Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
91/07.3IDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 10/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 56º, N.º 1, A), DO C. PENAL
Sumário: A violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a), do n.º 1, do artigo 56º, do Código Penal, há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada; só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação.
Importa no entanto salientar que a infracção grosseira dos deveres que são impostos ao arguido não exige nem pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando a infracção que seja o resultado de um comportamento censurável de descuido ou leviandade.
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I)
Relatório
1. No âmbito do processo comum singular n.º 91/07.3IDCBR, do Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital, o arguido A..., melhor identificado nos autos, foi julgado, juntamente com a sociedade WW..., L.da, de que era sócio gerente, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho de 2001.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença (fls. 217 e seguintes) onde se decidiu, na parte que aqui interessa, condenar o arguido A..., pela prática do aludido crime, com referência ao artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do RGIT, em conjugação com os artigos 26.º, n.º 1, do Código do IVA e do artigo 3.º do Decreto-lei n.º 229/1995, de 11 de Setembro, e artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão suspensa pelo período de 2 (dois) anos, sendo a suspensão determinada sob a condição de pagamento ao Estado, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses a contar do trânsito em julgado da sentença, da quantia de imposto em dívida – € 25.994,03 (vinte e cinco mil novecentos e noventa e quatro euros e três cêntimos).
A sentença, proferida em 15 de Julho de 2009, transitou em julgado em 25 de Setembro de 2009.
Decorridos dois anos, foi determinada a requisição de certificado de registo criminal do arguido, a averiguação de eventuais processos pendentes contra o arguido e a solicitação de informação à Direcção de Finanças de Coimbra, quanto ao pagamento pelo arguido ao Estado do valor que constitui condição da suspensão de execução da pena, constando tais elementos de fls. 276 a 286 e 288 a 291.
Foi elaborado relatório social, nos termos documentados a fls. 310 e seguintes; o arguido foi ouvido, em conformidade com o disposto no artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, constando o auto de audição de fls. 319 a 321; as declarações prestadas pelo arguido foram gravadas.
Solicitadas novas informações à Repartição de Finanças de Oliveira do Hospital, conforme teor de fls. 324 a 332, 339 a 344 e 348 a 353, o arguido foi notificado do teor das mesmas.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
Foi depois proferido despacho – fls. 360 e seguintes dos autos – que concluiu decidindo nos seguintes termos:
Por todas estas razões julgo que a actuação do condenado ao não liquidar integralmente o valor de imposto a que estava obrigado em dois anos, infringiu de forma grosseira o dever de conduta a que estava obrigado (culpa), com relevo, colocando definitivamente em causa o juízo prognose favorável a respeito da sua conduta futura, e nesse seguimento, revogo a suspensão da execução da pena de prisão e determino o cumprimento da pena de dois anos de prisão em que foi condenado (art.56.º do Código Penal).
Remeta boletins ao registo criminal.
Custas do incidente (…).
2.1 O arguido, A..., não se conformando com esta decisão, veio interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
A) O recorrente não incumpriu culposa e grosseiramente a condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão de dois anos.
B) Dando cumprimento à normatividade plasmada no art. 412º do C.P.P., designadamente o seu n.º 3, alínea a), incorre a douta Sentença em erro de julgamento da matéria de facto, considerando-se incorrectamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto, por manifesta ausência de prova, contradição na prova testemunhal e documental produzidas, erro na apreciação da prova produzida ou não apreciação da prova produzida: Factos provados: (…) 2.2. A referida dívida de imposto foi parcialmente liquidada, coercivamente, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 0809200801000144, em 928,01 €, dos quais 838,32 € foram a título de capital e 89,19 € de custas. (…) 2.6. A firma referida em 2.3. liquidou voluntariamente à Fazenda Nacional, entre 09.03.2007 e 21.06.2006, os valores documentados a folhas 331/2, cujo teor dou aqui por integrado. (…) 2.17. O arguido não se mostra sensibilizado para a gravidade dos factos por si cometidos, mas pretende, tanto quanto antes, ser restituído à liberdade.”.
C) Conforme resulta da sentença condenatória constante dos autos, a quantia de € 25.994,03 – cujo pagamento constituiu a condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão – refere-se ao IVA liquidado pela sociedade WW...–, L.da e não pago atinente aos 2º e 3º trimestres de 2003, sendo objecto da execução fiscal n.º 0809200801000144. Ora,
D) Da informação prestada pelas Finanças a fls. 325, constate– que entre 27 de Novembro de 2009 e 29 de Novembro de 2011, foi penhorada ao recorrente a verba global de € 13.645,05, muito embora se refira, na informação prestada a fls. 288, que, relativamente ao processo de execução fiscal em causa, apenas foi paga, através de penhora, a quantia de € 928,01, o que, desde logo, demonstra que a Fazenda Nacional imputou os pagamentos a outros processos. Por outro lado,
E) Analisada a informação prestada em 13 de Fevereiro de 2012, conclui-se que as Finanças terão dado o seguinte destino às penhoras do vencimento do recorrente: – € 2.118,28 para pagamento de custas, coimas, contribuição autárquica e IMI, tributos estes, alguns, vencidos em período posterior ao dos tributos em causa nos autos; – € 10.665,02 para pagamento de IVA e IRC da sociedade … , L.da por força da reversão operada contra o recorrente, o que perfaz a quantia de € 12.783,30…
F) Outrossim, compulsada a certidão de dívida junto aos autos a 13 de Fevereiro de 2012, constata-se que em 30-11-2007, a quantia exequenda em dívida ascendia a € 11.086,29 – sendo € 2.982,08 relativos ao IVA do 2º Trimestre de 2003 e € 8.104,21 relativos ao 3º Trimestre do mesmo ano, valor este muito inferior a quantia de € 25.994,03 … Ora,
G) Desconhece-se, por força do silêncio da Administração Tributária a tal respeito, como, quando e por quem foram pagas as quantias que reduziram o valor em dívida de 25.994,03 para 11.086,29, não sendo de afastar a possibilidade de em 30-11-2007, a dívida de IVA referente aos 2º e 3º trimestres de 2003 apenas ascender a tal valor, sendo certo que, tendo pago coercivamente € 13.645,05, o recorrente liquidou integralmente tal verba …
H) O recorrente ficou convicto de que havia pago a totalidade da verba, informação esta que colheu junto do Serviço de Finanças competente, conforme se depreende das declarações por si prestadas e que foram totalmente ignoradas, nesta sede – depoimento prestado pelo condenado em 06 de Dezembro de 2011, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação em uso no Tribunal recorrido, rotação 00:00:00 até 00:14:17, constante do ficheiro n.º 20111206154533_21080_64869.
