Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2735/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CUMPRIMENTO DE PENAS
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
CONTÍNUO
Data do Acordão: 11/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 69º, N.º 3 DO C. PENAL, ART.º 500º DO C. P. PENAL E ART.º 139º, N.º 3, DO C. ESTRADA
Sumário: Da conjugação dos normativos legais sobressai a ideia inequívoca da continuidade do tempo no cumprimento da inibição de conduzir.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal deste Tribunal da Relação.
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I – Relatório.
1.1. No âmbito do aludido processo sumário, após realização do contraditório, foi proferida para a acta sentença que condenou a arguida A..., aí melhor identificada, como autora material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º do Código Penal [vulgo CP e diploma de que doravante serão os demais preceitos legais a indicar sem menção expressa da origem], na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, bem como na pena acessória de 120 dias de inibição de condução.
1.2. Não se conformando com o assim decidido, a arguida interpôs o presente recurso, de cuja motivação sobressai a formulação das conclusões seguintes:
1.2.1. Determinou a sentença recorrida que, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez a arguida fosse condenada em pena de multa e na pena acessória de proibição do exercício da condução pelo período de 120 dias, face ao artigo 69.°, devendo entregar a respectiva carta de condução, no prazo de dez dias, após o trânsito em julgado daquela decisão.
1.2.2. A redacção conferida através da Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, ao mencionado artigo 69.º, seu n.º 1, alínea a), leva a que se entenda que se pretendeu colocar a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor ao mesmo nível sancionatório da pena principal (daí não mais se enunciarem pressupostos formais de aplicabilidade).
1.2.3. “Apesar de se ter mantido a sua inserção sistemática, parece que se pretendeu transformar aquilo que era uma verdadeira pena acessória numa pena complementar da pena de prisão ou da multa cominadas no artigo 292.º, aplicável sempre que existir condenação por este crime” – cf. Ac. da R.L., de 16/12/2002, in www.dgsi.pt –.
1.2.4. Tal pena acessória visa prevenir a perigosidade do agente, consubstanciando-se numa censura adicional pelo facto que o mesmo praticou, sendo uma real necessidade de politica criminal que se prende com a elevada sinistralidade nas estradas portuguesas.
1.2.5. Entende a recorrente que a escolha e medida da pena acessória obedece aos mesmos factores da pena principal, mormente os previstos no artigo 71.º (especialmente, no caso sub judice, o seu n.º 2, alínea d) e na secção I do capítulo II do CP.
1.2.6. Com efeito, no âmbito da pena privativa da liberdade é permitido que o cumprimento da mesma seja efectuado na modalidade de prisão por dias livres (privando-se o arguido da liberdade aos fins de semana), bem como se permite o regime de semidetenção nos termos do qual se faculta ao condenado a prossecução da sua actividade profissional normal.
1.2.7. Ora, está provado – foi a fundamentação da sentença recorrida e consta da acta de audiência – que a recorrente confessou os factos, que vive com três filhos menores (de 14 meses e de 8 e 15 anos), que trabalha para uma instituição de solidariedade social enquanto motorista (profissão declarada pela arguida na sua identificação perante o tribunal) e aufere € 350,00 por mês.
1.2.8. Na sua profissão transporta, das escolas para outros locais e residências, crianças que frequentam diversos estabelecimentos de ensino público.
1.2.9. Caso a recorrente tenha de cumprir a pena acessória aplicada, de imediato, tal acarretará deixar de poder exercer as suas funções laborais e, forçosamente, a sua entidade empregadora terá de a dispensar.
1.2.10. Semelhante situação causará sérios e graves problemas para a subsistência do agregado familiar da recorrente que subsiste com o seu próprio vencimento, com € 125,00 mensais (da pensão de alimentos do filho com 8 anos) e com a pensão de alimentos da filha (a qual corresponde ao pagamento, pelo pai, de todas as despesas escolares e de vestuário da menor), tal como consta da sentença ora impugnada.
