Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
586/05.3TAACB- C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL
CRIME DE BURLA
Data do Acordão: 06/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 202.º, ALÍNEA A), 217.º, N.º 1 E 218.º, N.º 1 CP, 408º, Nº 1, E 409º, Nº 1, 874º , 879º E 893º DO CC
Sumário: 1. O Direito Penal só deve intervir quando a tutela conferida pelos outros ramos do ordenamento jurídico não for suficientemente eficaz para acautelar a manutenção desses bens considerados vitais ou fundamentais à existência do próprio Estado e da sociedade.
2. O arguido que não cumpriu cabalmente as obrigações contratuais derivadas do contrato de compra e venda, causando com o seu incumprimento graves prejuízos ao lesado que lhe confere o direito a uma indemnização pelas perdas que sofreu, não consente que se conclua pelo preenchimento de um dos elementos objectivos típicos do crime de burla: a actuação com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
Nos presentes autos o arguido A..., natural da freguesia de V… do concelho de Alcobaça, casado, pedreiro, residente em França, foi acusado pelo MP e pelo assistente J..., da prática em autoria material de um crime de Burla Qualificada, previsto e punível pelos art.ºs 202.º, alínea a), 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, do Código Penal e, apenas na Acusação Pública, da prática, em concurso real com aquele crime, de um crime de Falsidade de Depoimento ou Declaração, previsto e punível pelo art.º 359.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal.
Efectuado o julgamento, por sentença proferida em 7 de Maio de 2008 foram as acusações julgadas improcedentes, por não provadas e, em consequência, o arguido absolvido da prática do crime de burla qualificada, previsto e punível pelos art.ºs 202.º, alínea a), 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, do Código Penal e do crime de falsidade de depoimento ou declaração, previsto e punível pelo art.º 359.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, pelos quais vinha acusado em autoria material e em concurso real.
Mais foi decidido julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil e, em consequência, absolvido o arguido do pedido contra si deduzido pelos demandantes J... e S....
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Inconformado, com esta decisão, o assistente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
“1.ª Do conjunto dos factos provados elencados de 1 a 27, necessariamente interpretados à luz das regras da experiência e do senso comum, resulta factualidade mais que suficiente para conduzir à procedência da acusação e à condenação do Arguido pela prática do crime de burla qualificada, p. e p. pelo nº1 do artigo 218º e nº 1 do artigo 217º, do Código Penal por reporte ao artigo 202.º alínea a) do mesmo diploma.
2.ª Do conjunto dos factos provados elencados de 1. a 33. existe manifesta contradição entre os factos consignados nos pontos 5., 6., e 7, uma vez que, o Tribunal “a quo” dá como provado que a sociedade de que o Arguido era gerente declarou vender, por seu intermédio, o veículo de marca “Mitsubishi” e o ora Recorrente e sua
mulher declararam comprar-lho, pelo preço de 2.800.000$00 (cfr. ponto 5.), para imediatamente a seguir dar, igualmente, como matéria assente que o ora Recorrente e sua mulher entregaram ao Arguido como forma de pagamento de parte do preço acordado, o veículo de marca “Peugeot”, modelo 504 (cfr. ponto 6.) e, por fim, dar como igualmente provado que para pagamento do remanescente do preço acordado para a compra da viatura o ora Recorrente e sua mulher recorreram ao crédito, tendo celebrado um contrato de mútuo com a sociedade financeira “MC… Sociedade Financeira para Aquisição a Crédito, S.A.”, nos termos do qual esta lhes emprestou a quantia de 2.800.000$00 e entregou esse montante à sociedade da qual o Arguido era gerente (cfr. ponto 7.).
3.ª Ora, como é bem de ver, se conforme resulta provado no ponto 7. o Arguido recebeu para pagamento do remanescente do preço acordado para a compra do veículo “sub judice” a quantia de 2.800.000$00, proveniente do contrato de mútuo que o ora Recorrente e a mulher haviam celebrado com a sociedade financeira “MC... Sociedade Financeira para Aquisição a Crédito, S.A.”, nunca poderia aceitar-se como matéria assente (ponto 5. dos factos provados) que o preço acordado pela compra do dito veículo tivesse sido, somente, os 2.800.000$00.
4.ª O Tribunal “a quo” ao dar como provado que o pagamento do remanescente do preço foi efectuado com os 2.800.000$00 proveniente do supra referenciado contrato de mútuo, não podia ao mesmo tempo dar como provado no ponto 5. que a venda do veículo foi efectuada pelo preço de 2.800.000$00.
5.ª Forçoso é, pois, concluir que a venda do veículo “sub judice” foi efectuada por valor superior, como, aliás, resulta implícito da matéria dada como provada pela Meritíssima Juíza “a quo”no ponto 6. ao aceitar, como facto assente, que o ora Recorrente e a mulher para além dos 2.800.000$00 entregaram, ainda, ao Arguido como forma de pagamento de parte do preço acordado, o veículo marca “Peugeot”, que possuíam.
6.ª Esta contradição, incidindo sobre factos e factualidade que tem grande influência na decisão da causa, teve relevância na convicção do Tribunal e, consequentemente, na decisão recorrida, tendo seguramente, sido em sentido favorável ao Arguido quando deveria ter sido contra o Arguido.
7.ª Do conjunto dos factos provados elencados de 1. a 33. verifica-se a existência de contradição entre os factos provados consignados sob os pontos 8., 9., 11., 12. e 15. e os factos não provados vertidos no ponto 39.
8.ª Nos pontos 8., 9., 11., 12. e 15. dos factos provados, resulta como matéria dada como assente pelo Tribunal “a quo” que o Arguido comprometeu-se perante o ora Recorrente e sua mulher entregar-lhes posteriormente o livrete e título de registo de propriedade do veículo “sub judice”, sem nunca lhes referir que sobre essa viatura incidia um ónus de reserva de propriedade (cfr. ponto 8. dos factos provados), tendo-lhes, ainda, entregue a declaração junta aos autos a fls. 10 nos termos da qual declara que a sociedade de que era gerente lhes havia vendido o veículo “sub judice” (cfr. ponto 9. dos factos provados) e o Arguido fê-lo, bem sabendo que o veículo não era pertença da sociedade de que era gerente, dado que impendia sobre o mesmo o ónus de reserva de propriedade a favor do “BM..., S.A.” (cfr. ponto 11. dos factos provados).
9.ª O Arguido ao agir desta forma e ao entregar ao ora Recorrente a declaração referenciada na precedente clausula 8.ª pretendeu e conseguiu fazer crer a J... e a S... que quem lhes vendia o veículo “sub judice” era a sociedade da qual era gerente, livre de ónus e encargos, assegurando-lhes que posteriormente lhes enviaria a respectiva documentação, facto do qual o ora Recorrente e mulher ficaram convencidos e só por isso, aceitaram comprar-lhe a viatura (cfr. ponto 12. dos factos provados).
10.ª Conforme resulta da matéria dada como provada o Arguido sabia que o ora Recorrente e a sua mulher não teriam adquirido a viatura se soubessem que sobre a mesma já incidia uma reserva de propriedade, e que não lhes seria entregue toda a documentação legalmente exigível para a sua circulação (cfr. ponto 15. dos factos provados), não obstante, a Meritíssima Juíza “a quo” não dá como provado que o Arguido tenha actuado de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei (cfr. ponto 39. dos factos não provados).
11.ª Assim, tendo a Meritíssima Juíza “a quo” dado como provados os factos vertidos nos pontos 8., 9., 11., 12. e 15., só por incorrecta apreciação dos factos, especiais e concretas circunstâncias em que os mesmos ocorreram se pode conceber que tenha dado como não provados os factos referidos sob o ponto 39.
12.ª O resultado típico do crime de burla é o empobrecimento do sujeito passivo, através do comportamento astucioso do arguido, sendo que com ele o crime se consuma.
13.ª Sendo o momento da consumação deste crime aquele em que o lesado abra mão da coisa ou do valor sem que a partir daí se possa controlar o seu destino, então já sem disponibilidade sobre esse património, como é entendimento jurisprudencial.
14.ª Forçoso é concluir-se que o douto Tribunal “a quo” não analisou nem valorou correctamente toda a factualidade e circunstancialismo do caso concreto que os próprios autos revelam, não tendo aplicado na análise e julgamento da mesma factualidade, as regras ditadas pela experiência e senso comum, as quais, necessariamente imporiam decisão bem diferente da recorrida.
15.ª Há contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova, vícios previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 artigo 410.º do Código Penal, pelo que o Tribunal de recurso deverá reenviar o processo para novo julgamento caso não seja possível decidir da causa. Sendo possível decidir da causa, mercê dos elementos que constam no processo e da possibilidade que a lei lhe confere de poder modificar a decisão da matéria de facto, se do processo constarem os necessários elementos que a tal o habilitem, o reenvio não deve ser accionado.
16.ª Na douta sentença recorrida existem pontos que o Recorrente considera incorrectamente julgados e que no seu entender impõem decisão diversa da recorrida, que se passam a enumerar.
17.ª Ponto n.º 1. dos Factos provados - das declarações do próprio Arguido resulta provado que o Arguido comprou a E... o veículo automóvel “sub judice” por um valor situado entre os 1.500.000$00 e 1.600.000$00.
É, aliás, o próprio Arguido que no seu depoimento o afirma, repetidamente, que o valor que pagou a E... pelo veículo “sub judice” foi na casa dos 1.500.000$00/1.600.000$00.
