados como provados”, porque os depoimentos do arguido/recorrente e o do ofendido são contraditórios.
Sendo isso mesmo referido na motivação da matéria de facto, na sentença: “As versões apresentadas pelo arguido e pelo ofendido são, como seria de esperar opostas. Cada um deles acusa o outro de, propositadamente, ter provocado o embate ocorrido entre as suas viaturas”.
Mas contrariamente ao entendimento do recorrente o julgador pode valorar um depoimento em detrimento de outro de sentido contrário. Essa é a missão do julgador, ouvir (na prova por testemunhas, assistente ou arguido), analisar e interpretar a prova produzida e decidir em conformidade face à versão tida como plausível. Não basta haver dois depoimentos de sentido contrário para automaticamente funcionar o princípio in dúbio pro reo.
A prova deve ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador –art. 127 do CPP.
Devendo na sentença fazer-se uma exposição, concisa mas tanto quanto possível completa, dos motivos que fundamentam a decisão, analisando criticamente as provas que serviram para formar a convicção do tribunal- art. 374 nº 2 do CPP.
Quando há versões diferentes, mesmo que substancialmente divergentes, não se pode aceitar uma e afastar outra sem qualquer explicação plausível e coerente o que, inexistindo, constitui violação do estatuído no art. 374 nº 2 do CPP “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, convicção positiva ou negativa.
No caso em apreciação foi feita pelo julgador a análise crítica da prova, sabendo-se porque foi aceite a versão da acusação em detrimento da versão da defesa.
A versão do ofendido foi sustentada pelo depoimento da testemunha ... e ainda pelo croqui da GNR, confirmado pelo agente que analisou os vestígios no local e o elaborou.
Como refere o Ac. do STJ de 30-01-2002, proc. 3063/01- 3ª, SASTJ, nº 57, 69, “A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.
Refere o prof. Figueiredo Dias que só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido (e testemunhas) e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada em decisão colegial deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não afete o princípio da imediação.
Observe-se que a decisão da primeira instância será sempre o resultado duma «convicção pessoal» nela desempenhando papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionais não explicáveis -, v. g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova -, pelo que o tribunal de recurso ao apreciar a prova por declarações deve, salvo casos de exceção, adotar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de março de 2002 (C.J. , ano XXVII , 2º , página 44) , “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Paulo Saragoça da Matta, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 253, refere que se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.
Como se refere no recurso desta Rel. nº 4172/05, de 15-03-2006, “Para respeitar os princípios da oralidade e da imediação, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das soluções possíveis segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso”.
Como se salienta no Ac. da rel. de Lx. de 12-12-2006, in col. jurisp. tomo V, pág. 136, “o local ideal para apreciar criticamente as provas é a audiência de discussão e julgamento, em que os julgadores dispõem de melhores condições para as apreciar. A conclusão que se impõe é que, perante o texto da decisão recorrida, nada ressalta que indique apreciação notoriamente errada”.
A que o recorrente pretende é que o tribunal de recurso faça um novo julgamento e que julgue de acordo com as suas próprias convicções e não segundo as regras de experiência e a sua livre convicção, como disciplina o art. 127 do CPP.
Não basta na motivação do recurso alegar-se que é entendimento do recorrente que, com base nas declarações do arguido, deveria proceder-se à alteração da matéria de facto dada como provada.
E, diremos que o preceituado no art.127 do CPP deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
O alegado pelo recorrente não abala os fundamentos da convicção do julgador, que temos conformes às regras da experiência.
Afigura-se-nos que ressalta, de forma límpida, do texto da sentença ter o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação.
Na conjugação dos depoimentos com a credibilidade que cada um mereceu e as inferências daí resultantes, partiu para a operação intelectual de formação da convicção, resultando a prova dos factos.
Assim, temos que não se verifica qualquer erro, e a convicção do julgador tem suporte nos depoimentos, inexistindo violação do princípio in dúbio pró reo.
O princípio in dubio pro reo é o correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido.
Gozando o arguido da presunção de inocência (artigo 32, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), toda e qualquer dúvida com que o tribunal fique reverterá a favor daquele.
O princípio in dubio pro reo, enunciado por Stubel no século XIX, constitui um princípio probatório segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto deve ser sempre valorada favoravelmente ao arguido.
Traduz o correspetivo do princípio da culpa em direito penal, ou "a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como axiológíco-normatívo da pena " - Vital Moreira e Gomes Canotilho in Constituição da República Portuguesa, anotada.
