Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4101/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERAFIM ALEXANDRE
Descritores: SUBSTITUIÇÃO DE PENA DE PRISÃO POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 03/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART. 58º, 40º, N.º 1, 70º E 71º, DO C. PENAL
Sumário:

I - Sempre que o tribunal fixar, em concreto, uma pena de prisão não superior a um ano, impõe-se-lhe equacionar a possibilidade de suspender a sua execução e/ou a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade. E sempre que fixar uma pena de prisão não superior a 3 anos, impõe-se-lhe equacionar aquela suspensão.
II - Se nada impede que se aplique a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade a um desempregado, certo é que a mesma não atingirá as suas finalidades se for inviável a própria prestação de trabalho por o condenado não ter condições pessoais de poder beneficiar do apoio social que o trabalho confere.
Decisão Texto Integral:

Recurso n.º 4101/2003.
Comarca de S. Pedro do Sul


Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:

Acusado pelo M.º Público da prática de um crime de violação de proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353º do C. Penal, foi julgado, em Processo Comum Singular, no tribunal da comarca de S. Pedro do Sul, o arguido A, melhor identificado nos autos.
Como consta da acta de folhas 67, depois da produção da prova e antes dos debates orais, foi comunicado ao arguido a possibilidade de os factos imputados virem a ter diferente qualificação, concretamente poderem integrar o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art.º 139º, n.º 4, do C. E. o qual remete para aquela punição.
A final, veio o arguido a ser condenado como autor de um crime de desobediência qualificada, da previsão conjugada dos artigos 348º, n.º 1, al. a) e 2 do CP e 139º, n.º 4 do C. E., na pena de 5 meses de prisão.
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Recorre, inconformado, o arguido, concluindo:
1- O arguido é vítima do consumo de bebidas alcoólicas.
2- O arguido é uma pessoa com notórias dificuldades de integração social face às dificuldades que tem em encontrar trabalho, fruto da idade e do consumo de bebidas alcoólicas.
3- Aliás, o arguido iniciou um tratamento de desintoxicação, que interrompeu no momento em que se viu sem possibilidades de inserção profissional.
4- As necessidades de prevenção especial não justificam, salvo o devido respeito por outras opiniões, a aplicação de pena detentiva. Com efeito,
5- O cumprimento de pena de prisão efectiva só irá afastar ainda mais o arguido da vida em sociedade...
6- Não provendo, de forma adequada, à sua ressocialização.
7- O arguido foi condenado a pena de 5 meses de prisão efectiva, podendo o ser substituída por prestação de trabalho em favor da comunidade, com o seu consentimento, o que expressamente dá, nos termos do artigo 580 n.ºs 1 e 5 do Código Penal.
8- Que se afigura preferível relativamente à pena detentiva, para acudir quer às finalidades da punição, quer às finalidades de ressocialização do agente.
TERMOS EM QUE o presente recurso procede, requerendo-se a Vossas Excelências que revoguem a sentença que e posta em crise, substituindo a pena detentiva por pena de prestação de trabalho em favor da comunidade.
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Respondeu o M.º Público, requerendo a junção aos autos das certidões de folhas 105 a 108 e 109 a 114, concluindo que o recurso deve improceder.
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto acompanha a resposta do Ex.mo Procurador Adjunto..
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Colhidos os vistos legais e efectuada a audiência, cumpre decidir:
Como resulta das conclusões do recurso, sendo estas que delimitam o seu objecto, o recorrente apenas se insurge quanto à escolha da espécie da pena, entendendo que devia ter sido substituída a pena detentiva por pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Antes de apreciar os fundamentos do recorrente, lembremos
Os factos dados por provados
1- Por sentença proferida em 28.5.02. transitada em julgado em 12.6.02, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 anos, bem como na pena acessória de 8 meses de inibição da condução de veículos.
2- O arguido, que se encontrava presente na data da leitura da sentença, foi desde logo notificado para, no prazo de 10 dias após o trânsito da mesma, entregar a sua licença de condução na secretaria deste Tribunal, ou em qualquer posto policial.
3- Entregou a referida licença, na secretaria deste Tribunal, no dia 12.6.02.
4- Não obstante saber que a sua licença de condução se encontrava apreendida, o arguido, no dia 21.7.02, pelas 12 horas, conduzia, no Bairro da Ponte, em S. Pedro do Sul, o ciclomotor de matrícula SPS.