18.ª Ponto n.º 5. dos Factos provados - analisando o depoimento do Assistente/Demandante, ora Recorrente e da sua mulher, Demandante Cível resulta provado que o preço pelo qual o Arguido declarou vender e o ora Recorrente e a sua mulher declaram comprar-lhe o veículo automóvel “sub judice” foi 3.200.000$00 pago através da entrega ao Arguido, como retoma, do veículo automóvel marca “Peugeot” modelo 504, que possuíam e ao qual foi atribuído o valor de 400.000$00 e da entrega ao Arguido, para pagamento do remanescente do preço, ainda, de mais 2.800.000$00, quantia esta proveniente do contrato de mútuo que o ora Recorrente e a mulher haviam celebrado com a sociedade financeira “MC... Sociedade Financeira para Aquisição a Crédito, S.A.”e que, aliás, o próprio Tribunal “a quo” dá como facto provado (cfr. ponto 7. dos Factos Provados).
19.ª Ponto n.º 6. in fine dos Factos provados e ponto n.º 40. dos Factos não provados - com base na análise do depoimento do Assistente/Demandante, ora Recorrente e da sua mulher, Demandante Cível resulta provado, conforme se disse anteriormente, que ao veículo marca “Peugeot”que possuíam e deram ao Arguido, como retoma, foi atribuído o valor de 400.000$00.
20.ª Ponto n.º 14. dos Factos provados e n.º 35. dos Factos não provados - atendendo aos depoimentos dos ora Recorrente e da Demandante Cível, bem como do próprio Arguido deveria ter sido dado como facto provado que o Arguido agiu, efectivamente, com intenção de obtenção lucro. Nem o contrário seria de esperar atendendo que o Arguido fazia desta actividade (comércio de veículos automóveis) a sua actividade profissional.
21.ª A douta Sentença recorrida ao dar como provados os factos vertidos nos pontos 3., 4., 6., 7., 8., 9., 11., 12., 15., e 20. a 26. os quais traduzem inequivocamente o estratagema, o processo enganatório utilizado pelo Arguido não podia, logo a seguir, dar como não provado que o Arguido actuasse com o intuito de enriquecer ilegitimamente à custa do património do ora Recorrente e mulher.
22.ª O próprio Arguido nas suas declarações afirma com convicção e sem pejo que, conforme era seu intuito, obteve um ganho/lucro (“ … vendi a viatura, pois tá claro que tenho que ganhar alguma coisa ...” cfr. depoimento registado em suporte digital/programa Cícero, cfr. Acta de Audiência de Discussão e Julgamento exarada nos autos de fls. 295 a 297).
23.ª Na douta Sentença recorrida não foi ponderado e considerado que, com vista à obtenção de lucro, o comércio da compra e venda de automóveis usados se cometem abusos e práticas altamente censuráveis, vendendo-se muitas das vezes “gato por lebre”, transaccionando-se veículos em situações de autêntica ilicitude e ilegalidade, sendo costume não se dar a conhecer aos potencias compradores, como aconteceu no caso concerto com o Assistente/Demandante, e ora Recorrente, as reais situações em que se encontram os veículos e as condições para a sua regularização, quer na parte mecânica, quer na parte meramente documental e de registo de propriedade, pois caso assim fosse não se afirmaria
24.ª Face à matéria de facto que, após a reapreciação da prova, nos termos explanados ao longo das alíneas a) a s) do Capítulo IV, V. Exas. Venerandos Desembargadores, deverão considerar provada, impõe-se a condenação do Arguido pela prática, em autoria material, do Crime de Burla Qualificada previsto e punido ao abrigo do preceituado nos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2 e 202.º alínea b) do Código Penal e, consequentemente, julgar procedente por provado o pedido de indemnização cível formulado contra o Arguido.
25.ª A legislação que a, aliás, douta sentença recorrida violou foi indicada à medida que se enunciaram as presentes conclusões.
Julgando, como agora de se pede, V. Exas. farão, como sempre,
JUSTIÇA!”
*
Também inconformado o MP interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
"
1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos de fls. nas partes em que através da mesma se absolveu o arguido da prática, em autoria material, de um crime de Burla Qualificada, previsto e punível pelos artigos 202.° alínea a), 217.° n.°1 e 218.° n.°1, do Código Penal em concurso real com um crime de Falsidade de Depoimento ou Declaração, previsto e punível pelo artigo 359.° n.°1 e n.°2 do Código Penal.
2. O Ministério Público entende que os factos vertidos nos pontos 2. (última parte) e 13. dos factos provados devidamente sublinhados foram incorrectamente julgados.
“2. - Na altura da celebração do mencionado negócio, E... disse e deu a conhecer ao arguido que sobre o mencionado veículo incidia o ónus de reserva de propriedade a favor da instituição de crédito «BM..., S.A.», dado que lhe faltavam ainda pagar algumas prestações, em número não apurado, relativas ao empréstimo que contraiu junto daquela instituição para aquisição da viatura, as quais se comprometeu, perante o arguido, a liquidar, bem como se comprometeu a entregar-lhe--o documento comprovativo da extinção da reserva de propriedade, no prazo de 15 (quinze) dias, no que o arguido acreditou, mas que E... nunca veio a fazer.)
“13. - O arguido declarou perante J... e S... vender-lhes a viatura com a matrícula 00-00-GG convicto que E... lhe entregaria a extinção da reserva de propriedade inscrita no registo a favor de «BM..., S.A.» no prazo de 15 (quinze) dias, tendo-se comprometido a entregar ao «MC...», no prazo máximo de 30 (trinta) dias a extinção dessa reserva.”
3. Também os pontos 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º da “matéria de facto não provada”, da sentença ora em crise, estão incorrectamente julgados.
“34. - Nas circunstâncias descritas em 2. E... disse ao arguido que eram 10 a 12 as prestações que lhe faltavam pagar.
35. - Na ocasião mencionada em 3. o arguido procurou tirar vantagens patrimoniais, quer para si, quer para a sociedade de que era gerente, as quais sabia não ter direito, à custa do património de terceiros.
36. - Na situação descrita em 8. o arguido referiu a J... e a S... que se encarregaria de registar a propriedade do mencionado veículo a favor daqueles.
37. - O arguido sabia não corresponder a verdade que a documentação respeitante a viatura com a matrícula 00-00-GG se encontrava em fase de regularização junto das Repartições Oficiais.
38. - Na ocasião mencionada em 16. o arguido declarou "nunca ter respondido" pretendeu ocultar ao tribunal os seus antecedentes criminais, faltando deliberadamente a verdade, por si conhecida, procurando tirar vantagens ilegítimas, contribuindo, deste modo, para inviabilizar a realização da justiça.
39. - O arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei.”
4. Uma correcta apreciação da prova produzida em julgamento, deverá conduzir a resultado diverso daquele a que chegou a Exma. Juiz a quo no que toca ao essencial desses factos.
5. As provas que deveriam ter conduzido ao entendimento aqui pugnado pelo Ministério Público são as declarações do arguido A..., do Assistente J... e das testemunhas E... e R..., todas gravadas em suporte digital, no programa Cícero, no decurso das sessões de julgamentos de 19.02.2008 (de 00.00.00 a 01.12.00), (de 01.12.10 a 00.22.22 na sessão de 3.03.2008), (de 00.22.23 a 1.00.31) e na sessão de 25.03.2008 e de 21.04.2008 ( de 00.44.30 a 00.53.36) respectivamente, que aqui se dão como reproduzidos, por si só e interpretadas no seu conjunto com os documentos juntos aos autos.
6. Assim, devem estas provas, agora indicadas, ser renovadas e apreciadas por V. Exas., a fim de averiguarem da bondade do nosso entendimento.
7. Atendendo ao que disse o assistente, disseram as testemunhas supra mencionadas e sobretudo ao que disse o arguido, esclareceram os factos descritos na acusação, deve dar-se como demonstrado todos os factos que constam na acusação pública proferida nos autos a fls. 119 a 122 nos seus pontos 1.º a 18.º, que aqui damos como integralmente reproduzidos.
8. Tais factos, a fazerem parte dos factos dado como provados, impõem necessariamente decisão diversa, ou seja a sustentada pela acusação deduzida nos autos e pela qual o arguido devia ser condenado.
9. Ao ter decidido de forma diversa, violou a sentença a quo o disposto nos artigos 14.º n.º1, 26.º, 202.º a), 217.° n.°1 e 218.° n.°1, do Código Penal e o disposto no artigo 412.º n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal (CPP).
10. Nestes termos, deve a sentença recorrida ser revogada e ser substituída por outra que se dê como provado os pontos 1.º a 18.º da acusação que aqui se dão como reproduzidos e em consequência que se condene o arguido, em autoria material e em concurso real, pelo crime de Burla Qualificada, previsto e punível pelos artigos 202.° alínea a), 217.° n.°1 e 218.°, n.°1, do Código Penal e pelo crime de Falsidade de Depoimento ou Declaração, previsto e punível pelo artigo 359.° n.°1 e n.°2 do Código Penal, de acordo com a gravidade e exigências cautelares de prevenção geral e especial que no caso se impõem, tendo em conta os antecedentes criminais do arguido.
11. Contudo, mesmo que assim não se entenda,
12. Sempre se dirá que se constatam no teor da sentença recorrida algumas contradições entre os factos provados, entre estes e os factos dados como não provados, nos pontos 9.º, 10.º, 12.º, 13.º, 35.º, 36.º e 37.º que aqui se dão como reproduzidos, existindo contradição insanável da fundamentação e da decisão proferida, conjugando-se com as regras da experiência comum, ocorrendo os vícios previstos no artigo 410.º n.º2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
13. Tendo decidido como decidiu, violou a douta sentença recorrida o disposto nos artigos 127.º e 410.º n.º2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
14. E, em consequência, deverá o presente recurso ser julgado procedente, devendo anular-se o julgamento e sentença ora recorrida, ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento, caso não for possível decidir da causa, nos termos do artigo 426.º do Código de Processo Penal.

