Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3913/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
MÁ FÉ
Data do Acordão: 01/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 456º A 459º DO CÓD. PROC. CIVIL
Sumário: I- Apesar da indiscutível natureza de provisoriedade das providências cautelares, nada na lei afasta a aplicabilidade do instituto da má fé em sede dos procedimentos cautelares conducentes ao decretamento de tais providências.
II- Contudo, em sede de procedimentos cautelares, a condenação por litigância de má fé apenas poderá fundar-se em má fé instrumental ou, no caso de má fé substancial, quando respeite a factos que não hajam de ser objecto de apreciação na acção principal.
III- Nada impondo que o destino da acção principal seja concordante com o do procedimento cautelar, apresenta-se como mais prudente e sensato deixar para aquela acção o juízo definitivo sobre a existência ou não de má fé substancial.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
A... e mulher, B..., residentes na Rua Rainha Santa Isabel, Além da Ponte, Ansião, instauraram procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra C... e mulher, D..., residentes na Rua Rainha Santa Isabel, Além da Ponte, Ansião, pretendendo que lhes seja restituída a faixa de terreno afecta a uma serventia por forma a que os mesmos possam transitar livremente, a pé e de carro da estrada para as traseiras e quintal do seu prédio e vice-versa, mantendo-se livre toda a faixa de terreno afecta à passagem dos requerentes; seja ordenado o arrancamento de um portão chumbado na parede e fixado no chão com trinco amarrado a cadeado sem chave; e que sejam os requeridos notificados de que devem respeitar a o exercício da posse dos requerentes sob pena de incorrerem na prática de um crime de desobediência qualificada.
Ouvidos os requeridos, que deduziram oposição, e realizada a audiência final, foi proferida decisão que julgou o procedimento cautelar improcedente e ordenou a notificação dos requerentes para, querendo, se pronunciarem “sobre a requerida e previsível condenação como litigantes de má fé”.
Os requerentes interpuseram recurso, que foi admitido, como agravo, na parte relativa à improcedência do procedimento cautelar, não tendo sido admitido na parte referente ao convite à pronúncia sobre a litigância de má fé.
Quanto à parte admitida, foi já objecto de acórdão desta Relação, transitado em julgado, conforme certidão de fls. 108 e seguintes, tendo sido negado provimento ao agravo.
Quanto à parte não admitida, os requerentes interpuseram novo recurso, ao qual o tribunal “a quo” deu seguimento como reclamação para o Ex.mo Presidente da Relação.
Entretanto, fora proferido despacho condenando os requerentes como litigantes de má fé na multa de 10 (dez) Ucs, ao qual eles igualmente reagiram recorrendo, tendo o recurso sido admitido como agravo, com subida diferida, em separado, e com efeito suspensivo.
Na alegação de recurso apresentada os agravantes formularam as conclusões seguintes:
1) Aos indignados, recorrentes, impetrantes não lhes foi admitido o recurso da decisão que os convidou a pronunciarem-se sobre a previsível condenação como litigantes de má fé, quando essa previsível condenação se baseava em factualidade considerada provada (e não apenas sumariamente provada) em flagrante contradição com as provas produzidas.
2) Os indignados recorrentes pretendiam da primeira instância um Juízo prudente e equilibrado, um decisão sumária e não de fundo ou mérito, e ficaram estupefactos porque é seu entendimento pessoal não ter sido isso que obtiveram.
3) Foram condenados como litigantes de má fé, num Procedimento Cautelar Cautelar de Restituição Provisória de Posse, em 10 UC’s,
4) assentando em três pressupostos dados como “provados” e não apenas “sumariamente provados”: mesmo assim em flagrante contradição com a prova documental dos autos e a trazida e recolhida na audiência gravada em fita magnetofónica, tudo com o respeito – que é muito - devido por melhor e douta opinião, bem como pelas duas instâncias – a recorrida e a de recurso.
5) Quanto ao primeiro, não podia o Tribunal recorrido considerar “provado” que “o trato de terreno se situa na propriedade dos requeridos, que há mais de cem anos, vivem no local e exercem poderes de facto... sobre tal faixa...”