5- O arguido sabia que estava obrigado a cumprir o período de inibição de conduzir que lhe havia sido imposto pela sentença referida em 1, da qual tomou conhecimento em 28.5.02, e sabia que o período da inibição tinha o seu termo em 12.2.03.
6- Mais sabia que ao actuar da forma descrita violava uma proibição imposta por sentença criminal, sabendo que não podia violar tal proibição.
7- Agiu livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
8- Encontra-se desempregado, sendo beneficiário de um subsídio mensal de 108 euros a título de rendimento mínimo garantido.
9- Beneficia ainda da refeição do almoço, prestada pela Santa Casa da Misericórdia desta vila.
10- Vive sozinho num anexo edificado junto da casa de um familiar.
11- É dele o ciclomotor que conduzia.
12- É habitual consumidor de bebidas alcoólicas, fazendo-o por vezes em excesso.
13- Após a prolação da sentença referida em 1 chegou a iniciar um tratamento para desintoxicação relativa ao consumo de bebidas alcoólicas; porém, após uma primeira fase de abstinência, reiniciou o consumo de tal tipo de bebidas.
14- Possui antecedentes criminais pois que, para além da condenação referida em 1, foi ainda, por sentença proferida em 26.1 1.01, e por factos praticados em 25.3.97, condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 anos.
15- Tem como habilitações literárias a 4ª classe.
Factos dados por não provados
Não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contradição com os anteriores, e designadamente:
- que ao arguido tenha faltado a liberdade de decisão quanto aos factos que lhe são imputados na acusação.
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O recorrente não indica nas suas conclusões que normas jurídicas forma violadas, como determina, sob pena de rejeição, o art.º 412º, n.º 2, al. a) do CPP.
Mas porque esta só poderia ser declarada após convite para a suprir (Ac. do T. Constitucional de 7-10-2002) e porque sempre se poderia entender que refere como norma violada o art.º 58º, n.º 1 e 5, do C. Penal, ultrapassa-se tal omissão.
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O recorrente nas motivações do recurso, mas já não nas conclusões, põe em causa a matéria de facto na medida em que, diz, deveria ter sido dado como provado que: o arguido tem notórias dificuldades de integração social, ditadas pelo ostracismo a que é votado pela sociedade.
Além de não integrar tal impugnação da matéria de facto nas conclusões (o que, só por isso, a excluiria como objecto do recurso) certo é que o que pretende como facto a dar como provado não passa duma conclusão, o que não permitiria a sua inclusão como facto.
Os factos que poderia ter pretendido fossem incluídos (a retirar do depoimento da testemunha Lurdes Fernandes) seriam:
- a imagem do arguido no meio não é muito positiva;
- os contactos feitos pela técnica de Reinserção Social para lhe conseguir emprego tiveram respostas negativas.
Seja como for, a matéria de facto não pode ser alterada.
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Quanto à substituição da pena de prisão pela de prestação de trabalho a favor da comunidade:
O tribunal, num primeiro momento, escolheu a pena já que os factos são puníveis com pena de prisão ou multa. E optou, temos que bem, pela de prisão, tendo em conta os critérios legais previstos no art.º 70º do C. Penal. O arguido não o contesta.
Num segundo momento, determinou o quantum dela (cinco meses). Procedeu conforme o disposto nos artigos 40º, n.º 1 e 2 e 71º, do C. Penal (critérios da culpa e de prevenção). Também isso não é contestado pelo recorrente e nada há a opor.
Fixado a medida concreta da pena de prisão, o tribunal ficou-se por aí.
Incorrectamente, entende o recorrente, pois deveria ter equacionado a substituição de tal pena pela de prestação de trabalho a favor da comunidade e tê-la decretado.
E entendemos que tem alguma razão quanto à primeira afirmação.
Prevendo a lei, o poder-dever do tribunal equacionar a suspensão da execução de tal pena (art.º 50º) e a sua substituição pela de prestação de trabalho (art.º 58º), o art.º 70º exigiria que se fundamentasse a não aplicação de tais possibilidades. Na verdade, o art.º 50º diz que o tribunal suspende...e o art.º 58º refere ...o tribunal substitui... .Ora, se o art.º 70º obriga a dar preferência às duas hipóteses, tal se deveria ter equacionado.