V.Exas, porém, decidirão conforme for de Direito e Justiça!”
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Admitidos os recursos, o arguido não respondeu apesar de notificado para o efeito.
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Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, louvando-se da argumentação expressa na resposta à motivação e pronunciando-se no sentido de que deve ser dado provimento aos recursos.
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Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (artigos 419.º, n.º4, “a contrario”, e 421.º, n.º1, do mesmo diploma legal na versão anterior à introduzida pela Lei 48/07 de 29.8).

II – FUNDAMENTAÇÃO
Sintetizando são as seguintes as questões a decidir:
- recurso interposto da sentença pelo assistente
- Impugnação da matéria de facto
- erro notório na apreciação da prova,
- insuficiência da matéria de facto para a decisão
- contradição insanável entre a fundamentação e a decisão
- qualificação jurídica dos factos
- pedido de indemnização cível
2 - recurso da sentença pelo MP

- impugnação da matéria de facto

- erro na apreciação da prova.
- vícios previstos no artigo 410.º n.º2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
- Preenchimento do tipo do crime de burla e do tipo de crime de falsidade de depoimento ou declaração.
Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:
- A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos (transcrição):
A - “1. – Em dia não concretamente apurado de Fevereiro ou de Março de 2000, a sociedade «AJ… – Sociedade Unipessoal, Ld.ª», da qual o arguido era à data gerente, comprou a E... o veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, de marca Mitsubishi, modelo L 200, com a matrícula 00-00-GG, por preço não inferior a 2.900.000$00, no contravalor de € 14.465,14, que o arguido lhe entregou, tendo-lhe aquele entregue o livrete e o título de registo de propriedade do veículo e assinado a correspondente declaração de venda, que também lhe entregou.
2. – Na altura da celebração do mencionado negócio, E... disse e deu a conhecer ao arguido que sobre o mencionado veículo incidia o ónus de reserva de propriedade a favor da instituição de crédito «BM..., S.A.», dado que lhe faltavam ainda pagar algumas prestações, em número não apurado, relativas ao empréstimo que contraiu junto daquela instituição para aquisição da viatura, as quais se comprometeu, perante o arguido, a liquidar, bem como se comprometeu a entregar-lhe o documento comprovativo da extinção da reserva de propriedade, no prazo de 15 (quinze) dias, no que o arguido acreditou, mas que E... nunca veio a fazer.
3. – Sabedor dos antecedentes factos, o arguido colocou o identificado veículo à venda nas instalações da sociedade da qual era gerente, que se situavam na Estrada Principal, em Ponte Jardim, na cidade de Alcobaça.
4. – No dia 3 de Março de 2000, J... e sua mulher S..., depois de terem decidido trocar o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de marca Peugeot, modelo 504, com a matrícula UH-00-00, que lhes pertencia a ambos, por um outro veículo, dirigiram-se às instalações da indicada sociedade, local onde encetaram negociações com o arguido, com vista à aquisição da viatura de marca Mitsubishi, modelo L 200, com a matrícula 00-00-GG, convencidos que ficaram que a mesma pertencia à aludida sociedade.
5. – No seguimento das negociações efectuadas, a sociedade de que o arguido era gerente declarou vender, por seu intermédio, o veículo de marca Mitsubishi, modelo L 200, com a matrícula 00-00-GG, tendo J... e S... declarado compra-lho, pelo preço de 2.800.000$00.
6. – J... e S... entregaram ao arguido, como forma de pagamento de parte do preço acordado, o veículo de marca Peugeot, modelo 504, com a matrícula UH-07-75, de valor não concretamente apurado.
7. – Para pagamento do remanescente do preço acordado para a compra da viatura com a matrícula 00-00-GG, J... e S... recorreram ao crédito, tendo celebrado um contrato de mútuo com a sociedade financeira «MC... – Sociedade Financeira para Aquisição a Crédito, S.A.», nos termos do qual, através do contrato de mútuo n.º 786085, esta lhes emprestou a quantia de 2.800.000$00 e entregou esse montante à sociedade da qual o arguido era gerente, obrigando-se os primeiros a pagar tal quantia à referida instituição de crédito em 60 (sessenta) prestações mensais, iguais e sucessivas de 65.209$00, no contravalor de € 325,26, dando, como garantia desse empréstimo, uma livrança em branco que assinaram e constituindo o ónus de reserva de propriedade sobre o dito veículo a favor dessa mesma instituição.
8. – Tendo o arguido referido a J... e a S... que lhes entregaria posteriormente o livrete e o título de registo de propriedade do mesmo, sem nunca lhes referir que sobre essa viatura incidia um ónus de reserva de propriedade.
9. – E tendo o arguido entregue a J... e S... a viatura com a matrícula 00-00-GG, acompanhada da declaração de fls. 10, cujo teor se dá por reproduzido e nos termos da qual se declara que a sociedade da qual o arguido era gerente lhes havia vendido esse veículo.
10. – Essa declaração permitia a J... e S... circular com a viatura com a matrícula 00-00-GG, devendo exibi-la perante as autoridades fiscalizadoras do trânsito e substituía a documentação que, alegadamente, se encontrava em fase de regularização junto das Repartições Oficiais.
11. – O arguido sabia que o veículo com a matrícula 00-00-GG, que detinha, não era pertença da sociedade de que era gerente, dado que impendia sobre o mesmo o ónus de reserva de propriedade a favor do «BM..., S.A.».
12. – Ao agir da forma descrita e também ao entregar-lhes a referida declaração, o arguido pretendeu e conseguiu fazer crer a J... e a S... que quem lhes vendia o veículo com a matrícula 00-00-GG era a sociedade da qual era gerente, livre de ónus e encargos, e que posteriormente lhes enviaria a respectiva documentação, do que estes ficaram convencidos, e, só por isso, aqueles aceitaram comprar-lhe a viatura, pagando-lhe o respectivo preço, mediante recurso ao crédito.
13. – O arguido declarou perante J... e S... vender-lhes a viatura com a matrícula 00-00-GG convicto que E... lhe entregaria a extinção da reserva de propriedade inscrita no registo a favor de «BM..., S.A.» no prazo de 15 (quinze) dias, tendo-se comprometido a entregar ao «MC...», no prazo máximo de 30 (trinta) dias a extinção dessa reserva.
14. – Desta forma, agiu o arguido com intenção de receber para si e para sociedade que representava, o preço correspondente à venda do veículo com a matrícula 00-00-GG.
15. – Sabia o arguido que J... e S... não teriam adquirido a viatura se soubessem que sobre a mesma já incidia uma reserva de propriedade e que não lhes seria entregue toda a documentação legalmente exigível para a sua circulação.
16. – No dia 19 de Janeiro de 2007, pelas 10h30, nos Serviços da Procuradoria da República da Comarca de Alcobaça, o arguido foi interrogado e constituído nessa qualidade.
17. – Quando perguntado acerca da sua identidade e dos seus antecedentes criminais, bem como advertido de que a falta de respostas ou a falsidade das mesmas o faria incorrer em responsabilidade penal, o arguido respondeu nunca ter estado preso.
18. – O arguido havia sido condenado por sentença proferida no dia 21 de Novembro de 2005, transitada em 6 de Dezembro de 2005 e proferida no processo comum singular n.º 278/92.5TAPMS, do 2.º Juízo, do Tribunal Judicial de Porto de Mós, na pena de 150 (cento e cinquenta( dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros), pela prática, em 1 de Março de 2002, de um crime de falsificação de documento, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, por despacho de 10-11-2006.
19. – Durante os meses que se seguiram à celebração do contrato descrito em 7., J... e S... pagaram a «MC... – Sociedade Financeira para Aquisição a Crédito, S.A.» 16 (dezasseis) das 60 (sessenta) prestações respeitantes ao aludido empréstimo, correspondentes ao valor global de € 5.204,16.
20. – Preocupados com o facto de o arguido não lhe entregar a documentação referida em 8., J... contactou-o e deslocou-se às instalações da sociedade da qual aquele era gerente, para junto dele saber porque motivo os documentos não lhe eram entregues.
21. – No início dessas abordagens, o arguido justificava-se dizendo que tal demora era natural e que deveriam aguardar.
22. – Posteriormente e após instado por J... para que procedesse à entrega dos documentos em falta, o arguido passou a afirmar que quem detinha os ditos documentos era a sociedade financeira «MC... – Sociedade Financeira para Aquisição a Crédito, S.A.».
23. – Tendo, a partir de determinada altura, o arguido deixado de aparecer quando J... se deslocava às instalações da sociedade da qual o primeiro era gerente, bem como de lhe atender as chamadas telefónicas.
24. – Uma vez que não dispunham dos documentos do veículo automóvel, os demandantes não o puderam levar à inspecção periódica, encontrando-se impedidos de circular com o mesmo, o qual permanece imobilizado na sua garagem desde mês não apurado de 2002.
25. – Só em data posterior a 04-01-2005 é que J... e S... tiveram conhecimento que a propriedade do veículo 00-00-GG não se encontrava inscrita no registo a seu favor, mas sim na titularidade de E..., com reserva a favor de «BM..., S.A.» e inscrição de uma penhora em que o sujeito passivo é E....
26. – Na sequência de terem ficado privados do veículo de marca Peugeot, modelo 504, com a matrícula UH-00-00 e de não poderem circular com a viatura com a matrícula 00-00-GG, J... e S... ficaram sem qualquer outro automóvel para poderem circular, tendo que se deslocar a pé ou de transportes públicos, pelo que sentem dor, tristeza e incómodo.
27. – J... e S... sentem dor e tristeza por não poderem passear com os seus filhos nos seus tempos livres, designadamente, durante os fins-de-semana, como era hábito fazerem no passado, saindo apenas quando vizinhos ou amigos os convidam para passear.
- Provou-se ainda que:
28. – Além da condenação referida em 17., o arguido não tem outros antecedentes criminais.
29. – O arguido reside em França desde data não apurada, é pedreiro e aufere uma remuneração mensal de cerca de € 1.600,00.
30. – O arguido vive em casa arrendada com a sua esposa e um filho do casal com 9 anos de idade.
31. – A esposa do arguido é doméstica e o filho menor do casal encontra-se a estudar.
32. – O arguido suporta as despesas quotidianas do seu agregado familiar relacionadas com alimentação, consumos de água, de electricidade e de gás, bem como paga a renda mensal no montante de € 860,00 e tem a seu cargo as prestações mensais no valor de € 800,00, relativas ao empréstimo bancário que contraiu para aquisição de habitação própria em Portugal, as quais não vem pagando.
33. – O arguido estudou até à 4.ª classe.
*
B) Considerou não provados os seguintes factos (transcrição):
34. – Nas circunstâncias descritas em 2. E... disse ao arguido que eram 10 a 12 as prestações que lhe faltavam pagar.
35. – Na ocasião mencionada em 3. o arguido procurou tirar vantagens patrimoniais, quer para si, quer para a sociedade de que era gerente, às quais sabia não ter direito, à custa do património de terceiros.
36. – Na situação descrita em 8. o arguido referiu a J... e a S... que se encarregaria de registar a propriedade do mencionado veículo a favor daqueles.
37. – O arguido sabia não corresponder à verdade que a documentação respeitante à viatura com a matrícula 00-00-GG se encontrava em fase de regularização junto das Repartições Oficiais.
38. – Na ocasião mencionada em 16. o arguido declarou “nunca ter respondido” e pretendeu ocultar ao tribunal os seus antecedentes criminais, faltando deliberadamente à verdade, por si conhecida, procurando tirar vantagens ilegítimas, contribuindo, deste modo, para inviabilizar a realização da justiça.
39. – O arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei.
40. – O mencionado veículo de marca Peugeot, modelo 504, com a matrícula UH-00-00, tinha à data o valor de 400.000$00.
