Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2663/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
CASAMENTO
BENS PRÓPRIOS DOS CÔNJUGES
PROVAS NAS RELAÇÕES INTER-CÔNJUGES
Data do Acordão: 11/09/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1722º E 1723º, AL. C), DO C. CIV. .
Sumário: I – No regime da comunhão de adquiridos, os bens que qualquer dos cônjuges leve para o casamento ou adquira a título gratuito, por não resultarem do esforço comum do casal, não entram na comunhão e são considerados próprios – artº 1722º do C. Civ. - , conservando igualmente essa qualidade os sub-rogados directa ou indirectamente no lugar daqueles .
II – A interpretação dominante do artº 1723º, al. c), do C. Civ. entende que a disciplina aí imposta apenas se aplica nas relações dos cônjuges com terceiros, mas não nas relações entre os cônjuges, tornando possível ao cônjuge adquirente dos bens a utilização de quaisquer meios de prova tendentes à obtenção da qualificação como próprio do bem adquirido na constância do casamento – presunção juris tantum .
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Relatório
I – A..., divorciado, residente em Coimbra, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra B..., divorciada, também residente em Coimbra, alegando, em síntese, o seguinte:
Casou com a Ré, em 7 de Julho de 1984, sem convenção antenupcial, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio, em 2001.
Ainda em solteiro e também na constância do casamento, advieram à sua titularidade, por herança de seus pais e um tio, diversos bens que enumerou.
Com o produto obtido na venda de alguns desses bens, comprou entretanto as fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “AG” do prédio urbano sito na Rua Nicolau Chanterenne, lote 2, Coimbra, correspondentes respectivamente ao 1º andar direito e uma garagem, algum mobiliário para esse apartamento, a fracção autónoma “G” do prédio urbano designado “Edifício Aeminium”, sito no prolongamento da Rua Pedro Álvares Cabral, n.º 9, Coimbra, o veículo automóvel Suzuki Vitara 1.9TD, matrícula 24-85-IR, a moto de água Kawasaki 1100 Zxi, matrícula D1109FF.
Com tais fundamentos pediu a condenação da Ré a reconhecer que estes bens, por ele entretanto adquiridos, são próprios dele e não integram o património comum do dissolvido casal.
Regularmente citada, contestou a Ré sustentando, em síntese, que os referidos bens foram adquiridos na constância do casamento, com rendimentos de ambos, sendo, por isso, comuns e não próprios do Autor, concluindo, desse modo, pela improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador em que se afirmou a validade e regularidade da instância. Condensou-se a matéria de facto, com especificação da já assente e organização da base instrutória.
Realizada a audiência de julgamento, com gravação dos depoimentos nela prestados, e dirimida a matéria de facto, sem censura, foi, então, proferida sentença que julgou improcedente a acção e absolveu a Ré do pedido.
Inconformado com tal decisão, recorreu o Autor, per saltum, para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo finalizado a sua alegação, com as úteis conclusões seguintes:
1. Recorrente e Recorrida foram casados sob a alçada do regime da comunhão de adquiridos, conforme se pode constatar da fundamentação de facto vertida na sentença recorrida.
2. Tanto no estado de civil de solteiro, como na constância do matrimónio advieram à titularidade do impetrante, por herança, um conjunto significativo de bens.
3. Alguns desses bens foram alienados na constância do matrimónio, tendo recebido o Recorrente, como contrapartida, quantias em dinheiro e outros bens imóveis.
4. Posteriormente, tais bens imóveis foram vendidos e com os capitais assim realizados o Recorrente adquiriu novos bens, que são próprios do Recorrente.
5. Deve interpretar-se teleologicamente o art.º 1723º, alínea c) do Cód. Civil, no sentido de permitir que a conexão ali prevista é passível de prova livre nas relações inter cônjuges.
6. Deve considerar-se que o acervo de bens descrito na fundamentação de facto pertence exclusivamente ao Recorrente.
A Apelada ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso do recurso e, a título subsidiário, ampliou o seu objecto, ao abrigo do n.º 2 do art.º 684º-A do Cód. Proc. Civil, formulando as conclusões seguintes:
1. Da decisão que conheceu da matéria de facto resulta que foram julgados como provados os factos 1º, 2º, 7º, 8º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º e 16º da base instrutória.
2. Tais respostas positivas basearam-se apenas no depoimento da única testemunha que foi ouvida no julgamento (Carlos Manuel Moreira) e nos documentos juntos com a petição inicial.
3. Como resulta da prova gravada e respectiva transcrição, o dito Carlos nada de concreto e objectivo referiu relativamente aos factos que se perguntavam nos supra referidos quesitos. Sobre tais factos revelou nada saber - nem os conhecia.
4. Assim, tal depoimento não podia, nem pode, permitir que dele se extraia o que quer que seja para responder positivamente aos factos julgados como provados.
5. Também os documentos juntos com a petição inicial não permitem que se julguem como provados os mesmos factos. Tais documentos apenas provam o que consta do respectivo texto. E este não contém os esclarecimentos necessários para provar, designadamente, o percurso do dinheiro que o Apelante haja recebido por herança nem como e onde tal dinheiro foi aplicado, como não provam alegadas vendas indirectas que não estão documentadas nos autos.
6. Temos pois que, a bem dizer, o Apelante não produziu qualquer tipo de prova que permitisse a impugnada decisão da matéria de facto no que respeita aos pontos considerados como provados.
7. Ponderando o que se alegou e analisados os referidos depoimentos e documentos, deve considerar-se como não provados os pontos 1º, 2º, 7º, 8º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º e 16º da base instrutória.
8. Mas além da incorrecta avaliação da prova, a decisão sobre a matéria de facto manifesta-se deficiente e genérica quanto à sua fundamentação.
9. Esta baseia-se nos referidos meios probatórios, mas quando se refere ao depoimento da testemunha Carlos apenas reconhece que ele se limitou a opinar e a supor sobre o nível de vida das partes, não indicando sobre o que se perguntava um único ponto que a mesma tenha esclarecido e porque o esclareceu. Deficiência manifesta…..
10. Ao aludir aos documentos, a fundamentação elenca-os de forma genérica, sem os identificar um a um e sem estabelecer a ligação directa de tais documentos aos referidos factos decididos como provados. Clara fundamentação genérica….
11. Afinal, pode afirmar-se que não há fundamentação, pelo menos tal como o exige o n.º 2 do art.º 653º do Cód. Proc. Civil, que foi violado, o que motiva a baixa do processo à 1ª instância, para proceder à fundamentação, caso não proceda o concluído em 7..
O processo subiu depois ao Supremo Tribunal de Justiça que o remeteu a este tribunal, por entender que não se verificava o condicionalismo legal do recurso per saltum.
Colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
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II - Fundamentação de facto
A factualidade dada como provada, na 1ª instância, é a seguinte:
1. Autor e Ré casaram catolicamente, sem convenção antenupcial, em 07 de Julho de 1984 – alínea A) dos factos considerados assentes findos os articulados.
2. Tendo tal casamento sido dissolvido por divórcio, no processo n.º 300/99, que correu os seus termos no 1ª Juízo do Tribunal de Família e Menores de Coimbra - alínea B) dos factos considerados assentes findos os articulados.
3. Em 9 de Março de 1976, faleceu a mãe do Autor, tendo, em 21 de Novembro de 1979, no cartório Notarial de Cantanhede, sido efectuada a competente habilitação de herdeiros e consequente partilha de bens - alínea C) dos factos considerados assentes findos os articulados.
4. Em consequência de tal facto, ingressou no património do Autor (ainda no estado civil de solteiro) o seguinte imóvel rústico “vinha e pousio no Bárreo do Vale Peagas, mesma freguesia, a confrontar do norte com caminho, do Sul e Nascente com António Cardoso Saro Negrão e do Poente com caminho”, inscrito na matriz predial respectiva sob o art.º 15.362 - alínea D) dos factos considerados assentes findos os articulados.
5. Tendo ainda recebido tornas no valor de 37.630$00 - alínea E) dos factos considerados assentes findos os articulados.
6. Em 5 de Outubro de 1986, e já na constância do matrimónio, veio a ocorrer o decesso do pai do Autor, a que se seguiram, em 22 de Outubro desse ano, a competente outorga das escrituras de habilitação de herdeiros e partilha – alínea F) dos factos considerados assentes findos os articulados.
7. Tendo-lhe sido adjudicados, por conta quer da legítima, quer da quota disponível, os seguintes bens:
- uma espingarda de caça, marca Galand, arma n.º 30031, calibre 12, de 2 canos, livrete 1979-séria C, registada pela 1ª vez em 26/02/62, no valor de 15.000$00;
- uma espingarda de caça, marca Harrington e Richardson Arma Cª USA, arma n.º 253908, calibre 12, de um cano, livrete n.º 92233-série E, registada pela 1ª vez em 10/05/77, no valor de 8.000$00;
- 50% do saldo da conta n.º 0255114204600 na CGD, no valor de 207.105$00;
- 50% do saldo da conta n.º 0255114204320107 na CGD, no valor de 269.424$00;
- 50% do saldo da conta n.º 0255114320102 na CGD, no valor de 154.713$00;
- 50% do saldo da conta n.º 0255326 – títulos com depósitos voluntários, 5 títulos e 10 obrigações de caixa, no valor de 500.000$00;
- 50% indivisos de um tractor agrícola marca Agria modelo 8800 de 1978, quadro n.º 880058, motor n.º 3256572, matrícula IN-92-57;
- uma casa de habitação de r/c, logradouros e garagem, com 228 m2, a confrontar de norte com João Augusto Ferreira Mendes, Sul com Manuel Machado dos Santos, Nascente com estrada e poente com João Augusto Ferreira Mendes, inscrito na respectiva matriz predial urbana da freguesia de Cantanhede, sob o art.º 2851;
- 50% da verba em dinheiro relativa a abonos devidos pela CGD, nos termos dos DL 42947 e 4903, no valor de 467.875$00 – alínea G) dos factos considerados assentes findos os articulados.
8. Após o que, e em 27 de Janeiro de 1988, foi efectuada a venda da casa de habitação de r/c, logradouros e garagem, com 228 m2, a confrontar de Norte com João Augusto Ferreira Mendes, Sul com Manuel Machado dos Santos, Nascente com estrada e Poente com João Augusto Ferreira Mendes, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Cantanhede, sob o art.º 2851, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cantanhede sob o n.º 00114/1206685 – alínea H) dos factos considerados assentes findos os articulados.
9. Em 11 de Julho de 1989, por escritura pública de compra e venda, lavrada no Cartório Notarial de Cantanhede, procedeu-se à venda do prédio referido em 4. pelo valor de 12.5000.000$00, acrescido da atribuição de dois apartamentos tipo T3, a construir posteriormente - alínea I) dos factos considerados assentes findos os articulados.
10. Tendo sido liquidado o respectivo imposto de mais valias, no montante de 2.341.574$00 - alínea J) dos factos considerados assentes findos os articulados.
11. O Autor adquiriu, em 26 de Julho de 1989, através da competente escritura pública, pelo preço global de 4.800.000$00, a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao primeiro andar direito, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na cidade de Coimbra na Rua Nicolau Chanterenne, designado por lote número dois, freguesia de Santo António dos Olivais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 1557 e inscrito na respectiva matriz daquela freguesia sob o art.º 7428, e a fracção autónoma designada pelas letras “AG”, correspondente à garagem particular sita no r/c, com acesso virado a Norte, do mesmo prédio - alínea K) dos factos considerados assentes findos os articulados.
12. Nessa mesma data, foi celebrado com o Autor o contrato promessa de compra e venda referente ao outro apartamento T3 - alínea L) dos factos considerados assentes findos os articulados.
13. O Autor adquiriu em 30 de Janeiro de 1992 a fracção autónoma “G”, que corresponde ao primeiro andar direito, para habitação, e ao aparcamento número oito, com 11 m2, no logradouro do prédio urbano em propriedade horizontal sito em Coimbra, no prolongamento da Rua Pedro Álvares Cabral, com o número 9 de polícia, designado por “Edifício Aeminium”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 824 da freguesia de Santo António dos Olivais, pelo montante de 6.500.000$00 - alínea M) dos factos considerados assentes findos os articulados.
14. Quer no período anterior ao referido casamento, quer na constância deste, advieram à titularidade do Autor, por herança, os bens referidos em 4. e 7. bem como a verba de 6.249.492$00, por partilha dos bens deixados por um tio paterno – resposta ao art.º 1º da base instrutória.
15. O Autor vendeu o bem referido em 8., e que tinha sido herdado de seu pai, pela quantia de 4.000.000$00 – resposta ao art.º 2º da base instrutória.
16. O Autor adquiriu o bem referido em 11. – resposta ao art.º 5º da base instrutória.
17. Em 18 de Julho de 1991, um dos apartamentos T3 dados como contrapartida pela venda do prédio referido em 12. foi concluído e vendido directamente pelo construtor, tendo a quantia liquidada em decorrência de tal negócio (10.600.000$00) sido entregue ao Autor – resposta ao art.º 7º da base instrutória.
18. Em 13 de Dezembro de 1991, foi, por sua vez, efectuada a transferência da propriedade para terceiros da garagem integrante do T3 referido em 17., nos mesmos moldes em que este o tinha sido, e pelo preço de 1.200.000$00 – resposta ao art.º 8º da base instrutória.
19. O Autor adquiriu o bem referido em 13. – resposta ao art. 9º da base instrutória.
20. Em 31 de Janeiro de 1994, e encontrando-se concluído o segundo apartamento tipo T3, foi a sua propriedade transferida para o casal, não tendo sido paga qualquer contrapartida monetária, apesar de que foi referenciado no respectivo documento translativo da propriedade – resposta ao art.º 10º da base instrutória.
21. Em Agosto de 1997, adveio ao património do Autor a verba líquida de 6.249.492$00 /uma vez que à mesma foram deduzidos 57.391$00, a título de imposto sucessório), por partilha dos bens deixados por um tio paterno – resposta ao art.º 11º da base instrutória.
22. A 21 de Agosto de 1997, foi adquirido um veículo automóvel de marca Suzuki Vitara 1.9TD, com a matrícula 24-85-IR, pela quantia de 3.479.500$00 – resposta ao art.º 12º da base instrutória.
23. Em 2 de Fevereiro de 1998, foi vendido o apartamento tipo T3 referido em 20º, por forma a dar cumprimento ao contrato promessa assinado em 27 de Outubro de 1997, pelo montante de 9.500.000$00 – resposta ao art.º 13º da base instrutória.
24. Tendo sido paga, a título de comissão, a quantia de 512.000$00 – resposta ao art. 14º da base instrutória.
25. No decurso de 1998, o Autor adquiriu uma moto de água Kawazaki 1100Zxi, com a matrícula D1109FF – resposta ao art.º 15º da base instrutória.
26. Tais bens foram adquiridos na constância do matrimónio contraído por Autor e Ré – resposta ao art.º 16º da base instrutória.
27. De acordo com a escritura pública apresentada pelo Autor, como doc. 13 junto com a petição, quem outorgou como vendedores da fracção letra “N” do prédio de Vale das Pegas, em Cantanhede, foram o Autor e a Ré – resposta ao art.º 19º da base instrutória.
28. Os documentos referentes à compra de bens pelo Autor, durante a vigência do casamento, são omissos quanto à proveniência do dinheiro utilizado Este facto não consta do elenco da sentença, mas alcança-se dos documentos juntos..
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III – Fundamentação de direito
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do Apelante (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), passam pela resolução da temática da incomunicabilidade dos bens adquiridos por aquele e, subsidiariamente, por força da ampliação requerida pela Apelada (art.º 684º-A, n.º 2 do Cód. Proc. Civil) pela reapreciação da decisão da matéria de facto e necessidade da devida fundamentação.
Apreciemos, então, cada uma dessas questões.
· incomunicabilidade dos bens
O Apelante casou com a Apelada, em 7 de Julho de 1984, sem convenção antenupcial, vigorando entre eles, nos termos do art.º 1717º do Cód. Civil, o regime supletivo da comunhão de adquiridos. Diferentemente do que sucede no regime da comunhão geral em que, em princípio, são comuns todos os bens presentes e futuros dos cônjuges (art.º 1732º do Cód. Civil), o regime da comunhão de adquiridos caracteriza-se pela possibilidade da existência de bens comuns e bens próprios de cada um dos cônjuges (art.ºs 1722º e 1724º do Cód. Civil) Cfr. Antunes Varela, Direito da Família, 1982, pág. 372, e Francisco Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 2ª edição, pág. 505..
O património comum do casal assume a natureza de propriedade colectiva, também designada por propriedade de mão comum (zur gesamten hand) Cfr. Antunes Varela, obra citada, págs. 374/375., e corresponde a «uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela» Cfr. Francisco Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, obra citada, pág. 506, e ac. do STJ de 14 de Dezembro de 1995, BMJ 452, pág. 442.. É constituído pelo conjunto de bens adquiridos, na vigência do casamento, «como produto da actividade conjunta de ambos os cônjuges ou graças ao apoio, estímulo e assistência que um deles preste à iniciativa, ao esforço e à capacidade realizadora do outro» Cfr. Antunes Varela, obra citada, pág. 371..
Os restantes bens que qualquer dos cônjuges eventualmente leve para o casamento ou adquira a título gratuito, por não resultarem do esforço conjunto do casal, não entram nessa comunhão e são considerados próprios (art.º 1722º do Cód. Civil), conservando igualmente essa qualidade os sub-rogados directa ou indirectamente no lugar daqueles (art.º 1723º do Cód. Civil) Cfr., neste sentido, Antunes Varela, obra citada, pág. 378, e Francisco Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, obra citada, págs. 514/515. .
O caso em apreço prende-se exactamente com a sub-rogação indirecta, sua comprovação e limitação imposta pela alínea c) deste último normativo, destinada a proteger as legítimas expectativas de terceiro. Nela se prescreve que conservam a qualidade de bens próprios «os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges».
A interpretação deste preceito tem gerado imensa controvérsia tanto na doutrina como na jurisprudência. Para uns, determinado bem só pertence à massa de bens próprios de um dos cônjuges, se tiver havido menção da proveniência do dinheiro com que foi adquirido no documento de aquisição ou equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges. Não havendo essa menção, então, tal bem não pode ser exceptuado da comunhão, sendo qualificado como comum Cfr., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª edição, págs. 425/427, acórdão do STJ de 15/10/98, BMJ 480, pág. 466, e acórdão do STJ de 25/05/2000, CJ/STJ, ano VIII, Tomo II, pág. 76..
Outros, porém, entendem que a disciplina ali imposta se aplica somente nas relações dos cônjuges com terceiros, mas não nas relações entre os cônjuges. Neste âmbito, a referida menção não é indispensável, sendo facultado ao cônjuge - adquirente a utilização de quaisquer meios de prova tendentes à obtenção da qualificação como próprio do bem adquirido na constância do casamento. Quer dizer, se estiverem em jogo apenas interesses dos cônjuges, esse normativo vale como mera presunção iuris tantum, sendo consentida, então, para efeitos de qualificação do bem como próprio de um dos cônjuges, a prova por qualquer meio de que o mesmo foi adquirido com dinheiro ou valores próprios desse cônjuge - adquirente Cfr. neste sentido, Castro Mendes, Direito de Família, 1990/1991, pág. 170, Francisco Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, obra citada, págs. 518/519, acórdão do STJ de 14/12/95, CJ/STJ, ano III, Tomo III, pág. 168 e BMJ 452, pág. 437, acórdão do STJ de 24/09/96, BMJ 459, pág. 535, acórdão do STJ de 02/05/02 (Relator: Consº Sousa Inês), acessível através de http://www.dgsi.pt/jstj, doc. SJ200205020040857, e acórdão do STJ de 22/02/05, proferido na revista n.º 10/05 - 6.ª Secção (Relator: Consº Ribeiro de Almeida), acessível através de http://www.stj.pt, Boletim Interno de Fevereiro de 2005..
A sentença recorrida aderiu expressamente à primeira orientação e, considerando que os documentos de aquisição dos bens em causa nos autos não mencionam a proveniência do dinheiro utilizado e inexiste outro documento equivalente com intervenção de ambos os cônjuges, decidiu que os bens adquiridos pelo Apelante, na constância do casamento com a Apelada, integram o património comum do casal entretanto extinto.
Todavia, estranhamente, a Mm.ª Juíza subscritora dessa peça processual admitiu o Apelante a produzir prova sobre a invocada sub-rogação indirecta e a decorrente incomunicabilidade desses bens à Apelada (Esta prestou depoimento de parte, foi inquirida uma testemunha e foram juntos diversos documentos). Parece-nos que, a seguir-se a apontada orientação, seria dispensável tal labor.
Não se procedeu desse modo e o certo é que, não obstante a expressa declaração de adesão àquela orientação, concedeu-se ao Apelante, como já se salientou, a faculdade de demonstrar a alegada sub-rogação indirecta, o que vale por dizer que afinal se adoptou (e bem diga-se Isto na medida em que o casamento já há muito está dissolvido e em causa estão apenas os interesses dos ex-cônjuges (não de qualquer terceiro), sendo desejável que, nas relações entre aqueles os bens sejam considerados próprios ou comuns consoante a realidade das suas origens. Tudo de sorte a evitar que o casamento, muito em especial ao desfazer-se, seja fonte de negócio, do enriquecimento de um dos cônjuges, ou de um dos ex-cônjuges, à custa do outro.
) a segunda das referidas orientações, precisamente aquela por que pugna o Apelante.
Só que, ao invés do que este sustenta na sua alegação recursiva, o problema que se coloca, agora, não é já a opção por qualquer uma daquelas orientações, mas antes uma questão de ónus da prova. É que, depois de lhe ter sido concedida a faculdade de comprovar, através de outros meios probatórios, os factos integradores da alegada sub-rogação indirecta de bens, não logrou o Apelante tal desiderato, conforme se alcança das respostas restritivas que mereceram os art.ºs 5º, 9º e 15º da base instrutória, que contemplavam a invocada conexão entre a saída de bens do seu património pessoal, proveniente das heranças dos pais e de um tio, e a entrada dos bens que pretende ver considerados incomunicáveis à então sua mulher. E, não tendo ele tal comprovado, é óbvio que a sua pretensão de ver os bens em causa qualificados como próprios terá de naufragar (art.º 342º, n.º 1 do Cód. Civil).
Convém, no entanto, esclarecer também que todas as considerações tecidas pelo Apelante tendentes a persuadir-nos de que os aludidos bens são próprios, com apelo designadamente à profissão dos ex-cônjuges, remunerações auferidas e valores envolvidos, poderiam ser equacionadas por este tribunal, se tivesse impugnado devidamente a decisão da matéria de facto. Isso não sucedeu. A tónica da sua discordância, quanto ao decidido pela 1ª instância, direccionou-se para a questão de direito suscitada pela interpretação da alínea c) do art.º 1723º do Cód. Civil, ao ponto de ter inclusive impetrado o recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça.
Significa isto que não observou o duplo ónus imposto pelo art.º 690º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, o que obsta a que se proceda a qualquer modificação da decisão de facto. E, ainda que se aceite que a proximidade das datas das vendas e compras dos bens, valores envolvidos, rendimentos do casal e regras da experiência indiciem certa conexão e apontem para o eventual reemprego do produto obtido na venda de bens próprios, o certo é que nada nos é possível fazer, neste campo, atenta a passividade do Apelante.
Nem em contrário se argumente que a decisão da matéria de facto veio a ser impugnada pela Apelada, alargando o âmbito do recurso, nos termos do art.º 684º-A, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, o que autorizaria este tribunal a, caso se justificasse, modificar aquela decisão. É que o referido alargamento do âmbito do recurso é subsidiário, pelo que só será de entrar na apreciação das questões ali suscitadas, se o Apelante obtivesse êxito e, como isso não ocorre, não há que avançar já para a apreciação dessa temática.
Mesmo que assim não fosse (mas é), sempre haveria que atentar que a impugnação da matéria de facto feita pela Apelada vai naturalmente em sentido contrário ao que favoreceria o Apelante, o que também inviabilizará qualquer modificação que o beneficie. Quer dizer, se modificação alguma houvesse que fazer, na sequência dessa impugnação, nunca poderia conduzir à comprovação da conexão entre as vendas e compras de bens ou reemprego do produto obtido na venda de bens próprios. E, sem essa comprovação, é patente o inêxito da pretensão do Apelante, já que era sobre ele que recaía o ónus da prova dessa factualidade (art.º 342º, n.º 1 do Cód. Civil), não relevando, para o efeito, a circunstância da Apelada não ter igualmente provado, como alegara, que tais bens foram adquiridos com rendimentos comuns (cfr. respostas negativas aos art.ºs 17º e 20º e restritiva ao art.º 18º da base instrutória).
Aliás, tendo em conta que a base instrutória contemplou já as duas versões (a do Apelante e a da Apelada) sobre a origem do dinheiro utilizado na compra dos bens em causa e nenhuma delas logrou obter êxito em sede probatória, não é já possível ordenar a ampliação daquela peça de molde a apurar se ocorreu a situação prevista no art.º 1726º, n.º 1 do Cód. Civil, que nem sequer foi alegada por qualquer das partes.
Soçobra, deste modo, o recurso, o que implica a confirmação da sentença recorrida, ainda que com diferente fundamentação, ficando igualmente prejudicado o conhecimento das restantes questões atrás enunciadas, já que as mesmas foram apenas subsidiariamente suscitadas pela Apelada (art.º 684º-A, n.º 2 do Cód. Proc. Civil).
IV - Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmar a sentença recorrida, ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes com os que dela constam.
Custas pelo Apelante.
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Coimbra, 09 de Novembro de 2005