"Não adquirindo o tribunal a "certeza" (a convicção positiva ou negativa da verdade prática) sobre os factos (...), a decisão tem de ser, por virtude do princípio in dubio pro reo, a da absolvição. Neste sentido não é o princípio in dubio pro reo uma regra de ónus da prova, mas justamente o correlato processual da exclusão desse ónus " - vd. Castanheira Neves in processo criminal, 1968, 55/60.
No que aos factos desfavoráveis ao arguido tange, a dúvida insanável deve levar a dar como não provado o facto sobre o qual recai.
O princípio in dubio pro reo só é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido - Ac. do mesmo Supremo de 18/3/98 in Proc 1543/97 (sublinhado nosso).
Porém, para tal, não basta alegar que existem dois depoimentos antagónicos.
Afigura-se-nos que ressalta, de forma límpida, do texto da sentença ter o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação.
O que, diferentemente se pretende é que o tribunal deveria ter valorado as provas à maneira do recorrente, substituindo-se ele-recorrente ao julgador, tal incumbência é apenas, porém deste - art. 127° CPP.
O recorrente limita-se a discordar da forma como o tribunal recorrido terá apreciado a prova produzida, porque atendeu a pormenores que o convenceram e daí tirou as necessárias ilações, enquanto para a recorrente resultaram em não convencimento.
A redação actual do art. 374 nº 2 é clara ao indicar que na motivação se deve indicar as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e fazer exame crítico das mesmas.
Na sentença recorrida indica-se, o teor e sentido dos depoimentos prestados, de forma fundamentada e com a análise crítica das provas.
Por isso, que a matéria dada como apurada, resulta da conjugação de toda a prova, nomeadamente os depoimentos, que interpretados segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador –art. 127 do CPP- mereceram credibilidade ao tribunal.
Na conjugação dos depoimentos com a credibilidade que cada um merece e as inferências daí resultantes, partiu para a operação intelectual de formação da convicção, resultando a prova dos factos.
Assim, temos que não se verifica qualquer erro, e a convicção do julgador tem suporte nos depoimentos.
Pelo que se mantém a matéria de facto tal como fixada na sentença.
Queixa:
Nas conclusões 22 a 25 o recorrente alega falta de queixa válida pela proprietária do veículo.
A queixa foi apresentada pelo ofendido B.... e o veículo está registado em nome da sua mulher Ana Maria ..
Na motivação da decisão da matéria de facto se refere. “... ., esposa do ofendido, confirmou o custo da reparação do veículo, custo esse que consta ainda do orçamento junto aos autos. Mais confirmou esta testemunha ter o marido ficado com receio do arguido em consequência do sucedido.
Do conjunto da prova produzida, com especial relevo para as declarações do ofendido e da testemunha, sua esposa, ficou o tribunal convencido que o veículo conduzido pelo ofendido é pertença do casal, sendo o ofendido quem o usa no dia-a-dia”.
Como resulta dos factos provados, o veículo em questão também é propriedade do ofendido e queixoso B.....
5.O arguido quis, o que conseguiu, estragar, nos moldes atrás descritos, o veículo automóvel pertencente ao ofendido B...., apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e que, nessa conformidade, estava a agir contra a vontade do proprietário do mesmo.
6.Por outro lado, ao proferir a referida expressão, nas circunstâncias em questão, após embater, da forma descrita, no veículo do B...., sabia o arguido que a mesma era adequada, como foi, a causar àquele, medo e receio pela própria vida, tendo procedido assim com a intenção de perturbar o sentimento de segurança daquele e de afetá-lo na sua liberdade. (sublinhados nossos).
Embora registado o veículo em nome de um dos cônjuges, presume-se bem do casal, a não ser que seja bem próprio desse cônjuge, o que não está demonstrado.
Mas mesmo que tal acontecesse o ofendido tinha legitimidade para apresentar queixa por ser o condutor habitual do veículo e efetivamente o conduzia no momento da ocorrência.
Basta ter em conta o disposto no Acórdão de FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, de 27-04-2011, proferido no processo 456/08.3GAMMV, que fixou jurisprudência do seguinte teor: «No crime de dano, p. e p. no artigo 212º, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113º, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afetado no seu direito de uso e fruição». Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2011 in Diário da República, 1.ª série — N.º 105 — 31 de Maio de 2011.
Assim, B.... era titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, logo ofendido e titular do direito de queixa, conforme art. 113 do CP.
Tinha legitimidade para apresentar queixa sendo a mesma validamente apresentada.