I) Nesta confluência, deverá a factualidade provada ser alterada nos seguintes termos: O ponto 2.2. deverá ser alterado nos seguintes termos: 2.2. Através da penhora de vencimento do condenado, foram arrecadados pela Fazenda Nacional € 13.645,05, sendo que esta imputou no processo de execução fiscal n.º 0809200801000144, 928,01 €, dos quais 838,32 € foram a título de capital e 89,19 € de custas. (…); O ponto 2.6. deverá ser dado como não provado; deverá ser aditado o seguinte ponto provado: 2.18. Em 30-11-2007, relativamente à execução n.º 0809200801000144, a quantia exequenda a título de IVA dos 2º e 3º trimestres de 2003 ascende a € 11.086,29 – sendo € 2.982,08 relativos ao IVA do 2º Trimestre de 2003 e € 8.104,21 relativos ao 3º Trimestre do mesmo ano, valor este muito inferior a quantia de € 25.994,03”. Outrossim,
J) Oblitera por completo a decisão recorrida que o agregado familiar do recorrente é composto por si, pela sua esposa que é doméstica, não auferindo qualquer remuneração e pelo seu filho – veja-se o constante do Relatório Social de fls. 309 e ss, do qual resulta demonstrado o ora invocado e que emerge comprovado através das declarações de rendimentos juntas aos autos a fls. 326 e ss.
K) Neste conspecto, dos € 1700,00 auferidos pelo recorrente e descontado 1/3 referente à penhora de vencimento operada pelas Finanças, sobra disponível para o agregado familiar a verba de € 1.133,33. Assim,
L) Emerge perspícuo que o rendimento disponível per capita – do qual ainda deverão ser retiradas as despesas básicas suportadas por qualquer lar, tais como alimentação, combustível, energia eléctrica, água, despesas médicas e medicamentosas – ascende a cerca de € 400,00, valor este inferior ao salário mínimo mensal garantido que hoje se cifra em € 485,00 …
M) Assim, mal andou a decisão recorrida em considerar que o recorrente violou grosseiramente os deveres de conduta que lhe foram impostos.
N) Tal espécie de decisão contraria as finalidades do instituto da suspensão da execução de pena privativa de liberdade e da sua revogação, plasmadas nos artigos 50º, 51º, 55º e 56º do Código Penal e 492º e 495º do CPP. Com efeito,
O) A suspensão visa o afastamento do delinquente do crime e, no caso concreto, com a condição do pagamento da indemnização, visa indemnizar o lesado e compensar a culpa.
P) No caso de incumprimento e nos termos do disposto nos artigos 55º e 56º do CP, só deverá ser decretada a revogação da suspensão da execução da pena de prisão em caso de incumprimento culposo e infracção grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos.
Q) Mais a mais, consideram a jurisprudência e doutrina dominantes que o arguido deverá ter incumprido com uma indesculpável actuação, uma inobservância absolutamente incomum dos deveres que lhe foram impostos.
R) Por infracção grosseira ou repetida dos deveres de conduta ou regras impostas ou do plano individual de readaptação social, deve entender-se uma culpa temerária, demitindo-se o arguido dos demais elementares cuidados. É o esquecimento dos deveres gerais de observância. Na negligência grosseira violam-se deveres que não escapam ao comum dos cidadãos; é uma inobservância absolutamente incomum.
S) De facto, o recorrente sempre se mostrou ciente da pena que lhe fora aplicada, facto que decorre, desde logo, do relatório social junto aos autos e das declarações por si prestadas.
T) Foi sempre intenção do recorrente proceder ao pagamento da quantia em questão, estando, de resto, convicto que estaria tudo liquidado.
U) Não obstante, sempre manifestou ser sua intenção proceder ao pagamento, informando ainda o Tribunal a quo que, para o efeito, ainda mantinha a possibilidade de regressar ao seu posto de trabalho.
V) O condenado encontra-se inserido no meio social onde vive; era trabalhador por conta de outrem estimado pela sua entidade patronal que lhe garantiu manter o seu posto de trabalho disponível; afastou-se motu proprio afastado da actividade comercial a fim de “fugir” a situações semelhantes, demonstrando ter interiorizado a gravidade da sua conduta e ter respondido ao “chamamento, pela ameaça de executar no futuro a pena, à própria vontade do condenado para reintegrar-se na sociedade”.
W) Nesta confluência, ao decidir como decidiu, violou o Tribunal recorrido o disposto nos artigos 50º, 51º, 55º e 56º do CP e 492º e 495º do CPP.
X) E, neste conspecto, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare extinta a pena.