1.2.11. Sendo permitidos os mencionados meios de execução e cumprimento da pena privativa da liberdade, sufraga a arguida que também se verifica a possibilidade de tal ser aplicado às penas acessórias, concretamente á que lhe foi cominada.
1.2.12. Isto porque a teleologia da pena acessória em questão visa prevenir a perigosidade do condutor, da ora recorrente e o crime por si praticado não o foi durante o seu horário de trabalho, nem enquanto transportava crianças, mas sim na sequência de uma noite de diversão (e de um acto impensado, qual seja a condução posterior à ingestão de bebidas alcoólicas).
1.2.13. Sempre se prevenirá a perigosidade da arguida aplicando uma pena acessória de proibição de conduzir de modo a ser cumprida aos fins-de-semana (v.g., com entrega da carta de condução junto da PSP nas sextas-feiras à noite e recolha da mesma aos domingos à noite) e durante as férias escolares, dado que aquela acaba por ser actuante porque a arguida fica impedida de conduzir em dois dias nos quais o comum dos indivíduos reserva para passeios e diversão.
1.2.14. Alcançando-se o final da terceira semana de Junho iniciam-se as férias escolares e outras funções serão, forçosamente, atribuídas pela entidade empregadora à arguida.
1.2.15. Nessa ocasião e durante os meses de Julho e Agosto poderia a recorrente cumprir a proibição de conduzir desta vez já em dias seguidos, continuando a prevenir a sua perigosidade e mantendo o carácter de sanção por obrigar aquela a ter de se deslocar diariamente em transportes públicos ou a pé.
1.2.16. Entende-se, pois, que o deferimento no tempo e o cumprimento aos fins-de-semana da pena acessória em questão não colide com qualquer disposição legal e mantém as exigências de prevenção geral e especial que se encontram na origem de semelhante sanção.
1.2.17. A arguida sabe que tem de cumprir a pena acessória, pretendendo, contudo e também, manter o seu emprego e não colocar em risco a subsistência dos seus filhos, apresentando-se como adequado ao caso o cumprimento sugerido da pena acessória.
1.2.18. Ademais, há a considerar o facto de a recorrente não ter antecedentes criminais no domínio da circulação estradal e de o título de condução ser imprescindível.
1.2.19. Afigurando-se á recorrente que a pena acessória fixada em 120 dias é excessiva, considerando, mormente, os factos tidos por provados e os critérios decorrentes do artigo 71.º do CP, sendo mais consentânea com todo o explanado a de 90 dias de inibição.
1.2.20. Ao decidir como o fez, e em contrário do alegado, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 40.º; 69.º; 70.º; 71.º e 45.º, todos do CP.
Terminou pedindo que na procedência do recurso a decisão recorrida seja revista no sentido defendido.
1.3. Admitido o recurso, e notificado para o efeito, respondeu o Ministério Público pugnando pela manutenção do decidido.
Igual posição assumiu o Exmo. Procurador-geral Adjunto nesta instância.
Determinado o cumprimento do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de processo Penal [CPP], nada disse a recorrente.
Colhidos os vistos dos M.mos Adjuntos, seguiram os autos para audiência, que se realizou na estrita observância do disposto pelo artigo 423.º do CPP.
Cabe agora decidir.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. A matéria de facto considerada como provada na decisão recorrida, foi a seguinte:
2.1.1. No dia 15 de Abril de 2005, pelas 3.46 horas, na EN n.º 109, a arguida conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 30-36-AL, sendo portadora da TAS de 1,63 g/litro.
2.1.2. A arguida agiu livre e conscientemente, querendo conduzir e tendo consciência do estado em que estava, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei criminal.
2.1.3. A arguida confessou os factos.
2.1.4. A arguida tem antecedentes criminais, tendo sido foi anteriormente condenada no Processo Comum Singular 1002/01.7 TALRA do 1.° Juízo deste Tribunal (de Leira), por decisão de 21/10/03, transitada em julgado em 25/11/2003, no crime de emissão de cheque sem provisão, praticado em 14/10/01, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz € 450,00.
2.1.5. A arguida vive acompanhada de 3 filhos menores de 14 meses, 8 anos e 15 anos em casa de um familiar ao qual não paga renda, trabalhando para uma Instituição de Solidariedade e Segurança Social, auferindo € 350,00 mensais, recebendo como pensão de alimentos referente ao filho de 8 anos € 125,00 estando o mais velho a cargo do pai e estando ainda a pensão de alimentos do mais novo por regular.
2.2. Na mesma decisão recorrida consignou-se inexistirem outros factos com relevância para a decisão da causa.
2.3. A motivação probatória dela constante, é do teor seguinte:
“O Tribunal formulou a sua convicção nas declarações da arguida relativamente à matéria enumerada em I e II; relativamente à matéria assinalada a n.º III, adveio da postura da arguida em audiência, conforme da acta consta. Os factos IV advieram do CRC de fls. 19 e 20, e os factos V advieram das declarações da arguida que, atenta a forma séria como forma prestadas me convenceram”.
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III – Fundamentação de direito.
3.1. Tendo as partes prescindido da documentação das declarações prestadas oralmente em audiência, verifica-se a renúncia das mesmas ao recurso em matéria de facto, conforme artigos 364.º, n.º 1 e 428.º, n.º 2 do CPP.
Por outro lado, também não se verificam as circunstâncias previstas no artigo 410.º, n.ºs 1 e 2, nem nenhuma das nulidades “taxadas” no n.º 3 seguinte do aludido artigo e diploma de conhecimento, mesmo oficioso, no seguimento do decidido no Ac. n.º 7/95, em interpretação obrigatória.
Assim que tenhamos de considerar como definitivamente assente a factualidade vertida na decisão recorrida.
Desta forma, e assente que se considera estar a referida matéria de facto, a qual também não foi posta em causa no presente recurso, importa começar por dizer que a condenação da recorrente como autora de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez não merece qualquer censura, pois que, nos termos do citado artigo 292.º, n.º 1 «quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
3.2. Porém, este crime é também punível com a sanção acessória de “inibição de condução de veículos com motor”, por força do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do mesmo CP, na redacção introduzida pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, nos termos do qual, «é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crime previsto nos arts. 291.º ou 292.º».
Esta sanção acessória é uma decorrência do preceituado no artigo 65.º do CP, designadamente seu n.º 2, nos termos do qual, «a lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões».
Maia Gonçalves, em anotação a este normativo, diz que “as penas acessórias dependem da aplicação de uma pena principal; devem ser aplicadas na sentença, e a respectiva medida, dentro da moldura geral abstracta, obedece aos critérios legais de fixação da medida concreta da pena. Estão sujeitas ao numerus apertus. Por isso, e embora o Código não faça uma enumeração expressa das penas acessórias, podem somente distinguir-se as seguintes (...) “proibição de conduzir veículos motorizados”.
Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, & 232, também anota que “a proibição de conduzir veículos motorizados assume a natureza de verdadeira pena acessória pois que, indissoluvelmente ligada ao facto praticado e á culpa do agente, desempenha uma função adjuvante da pena principal, reforçando e diversificando o conteúdo sancionatório da condenação.”
De relembrar que, já antes da redacção introduzida ao artigo 69.º, pela Lei n.º 77/2001 – que, expressamente, passou a compreender na “proibição de condução de veículos com motor”, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p.p. artigo 292.º –, o STJ havia firmado jurisprudência, através do Assento n.º 5/99, de 20 de Junho, no seguinte sentido: “o agente de crime de condução em estado de embriaguez, p.p. pelo artigo 292.º do CP, deve ser sancionado, a título de pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no art. 69.º, n.º 1, al. a) do CP”.
Donde que a conclusão inevitável (e que, aliás, a recorrente não questiona também) de o agente dever ser sancionado com as apontadas pena e inibição (esta, abstractamente, num período que poderá oscilar entre 3 meses e 3 anos).