Assim que, também neste segmento, improcede o recurso.
Legitimidade:
A)- Do demandante cível:
Nas conclusões 26 a 29 alega o recorrente a ilegitimidade do demandante cível.
A alegação da ilegitimidade resultava do entendimento de que o demandante não era titular do direito de queixa e que tinha de ser o proprietário (entendendo que proprietário era o titular do registo do automóvel) a pedir a indemnização cível.
Como é referido no acórdão fixador de jurisprudência citado, “Em aproximação final à solução da questão controvertida, poderá concluir -se que o crime de dano previsto no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal visou proteger não apenas o titular do direito de propriedade, mas também todos aqueles que legitimamente gozam, usam e fruem o bem, e que, deste modo, são titulares de interesses diretos e imediatos na preservação da coisa (conservação do estado), como na fruição e disponibilidade das utilidades funcionais que proporciona (preservação da função).
O artigo 212.º do Código Penal reconhece que o valor de uso da coisa é merecedor de tutela penal, já que pode ser prejudicado pela prática das condutas típicas de destruição, danificação, desfiguração ou inutilização da coisa”.
Assim, o ofendido é lesado para efeitos de pedido de indemnização civil.
Tendo legitimidade para deduzir o respetivo pedido.
Pelo que também nesta sede improcede o recurso.
B)- Do demandado cível:
Nas conclusões 30 a 34 alega o recorrente a sua ilegitimidade como demandado cível, entendendo que deveria ser demandada a seguradora, nos termos da al. a) do nº 1 do art. 64 do Dl. 291/2007 de 21-08.
Nos artigos 71 e 72, do Código de Processo Penal encontra-se consagrado o princípio da adesão obrigatória da ação civil ao processo penal, segundo o qual, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal deve ser exercido no próprio processo penal, enxertando-se o procedimento civil a tal destinado na estrutura do procedimento criminal em curso.
De acordo com o artigo 129, do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime será regulada pela lei civil, encontrando-se o regime da responsabilidade civil extracontratual decorrente da prática de atos ilícitos estabelecido no artigo 483, nº 1, do Código Civil, nos termos do qual, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil relativamente ao arguido, dada a circunstância de o facto constitutivo de tal responsabilidade ter sido pelo mesmo produzido ao volante do seu veículo de matrícula.
Por outro lado, vem o mesmo alegar (havia alegado na contestação) que, à data dos factos, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros pela referida viatura, se encontrava transferida para uma companhia de seguros e que devia ser esta a demandada.
Não indica, nem então, nem agora, qual a companhia de seguros e qual a apólice que titula o contrato “contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”, nem tinha de o fazer, a não ser através de intimação do tribunal.
Questiona-se, pois, quem responderá pelo pagamento da indemnização adequada ao ressarcimento dos danos desencadeados pelo facto gerador daquela responsabilidade.
Considerou-se na sentença: “Quanto ao crime de dano, o demandado alegou, antes de mais, na sua contestação ser parte ilegítima, devendo ser demandada no caso a companhia de seguros para a qual transferiu a responsabilidade civil pela circulação do seu veículo.
Salvo o devido respeito, não cremos que assista razão ao demandado. Nos presentes autos não está em causa a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, mas sim responsabilidade civil emergente da prática de um crime doloso, no caso um crime de dano provocado com um veículo num outro veículo. A responsabilidade civil, no caso de prática de crime doloso, cabe, parece-nos evidente, apenas e só ao arguido, pois que não há qualquer seguro que cubra e responda pela prática de ilícitos criminais. Diga-se, aliás, que as apólices de seguro claramente excluem a sua responsabilidade em caso de dolo.
Nestes termos, improcede a exceção de ilegitimidade passiva alegada pelo demandado”.
Temos como não correta a decisão, assim como não são corretos os fundamentos.
Importa ter presente que, nos termos do artigo 64, nº 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto (referido na alegação de recurso), as ações destinadas à efetivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório.
Também o art. 4, nº 1, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, impõe a obrigação de segurar a toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre, não estabelecendo qualquer diferenciação consoante tais danos sejam causados a título doloso ou negligente.
Nem poderia ser de outro modo, pois o seguro é obrigatório antecipadamente a qualquer evento danoso ocorrido com uso do carro. É obrigatório o seguro automóvel para se poder circular com o veículo.
Por outro lado, prevendo-se no art. 27, nº 1, alínea a), do mesmo Decreto-lei, que satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente, forçoso é de concluir que também caem no âmbito da responsabilidade das seguradoras o pagamento das indemnizações devidas por acidentes provocados dolosamente, que foi justamente o que sucedeu no caso em apreço.
Também, o art. 15 (Pessoas cuja responsabilidade é garantida) refere:
“1– O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4 e dos legítimos detentores e condutores do veículo.
2– O seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte”.
Assim, contendo-se a indemnização peticionada nos limites do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório [cf. artigo 12, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto], pelo seu pagamento apenas responderia a seguradora, caso houvesse seguro e a existência deste tem de se presumir, dado que é “seguro obrigatório”.
Tendo havido jurisprudência divergente no STJ, temos que é esta a orientação ora sufragada a que domina.
Acórdão de 18/12/2008, Pº 08P3852:
«I- A referência à não exclusão do âmbito da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel dos danos resultantes de «acidentes de viação dolosamente provocados» está inscrita desde o diploma que primeiramente instituiu o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (DL 408/79, de 25-09) – e já também em diploma de 1975 (DL 165/75, de 28-03) que, por circunstâncias do seu tempo histórico, nunca chegou a entrar em vigor.
II- E mantém-se, sempre em formulação verbal constante, no regime atualmente vigente, aprovado pelo DL 291/2007, de 21-08, justificado pela transposição da Diretiva 2005/14/CE, do Parlamento e do Conselho, de 11-05 – 5.ª Diretiva sobre o Seguro Automóvel, que procedeu à «atualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de proteção dos lesados por acidentes e viação» baseado no seguro obrigatório, «seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis», como se refere no art. 1.º («Objeto») do diploma».
Acórdão de 07-05-2009, processo nº 09A0512:
“II- Sendo o objetivo central do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel garantir a proteção das vítimas de acidentes de viação, assegurando da forma mais alargada possível o ressarcimento dos danos por elas sofridos, esse desiderato subsiste mesmo naqueles casos em que os danos resultam de acidente dolosamente provocado, porquanto o conceito de acidente tem de ser perspetivado a partir da vítima.
III- Esta interpretação da norma em causa é a que se coaduna com o direito comunitário e a jurisprudência do Tribunal de Justiça”.
Acórdão de 6/7/2011, proferido no proc. nº 3126/07.6TVPRT.P1.S1:
“I- A expressão “acidente de viação” não é utilizada, no ordenamento jurídico nacional, no sentido tradicional, mas antes na aceção mais geral de fenómeno ou acontecimento estradal, anormal, fortuito e casual, decorrente da circulação de um veículo, que, manifestamente, comporta o acidente, dolosamente, provocado, porquanto, em ambos os casos, é idêntico o interesse que a lei quer tutelar, isto é, o interesse do lesado na indemnização pelos danos sofridos.
II- O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, face ao condicionamento imposto pela lei do seguro obrigatório, reveste a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir, diretamente, da seguradora a concretização do seu direito à reparação ou à indemnização.
III- A exclusão da previsão dos acidentes que, envolvendo a circulação de veículos, constituam a prática de crimes, esvaziaria o conteúdo da norma do art. 8, n.º 2, do DL n.º 522/85, de 31-12, ou, atualmente, do art. 27, n.º 1, al. a), do DL n.º 291/2007, de 21-08, reduzindo-a às situações factuais em que ocorresse o dano meramente culposo.
IV- A exclusão da cobertura legal, no âmbito do contrato de seguro obrigatório, quanto ao dano, dolosamente, causado, por um veículo terrestre a motor, só se compreende se o mesmo já se encontrar acautelado, por outra disposição legal”.
Tendo em conta o exposto, temos que o pedido cível deveria ter sido formulado contra a seguradora, dado que o pedido formulado se continha dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório.
Pelo que, nos termos do disposto no art. 64 nº 1 al. a) do Dl. 291/2007, o demandado A... é parte ilegítima, devendo ser absolvido da instância.
Pelo que se julga procedente o recurso neste segmento.
*
Decisão:
Acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em conceder parcial provimento ao recurso do arguido/demandado A... e, em consequência:
1-Julga-se o arguido demandado como parte ilegítima relativamente ao pedido cível contra si formulado e, em consequência absolve-se o mesmo da instância cível e da condenação cível contra o mesmo proferida.
2- Quanto ao mais, mantém-se a sentença recorrida.
Sem custas a parte crime dado não ter havido decaimento total do arguido/recorrente.
Custas do pedido cível a cargo do demandante.
Coimbra,
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