6) tanto assim que os recorridos/requeridos nem sequer atingiram os cinquenta anos e, nem que o fizessem por si e seus antepossuidores/ascendentes, para nós, (ascendes para o Tribunal “a quo”);
7) não há nos autos sinais de prova documental ou testemunhal gravada com longevidade superior a 80 anos para um percurso cognoscitivo e razão de ciência próprios (a testemunha Maria da Conceição Duarte e da banda dos requeridos).
8) Consentaneamente e quanto ao primeiro pressuposto, dando-se aqui por reproduzidos os itens 10 a 15 supra, cai o mesmo por terra. Os indignados vão discutir os seus interesses na acção principal, sem o peso persuasivo que a condenação como litigante de má fé lhes poderia causar!
9) Quanto ao segundo dos indicados pressupostos da condenação dos indignados recorrentes, como litigantes de má fé, havendo igual flagrante contradição entre os factos considerados provados (para nós, quando muito, perfunctoriamente provados) e a prova produzida, com erro flagrante de julgamento, quer de facto e, por isso, também de Direito;
10) não estava o Tribunal recorrido legitimado a decidir pela condenação em litigância de má fé pois que os indignados recorrentes não foram nem suficiente, nem insuficientemente elucidados pelos vendedores acerca de servidões/serventias, além do mais, como se uma garagem fronteira permitisse o acesso de carro ao quintal traseiro e vice versa,
11) o que não sucede e, sugerido e requerido ao Tribunal “a quo” não houve vontade nem necessidade de inspecção, dando-se por provada a “suficiente elucidação” dos indignados quando os mesmos, ao outorgar-se a escritura certificada sob 2 junto à p. i., se encontravam, na condição de emigrantes em França, a dois mil quilómetros de distância e representado o marido por procurador” (cfr. esse doc.).
12) A propósito dos indignados recorrentes, disse o vendedor, que outorgou na escritura, Júlio Dias a instâncias do Tribunal:
“Conheço-o agora” – o recorrente Manuel
“Não conheço!” – a recorrente Maria Lúcia (cfr. derradeiras coordenadas da cassete n.° 3, lado A).
“Com o Senhor Manuel (o indignado recorrente) não negociei, porque eu não o conhecia sequer, negociei foi ali com o irmão”.
“Quando negociei com o Senhor Aurélio”(o procurador)(cfr. primeiras coordenadas da gravação magnetofónica, 3a cassete, lado B)
Ainda a instâncias do Tribunal recorrido, o mesmo Júlio Dias:
“o prédio que o Senhor vendeu ao irmão do Senhor Manuel!”(a meio da gravação magnetofónica da mesma cassete nº 3 lado B)
e cerca de 20 coordenadas mais adiante, ainda a instâncias do Tribunal recorrido:
“quando o prédio foi vendido ao tal irmão do Senhor ... Manuel ... Pimenta Duarte!”
13) Conforme se desenvolveu em 16 a 26 supra aqui dados por reproduzidos, o Tribunal recorrido constatou, além do constante do doc. nº 2 junto à p. i., que os indignados, recorrentes, impetrantes, não estavam em Portugal e, por isso, nenhuma elucidação tiveram sobre acessos e servidões ou outras.
14) A flagrante contradição no julgamento sobre a matéria de facto é evidente e ilegitimada está, por este segundo pressuposto, a condenação pelo Tribunal “a quo” dos indignados como litigantes de má fé.
E os indignados recorrentes repetem sem medo: vão discutir e esgrimir os seus interesses e direitos num acção principal, sem o peso persuasivo que a condenação como litigantes de má fé lhes poderia causar!
15) Finalmente, e quanto ao terceiro pressuposto usado pelo Tribunal recorrido para condenar os indignados como litigantes de má fé sob pretexto de, ainda de mérito ou de fundo ( “quando resultou provado aquando da construção da sua casa deixaram um saída de sua casa para o quintal anexo nas traseiras” sic.);
ORA,
16) quando o “fumus iuris”( bonus ou malus) colocado ao Tribunal recorrido havia sido uma servidão de acesso de pé e carro para o quintal a que a escritura doc. nº 2 da p. i. alude, nada mais de contraditório com:
- a realidade de facto sem qualquer construção de casa (já lá existia uma que teve acréscimos, mas sem deixar acesso interior de pé e carro para o quintal);
- a saída para o quintal não atribui a possibilidade de alfaias, carros com húmus (estrume e “esterco” – como foi falado em audiência -), palhas e quejandos objectos móveis;
- por dentro de casa!!!, da Rua Rainha Santa Isabel para o quintal e vice versa (tudo conforme ao expendido supra em 28 a 31 aqui dado por reproduzido),
17) também finalmente, com esta flagrante contradição no julgamento da matéria de facto, não estava o Tribunal recorrido legitimado a condenar os indignados, recorrentes e impetrantes, como litigantes de má fé.