41. – Para pagamento do preço da venda do veículo com a matrícula 00-00-GG o arguido entregou a E... um veículo de marca “Wolkswagen Golf” no valor de 1.000.000$00, à altura, juntamente com os dois cheques no valor de 500.000$00 juntos a fls. 243 e 244.”
C) E dela consta a seguinte motivação de facto (transcrição):
“ (…).
Antes do mais, impõe-se clarificar que não cumpre reproduzir o integral conteúdo das declarações e dos depoimentos produzidos no decurso do julgamento, os quais se mostram documentados, mas tão só expor as razões subjacentes à convicção do tribunal.
Posto isto, cumpre explicar que os factos provados e os factos não provados derivaram da ponderação conjugada e critica das declarações do arguido, das do assistente/ demandante J... e das da demandante S..., da valoração dos depoimentos das testemunhas E..., B..., M..., F..., C..., D..., G... e R... e da análise dos documentos apresentados nos autos, tudo cotejado nos moldes que se deixarão de seguida particularizados e também mediante recurso às regras da experiência comum.
Antes do mais, o arguido confessou a matéria que vem vertida sob 1., excepto no que se refere ao preço pelo qual adquiriu a viatura, bem como confessou a factualidade que vem vertida de 3. a 10., em 14. e 15..
A matéria não confessada vertida sob 1., 11. e 12., bem como a que se provou sob 13., resultou da motivação que ficará infra particularizada.
O arguido negou ter tido conhecimento da existência de prestações em dívida por parte de E... ao «BM...» antes da venda da viatura aos demandantes.
Essa versão dos factos apresentada pelo arguido veio a ser infirmada pela testemunha E..., conforme se deixará particularizado, e também pelo teor do documento constante de fls. 446, junto pelo próprio arguido e no qual declara, em 06-03-2000, comprometer-se a enviar a extinção de reserva, o que evidencia que, quando solicitou os financiamento para os demandantes, teria necessariamente que saber da existência da reserva de propriedade, caso contrário, não se comprometeria a enviar a sua extinção num determinado prazo.
Atento o desinteresse e espontaneidade que revestiu o depoimento da testemunha E..., cuja isenção se destacou, pois, não se relacionando já com o arguido, veio afirmar tanto factos que o favorecem como factualidade que lhe é desfavorável, convenceu o mesmo o tribunal de que, quando declarou vender a viatura em causa, comunicou efectivamente ao arguido a existência de prestações em dívida ao «BM...» e a inscrição de reserva de propriedade a favor daquela instituição de crédito.
Acresce que a testemunha explicou, de modo coerente e detalhado, que encetou esforços e realizou diligências junto da instituição de crédito em questão (especificando quais), conjuntamente com o arguido, com vista a liquidar as prestações em dívida, o que não conseguiu por o seu valor ser muito superior àquele que perspectivou e com o qual havia contado, bem como por a situação ter já seguido via litigiosa, não tendo, em consequência, entregue ao arguido a extinção da reserva, conforme se havia comprometido, mas que a situação está actualmente regularizada, pois já pagou a quantia que devia. Explicitou ainda que o arguido ficou com a viatura no pressuposto de a testemunha diligenciar pela extinção da reserva e que ficou preocupado com a circunstância de a testemunha não ter conseguido solucionar a situação das prestações em dívida, tendo feito quanto estava ao seu alcance para regularizar essa mesma situação, o que a instituição de crédito inviabilizou.
Esta testemunha confirmou de modo espontâneo e convicto que, quando declarou vender o veículo ao arguido, lhe assegurou que lhe entregaria a extinção da reserva no prazo de 15 dias, confirmou que o arguido lhe pagou o preço da viatura e corroborou ainda, de forma convincente, qual o preço pelo qual a declarou vender ao arguido, mas não conseguiu precisar com rigor bastante se os cheques juntos aos autos se destinaram ao seu pagamento ou ao do preço de outros veículos que vendeu ao arguido ou de serviços de reparação prestados, nem qual a exacta identificação da viatura que lhe foi entregue pelo arguido como forma de pagamento de parte do preço ou o valor da mesma (que se limitou a admitir como possível), o que o arguido também não explicitou.
Da análise da descrita prova e não tendo nenhuma outra das pessoas inquiridas em julgamento presenciado ou participado nas negociações e conversações encetadas entre o arguido e a testemunha E..., o tribunal considerou como provado que o arguido agiu convicto que essa testemunha pagaria o remanescente das prestações em dívida ao «BM...» e lhe entregaria a extinção de reserva de propriedade, tendo sido movido por esse pressuposto quando declarou vender o veículo aos demandantes.
Como se sabe, a situação de serem objecto de venda veículos com reservas de propriedade vigentes trata-se de prática que integra os usos do comércio de viaturas automóveis, independentemente da correcção ou licitude que lhes está ou não subjacente.
Assim, verifica-se, em face da prova produzida neste segmento, que o intuito do arguido foi apenas o de assegurar a venda da viatura, o que fazia profissionalmente, com vista a receber o preço correspondente e que lhe era devido, convicto que entregaria aos demandantes a documentação necessária à circulação da viatura.
A matéria que vem provada de 19. a 27. derivou da credibilidade concedida às declarações dos demandantes J... e S..., bem como aos depoimentos das testemunhas B... (amigo de infância do assistente), M... (vizinho e primo do assistente), F... (amigo e ex-colega de trabalho do assistente), C... (primo do assistente), D... (amigo de infância do assistente) e G... (filho do assistente), as quais corroboraram de modo contextualizado, isento e concordante no essencial esse factualismo (com algumas divergências de pormenor que se explicam pelo tempo decorrido sobre os factos e a necessariamente diversa perspectiva que cada pessoa tem sobre os contornos de uma mesma realidade fáctica e a distinta intervenção que tiveram nos factos), revelando possuir concreto conhecimento sobre esta matéria, o qual lhes adveio das relações de amizade e de parentesco mantidas com os demandantes, que não invalidaram, contudo, a imparcialidade dos depoimentos das testemunhas.
Foi ainda valorado o teor dos documentos que constam de fls. 9 a 16, 26, 27, 46 a 48 verso, 105 a 109, 154, 246, 305 a 317 e 319 a 322.
Os documentos de fls. 318, de fls. 330 a 333 e de fls. 339 não contendem com a prova de qualquer factualidade que tenha sido objecto de alegação no pedido de indemnização civil dos demandantes, pelo que não foram considerados.
Para demonstração do antecedente criminal do arguido, evidenciado em 18., tomou-se em atenção o seu Certificado do Registo Criminal constante de fls. 328 e 329.
Com relação às condições pessoais e à situação sócio-económica do arguido, provadas de 28. a 33., foram valoradas as declarações do próprio, as quais se mostraram plausíveis quanto a esta matéria, merecendo acolhimento.
No que tange à factualidade descrita sob 16. a 18. e a que se não provou sob 37. a 39., resultou a mesma do confronto efectuado entre as declarações do arguido, com o teor dos documentos de fls. 72 e 73, de fls. 115 a 117, de fls. 189 a 203 e de fls. 328 e 329, bem como com o depoimento da testemunha R..., o qual é Oficial de Justiça, a exercer funções nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Alcobaça e procedeu, nessa qualidade, à constituição e interrogatório do arguido.
Não obstante a testemunha R... ter afirmado, de modo sincero e isento, que exerce as suas funções há cerca de 25 anos e que explica a todas as pessoas que inquire quais as consequências advenientes da falta de resposta ou da mentira sobre os seus antecedentes criminais, bem como lhes dá a ler o teor das suas declarações, não se recordando, contudo e em concreto, do arguido, também se afiguraram coerentes e críveis as declarações deste último quando afirmou que apenas respondeu negativamente quanto à circunstância de ter estado ou não preso, por ter somente entendido e retido ter-lhe sido perguntado se alguma vez havia estado preso e ter assinado as suas declarações sem as ler.
Sabe-se também que, no decurso de um acto com a natureza de interrogatório, o interrogado se encontrará, por norma, numa situação de tensão e nervosismo, sendo plausível que no acto da sua leitura possa não apreender todo o seu integral teor e as repercussões do mesmo advenientes. Os enunciados factores são idóneos a perturbar a inteligibilidade do conteúdo das declarações em causa e a sua integral compreensão pelo declarante quando são lidas.
Razão pela qual, por norma, se recorre aos serviços de profissional com particulares conhecimentos técnico-jurídicos que permitam o aconselhamento necessário e a correcta interpretação do acto, o que não sucedeu in casu.
Da conjugação dos enunciados meios de prova resulta uma dúvida objectiva relativa à correspondência entre as declarações que o arguido pretendeu prestar e prestou efectivamente perante Oficial de Justiça e aquelas que vieram a ficar exaradas na acta que materializa o acto no qual interveio, isto é, suscita-se uma dúvida relativamente à circunstância de o arguido ter faltado à verdade quanto aos seus antecedentes criminais, de o ter feito de modo deliberado e consciente e com o intuito de prejudicar a boa administração da justiça.
A relatada dúvida não pode ser superada, por inexistirem meios de prova idóneos à sua remoção, devendo ser valorada a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo, considerando-se, em consequência, como não provados os indicados factos.
No que concerne aos demais factos não provados (de 34. a 41.), a convicção do tribunal fundou-se na ausência de prova bastante que corroborasse a sua verificação, designadamente por nem o arguido, nem os demandantes, nem nenhuma das testemunhas inquiridas ter afirmado com convicção, segurança e rigor a sua verificação e também com base na motivação já antecedentemente expressa relativamente aos factos que ficaram provados sob 1., 2. e 13., cuja fundamentação tem nesta parte integral valia e infirma a demonstração dos factos vertidos sob 35. a 37. e 39., bem como devido à ausência de prova documental que demonstre o factualismo enunciado sob 40. e 41., no que tange ao valor da viatura UH-07-75 e ao modo de pagamento do preço da viatura 00-00-GG.”
*
Apreciando
Da impugnação da Matéria de facto
A sindicância da matéria de facto pode ser efectuada no âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., designada por “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
Na primeira hipótese trata-se da arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação tem que processar-se no âmbito da decisão recorrida, com resultado fundado no respectivo texto, conjugada com as regras da experiência comum, pelo que não é admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, nomeadamente a quaisquer dados existentes nos autos, ainda que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
Na segunda hipótese, a apreciação ultrapassa o texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova - documentada - produzida em audiência, mas sempre observando os limites especificados pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P.Penal, ainda que com a faculdade indicada no nº 6 do referido preceito legal.
O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, ocorrem respectivamente quando:
1 – o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
2 - os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - (artº 410º nº 2 a) CPP)
3- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.”
A matéria de prova em processo penal é regida pelo princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º, do C. Processo Penal, de acordo com o qual, salvo disposição da lei em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
Livre convicção do julgador que não é sinónimo de arbítrio ou decisão irracional “puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação” (Prof. Castanheira Neves, citado por Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 4ª Ed., 85).

Pelo contrário, exige-se uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, mas também nas da lógica e da ciência, e tudo para que dela resulte uma convicção do julgador objectivável e motivável, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.

Reportando-nos à audição dos depoimentos e à fundamentação da matéria de facto impõe-se concluir que o juiz a quo elegeu como provados e não provados os factos que seleccionou com base na valoração da prova a que conferiu credibilidade, fundamentando por forma bastante os motivos determinantes para o seu convencimento.

Entende este Tribunal de Recurso que a valoração efectuada encontra arrimo na prova produzida, não sendo de todo objectivamente censurável que tenha deixado convencer por esta e não por aquela prova, por este e não por aquele depoimento.

A - É certo que a redacção do ponto 5 da matéria de facto provada carece de ajustamento ao que resulta de toda a prova produzida – arguido e assistente confirmam a entrega do peougeot 504 e documento de fls 22 – pelo que, corrigindo o mero lapso, se lhe acrescenta “… em dinheiro, acrescido da entrega do veículo Peugeot 504 matrícula UH-00-00.” Aliás não podemos deixar de assinalar que também o assistente na sua acusação de fls 138 a 153 nos arts 8º a 10º define o preço como sendo 2.800.000$00 (8) e afirma que como forma de pagamento do preço acordado para aquisição 00-00-GG entregou o veículo Peugeot 504 (9) e que a financeira M… Sa emprestou a quantia de 2.800.000$00 e adiantou à sociedade da qual o arguido era o sócio gerente ( 10ª).

Torna-se evidente que apenas ocorreu uma deficiente forma de descrição da realidade factica – quer do assistente na acusação que deduziu, quer o tribunal a quo na redacção dos pontos 5, 6 e 7. O que resultou provado e se percebe da descrição dos factos vertida nos pontos de facto impugnados é que o preço acordado foi de 2.800.000$00 acrescido do Peogeot 504 que o assistente entregou ao stand, “à troca”como usa dizer-se. O que está de acordo com o que o próprio assistente alega na sua acusação.

Não há pois qualquer contradição.

B - Passemos à alegada contradição entre os factos provados dos pontos 8, 9, 11, 12 e 15 e o facto não provado do ponto 39.

Em resumo o que resultou provado foi que a sociedade de que o arguido era o único sócio gerente - e cuja assinatura a obrigava ( certidão de fls 106 a 109) – vendeu ao assistente e mulher o veículo GG sobre o qual havia registada uma reserva de propriedade a favor do BM..., facto que o arguido naquela qualidade sempre omitiu.

Conjugando estes factos com os restantes factos provados, como incumbe ao tribunal a quo, nomeadamente com os factos provados nos pontos 13 e 14, outra não podia ser a decisão se não a de considerar não provado o facto descrito no nº 39. Ou seja, concluindo-se que o arguido actuou no convencimento de que E... lhe entregaria a extinção da reserva de propriedade no prazo de quinze dias, que aliás se comprometeu a entregar ao BM… – financiadora do assistente – no prazo máximo de quinze dias, não podia ser outro o resultado da avaliação da prova, que impunha se desse como não provados os factos que integradores do elemento subjectivo do tipo legal de burla.

Não pode deixar de ponderar-se que no contrato de concessão de crédito ao consumo, a aposição da cláusula de reserva de propriedade sobre o bem alienado visa assegurar à alienante a propriedade sobre a coisa, para a hipótese do adquirente não vir a cumprir as obrigações assumidas, considerando-se o negócio realizado sob a condição suspensiva da integral satisfação daquelas.

Nesta situação, existe, relativamente ao comprador, uma expectativa jurídica quanto à aquisição da propriedade sobre o veículo, através do preenchimento da dita condição suspensiva, com a extinção e o cancelamento do ónus de reserva de propriedade e a correspectiva transferência da titularidade sobre este bem sujeito a registo.

Repare-se que na motivação a juiz a quo explicita esta avaliação salientando que “… o arguido entregou efectivamente a viatura aos demandantes, que continuam a tê-la na sua posse, e que celebrou o negócio no pressuposto e convencido que seria extinta a reserva de propriedade, o que lhe foi assegurado pelo anterior adquirente do veículo.”
E registou ainda que “Da análise da descrita prova e não tendo nenhuma outra das pessoas inquiridas em julgamento presenciado ou participado nas negociações e conversações encetadas entre o arguido e a testemunha E..., o tribunal considerou como provado que o arguido agiu convicto que essa testemunha pagaria o remanescente das prestações em dívida ao «BM...» e lhe entregaria a extinção de reserva de propriedade, tendo sido movido por esse pressuposto quando declarou vender o veículo aos demandantes.
Como se sabe, a situação de serem objecto de venda veículos com reservas de propriedade vigentes trata-se de prática que integra os usos do comércio de viaturas automóveis, independentemente da correcção ou licitude que lhes está ou não subjacente.”
Se tivesse sido cumprido pelo E... a mencionada condição suspensiva – o pagamento das prestações em falta e respectivos encargos – operava-se de imediato a transmissão da propriedade, independentemente da vontade do vendedor reservatário.
Eliminado estaria o obstáculo que o arguido omitiu aos assistentes. E que vem sendo prática habitual neste sector negocial.

Conforme resulta do depoimento de E..., - que o tribunal a quo reputou como isento, desinteressado, coerente e espontaneo, foram realizadas diligências junto da instituição de crédito em questão para liquidação das prestações em dívida, objectivo que não foi alcançado “por o seu valor ser muito superior àquele que perspectivou e com o qual havia contado, bem como por a situação ter já seguido via litigiosa, não tendo, em consequência, entregue ao arguido a extinção da reserva, conforme se havia comprometido, mas que a situação está actualmente regularizada”.

Não resulta expresso na prova produzida – a cuja audição este tribunal procedeu - qualquer sinal de que entre o arguido e a testemunha Eurico pudesse ter havido um conluio prévio à transacção com o assistente no sentido de articularem factos que dissimulassem uma qualquerr intenção criminosa, assim como não resulta que se tivessem mancomunado após a venda no sentido de conjugarem esforços para produção de prova de factos que inocentassem o arguido.

É certo que a ilustre advogada do assistente pretendeu inculcar no tribunal a quo uma suspeita de possível entendimento entre aqueles intervenientes processuais, afirmando que haviam conversado no átrio do tribunal. Foi-lhe de imediato lembrado pela Juiza a quo – sempre muito delicada e correcta na condução dos trabalhos - que a prova dos factos obedece a regras e que não detinha a qualidade de testemunha.

De todo o modo, uma conversa no átrio do tribunal, à frente de todos os que ali se encontravam, não justifica tal ilacção, de forma que não havendo qualquer prova nesse sentido, seria arbitrário e nessa medida extremamente perigoso presumir que entre aquelas pessoas, sendo embora amigas, teria havido uma combinação para prejudicar os assistentes, tanto mais que o arguido pagou o GG ao E... – (ponto nº 1 dos factos provados).

Ora, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum Ac. da Relação de Coimbra de 06/03/2002, CJ, ano XXVII, Tomo II, pág. 44.. O que não sucede.

Com efeito, a decisão é no geral consentânea com critérios de normalidade, de senso e experiência comuns.

Assim, também neste segmento da impugnação não tem razão o recorrente/assistente.

C – É certo que o arguido afirma e reafirma que pagou ao E… pelo GG a quantia de 1.500 contos ou 1.600 contos. E declara também que não pagou logo o preço total, pois reservou o pagamento do restante para quando recebesse a declaração de extinção de reserva. E acrescentou que só veio a pagar os 700 contos em falta, pensa que em Junho de 2001, ou seja um ano e tal depois da transacção, tendo explicado ao tribunal a razão da data do pagamento sem a extinção da reserva, como uma forma de ajudar o Eurico a solucionar o problema.

O depoimento da testemunha E… foi considerado credível quanto a este ponto, ao contrário das declarações do arguido, - avaliação do tribunal a quo que não merece censura, -pois o arguido foi mais reticente, como se receasse que a obtenção de um lucro mais elevado o pudesse prejudicar. O que, diga-se, em tal contexto pouco releva, sendo aceitável neste sector de negócio um lucro elevado.

Assim começou por dizer que pagou ao E... pelo veículo 1.500 ou 1.600 contos, depois acrescentou-lhe o remanescente de 700 contos e acabou por afirmar que ainda lhe entregou um Golf no valor de 1000 contos juntamente com os dois cheques no valor de 500.000$00 juntos a fls. 243 e 244.

O testemunha E… disse não ter a certeza se tais cheques se reportavam a esta transacção ou a outras, pois haviam feito vários megócios.

Concluindo: a matéria provada no ponto 1 não merece reparo.

D – No que respeita ao ponto 5 – cuja redacção supra se alterou - para além do que acima se deixou assinalado quanto ao acordado preço do veículo, resta apenas acrescentar que não consta dos autos qualquer avaliação do Peugeot 504 e concorda-se com o tribunal a quo quando não concede credibilidade ao valor adiantado pelos assistentes que afirmam ter sido avaliado em 400 contos. O arguido ao contrário declara que o GG fora avaliado em 100 contos, o que também suscita dúvidas pois recairá sobre ele o pagamento da eventual indemnização a que os assistentes terão direito, pelo que não há elementos seguros nos autos para dar como provado que o GG valia 100 contos como pretende o arguido ou 400 contos como pretendem os assistentes.

Afinal o que estes pretendem é tão somente substituir a apreciação da prova efectuada pela juiz a quo de forma isenta e imparcial, pela sua obviamente valorada com critérios interessados, dado até o pedido cível deduzido. De tal forma assim é que termina este ponto da motivação afirmando “Ora, analisando as declarações do ora Recorrente conjugadas com o depoimento da Demandante Cível não há dúvida que a matéria dada como provada não se encontra correctamente fixada pelo Tribunal a quo.
Não há igualmente motivo para censurar a decisão do tribunal a quo neste ponto.

E – a redacção do ponto 14 não afasta a intenção lucrativa do arguido ( e da sociedade de que era o unico sócio gerente ) já que o preço inclui obviamente o lucro. O facto de não ter resultado provado que o Peogeot fora avaliado em 400 contos não obsta a que o arguido o tenha vendido por preço superior a 400, 500 ou 600 contos – ou seja que tenha obtido lucro. O lucro não resulta necessáriamente da diferença de valor entre o valor pago e o valor vendido ( que pode até ser inferior ), já que ambas as transacções incluiram veículos à troca.

Pretende o recorrente que a prova da intenção de obtenção do lucro traduz o intuito de enriquecimento ilegítimo do arguido à custa do património do recorrente e mulher.

Mas não é necessáriamente assim, sob pena de todos os casos de incumprimento ou violação contratual transitarem da jurisdição cível para a criminal.

E não foi o que ocorreu no caso presente. O arguido declarou mesmo que negociava neste ramo há 15/20 anos e que vendia viaturas para ganhar dinheiro. Obviamente que cumpriu a sua prestação entregando ao assistente uma viatura que à data valia cerca de 2.800 contos, conforme resulta do depoimento do E....

Não fora a não extinção da reserva – pelos motivos reportados em 2 dos factos provados - e o negócio era justo para ambas as partes.

Ao contrário do que o recorrente afirma na parte final do nº 3 da motivação, o Tribunal a quo ponderou e considerou as práticas abusivas e censuráveis do comércio da compra e venda dos automóveis, conforme registo na discussão juridica que em parte se transcreve:

“Perante os factos apurados, evidencia-se, antes do mais, que os mesmos concretizam inequivocamente uma situação de engano, criada pelo arguido e provocada por via omissiva, na medida em que ocultou dos demandantes a existência de uma reserva de propriedade a onerar a viatura que lhes declarou vender, o que os determinou a celebrar o descrito contrato, por a sua vontade se encontrar inquinada por via desse erro, consubstanciado no desconhecimento da aludida realidade (reserva de propriedade a favor de terceiro).
Por outro lado, a circunstância de o arguido ter omitido a existência da reserva, consubstanciando uma situação de engano perante os demandantes, não comporta a elaboração de um plano previa ou posteriormente delineado e trata-se de uma prática comercial instituída no ramo automóvel.”.

Improcede também neste ponto a impugnação do recorrente, entendendo-se os pontos de facto correctamente julgados pelo tribunal a quo.

Não há contradição insanável da fundamentação nem erro notório da apreciação da prova.
Para que exista contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão é necessário que, analisando a matéria de facto provada e não provada, por si só ou no confronto com a fundamentação, se chegue a conclusões inconciliáveis, porque logicamente exclusivas. Como refere o Supremo Tribunal de Justiça, «a contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente, ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito. A contradição e a não conciliabilidade têm, pois, de se referir aos factos, entre si ou enquanto fundamentos, mas não a uma qualquer disfunção ou distonia que se situe unicamente no plano da argumentação ou da compreensão adjuvante ou adjacente dos factos» Ac. do STJ de 3/10/2007, Pº07P1779, relator Henriques Gaspar, ww.dgsi.pt..
Percorrendo o texto da decisão, não se encontra qualquer contradição, concluindo-se antes por decisão adequadamente fundamentada e sem inconsistências lógicas, pelo que improcede de forma manifesta o apontado vício.

O erro notório na apreciação da prova é o erro grosseiro que não escapa a um observador médio. Existe tal vício quando se dão provados, factos que, face às regras da experiência comum e à lógica do homem médio, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova, refere o Prof. Marques da Silva que «é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.» [Curso de Processo Penal, Vol. III pp. 341 e 342. Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas nem a juízos presuntivos – cfr Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil, Anotado», vol. III, pp. 259 e ss., Castro Mendes, «Do Conceito de Prova», pp. 711 e ss. e Vaz Serra, Provas», no BMJ 110, pp. 61 e ss.
No caso concreto, porém, nenhum erro transparece do texto da decisão recorrida, quer por si só, quer conjugada com as regras da experiência comum, nem se vislumbra o desrespeito por prova legalmente vinculativa ou tarifada que tivesse sido desprezada, ou não investigada pelo tribunal recorrido.
Além do mais, motivação expressa pelo Tribunal “a quo” é suficiente para habilitar os sujeitos processuais, bem como o Tribunal de recurso, a concluir que as provas a que o Tribunal “a quo” atendeu são todas permitidas por lei de acordo com o preceituado no art. 355º, do CPP, e que a Juíza a quo seguiu um processo lógico e racional na formação da sua convicção, desta não resultando uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou claramente violadora das regras experiência comum na apreciação da prova.
A apreciação crítica das declarações e depoimentos indicados no recurso em apoio da modificação pretendida claramente revela que não correspondem a contributos probatórios com a necessária garantia de isenção e ausência de paixão, nem assumem o significado que o recorrente lhe atribui. Antes se nos afigura que a decisão recorrida emerge como válida e razoável, face aos princípios probatórios e a experiência comum, e também porque respaldada em elementos de avaliação que só a imediação permite, inacessíveis em recurso.

RECURSO DO MP
O erro na apreciação da prova é o erro sobre a admissibilidade e valoração do meios de prova - Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Código do Processo Civil, Lex, 1197, pág. 438.
No controle do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, quando o recorrente impugna a matéria de facto nos termos do art. 412º, nº 3, do CPP, o Tribunal de recurso procede ao reexame de facto, nos pontos especificados pelo recorrente que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, especificadas pelo recorrente, e com base nas quais assenta a sua discordância (art. 412º, nº 3, als. a) e b), do CPP).
Quando o julgador da 1ª instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, porque a opção tomada se funda na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a deverá censurar quando for feita a demonstração de que a opção tomada viola as regras da experiência comum – Ac Rel Coimbra de 11-02-2009.

Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
Assim sendo, pelas razões expendidas a propósito do recurso interposto pelo assistente, mantemos a conlusão de que o Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada e não provada, enumerando os elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, com critérios lógicos e objectivos, e alicerçada nos elementos de prova obtidos em audiência, bem como nos documentos juntos aos autos e invocados na motivação da matéria de facto, encontrando-se a matéria de facto fixada de acordo com um raciocínio lógico e coerente.
Afinal o MP impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecido da regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127º”.
Os factos vertidos no ponto 2 – in fine – que o assistente não impugnou - resultam da conjugação das declarações do arguido com o depoimento da testemunha E..., o que é confirmado pela referência á entrega da extinção de reserva no prazo máximo de 30 dias constante do pedido de autorização de financiamento sem documentos a fls 246, datada de 6-3-2000.
Finalmente, no que respeita à factualidade provada descrita nos pontos 16. a 18. e à não provada sob os nºs 37. a 39., o tribunal a quo refere na fundamentação que resultou do confronto efectuado entre as declarações do arguido, com o teor dos documentos de fls. 72 e 73, de fls. 115 a 117, de fls. 189 a 203 e de fls. 328 e 329, bem como com o depoimento da testemunha R..., Oficial de Justiça, a exercer funções nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Alcobaça e procedeu, nessa qualidade, à constituição e interrogatório do arguido.
R... afirmou em depoimento reputado pelo tribunal a quo como sincero e isento, que exerce as suas funções há cerca de 25 anos e que explica a todas as pessoas que inquire quais as consequências da falta de resposta ou da mentira sobre os seus antecedentes criminais, bem como lhes dá a ler o teor das suas declarações. Porém declarou que não se recordava do seu procedimento em concreto no caso do arguido.
A justificação do arguido, afirmando que apenas respondeu negativamente quanto à circunstância de ter estado ou não preso, por ter somente entendido e retido ter-lhe sido perguntado se alguma vez havia estado preso e ter assinado as suas declarações sem as ler, foram consideradas credíveis pelo tribunal a quo e não se alcançam razões para infirmar esta valoração, sendo que para além do mais sempre seria de fazer funcionar o princípio do in dubio pro reo.
É do senso comum que, tal como o tribunal recorrido argumenta, por norma, durante um interrogatório em processo criminal o interrogado sofre de tensão e nervosismo, que lhe perturbam a concentração, o discernimento e a compreensão de tal forma que normalmente lê mal ou nem lê, limitando-se a olhar para a acta e a assiná-la, o que inviabiliza a apreensão do seu integral teor e as repercussõesque daí lhe advêm. O que aconselha o recurso aos serviços de um advogado que proceda ao aconselhamento necessário e a correcta interpretação do acto, o que não sucedeu in casu.
O que legitima a dúvida objectiva da juíza a quo resultante da conjugação dos enunciados meios de prova relativa à correspondência entre as declarações que o arguido pretendeu prestar e prestou efectivamente perante oficial de justiça e aquelas que vieram a ficar exaradas na acta que materializa o acto no qual interveio, relativamente à circunstância de o arguido ter faltado à verdade quanto aos seus antecedentes criminais, de o ter feito de modo deliberado e consciente e com o intuito de prejudicar a boa administração da justiça.
O princípio in dubio pro reo constitui manifestação da presunção de inocência e representa a outra face do princípio da livre apreciação da prova (artº 127º do CPP). Constitui um limite normativo deste princípio, determinando que perante uma dúvida positiva e racional que impeça um juízo de certeza condenatória, que não exclua a possibilidade de as coisas se passarem num dado sentido mas não afaste a consistente hipótese do contrário, deve esse non liquet ser ultrapassado em favor do arguido – Ac STJ de 11-07-2007.