Sem prescindir, caso assim não se conceda, o que por mera cautela de raciocínio se concebe,
Y) Obliterou a decisão recorrida a norma contida no artigo 14º, n.º 1 do RGIT que, afastando-se do quadro previsto no artigo 50º do CP, permite que a suspensão seja condicionada ao pagamento dos tributos até ao prazo máximo de cinco anos subsequentes à condenação. Nesta confluência,
Z) Deveria a decisão recorrida ter permitido a prorrogação do prazo de suspensão, assim fazendo correcta aplicação dos preceitos contidos no artigo 14º, n.º 1 e 2 do RGIT.
AA) Por conseguinte, violou a decisão recorrida o disposto no artigo 14º, n.º 1 e 2 do RGIT, devendo ser revogada e substituída por outra que consinta a prorrogação do prazo de suspensão da execução da pena de prisão.
Termina afirmando que «deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida, extraídos os corolários dimanados das “conclusões” tecidas».
2.2 O Ministério Público, em 1.ª instância, apresentou resposta à motivação, aí concluindo que não se mostram violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais ou princípios, designadamente os referidos pelo recorrente, pelo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se, na íntegra, a decisão judicial recorrida.
2.3 Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público teve vista nos autos, emitindo parecer onde acompanha o constante da resposta antes referida, concluindo que o recurso não merece provimento.
2.2 O arguido, notificado nos termos do artigo 417.º do Código de Processo Penal, não respondeu.
3. Colhidos os vistos e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a motivação do recurso enuncia especificamente os respectivos fundamentos e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido.
O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso, nomeadamente as que estão previstas no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
O objecto do recurso consubstancia-se então na apreciação das seguintes questões:
§ A pretendida alteração de factos em que assentou a decisão.
§ A alegada obliteração das condições sócio-económicas do recorrente.
§ A verificação dos pressupostos que legitimam a pretendida declaração de extinção da pena.
§ A alegada violação do disposto no artigo 14.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT.
II)
Fundamentação
1. Factos relevantes.
1.1 Valem aqui os factos que se deixaram enunciados no relatório que antecede, relativamente aos termos da condenação do recorrente, ao trânsito em julgado da sentença condenatória e às diligências entretanto realizadas, onde se incluem a audição ao arguido e os elementos documentais que integram os autos, remetidos pela Direcção de Finanças de Coimbra e pela Repartição de Finanças de Oliveira do Hospital.
1.2 No despacho sob recurso consignou-se que, “[d]e relevante para a presente decisão – com base nas declarações do condenado, do relatório social elaborado pela DGRS, nas declarações de rendimentos do condenado e na certidão de dividas apresentada pela Fazendas Nacional, e não contestadas, – resulta que:
2.1. Por sentença proferida a 15 de Julho de 2009, transitada em julgado a 25 de Setembro de 2009, o arguido A... foi condenado pela prática, como autor material, de um crime abuso de confiança fiscal, na forma continuada, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sob a condição de no prazo de 24 meses após o trânsito em julgado daquele decisão condenatória entregar ao Estado 25.994,03 €.
2.2. A referida divida de imposta foi parcialmente liquidada, coercivamente, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 0809200801000144, em 928,01 €, dos quais 838,32 € foram a título de capital e 89,19 € de custas.
2.3. A firma WW..., Lda., com o NIPC … viu, desde 14.06.2002, a respectiva gerência ser exercida pelo seu único gerente A....
2.4. Entre 27 de Novembro de 2009 e 29 de Novembro de 2011 o condenado viu o seu salário penhorado, por dividas à Fazenda Nacional, em valores documentados a fls. 325, cujo teor dou aqui por integrado, e que oscilaram entre 103,30 € e 708,34 €.
2.5. O condenado apresentou declarações de rendimentos conjuntas, no ano de 2009 e de 2010, com a portadora do NIF … , no valor de 24.190,06 € e 23.868,71 €, respectivamente (fls.326 a 329).
2.6. A firma referida em 2.3. liquidou voluntariamente à Fazenda Nacional, entre 09.03.2007 e 21.06.2006, os valores documentados a folhas 331/2, cujo teor dou aqui por integrado.
2.7. Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital em 22.11.2001 e transitada em julgado a 11.04.2001, no proc. n.º 58/00.2TBOHP, foi condenado pela prática, em 11.04.1996, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p., pelo artigo 105.º n.º 1 do RJIFNA numa pena de 190 dias de multa à taxa diária de 20,00 €, extinta pode despenalização em 21.10.2009.
2.8. Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital em 14.03.2002, e transitada em julgado em 08.04.2002, no proc. n.º 20/00.5TBOHP, foi condenado pela prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p., pelo artigo 265.º n.º 1 al. a) do Código Penal numa pena de 150 dias de multa à taxa diária de 10,00 €, extinta por prescrição em 24.06.2009.
2.9. Por acórdão confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 29.01.2003 e transitada em julgado em 07.10.2003, no proc. n.º 29/00.9TBOHP, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal à Segurança Social, na forma continuada, e de fraude fiscal, na forma continuada, entre Janeiro de 1995 e Dezembro de 1997, numa pena de 2 anos de prisão suspensa na execução por 5 anos, condicionando a suspensão da pena de prisão ao pagamento à Segurança Social, em prestações anuais de igual montante, de 14.738,35 €.
2.10. Por sentença proferida pelo 2.º Juízo Criminal de Coimbra em 04.05.2004, e transitada em julgado a 27.05.2004, no proc. n.º 2822/02.9PCCBR, foi condenado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão numa pena de 130 dias de multa à taxa diária de 6,00 €, extinta pelo pagamento.
2.11. Por sentença proferida por este tribunal em 24.03.2006, e transitada em julgado em 18.04.2006, no proc. n.º 47/03.5TAOHP, condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal praticado em 01.04.2002, na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de 8,00 €, extinta pelo cumprimento a 24.06.2009.
2.12. Por sentença proferida por este tribunal em 15.06.2009, e transitada em julgado em 16.07.2009, no proc. n.º 170/05.1TAOHP, condenado pela prática de 43 crimes de abuso de confiança fiscal, contra a Segurança Social, praticados em 2002, com isenção de pena.
2.13. O agregado familiar do condenado é constituído por … , com 51 anos de idade, doméstica, e de quem se encontra separado de pessoas e bens, e … , seu filho, com 31 anos de idade e trabalhador activo.
2.14. A... trabalhou no período referido em 2.1. como encarregado de obra da firma …, S.A., e auferiu sempre um salário médio de 1.700,00 € por mês.
2.15. Tem apoio emocional e material da família.
2.16. Mostra-se preso no E.P.R. de Aveiro, desde 04.10.2011, a cumprir uma pena de 2 anos de prisão, à ordem do processo n.º 29/00.9TBOHP.
2.17. O arguido não se mostra sensibilizado para a gravidade dos factos por si cometidos, mas pretende, tanto quanto antes, ser restituído à liberdade.
2. A pretendida alteração de factos em que assentou a decisão.
O recorrente pretende, nesta parte, que a factualidade do ponto 2.2. deverá ser alterada nos termos que propõe e a do ponto 2.6. deverá ser excluída, devendo ainda aditar-se um ponto (2.18.) com a redacção que indica.
Valem aqui as exigências do artigo 412.º do Código de Processo Penal, relativamente ao recurso de impugnação de matéria de facto, nos casos em que há gravação da prova.
O recorrente sustenta a sua pretensão no teor dos documentos que integram os autos e que menciona, bem como nas declarações que ele próprio prestou, ao ser ouvido nos termos documentados no auto de fls. 319, registado em gravação e a cuja transcrição integral procede na respectiva motivação.
Não se vê que haja impedimento formal à apreciação do recurso nesta parte. Mas importa também salientar desde já que, pelas razões que se deixarão enunciados nos parágrafos subsequentes, não há fundamento válido para alterar o elenco factual do despacho sob recurso e em que assentou a decisão proferida.
2.1 Relativamente ao ponto 2.2., o arguido pretende que passe a ter a seguinte redacção: “Através da penhora de vencimento do condenado, foram arrecadados pela Fazenda Nacional € 13.645,05, sendo que esta imputou no processo de execução fiscal n.º 0809200801000144, 928,01 €, dos quais 838,32 € foram a título de capital e 89,19 € de custas”.
Importa considerar que, questionada a Direcção Distrital de Finanças de Coimbra se o arguido já procedera ao pagamento ao Estado da quantia que constitui condição de suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado e que ascende a 25.994,03 €, veio a mesma responder informando que, relativamente à dívida em causa apenas foi paga, no âmbito do processo de execução fiscal com o n.º …00144 a quantia de 928,01 €, sendo 838,32 € de juros de mora e 89,19 € de custas, conforme teor de fls. 288.
Estes valores são reiterados no documento de fls. 342, reportado ao mesmo processo de execução fiscal e onde se discriminam os valores pagos e a respectiva afectação.
Os elementos documentais evidenciam que, no período compreendido entre Setembro de 2009 e Novembro de 2011 e sem prejuízo dos valores antes mencionados, foram efectuados descontos no salário do arguido (enquanto encarregado de obra da empresa … , S.A.), nos termos documentados a fls. 325, por força de penhora salarial; os valores aí discriminados totalizam 13.706,86 €.
Este valor é confirmado pelo arguido, nas declarações que prestou [cf., sensivelmente, momento 00:01:21 do respectivo depoimento: “(…) à Fazenda Pública, desde 2009, no fim de 2009, entreguei já treze mil e qualquer coisa euros. Precisar cem por cento não sei, mas treze mil e tal euros”].
O recorrente afirma estar convencido de que, através dos aludidos descontos, estivesse a pagar o valor a que se reportam os autos. Sustenta essa afirmação em alegada informação que diz que lhe foi dada na Repartição de Finanças de Oliveira do Hospital. Este facto não é confirmado por outros meios, nomeadamente pelo teor dos diferentes documentos remetidos aos autos pela aludida repartição de finanças; a informação por esta prestada e os mencionados documentos dão conta da afectação dos valores descontados ao arguido a outros processos de execução fiscal contra ele instaurados; a existência destes processos é concordante com o que resulta de anteriores condenações do arguido pela prática de crimes de abuso de confiança fiscal e, num dos processos, também pela prática de fraude fiscal. O arguido – como resulta das respectivas declarações – também não teve qualquer procedimento que, de modo inquestionável, pudesse sustentar a afectação dos valores descontados à satisfação da concreta quantia a que se reportam os presentes autos.
As informações prestadas pela Repartição de Finanças através dos documentos antes referenciados evidenciam a existência de diferentes execuções fiscais, instauradas contra o arguido, seja por dívidas do próprio, seja por dívidas de sociedades ( … , L.da, e a co-arguida WW..., L.da) de que foi sócio gerente, relativamente às quais reverteu para si a responsabilidade pela satisfação dos valores em dívida.
Esta realidade está vertida nos pontos 2.2. e 2.4. dos factos considerados pelo tribunal recorrido – “A referida dívida de imposto foi parcialmente liquidada, coercivamente, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 0809200801000144, em 928,01 €, dos quais 838,32 € foram a título de capital e 89,19 € de custas” (2.2.) e “Entre 27 de Novembro de 2009 e 29 de Novembro de 2011 o condenado viu o seu salário penhorado, por dívidas à Fazenda Nacional, em valores documentados a fls. 325, cujo teor dou aqui por integrado, e que oscilaram entre 103,30 € e 708,34 €” (2.4.).
É certo que nesta última alínea não se pormenoriza o montante global dos descontos – que, ultrapassando em 61,81 € o valor mencionado pelo arguido/recorrente, ascende a 13.706,86 €. Este valor não deixa no entanto de se considerar, de estar implícito no ponto 2.4., onde se dá por integrado todo o teor do documento de fls. 325 – que discrimina os aludidos descontos, permitindo a confirmação do valor total.
Perante estes elementos, não se vê fundamento para alterar a redacção do ponto 2.2 dos factos considerados no despacho recorrido e que reflectem a realidade que resulta dos elementos antes apontados.
2.2 O recorrente pretende a exclusão do ponto 2.6. da matéria de facto, onde se regista que “a firma referida em 2.3. [isto é, a sociedade WW..., L.da] liquidou voluntariamente à Fazenda Nacional, entre 09.03.2007 e 21.06.2006, os valores documentados a folhas 331/2, cujo teor dou aqui por integrado”.
Este facto resulta da informação prestada pelo Serviço de Finanças de Oliveira do Hospital, de fls. 330 a 332.
A argumentação desenvolvida pelo recorrente na respectiva motivação não põe em causa esta informação, salientando-se ainda que os pagamentos em causa, concretizados entre 2006 e 2007, ocorreram em período temporal anterior àquele que aqui releva.
Assim, por total ausência de fundamento para contrariar a matéria do ponto 2.6. e a credibilidade da informação em que assenta, prestada pela Repartição de Finanças, impõe-se também aqui a improcedência da pretensão do recorrente.
2.3 Este requer ainda o aditamento de um ponto ao elenco factual, numerado como 2.18. e com o seguinte teor: “Em 30-11-2007, relativamente à execução n.º 0809200801000144, a quantia exequenda a título de IVA dos 2º e 3º trimestres de 2003 ascende a € 11.086,29 – sendo € 2.982,08 relativos ao IVA do 2º Trimestre de 2003 e € 8.104,21 relativos ao 3º Trimestre do mesmo ano, valor este muito inferior a quantia de € 25.994,03”.
Sustenta este entendimento no teor do documento de fls. 350 verso (certidão remetida pela Repartição de Finanças, relativa ao processo de execução fiscal antes referido); pretende que aí se constata que, em 30 de Novembro de 2007, a quantia exequenda em dívida ascendia a 11.086,29 € – sendo 2.982,08 € relativos ao IVA do 2.º trimestre de 2003 e 8.104,21 € relativos ao 3.º trimestre do mesmo ano, valor este muito inferior à quantia de 25.994,03 €; pretende ainda que, desconhecendo-se, por força de alegado silêncio da Administração Tributária a tal respeito, como, quando e por quem foram pagas as quantias que reduziram o valor em dívida de 25.994,03 € para 11.086,29 €, não é de afastar a possibilidade de, em 30-11-2007, a dívida de IVA referente aos 2.º e 3.º trimestres de 2003 apenas ascender a tal valor, sendo certo que, tendo pago coercivamente 13.645,05 €, o recorrente liquidou integralmente tal verba.
A afirmação do teor do documento nos termos feitos pelo recorrente resulta certamente de erro de leitura do mesmo. Na verdade, analisado o teor da certidão em causa, especificamente fls. 350 verso, logo avulta que, reportando-se ao segundo e ao terceiro trimestres de 2003, aí se afirmam, respectivamente, os valores globais de 21.620,00 € (2.982,08 + 18.638,02) e de 9.320,06 € (8.104,21 e 1.215,85).
Perante o teor do documento, não pode afirmar-se a existência de silêncio da Administração Tributária e o desconhecimento como, quando e por quem foram pagas quantias que reduziram o valor em dívida de 25.994,03 para 11.086,29 – dado que não ocorreu tal redução.
Quanto à alegada liquidação integral da verba devida, não se comprova, por um lado, a alegada informação quanto à inexistência de outras execuções, para além daquela a que se reporta a dívida dos impostos em discussão nos presentes autos; as informações prestadas pelo Serviço de Finanças e os documentos remetidos e que integram os autos não o confirmam. Por outro lado, é certo que o próprio arguido tem plena consciência de que, ainda que se considerem os valores descontados no respectivo ordenado e afectos a outras dívidas, nunca os mesmos ascendiam ao que foi fixado como condição para a suspensão da pena e que correspondia ao valor em dívida quanto ao aludido imposto e respectivos trimestres. Ao ser ouvido em declarações e sensivelmente no momento 00:04:25 do respectivo depoimento, o arguido/recorrente afirma: “Logicamente que, se calhar, não estava a pagar aquilo que devia pagar, (…) para pagar isso em dois anos”.
Assim, também aqui não se vê fundamento para alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido, improcedendo a pretensão do recorrente quanto ao aditamento de novo facto.
3. A alegada obliteração das condições sócio-económicas do recorrente.
A este propósito, alega que a decisão recorrida oblitera por completo que o seu agregado familiar é composto por si, pela sua esposa que é doméstica, não auferindo qualquer remuneração e pelo seu filho, sendo o rendimento disponível per capita – e retiradas as despesas básicas suportadas por qualquer lar, tais como alimentação, combustível, energia eléctrica, água, despesas médicas e medicamentosas – inferior ao salário mínimo mensal garantido
Na respectiva motivação e apesar de integrar esta questão no capítulo do “inconformismo com a decisão da matéria de facto perante a prova produzida”, incluindo o teor do ponto 2.13. na “identificação dos factos incorrectamente julgados”, o recorrente não discute verdadeiramente estes factos, em termos de configurarem errada interpretação da prova, de não corresponderem à realidade; o próprio arguido confirma, em declarações (cf., sensivelmente, 00:08:12 e a partir de 00:11:58), a “separação de pessoas e bens”, relativamente ao respectivo cônjuge, com quem continua a viver, como é confirmado, nomeadamente, pelo relatório social que faz fls. 310 a 312 dos autos. O que ele realmente discute é a relevância que lhe foi dada na ponderação da sua situação e da verificação dos pressupostos de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, pretendendo que no despacho recorrido não foi dada a estes factos a importância que têm e que, em seu entender, justificariam uma decisão diversa.
Em face disso, não está aqui em causa qualquer alteração da matéria de facto, mas antes a apreciação da ponderação que foi feita no despacho recorrido quanto a estes factos e à sua relevância para a decisão que veio a ser proferida.
Assim, o conhecimento desta questão terá lugar em momento ulterior, quando se apreciar a alegada verificação dos pressupostos que legitimam a declaração de extinção da pena.
4. A verificação dos pressupostos que legitimam a declaração de extinção da pena.
4.1 O recorrente pretende, nesta parte, que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 50.º, 51.º, 55.º e 56.º do Código Penal e 492.º e 495.º do Código de Processo Penal.
Não está em causa a admissibilidade da suspensão da execução da pena de prisão que foi imposta ao arguido e a sua sujeição à condição de pagamento, num determinado prazo, de valores correspondentes a impostos em falta, que resulta das disposições conjugadas dos artigos 14.º do RGIT e 50.º e 51.º do Código Penal.
Sem prejuízo do regime próprio das infracções tributárias, o artigo 3.º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, determina que são aplicáveis subsidiariamente quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar, o que, na parte que aqui interessa, nos conduz aos artigos 50.º a 57.º do Código Penal.
O artigo 14.º, n.º 2, do RGIT estabelece que, ocorrendo a suspensão da execução da pena de prisão, na falta do pagamento das quantias que a condicionam (nomeadamente, prestação tributária e acréscimos legais ou montante dos benefícios indevidamente obtidos), o tribunal pode exigir garantias de cumprimento [alínea a)], prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível [alínea b)] ou revogar a suspensão da pena de prisão [alínea c)].
No regime geral do Código Penal e de acordo com o artigo 55.º deste diploma, se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta expostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal fazer uma solene advertência [alínea a)], exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão [alínea b)], impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação [alínea c)] ou prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem por forma a exceder o prazo máximo se suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50.º [alínea d)]”.
A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social [artigo 56.º, n.º 1, alínea d)] ou cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas [artigo 56.º, n.º 1, alínea d)]; a revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado (artigo 56.º, n.º 2).
Releva ainda o disposto no artigo 495.º Código de Processo Penal referente à falta de cumprimento das condições de suspensão.
Resulta da conjugação destas normas e em relação à falta de pagamento das prestações tributárias que só o incumprimento culposo pode conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do arguido; importa também salientar que, relativamente às obrigações impostas e face ao disposto nos artigos 14.º, n.º 2, do RGIT e 56.º Código Penal, o seu não cumprimento não desencadeia automática e necessariamente a revogação da suspensão da execução da pena em que o arguido foi condenado, a qual só deve ocorrer perante a improcedência das alternativas legalmente previstas e pressupõe a infracção grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social.
A lei, no entanto, não pormenoriza o que deve entender-se como violação grosseira dos deveres, cabendo ao julgador a sua fixação, o preenchimento de tal critério.
A este propósito, em acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 19 de Fevereiro de 1997 (“Colectânea de Jurisprudência”, tomo 1/1997, página 166), considerou-se que a violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º do Código Penal, há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada; só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação.
Importa no entanto salientar que – como também resulta do aludido aresto – a infracção grosseira dos deveres que são impostos ao arguido não exige nem pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando a infracção que seja o resultado de um comportamento censurável de descuido ou leviandade.
Nos termos do artigo 57.º do Código Penal e na parte que aqui interessa, a pena é declarada extinta se, decorrido o período da sua suspensão, não houver motivos que possam conduzir à sua revogação; se, findo o período da suspensão, se encontrar pendente incidente por falta de cumprimento dos deveres, a pena só é declarada extinta quando o incidente findar e não houver lugar à revogação ou à prorrogação do período da suspensão.
4.2 No caso dos autos, sabe-se com relevância que, pela sentença proferida nos presentes autos, a 15 de Julho de 2009, transitada em julgado a 25 de Setembro de 2009, o arguido A... foi condenado pela prática, como autor material, de um crime abuso de confiança fiscal, na forma continuada, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sob a condição de, no prazo de 24 meses após o trânsito em julgado daquele decisão condenatória, entregar ao Estado a quantia correspondente ao valor dos impostos (IVA) em falta quanto aos 2.º e 3.º trimestres de 2003, totalizando 25.994,03 € – devidos pela sociedade WW... Lda., de que o arguido era único sócio-gerente desde 14 de Junho de 2002, sem prejuízo de estar em falta o pagamento de outros impostos.
Quanto a tal valor, foi parcialmente liquidado, coercivamente, no âmbito de um processo de execução fiscal (n.º 0809200801000144), em 928,01 €, dos quais 838,32 € foram a título de capital e 89,19 € imputados a custas.
O recorrente, entre 27 de Novembro de 2009 e 29 de Novembro de 2011, viu o seu salário penhorado, por dívida à Fazenda Nacional, em valores documentados a fls. 325, que oscilaram entre 103,30 € e 708,34 € e totalizaram 13.706,86 €.
A... trabalhou nesse período como encarregado de obra da empresa … , S.A., e auferiu sempre um salário médio de 1.700,00 € por mês.
O arguido está preso desde 4 de Outubro de 2011, a cumprir pena à ordem do processo n.º 29/00.9TBOHP, no qual foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal à Segurança Social, na forma continuada, e de fraude fiscal, na forma continuada, com referência a factos ocorridos entre Janeiro de 1995 e Dezembro de 1997, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, tendo-se condicionado a suspensão da pena de prisão ao pagamento à Segurança Social, em prestações anuais de igual montante, de 14.738,35 €, nos termos da decisão aí proferida, com trânsito em julgado em 7 de Outubro de 2003. Daqui resulta que foi entretanto revogada a suspensão da pena de prisão no âmbito do aludido processo.
Perante os factos que se deixam enunciados, não se vê que haja fundamento para a pretensão do recorrente, no sentido de se julgar extinta a pena.
Em termos objectivos, é certo que, mesmo considerando os valores que foram descontados no âmbito de penhoras em diferentes processos, para pagamento de outras dívidas à Fazenda Nacional, totalizando 13.706,86 €, o arguido não cumpriu a obrigação que lhe foi imposta – de pagamento ao Estado do montante global de 25.994,03 €.
Por outro lado, não pode afirmar-se a inexistência de motivos que possam conduzir à revogação da suspensão.
A este propósito, afirma-se no despacho recorrido:
[N]este conspecto afigura-se-nos notório, até pela forma como o presente incidente foi instruído, (quase) sempre a iniciativa deste tribunal, e mau grado a extensão da informação tributária colhida, que o condenado se demitiu sempre do cumprimento do dever que lhe tinha sido imposto na sentença – independentemente de outras dívidas e outros processos de execução (fiscal ou de diversa natureza) que eventualmente tivesse pendentes contra si –, conscientemente, ciente das consequências daí advindas, para quem acredite, e a experiência judiciária do condenado não lhe deveria fazer pensar de forma diferente, que uma sentença judicial condenatória não é para «emoldurar», como por vezes se ouve dizer nalguma opinião pública.
Para além disso, esta sua concreta experiência judiciária habilitava-o para uma particular sensibilidade à ressonância ético-juridica desta sua condenação e forma da sua execução, atentas as plúrimas condenações neste tipo de crime.
Aliás, das declarações colhidas ao Sr. A... resulta que mesmo no contexto por si descrito, em que mostrou não saber se tinha pago coactivamente esta dívida de imposto ou não, admitiu, no mínimo, a possibilidade de ter incumprido a condição de suspensão que lhe foi imposta, pois que com tal possibilidade se conformou. O próprio assume nas suas declarações, cuja passagem o Ministério Público alude, que apesar da penhora de vencimento que lhe estava a ser feita pela Fazenda Nacional, “logicamente que não estava a pagar aquilo que devia pagar, para pagar isso em dois anos” (…).
E também não se diga que o valor de imposto devido era excessivamente desproporcional aos seus rendimentos e como tal desrazoável exigir que em dois anos pagasse os ditos 25.994,03 €. Isto porque o valor em dívida correspondia, grosso modo, atentas as suas declarações de rendimentos, ao seu rendimento anual declarado. Ora, o condenado durante todo o período da execução da pena suspensa auferiu, pelo menos, cerca de 1.700,00€ mensais, do seu trabalho, sobrando-lhe, feitos os aludidos descontos coercivos e as despesas fixas, que não foram constantes, cerca de 1.000,00 € mensais que o mesmo nunca afectou, nem procurou afectar, ao pagamento que lhe foi aqui imposto.
E rememore-se que o Tribunal Constitucional tem vindo a entender de uma forma uniforme, tanto quanto se conhece, particularmente nos casos de penhora, que "o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo" (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 117/2002, de 23.04.2002, publicado no DR I-A, de 02.07.2002, e n.º 96/2004, de 11.02.2004, publicado no DR, II, de 01.04.2004.)
À data auferia mensalmente três ordenados mínimos e meio (1700,00 €), e imputados os descontos máximos decorrentes de penhoras, mais de 2 vezes o ordenado mínimo garantido (= 475,00 €).
Neste conspecto, o condenado tinha condições objectivas para cumprir, voluntariamente, com o dever que lhe foi imposto, só não o fazendo por razões que apenas ao próprio são imputáveis, nunca tentando sequer tentado cumprir, ainda que parcialmente, o pagamento a que estava obrigado para que a pena de prisão que lhe foi aplicada não fosse executada”.
Não se evidencia que o arguido tenha procurado, de forma diligente, ainda que porventura sem sucesso, concretizar o pagamento a que estava obrigado, como condição de suspensão da execução da pena de prisão.
É certo que, como resulta dos factos que antes se deixaram enunciados, auferindo o arguido retribuição mensal no montante de 1.700,00 €, viu penhorada uma parte do mesmo; não está em causa o direito do arguido a um rendimento mínimo que garanta a respectiva sobrevivência, onde se inclui o agregado familiar que dele dependa, sem prejuízo de acentuada austeridade.
No entanto e a este propósito, importa salientar que, apesar de consigo viver um filho, não está o mesmo na sua dependência económica.
Por outro lado, não se evidencia a existência de despesas especiais a suportar pelo arguido e que possam justificar a não afectação de outras quantias, para além das que resultam da penhora, para o pagamento do valor estabelecido na sentença condenatória.
Também não releva aqui, como elemento impeditivo da capacidade do arguido satisfazer a prestação em causa, o facto de ter anterior condenação, no âmbito do processo n.º 29/00.9TBOHP – à ordem do qual se encontra actualmente preso – e em que foi igualmente condenado, pela prática de crime idêntico, mas reputando-se a prestações devidas à Segurança Social, em pena de prisão suspensa na execução por 5 anos, condicionada ao pagamento dos valores devidos; na verdade, o período em causa decorreu de Outubro de 2003 a Outubro de 2008, quando é certo que o prazo estabelecido para a satisfação da quantia devida no âmbito dos presentes autos se iniciou quase um ano depois, em 25 de Setembro de 2009, data do trânsito em julgado da respectiva sentença condenatória. Não se regista, assim, uma sobreposição de encargos que evidencie a incapacidade, por parte do arguido, de satisfação de qualquer outro valor em dívida e que, por essa via, justificasse a omissão de pagamento da prestação que, nos presentes autos, condicionava a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado.
Como se salienta na resposta do Ministério Público, o arguido “não só não efectuou voluntariamente qualquer entrega ao Estado, em cumprimento da obrigação imposta por sentença condenatória, como não encetou quaisquer diligências no sentido de adquirir meios para tal. Também não encetou contactos com a Fazenda Nacional, no sentido de encontrar uma solução (v.g. plano prestacional) para liquidar o montante em dívida, com os recursos económicos de que dispunha”.
Conclui-se que no despacho recorrido não houve obliteração das condições sócio-económicas do recorrente, nem alheamento às razões que justificam a decisão tomada, não ocorrendo a pretendida violação do disposto nos artigos 50.º, 51.º, 55.º e 56.º do Código Penal e 492.º e 495.º do Código de Processo Penal.
5. A alegada violação do disposto no artigo 14.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT.
O arguido pretende, finalmente, que a decisão recorrida ignorou a norma contida no artigo 14.º, n.º 1 do RGIT que, afastando-se do quadro previsto no artigo 50.º do Código Penal, permite que a suspensão seja condicionada ao pagamento dos tributos até ao prazo máximo de cinco anos subsequentes à condenação; a mesma deveria ter permitido a prorrogação do prazo de suspensão, assim fazendo correcta aplicação dos preceitos contidos no artigo 14º, n.ºs 1 e 2 do RGIT; ao não o fazer, violou estas disposições, devendo ser revogada e substituída por outra que consinta a prorrogação do prazo de suspensão da execução da pena de prisão.
Parece estar subjacente à pretensão do recorrente a possibilidade de prorrogação do prazo estabelecido para o pagamento até ao máximo de cinco anos. Não se acompanha este entendimento.
O artigo 14.º do RGIT determina: a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa (n.º 1); na falta do pagamento destas quantias, o tribunal pode exigir garantias de cumprimento [n.º 2, alínea a)], prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível [n.º 2, alínea b)] ou revogar a suspensão da pena de prisão [n.º 2, alínea c)].
O disposto nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 14.º do RGIT tem correspondência com as alíneas b) e d) do artigo 55.º do Código Penal.
O limite máximo de cinco anos admitido no artigo 14.º, n.º 1, reporta-se à decisão condenatória. No caso, apesar de ser admissível um prazo mais prolongado, até ao aludido limite máximo, foi julgado adequado e razoável o prazo de dois anos (vinte e quatro meses) para o pagamento ao Estado da quantia referente ao IVA. Em face disso e caso se entendesse justificar-se, a prorrogação do prazo nunca poderia exceder o limite estabelecido pelos artigos 14.º, n.º 2, alínea b), do RGIT e 55.º, alínea d), do Código Penal.
Tendo-se concluído, pelas razões anteriormente expendidas, que o arguido infringiu grosseiramente o dever a que foi sujeita a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado, a consequência daí resultante seria, necessariamente, a revogação da suspensão.
Na sentença recorrida concluiu-se que “se revelam, neste caso, ineficazes ou impraticáveis as demais providências previstas no artigo 55.º do Código Penal. A solene advertência é manifestamente injustificada, por referência à culpa; não é possível exigir novas garantias ao condenado porque o mesmo respondeu nada ter em seu nome que pudesse dar de garantia à quantia de imposto ainda em dívida; não se almeja como possível, decorrido o período máximo da suspensão, impor novos deveres e regras de conduta ou sequer prorrogar o período de pagamento”.
Não se vê que haja censura a fazer a este entendimento.
O procedimento do arguido que antes se deixou sumariamente enunciado restringiu-se à conformação com a penhora de parte da respectiva retribuição e com a satisfação dos valores que, por essa via, pudesse concretizar-se; omitiu qualquer comportamento activo que visasse a satisfação da específica quantia devida ao Estado e que, nos presentes autos, condicionava a suspensão de execução da pena ou que procurasse evidenciar a alegada incapacidade para o fazer, quando é certo que tinha conhecimento da condenação que sobre si impendia, das razões que a determinaram e das implicações que decorriam do incumprimento da condição imposta; os elementos em presença não permitem sustentar um juízo de prognose favorável à prorrogação do prazo, perante o expressivo grau de probabilidade de se manter tal procedimento, decorrido este período.
Pelas razões expostas, conclui-se no sentido da improcedência do recurso, impondo-se a confirmação da decisão recorrida.
III)
Decisão:
Pelo exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 (três) UC o valor da taxa de justiça.
*
Coimbra,


(Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto)


(Luís Antunes Coimbra)