3.3. O seu dissídio reporta-se, porém, à medida da pena acessória aplicada – que entende dever restringir-se – e ao modo do seu cumprimento – que clama não se faça por forma contínua –.
Vejamos, então.
3.3.1. Como já acima se disse, a determinação da medida da sanção acessória deve pautar-se pelo recurso aos critérios indicados no artigo 71.º do CP, isto é, fixar-se, dentro dos limites da lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. A ampla margem de discricionariedade facultada ao julgador reclama deste que, em concreto, faça apelo a todas as circunstâncias do caso, desde logo as conexionadas com o grau de culpa do autor do facto e, essencialmente, as reportadas à necessidade de prevenir a perigosidade do mesmo, bem como as de prevenção geral tendo em vista a imprescindível tutela de protecção dos bens jurídicos que a sanção também prossegue.
Sendo o limite mínimo previsto o de três meses; considerando o carácter doloso que manifestou a conduta da recorrente; considerando a TAS de que era efectivamente portadora; sendo praticamente irrelevante a confissão que fez dos factos, atenta a circunstância de haver sido detida em flagrante por agente da autoridade e nenhuma justificação (?) ter oferecido para os factos; ponderando-se a circunstância de necessitar da carta para trabalhar e de a sua subtracção poder questionar o seu posto de trabalho (facto, aliás, não considerado por provado mas que, em tese, se concede); não olvidando as regras constitucionais da proporcionalidade e necessidade sempre ligadas à restrição dos direitos fundamentais, deve considerar-se, em contrário do pretendido, que a medida da sanção acessória se mostra, inclusive, parcimoniosa, pelo que é de manter. Na verdade, restringi-la seria colocá-la no limiar mínimo o que, manifestamente, se não justifica no caso concreto.
3.3.2. O segundo aspecto que constitui objecto do presente recurso contende com a forma de cumprimento da apontada sanção acessória que a recorrente entende dever ser facultada de forma descontínua.
A nossa jurisprudência já se pronunciou sobre a questão em termos que não vemos razões para contrariar. Daí que, e muito sumariamente, nos apropriemos das razões expendidas nos Acórdãos da R.P., de 10 de Dezembro de 1997, e desta própria R.C., de 29 de Novembro de 2000, publicados, respectivamente, nas Colectâneas de Jurisprudência, Ano XXII, Tomo V, pág. 239/40, e Ano XXV, Tomo V, pág. 49/50, segundo as quais não é legalmente possibilitada tal forma de cumprimento.
Na verdade, neles se aduz que nem a letra, nem o espírito da lei, comportam essa faculdade.
Com efeito, preceitua o mencionado artigo 69.º, n.º 3 do CP (redacção introduzida pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho), «No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo se não encontrar já apreendido no processo».
Por sua vez, o n.º 4 do artigo 500.º do CPP (alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro) disciplina que «A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durara a proibição. Decorrido esse período, a licença é devolvida ao titular».
Da conjugação destes dois normativos mas, primacialmente, do segundo, sobressai a ideia inequívoca da continuidade do tempo de inibição, sem qualquer hiato temporal, pois que «a licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durara a proibição», apenas sendo devolvida decorrido esse prazo.
Também que o próprio Código da Estrada define no respectivo artigo 139.º, n.º 3 que tal imposição de inibição é cumprida continuamente, em dias seguidos.
Por fim, de referir que a doutrina e jurisprudência dominantes perfilham o entendimento de que as penas acessórias devem seguir o destino das penas principais, não se compreendendo, assim, o sentido de decisões que condenem em multa, a que pode vir a corresponder prisão subsidiária a cumprir sem interrupção e que, no que à pena acessória respeita, a mesma fosse colocada na disponibilidade do arguido, que a cumpriria em períodos intercalares, “a prestações”.
Donde que também a improcedência deste fundamento do recurso da arguida.
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IV – Decisão.
São termos em que, perante todo o exposto, se nega provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo da ponderação do apoio judiciário concedido, fixando-se a taxe de justiça devida em 4 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 16 de Novembro de 2005