A relatada dúvida não pode ser superada, por inexistirem meios de prova idóneos à sua remoção – a testemunha R...não se recorda do concreto procedimento adoptado com o arguido - devendo ser valorada a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo, considerando-se, em consequência, como não provados os indicados factos, ao meos referentes à intenção que presidiu à declaração.

Acresce que o arguido apenas regista uma condenação pelo crime de fafsificação, por factos derivados da acção de divórcio e da divisão de bens do casal, como consta da sentença a fls 191 a 345 e do CRC a fls 329.
Afasta-se, assim, a violação de regras de valoração probatória, a contradição insanável da fundamentação, e o erro notório na apreciação da prova.

ENQUADRAMENTO JURIDICO-Penal
Dispõe o Artigo 217.º, do Código Penal:
“1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
Como vem sendo realçado na jurisprudência e na doutrina, o crime de burla:
- é um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da esfera de disponibilidade fáctica do sujeito passivo ou da vítima [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, 1999, pág. 276, em comentário da autoria de A. M. Almeida Costa];
- é um crime com participação da vítima, ou seja, um delito em que a saída dos valores da esfera de disponibilidade de facto do titular legítimo decorre, em último termo, de um comportamento do sujeito passivo [Maria Fernanda Palma/Rui Carlos Pereira, “O crime de burla no Código Penal de 1982-95”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV (1994), p. 321 e ss.];
- o bem jurídico protegido pela norma é o património globalmente considerado.
Os elementos do respectivo tipo objectivos são:
- o emprego de “astúcia” pelo agente;
- a verificação de “erro ou engano” da vítima devido ao emprego da “astúcia”;
- a comprovação da “prática de actos” pela vítima em consequência do “erro ou engano” em que foi induzida; e
- a existência de “prejuízo patrimonial” da vítima ou de terceiro, resultante da “prática dos [referidos] actos”.
Assim, segundo alguma doutrina, em sede de imputação objectiva do evento à conduta do agente o crime de Burla comporta um “triplo nexo de causalidade” [Maria Fernanda Palma/Rui Pereira, antes cit.]; ou pelo menos, segundo outros, um “duplo nexo de causalidade” — entre a astúcia e o aparecimento, na vítima, de um estado de erro ou engano, e entre esse estado de erro ou engano e a prática, pela vítima, de actos lesivos do património [Beleza dos Santos in “A burla prevista no artigo 451.º do Código Penal e a fraude punida pelo artigo 456.º do mesmo Código”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 76, pág. 291 a 325 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-04-2008 (Conselheiro Souto de Moura), processo 06P3057, http://www.dgsi.pt/jstj, acedido em Fevereiro de 2009]. Ac Rel Porto de 25 de Março de 2009.
São elementos do tipo subjectivo:
- a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo, para si ou para terceiro;
- e a intenção de causar um prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, em qualquer uma das suas modalidades previstas (artigo 14.º, do Código Penal).
Sobre a conformação material dos elementos objectivos do tipo legal de burla remetemos os recorrentes para os fundamentos juridicos da bem elaborada sentença recorrida.
Como vem referido na sentença recorrida, a burla representa um crime de resultado parcial ou cortado (…), caracterizando-se por uma “descontinuidade” ou “falta de congruência” entre os correspondentes tipos subjectivo e objectivo (…). Embora se exija, no âmbito do primeiro, que o agente actue com a intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (=dano) da vítima (…).” (A. M. Almeida Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 1999, pág. 276-277).
Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais (…), a este processo, globalmente considerado, se reconduz o “domínio-do-erro” como critério de imputação inerente à figura da burla e que esgota o sentido da referência à “astúcia”, constante do n.º 1 do art. 217.º (…).
Tratando-se de um crime material ou de resultado (…), a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) 1) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial 2).” (A. M. Almeida Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 1999, pág. 293).
Para efeito de preenchimento do tipo subjectivo não se mostra suficiente a representação e a vontade de causar uma perda patrimonial ao sujeito passivo da infracção ou a terceiro, “… exigindo-se, de outra parte que o agente tenha a “intenção” de conseguir, através da conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio. A burla consubstancia, portanto, um delito de intenção (…) – categoria que exprime, do lado subjectivo, a mesma ideia que, no plano do tipo objectivo, preside à sua qualificação como um “crime de resultado parcial” ou “cortado” (…): não obstante se requeira que o sujeito actue com aquela intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação do último, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima (…).” (A. M. Almeida Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 1999, pág. 309).
Os factos apurados revelam uma situação de engano, criada pelo arguido e provocada por omissão, na medida em que ocultou aos compradores do veículo GG a existência de uma reserva de propriedade – registada em 11-10-1996 pelo BM..., SA sendo sujeito passivo o E... ( certidão de fls 13) – sobre a viatura que lhes vendeu.
Por se tratar de uma prática generalizada no sector comercial da venda de automóveis, a omissão da reserva constitui uma actuação astuciosa que normalmente pela sua atempada extinção oculta a violação da obrigação acessória da entrega dos documentos necessários ao registo do veículo.
O que no caso não sucedeu – pelos motivos expostos pelo E... – e inviabilizou a segunda inspecção do GG, obrigando à paralização do veículo, com a consequente perda material correspondente à parte das prestações do crédito respeitante ao preço que o assistente pagou pela viatura e à privação do seu uso, - o que configura a verificação de um prejuízo patrimonial na sua esfera jurídica. A aludida perda material foi causada pela omissão do arguido, materializada na criação do descrito engano, que levou o assistente e esposa a quererem adquirir a viatura e a obter o correspondente financiamento, com o inerente encargo pecuniário mensal subjacente ao mesmo.
Não sem que se lhes aponte algum desleixo no seu procedimento pois como afirmam na motivação do recurso “Só cerca de 3 anos depois da celebração do negócio com o Arguido, mais concretamente, em 4 de Janeiro de 2005, quando o ora Recorrente e a Demandante Cível por sua própria iniciativa obtiveram a Certidão emitida pela Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, junto aos autos com a Participação Crime a fls. 12, 13 e 14 dos mesmos, estes tiveram conhecimento de que a propriedade do veículo “sub judice” não se encontrava inscrita no seu registo a seu favor, mas sim na titularidade de E..., com reserva a favor do “BM..., S.A.” e inscrição de uma penhora em que o sujeito passivo era E... (cfr. fls. 12, 13 e 14 dos autos).”
Resulta ainda da matéria de facto provada que o arguido actuou com o intuito alcançado de obter para si vantagens patrimoniais, consubstanciadas no recebimento do preço devido pela venda da viatura, que tinha por sua vez, pago. E que lhe era devido por força do contrato de compra e venda que celebrou com o assistente e esposa, já que entregou efectivamente a viatura ao recorrente e esposa, que continuam a tê-la na sua posse.
Mais se provou que o intuito do arguido foi apenas o de vender o veículo no pressuposto e convencido que seria extinta a reserva de propriedade, o que lhe foi assegurado pelo anterior adquirente do veículo.
A lei caracteriza o contrato de compra e venda como sendo aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, e do qual resultam os efeitos essenciais, por um lado, os consubstanciados nessa transmissão, e, por outro, as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço (artigos 874º e 879º do Código Civil). É um contrato com eficácia real, porque a transferência do direito real sobre a coisa é um seu efeito directo, mas, neste ponto, comporta excepções, por exemplo o caso da reserva de propriedade pelo alienante até que o comprador cumpra total ou parcialmente a obrigação de pagamento do preço (artigos 408º, nº 1, e 409º, nº 1, do Código Civil).
O referido artigo 409.º constitui excepção ao anterior artigo 408.º, que consagra a regra de que a transferência da propriedade se opera por mero efeito do contrato – mas ambos se reportam aos contratos reais ou com eficácia real, de que resultam não apenas efeitos obrigacionais mas também efeitos reais – constituição ou transferência do domínio (cf. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª edição, Coimbra, 1991, p. 226), pelo que é inequívoco que "a função económica da reserva de propriedade é a de garantir o crédito do vendedor pelo preço da compra.”
“A reserva de propriedade substitui o direito de penhor sem posse do vendedor, inadmissível em face do nosso Código Civil (arts. 669.º e 677.º). Com a reserva de propriedade visa o vendedor precaver-se de uma eventual inexecução do contrato ou insolvência por parte do comprador, caso em que o vendedor deseja obter a restituição da coisa, fazendo valer os seus direitos quer em face do comprador, quer de terceiros, credores do comprador, ou que por ele tenham sido investidos em direitos sobre a coisa. Consegue-o convencionando que a titularidade do direito de propriedade permaneça na sua esfera jurídica até ao integral pagamento do preço" (Luís Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, Coimbra, 1988, p. 23 e 24).
A reserva tem, pois, essencialmente, uma função de garantia do direito primeiro do credor que é a manutenção da solvabilidade do património do seu devedor, mas assegurando a este a plena fruição, ou disposição material da coisa (Pires e Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, nota 5 ao artigo 934.º; Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 1983, pp. 483-484 e Vaz Serra, “Penhor – Penhor de coisas”, BMJ n.º 58, pp. 17 e ss.). – Ac STJ de 09-10-2008.
Mesmo na hipótese de se considerar que a venda do GG consitui venda de bens alheios como bens futuros, - art 893 do CC , logo que o vendedor adquira por algum modo a propriedade da coisa ou o direito vendido, o contrato torna-se válido e a dita propriedade ou direito transfere-se para o comprador – art 895 CC – sendo que em caso de boa fé do comprador, o vendedor é obrigado a sanar a nulidade da venda, adquirindo a propriedade da coisa ou o direito vendido.- art 897, nº 1, do CC.
É certo que o registo automóvel visa apenas individualizar os respectivos proprietários e, em geral, dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis (art.º 1.º, n.º 1, do Regime do Registo de Propriedade Automóvel), não assumindo natureza constitutiva (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2004 (processo n.º 03B4369), com texto integral in www.dgsi.pt).
De todo o modo, para além dos aludidos efeitos essenciais, importa ter presente os efeitos ou obrigações acessórias, entre os quais se encontra a obrigação de entregar os documentos relativos à coisa (art. 882 n° 2° e 3° do CC), sendo que, a falta de entrega de documentos para uso da coisa vendida, deve incluir-se no regime de falta de cumprimento de entrega da coisa.
E relativa e concretamente ao contrato de compra e venda de veículo automóvel, a jurisprudência tem vindo a entender, que "a obrigação do vendedor não se esgota com a entrega do veículo ao comprador, abrangendo ainda, a entrega dos documentos necessários para que o comprador possa fruir plenamente o seu direito, entre eles, o título de registo de propriedade, o respectivo livrete e a licença de circulação" (veja-se Ac. R. Porto de 26-9-96, CJ, Ano XXI, Tomo IV, pág. 201 e Ac. R. Porto, de 1-07-2002, em www.dgsi.pt.
De tudo o exposto a conclusão que se impõe é que o arguido não cumpriu cabalmente as obrigações contratuais derivadas do contrato de compra e venda, causando com o seu incumprimento graves prejuizos ao assistente e mulher. que confere aos demandantes o direito a uma indemnização pelas perdas que sofreram, o que confere aos demandantes o direito a uma indemnização pelas perdas que sofreram.
Mas não consente se conclua pelo preenchimento do último dos elementos objectivos típicos do crime de burla: a actuação com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
Sendo o crime constituído pelo conjunto de pressupostos cumulativos (acção ou omissão típica, ilícita, culposa e punível) de que depende a aplicação ao agente de uma sanção penal, basta que se não verifique um desses pressupostos, para que resulte inviável a imputação objectiva do facto típico ao agente.
Consequentemente, fica prejudicada a apreciação do elemento subjectivo do ilícito jurídico-penal sob análise.
Por último, importa não esquecer o princípio basilar que confere consistência à criminalização de comportamentos, o princípio da subsidiariedade do Direito Penal.
O Direito Penal só deve intervir quando a tutela conferida pelos outros ramos do ordenamento jurídico não for suficientemente eficaz para acautelar a manutenção desses bens considerados vitais ou fundamentais à existência do próprio Estado e da sociedade.
O carácter subsidiário do Direito Penal, dimensiona-o numa intervenção como ultima “ratio” no quadro do ordenamento jurídico instrumental, por imposição do bom senso que recomenda a racionalização, minimizando tanto quanto possível, o âmbito de intervenção do sistema penal, de tal forma que o limite a situações problemáticas de absoluta irrenunciabilidade. E deve harmonizar-se com o princípio da fragmentariedade do Direito Penal, já que não deve intervir para acautelar lesões a todos e quaisquer bens, mas tão só àqueles bens fundamentais, essenciais e necessários para prevenir a unidade do tecido social.
Com o carácter subsidiário e fragmentário do Direito Penal importa conjugar um outro princípio fundamental - o princípio da proporcionalidade, a significar a exigência de razoabilidade na proporção da necessidade de tutelar um bem fundamental, sendo certo que a intervenção do Direito Penal, por força das sanções jurídicas que lhe são características, colide com o direito de liberdade que é um direito fundamental do cidadão.
O Direito Penal só deve intervir quando a sua tutela é necessária, quando se revela útil, quando tem alguma eficácia.
O que avisadamente se surpreende no ditame popular enunciativo do princípio da insignificância: “não se devem disparar canhões contra pardais, mesmo que seja a única arma de que disponhamos” adaptado da frase de Georg Jellinek “Não se abatem pardais, disparando canhões".
Assim sendo bem andou o tribunal recorrido ao decidir pela absolvição do arguido da prática do crime de burla qualificada, prevista e punível pelos art.ºs 202.º, alínea a), 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual vem acusado.
Crime de Falsidade de Depoimento ou Declaração:
Dispõe o art.º 359.º, do Código Penal, sob a epígrafe “Falsidade de depoimento ou declaração”:
“1. Quem prestar depoimento de parte, fazendo falsas declarações relativamente a factos sobre os quais deve depor, depois de ter prestado juramento e de ter sido advertido das consequências penais a que se expões com a prestação de depoimento falso, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. Na mesma pena incorrem o assistente e as partes civis relativamente a declarações que prestarem em processo penal, bem como o arguido relativamente a declarações sobre a identidade e os antecedentes criminais.”
O bem jurídico protegido pela mencionada norma incriminadora é “… o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão (…).” (A. Medina de Seiça, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo III, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, pág. 460).
A conduta ilícita típica consubstancia-se nos seguintes elementos objectivos:
a) Falsidade da declaração do arguido sobre os seus antecedentes criminais.
b) Perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova as declarações;
c) Depois de o agente ter sido advertido das consequências penais a que se expõe.
O elemento subjectivo do tipo, está previsto na forma dolosa, de acordo com as disposições conjugadas do art.º 359.º, n.º 1 e n.º 2, 13.º e 14.º, do Código Penal.
Atenta a factualidade apurada nos autos, não se tendo apurado que o arguido tivesse mentido sobre os seus antecedentes criminais perante o oficial de justiça após ter sido advertido nesse acto das consequências advenientes da prestação de declarações falsas quanto à indicada matéria, não se mostra preenchido de um dos elementos objectivos típicos do crime de Falsidade de Depoimento ou Declaração, previsto e punível pelo art.º 359.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal.
Sendo o crime constituído pelo conjunto de pressupostos cumulativos (acção ou omissão típica, ilícita, culposa e punível) de que depende a aplicação ao agente de uma sanção penal, basta que se não verifique um desses pressupostos para que se mostre impossibilitada a imputação objectiva do facto típico ao agente.
Consequentemente, fica igualmente prejudicada a apreciação do elemento subjectivo do ilícito jurídico-penal sob análise.
Tambem aqui andou bem o tribunal a quo quando absolveu o arguido da prática do crime de Falsidade de Depoimento ou Declaração, previsto e punível pelo art.º 359.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, pelo qual vem acusado.
Responsabilidade Civil
A responsabilidade extracontratual subjectiva é a única fonte do dever de indemnizar cuja apreciação se impõe nesta sede, encontrando-se excluída do âmbito de decisão do tribunal a eventual verificação dos pressupostos inerentes à responsabilidade pelo risco ou objectiva, bem como da responsabilidade contratual.
Na medida em que os demandantes se encontram adstritos ao pagamento do crédito que contraíram para pagamento do preço de uma viatura que não podem usufruir, bem como sofreram perdas de índole não patrimonial, haverá responsabilidade contratual dos intervenientes no negócio de compra e venda da viatura em causa, por via do incumprimento contratual, a apreciar com mais rigor em acção cível.
Sobre a questão indicada na sentença recorrida - «Assento» n.º 7/1999, do S.T.J. (Processo n.º 993/98, de 17-06-1999, publicado no Diário da República n.º 179, Série I-A, de 03-08-1999), mediante o qual se fixou a seguinte jurisprudência: «Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.».
Bem decidiu o tribunal recorrido ao absolver o arguido do pedido cível contra si deduzido pelos demandantes, com fundamento na responsabilidade extracontratual subjectiva, a única fonte do dever de indemnizar cuja apreciação se impõe nesta sede, encontrando-se excluída do âmbito de decisão do tribunal a eventual verificação dos pressupostos inerentes à responsabilidade pelo risco ou objectiva, bem como da responsabilidade contratual.
III - DECISÃO
Por tudo o exposto, decide-se alterar a redacção do ponto 5 dos factos provados nos seguintes termos:
“5. – No seguimento das negociações efectuadas, a sociedade de que o arguido era gerente declarou vender, por seu intermédio, o veículo de marca Mitsubishi, modelo L 200, com a matrícula 00-00-GG, tendo J... e S... declarado comprá-lo, pelo preço de 2.800.000$00 em dinheiro, acrescido da entrega do veículo Peogeot 504 matrícula UH-00-00.”
E julgar no mais improcedente os recursos interpostos pelo assistente e pelo MP e, consequentemente, confirmar no mais a sentença recorrida.
E condenar o recorrente/assistente nas custas fixando-se em 5 Ucs a taxa de Justiça – art 515º, nº 1, b) do CPP.
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Coimbra, 24/06/09
Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – art 94, do CPP.

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Isabel Valongo

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João Trindade