E isto, mesmo quando o julgador é colocado perante a escolha entre a pena de prisão e a de multa. Depois de optar pela pena de prisão, optando pela de medida inferior ao referido naquelas duas normas legais (art.º 50º e 58º), a questão impõe-se ao tribunal. E isto porque, embora se tenha chegado à conclusão de que era exigida a pena de prisão (e não já a de multa) nada impedia que, num segundo momento, se avaliasse se esta podia ou não ser substituída ou suspensa. É que no primeiro (escolha) entrou decisivamente o critério da prevenção – art.º 70ª - e neste (medida e espécie da pena) já entra decisivamente o critério da culpa – art.º 71º-.
E se o tribunal a tivesse equacionado já, talvez, o recorrente não tivesse fundamento para recorrer.
Vejamos então:
Quanto à suspensão da execução da pena nem o próprio recorrente a coloca. Na verdade, tendo em conta os seus antecedentes criminais (tendo sido já condenado em pena de prisão que lhe foi suspensa na sua execução, mostra-se que esta não surtiu os efeitos pretendidos) e as suas próprias condições de vida, não a aconselhavam.
Quanto à substituição por prestação de trabalho:
Esta pena justifica-se (impõe-se) quando, por um lado, o exige a prevenção especial de socialização e, por outro, não se põe em causa o mínimo exigido pela protecção dos bens jurídicos em presença. Esta pena visa a realização social do condenado. Ao contrário de todas as outras, não tem o fim específico de punição pessoal negativo. Isto pressupõe, por um lado, que os factos praticados não exijam uma verdadeira punição de carácter pessoal e, por outro, que o agente esteja em condições pessoais de aceitar e beneficiar do apoio social que o trabalho confere. A primeira condição é dada, em primeira linha, pela própria lei ao estabelecer qual o quantum da pena que permite tal substituição. Esta estaria verificada no caso dos autos. Mas não deixa de ser também importante que, apesar dessa pena concreta, o seu cumprimento não se exija face às finalidades da punição. Se pelo seu comportamento anterior recidivo e pelas manifestações anti-sociais da sua conduta actual, revela nítida falta de preparação da sua personalidade para se comportar licitamente, não deve tal pena ser aplicada (Ac. da Rel. Évora – 24-5-83 - citado pelo M.º P.º)
E quanto à segunda, os factos provados, relativamente às condições pessoais do arguido, está ela claramente afastada.
Na verdade, o arguido está desempregado. Se é certo que nada impede que tal pena possa ser aplicada a quem se encontre nessa situação (o n.º 4 do art.º 58º não tem esse alcance) também o é que, neste caso, não é um desempregado qualquer.
O conteúdo punitivo desta pena está na perda de uma parte dos tempos livres do condenado e na sanção de trabalhar gratuitamente. Sendo aplicada a um desempregado, atingir-se-á o seu carácter punitivo se se fixar para todos os dias.
Mas o arguido está desempregado sobretudo porque, tudo o indica, é consumidor de bebidas alcoólicas, por vezes em excesso (facto 12), condição de que não se tem conseguido libertar (facto 13).
Nestas condições, não só será quase impossível conseguir trabalho, como será difícil conseguir trabalho reabilitador. Repare-se que tal pena deveria ser cumprida com a intervenção do IRS (D. Lei 375/97, de 24/12, no uso da autorização dada pela Lei 75/97, de 18/7) e que, pelos factos provados (já não falando nos que o próprio recorrente pretendia darem-se como tal) esta intervenção estará impossibilitada e mesmo afastada.
O arguido (com 42 anos) não trabalha face às suas condições pessoais o que é precisamente o contrário de ter tais condições por não trabalhar. Se a própria possibilidade de trabalhar se mostra inviável como é que poderia exercer trabalho ressocializador? Seria esta pena que iria alterar aquelas condições? Obviamente que não. Tal pena seria, em concreto, uma sanção inútil.
Não se olvida que uma prisão pelo período de cinco meses não deixa de colocar em crise a própria resocialização do arguido. Mas quando esta se mostra necessária não vemos como a evitar.
Em tais circunstâncias não se poderá concluir que tal pena possa realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
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Nestes termos, julgando o recurso por não provido, se confirma a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 ucs
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Coimbra: