Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
19/08.3GBOBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: SENTENÇA
NULIDADE
Data do Acordão: 11/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – OLIVEIRA DO BAIRRO – JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 379º N.º 1 ALÍNEA A), 374º N.º 2,380º DO CPP
Sumário: É nula a sentença na qual na fundamentação se decidiu por uma pena de oito meses de prisão enquanto no dispositivo é referida a condenação numa pena de quatro meses de prisão.
Decisão Texto Integral: I. Relatório.
No processo Comum Singular nº 19/08.3GBOBR.C1 do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, o arguido J… foi condenado pela prática de «um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p.p. pelo artigo 292º n.º 1 do Código Penal na pena de 4 (quatro) meses de prisão, a cumprir em regime de semi-detenção nos termos do artigo 46º do CP». Foi ainda condenado na proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses (artigo 69º n.º 1 a) do CP) e ainda condenado a pagar as custas do processo fixando-se em 1 UC a taxa de justiça acrescido de 1% sobre a mesma a favor do FAV com procuradoria mínima de acordo com os artigos 513º e 514º do CPP e 95º do CCJ.
Não se conformando com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal da Relação.

Nas suas alegações o MP invoca, em síntese, ter consistido a decisão numa condenação em pena de 4 meses de prisão, contraditória com o que é referido na fundamentação onde o Tribunal julgou adequada uma condenação de oito meses de prisão. Além disso na mesma sentença o Tribunal condena o arguido a cumprir a pena em regime de semi-detenção não especificando, no entanto, os elementos necessários à execução da pena, concluindo na sua motivação nos seguintes termos:

«1. Em sede dos autos supra epigrafados, o Tribunal julgou como provado que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no auto de notícia, o arguido J… conduzia com uma TAS de 1,42 gr/litro.

2. tendo assim incorrido na prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p.p. pelos artigos 69º n.º 1 al. a) n.º 1, ambos do Código Penal.

3. Na fundamentação da sentença, o Tribunal julgou adequado condenar o arguido numa pena de oito meses de prisão – cf. fls 108, quando em sede do respectivo dispositivo, foi o arguido condenado numa pena de quatro meses de prisão.

4. Esta ambiguidade importa modificação essencial da sentença, pois contende com o quantum da pena privativa de liberdade pelo qual o arguido foi condenado.

5. Por outro lado, foi o arguido condenado a cumprir uma pena privativa de liberdade em regime de semi-detenção, nos termos do artigo 46º n.º 1 do C. Penal.

6. A douta sentença ora recorrida é omissa quanto ao preceituado no artigo 487º n. 1 do CPP, em conjugação com o disposto no artigo 46º n.º 2 do CP, uma vez que deveria conter e especificar os elementos necessários à sua execução. Necessário seria, por exemplo, o Tribunal considerar naquela sentença se autoriza saídas do arguido para efeitos de exercer a sua profissão de serralheiro e em que moldes, sendo certo que o Tribunal não apreciou nenhum facto atinente à vida profissional do arguido – por exemplo o local de trabalho e se trabalha por conta própria ou por conta de outrem.

7. Também não indicou o Tribunal a data de início de cumprimento daquela pena de acordo com o artigo 488º n.º 2 do CPP.

8. Ao omitir tais elementos a que a lei obriga, tal sentença assim transitada em julgado, não é exequível.

9. A sentença ora recorrida violou assim o disposto no artigo 46º n.º 1 e 2 do CP, o artigo 487º n.º 1 do CPP.

10. A sentença violou ainda, em nosso entender o disposto no artigo 375º n.º 1 do CPP, padecendo do vício de nulidade nos termos do artigo 379º n.º 1 alínea c), primeira parte do CPPP».

O Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu um parecer onde para além de sufragar o que é dito nas alegações de recurso conclui no sentido de ser declarada nula a sentença e o processo ser reenviado para novo julgamento relativamente às questões enumeradas, nomeadamente sanar os vícios da contradição e apreciar os factos relativos à vida profissional do arguido – por exemplo, o local de trabalho e se trabalha por conta própria ou por conta de outrem – para dar cumprimento à concretização da execução da pena.

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Colhidos os vistos legais, procedeu-se à conferência, cumprindo, agora, decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em conta a motivação efectuada pelo Ministério Público importa decidir se a sentença em apreciação é nula, tanto pela contradição que evidencia entre a fundamentação e o dispositivo como pela omissão de elementos que dela devem constar face à pena aplicada.
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Porque está em causa a apreciação da sentença importa identificar a fundamentação (os factos provados e não provados bem como motivação) e o dispositivo elaborados pelo Tribunal no âmbito daquela peça processual:
«Relatório
(…)
Factos provados:
No dia 02.01.08 pelas 2h 58m o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com matrícula JP-00-00 pela Rua Ferreira Campos no Repolão, Oliveira do Bairro, com uma taxa de álcool no sangue de 1,42 g/l.
O arguido conhecia a natureza e as características do veículo e do local onde conduzia, bem sabendo que tinha uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l e, não obstante, decidiu conduzir a viatura nas referidas circunstâncias.
Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
O arguido já foi três vezes condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal, duas vezes em pena de multa (Proc.s 153/00 TJ Águeda e 51/01) e uma vez em pena de prisão suspensa (Proc. nº311/02.0TAALB), uma vez pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez em pena de multa (Proc. nº 12/01) e uma vez pela prática do crime de desobediência também em pena de multa (Proc. nº1219/06.6GBAGD).
Aufere 600€ mensais, tem dois filhos a seu cargo e vive em casa própria.
Factos não provados:
Nenhuns.
Fundamentação:
O Tribunal fundou a sua convicção na confissão integral e sem reservas dos factos pelo arguido, conjugada com o resultado do teste de pesquisa de álcool no ar expirado, que se encontra a fls 9. Relativamente aos antecedentes criminais, foi fundamental o CRC junto aos autos e quanto à situação sócio-económica do arguido tiveram-se em conta as suas declarações.
O DIREITO:
O arguido vem acusado da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelo art. 292º nº1 do CP. Estatui este artigo que: “ Quem, pelo menos com negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada com uma taxa de alcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal “ O bem jurídico protegido em primeira linha por este tipo legal é a segurança da circulação rodoviária mas protegem-se, indirectamente, outros bens jurídicos como a vida e a integridade física ( “o tráfego seguro não é um fim em si mesmo, antes um instrumento para evitar riscos e lesões para a vida, integridade física e bens patrimoniais” Comentário Conimbricence, Coimbra Ed, 2º vol, pag. ). São elementos constitutivos do tipo objectivo: a) a condução de veículo, com ou sem motor;b) em via pública ou equiparada ( nos termos do art. 1º do CE , entende-se que via publica é toda a via do domínio público do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais e o conceito estende-se ainda, por força do nº2 do citado artigo, a vias do domínio privado, quando abertas ao trânsito público em tudo o que não estiver especialmente regulado por acordo celebrado com os respectivos proprietários ); c) com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l; O arguido, no caso ora em apreço preencheu, com a sua conduta, todos os supra referidos elementos objectivos, ao conduzir o ligeiro na Rua Ferreira Campos com uma taxa de álcool no sangue de 1,42 g/l. O arguido preencheu, igualmente, com a sua conduta o tipo subjectivo de ilícito tendo agido com conhecimento e vontade de realização do tipo e, portanto, com dolo directo. Agiu deliberada, livre e conscientemente sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei. Uma vez que, com a sua conduta, preencheu os elementos objectivos e subjectivo do referido tipo, e não ocorreu nenhuma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, conclui-se que o arguido cometeu o crime de que vinha acusado. Realizado o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar. Como já se referiu, este crime é punível com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias. Em sede de critério de escolha da pena postula o artigo 70º do Código Penal que: “ Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, consagrando-se, deste modo, o princípio da preferência pelas reacções criminais não detentivas ( “A pena privativa da liberdade só deve ser aplicada como última ratio da política criminal “Figueiredo Dias in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime pag. 113). No caso em apreço há que sopesar os antecedentes criminais do arguido, pelo que a multa não se nos afigura suficiente e adequada para satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial. A determinação concreta da pena deverá ser feita dentro dos limites das molduras abstractas, em função da culpa do agente (limite inultrapassável - artigo 40º nº 2 do Código Penal) e das exigências de prevenção geral e especial (artigo 71º nº1 do Código Penal). Deverá ainda atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, de alguma forma se revelem como susceptíveis de depor contra ou a favor do arguido – artigo 71º nº2 do Código Penal. O comportamento do arguido é merecedor de um juízo de censura, na medida em que actuou com dolo directo, dispondo-se a conduzir veículo sabendo que era portador de um grau de alcoolemia que lhe afectava negativamente a sua condução. Deverá ter-se em conta que, no caso dos autos, o grau de ilicitude é mediano face à taxa de alcoolemia apresentada. As necessidades de prevenção geral são prementes, dada a frequência com que este crime é praticado no nosso país e os elevados índices de sinistralidade rodoviária a ele associados. As necessidades de prevenção especial (a prevenção especial prende-se com a necessidade de conformação do agente com o quadro de valores vigentes, em particular com aqueles que tutelam o bem jurídico atingido) são elevadas pois, sendo certo que o arguido se encontra bem integrado, tem antecedentes de igual e diferente natureza. Ponderado tudo o que foi referido, entende-se justo e adequado aplicar ao arguido uma pena de 8 meses de prisão que não se suspende nos termos do art. 50º do CP em virtude da personalidade desvaliosa do arguido, da sua conduta anterior, patenteada no seu CRC que revela que este não se demoveu sequer com condenação em pena de prisão suspensa, o que nos leva a concluir que a simples censura do facto e ameaça de prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tal pena não se substitui por outra não detentiva, nem se determina a sua execução em regime de permanência na habitação por entendermos que, atentos os motivos supra expostos, a execução da prisão no EP se impõe dada a necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, mas entendemos que esta deve ser cumprida em regime de semi-detenção atenta a inserção profissional do arguido, a fim de salvaguardar a finalidade de reintegração social das penas. A esta pena acresce ainda proibição acessória de conduzir veículos motorizados, prevista no art. 69º nº1 a) do CP situada entre os três meses e os três anos. No que respeita à determinação da sua medida ela deverá fazer-se com recurso aos critérios enunciados no art. 71º do CP estando o tribunal subordinado ao critério da culpa e às necessidades de prevenção, pelo que, tendo em conta a referência já feita ao caso concreto, mormente os antecedentes do arguido e o grau de alcoolemia, decide proibir-se o arguido da faculdade de conduzir pelo período de seis meses.
DECISÃO:
Pelo exposto, condena-se o arguido J…, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelo art. 292º nº1 do CP na pena de 4 (quatro) meses de prisão, a cumprir em regime de semi-detenção nos termos do art. 46º do CP. Condena-se ainda o arguido na proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses (art. 69º nº1 a) do CP ) (…)»
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A sentença penal como decisão que declara de forma imperativa o direito no caso concreto comporta na sua dimensão, um juízo fáctico («reconstrução do acontecimento acompanhado da valoração de carácter probatório», cf. Carlo Zaza, La Sentenza Penale, Giuffrè Editore, 2004 p. 60) e um juízo jurídico («as conclusões com relevância jurídica do acontecimento, que se traduzem numa recondução a uma norma incriminadora», ibidem, p. 60).
Nessa medida é exigida uma estrutura formal da sentença que obedece ao tríptico constituído pelo relatório, pela fundamentação e pelo dispositivo.
Sendo um documento único, os requisitos a que deve obedecer exigem a vinculação a um conjunto de normas e princípios que configuram a sentença como elemento tradutor da decisão penal.
Nestes princípios assume especial relevância o princípio da fundamentação das como decorrência da vinculação constitucional do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa.
Nesta perspectiva a sentença só se assume como acto processual na medida em que a sua dimensão decisória abranja a fundamentação.
É através da fundamentação que se possibilita o controlo da sentença por um Tribunal superior, evitando decisões arbitrárias, que se concretiza a garantia de defesa do arguido (na medida em que apenas com a fundamentação pode ser concretizado o direito constitucional ao recurso) e se assume um mecanismo de autocontrolo do próprio Tribunal.
Por outro lado as finalidades extraprocessuais subjacentes à fundamentação concretizam ainda o princípio da transparência do órgão decisor mas também garantem uma efectiva responsabilização e prestação contas de quem julga.
Este amplo princípio assume, no entanto, um conjunto de requisitos que, no caso do CPP, pode retirar-se do quadro normativo dos artigos 374º, 379º e 380º.
Assim, na concretização da estrutura da sentença a fundamentação impõe que todas as questões suscitadas e decididas devem ser objecto de fundamentação (o chamado princípio da completude), embora de uma forma concisa.
Igualmente a fundamentação deve sempre ser suficiente, coerente e razoável, de modo a permitir cumprir as finalidades referidas que lhes estão subjacentes (endo e extra processuais, que foram referidas).
Nesta incursão pela dimensão normativa e constitucional da fundamentação importa para os autos fazer salientar o requisito da coerência da fundamentação tendo em conta a situação sub judice.
Na concretização do critério da coerência, a sentença como documento onde estão reflectidas as opções decorrentes do julgamento, funciona como um todo e nesse sentido as várias dimensões factuais e justificativas que a compõem devem articular-se, tanto na estrutura interna da fundamentação (relativa à matéria de facto e relativa às questões de direito) como nos casos em que está em causa a estrutura externa da sentença. Ou seja é exigida uma conexão entre a fundamentação e o dispositivo.
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Na decisão em apreciação refere-se na fundamentação da sentença, nomeadamente na fundamentação da pena concreta que, face ao tipo de crime dado como provado – que não está em causa – o Tribunal decidiu aplicar, «que o comportamento do arguido é merecedor de um juízo de censura, na medida em que actuou com dolo directo, dispondo-se a conduzir veículo sabendo que era portador de um grau de alcoolemia que lhe afectava negativamente a sua condução. Deverá ter-se em conta que, no caso dos autos, o grau de ilicitude é mediano face à taxa de alcoolemia apresentada. As necessidades de prevenção geral são prementes, dada a frequência com que este crime é praticado no nosso país e os elevados índices de sinistralidade rodoviária a ele associados. As necessidades de prevenção especial (a prevenção especial prende-se com a necessidade de conformação do agente com o quadro de valores vigentes, em particular com aqueles que tutelam o bem jurídico atingido) são elevadas pois, sendo certo que o arguido se encontra bem integrado, tem antecedentes de igual e diferente natureza. Ponderado tudo o que foi referido, entende-se justo e adequado aplicar ao arguido uma pena de 8 meses de prisão que não se suspende nos termos do artigo 50º do CP em virtude da personalidade desvaliosa do arguido, da sua conduta anterior, patenteada no seu CRC que revela que este não se demoveu sequer com condenação em pena de prisão suspensa, o que nos leva a concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tal pena não se substitui por outra não detentiva, nem se determina a sua execução em regime de permanência na habitação por entendermos que, atentos os motivos supra expostos, a execução da prisão no EP se impõe dada a necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, mas entendemos que esta deve ser cumprida em regime de semi-detenção atenta a inserção profissional do arguido, a fim de salvaguardar a finalidade de reintegração social das penas».
Já no dispositivo, no que à questão importa, o Tribunal condena o arguido «na pena de 4 (quatro) meses de prisão, a cumprir em regime de semi-detenção nos termos do artigo 46º do CP».
É manifesta a contraditoriedade entre o que consta na fundamentação, onde o Tribunal decidiu e fundamentou a escolha da pena através de um processo analítico que demonstra as suas opções e o que consta no dispositivo, onde consta o teor da decisão que configura cerne do que foi decidido. Na fundamentação decidiu-se por uma pena de oito meses de prisão enquanto no dispositivo é referida a condenação numa pena de quatro meses de prisão.
O que está em causa é notoriamente uma patologia da sentença que envolve a falta de coerência na fundamentação, na dimensão da contradição entre o que foi decidido e fundamentado e o que consta no dispositivo, como parte estrutural da sentença enquanto documento único que, entre si, têm que ser coerentes.
Daí que, no caso, se esteja perante uma situação de incoerência da fundamentação da sentença que a torna contraditória.
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Se não há dúvidas sobre a patologia da sentença importa atentar se estamos perante um erro, lapso, ou ambiguidade da sentença cuja eliminação não importe modificação essencial, e por isso passível de ser corrigido nos termos do artigo 380º do CPP (no caso podendo a correcção ser efectuada pelo tribunal competente para conhecer do recurso) ou antes se estamos perante uma nulidade que «fulmine» a sentença e nessa medida exija a sua substituição por outra que elimine a patologia detectada.
Como se referiu, está em causa, ainda, nesta situação uma questão de fundamentação da sentença, na medida em que se verifica uma contradição entre o que o tribunal decidiu (sobre os factos e sobre a pena) e fundamentou (no caso concreto, na fundamentação sobre a pena) e o que expõe no dispositivo com o resultado dessa opção fundamentada.
Contradição que resulta, no que respeita à pena, do facto de toda a argumentação do Tribunal parecer ir no sentido de aplicar ao arguido uma pena de prisão de oito meses a executar em regime de semi-detenção e contraditoriamente decidir aplicar uma pena de 4 meses, a executar no mesmo regime.
Ora, o que o artigo 380º do CPP consagra é uma espécie de «válvula de segurança» do sistema, quando são detectados erros na sentença que, sem pôr em causa o que nela é essencial, possa ser corrigido, desde logo oficiosamente pelo Tribunal que elaborou a decisão mas também pelo Tribunal competente para conhecer do recurso se já tiver subido recurso.
É manifesto que a opção entre uma pena de 4 meses de prisão e uma pena de 8 meses de prisão, a executar em regime de semi-detenção constitui uma modificação essencial da sentença.
Mesmo estando em causa um erro ou lapso do Tribunal, o que está em causa, nesta situação é algo de essencial na estrutura da sentença: uma contradição flagrante entre o que está na fundamentação e o que está no dispositivo que, no caso, resulta no cumprimento de mais ou menos quatro meses de prisão (contrariamente, o Ac STJ de 27.2.1992 in CJ XVII, 1, p. 49, entendeu como passível de configurar um erro não essencial da sentença uma situação em que houve uma indicação da pena no dispositivo contrária à pena que consta na fundamentação, sendo certo que este aresto foi tirado antes da reforma do CPP de 1998).
Tendo em conta a natureza essencial do erro não é possível a este Tribunal justificar, no leque de opções que se colocam entre quatro e oito meses de prisão, qual é a opção do Tribunal em relação à pena concreta que este decidiu aplicar. Oito meses de prisão ou quatro meses de prisão? A fundamentação que elaborou é para qual das penas?
Recorde-se que a fundamentação da sentença envolve os factos provados e os factos não provados, o exame crítico das provas e a determinação concreta (e justificada) das sanções aplicadas. A patologia detectada, na medida em que não permite identificar todos os elementos da fundamentação de uma forma inequívoca, configura, por isso, uma nulidade da sentença, decorrente da falta de fundamentação, a que se alude no 379º n.º 1 alínea a), por referência ao 374º n.º 2 do CPP.
Daí que a sentença seja nula devendo, em consequência ser substituída por outra que faça reflectir de modo adequado o que o tribunal decidiu face à prova produzida, fundamente adequadamente as suas opções, nomeadamente no âmbito da escolha e da medida concreta da pena que entenda adequado aplicar e naturalmente faça reflectir essa fundamentação no dispositivo da sentença.
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Face ao teor do que se decidiu entende-se que não devem ser objecto de conhecimento as demais questões suscitadas no recurso.
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III. Dispositivo.
Nesta conformidade acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, decide-se declarar nula a sentença que deverá ser substituída por outra que faça reflectir de modo adequado o que o tribunal decidiu face à prova produzida, fundamentando adequadamente as suas opções, nomeadamente no âmbito da escolha e da medida concreta da pena que entenda adequado aplicar, fazendo reflectir correctamente o decidido no dispositivo da sentença.
Sem tributação.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 4 de Novembro de 2009

Mouraz Lopes


Félix de Almeida