- e pela terceira vez os indignados, deixando o “fumus iuris” mal sucedido perante o Tribunal recorrido, afirmam que esgrimirão, sem medo, numa acção principal, sem o peso persuasivo que a condenação como litigantes de má fé lhes poderia causar!
18) O Tribunal recorrido não estava, por todo o exposto, bem como nas alegações do recurso conexo, legitimado de facto e de Direito ao negar o recurso quanto ao convite aos indignados a pronunciarem-se sobre a condenação previsível, como litigantes de má fé, tão pouco a condená-los por tal, muito menos em custas daquele incidente.
19) O direito de Recurso Ordinário assiste-lhes em direito adjectivo civil.
O direito à Indignação assiste-lhes em obediência à Lei Fundamental.
O direito de Petição para essa Veneranda Relação, idem.
20) Foi violado, em nossa modesta forma de ver e sempre com o devido respeito que é muito – por melhor e douta opinião, bem como pelas 1a e 2a instâncias;
pelo Tribunal Recorrido, o disposto, entre outros, nos artigos 52°, nº 1 da CRP, 383º nº 4, 384º nº 1, 456º, 645º,655º nº 1 (prudente e equilibrada convicção) 668º nº 1 al. d) “in fine”, 712º nº 1 al. b), 678º, 680º, 685º nº 1, 691º, 733º, 734º, 737º, 736º, 738º e 740º, todos do C. P. C. e 16º do C. C. J..
Não foi apresentada resposta, nem foi reparado o agravo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***

2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
De acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso.
No caso presente, porém, há que deixar desde já bem vincada a exclusão do objecto do recurso de duas questões que os agravantes nele pretenderam incluir. São elas a não admissão do recurso do despacho que, antecipando a previsível condenação por litigância de má fé, os mandou notificar para, querendo, se pronunciarem e a impugnação da decisão de facto.
Com efeito, ao mandar seguir como reclamação para o Ex.mo Presidente da Relação o agravo interposto do despacho de não admissão do indicado recurso, a 1ª instância deu cumprimento ao disposto no artº 688º, nº 5 do Cód. Proc. Civil, não se encontrando qualquer fundamento legal para que os agravantes insistam numa questão claramente ultrapassada.
E, no que tange à impugnação da decisão de facto, trata-se de questão suscitada pelos recorrentes no agravo da decisão que julgou improcedente o procedimento cautelar de restituição provisória de posse, agravo esse apreciado e decidido através do acórdão desta Relação certificado de fls. 108 a 113, transitado em julgado, não tendo a factualidade em que se fundamentou a 1ª instância (quer para julgar improcedente o procedimento cautelar, quer para condenar por litigância de má fé) sido objecto de qualquer alteração.
Está, pois, vedado a este Tribunal novo conhecimento daquela questão, impondo-se o respeito integral da decisão oportunamente proferida.
A única questão que resta apreciar – a ela se reduzindo o objecto do presente agravo – é a do acerto ou desacerto da condenação dos agravantes como litigantes de má fé. E a base factual a considerar não pode ser outra senão a que fundamentou a decisão da 1ª instância, pois que esta Relação, já oportunamente chamada a apreciá-la, não a alterou.
***

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
De acordo com o que atrás se explanou, consideram-se suficientemente indiciados os factos seguintes:
3.1.1. Os requerentes são donos e legítimos possuidores de um imóvel urbano, situado na Rua da Rainha Santa Isabel em Ansião, com a seguinte descrição na matriz: casa de habitação de rés-do-chão e 1.° andar com a área matricial de 70 m.2 com 1 divisão, cozinha, casa de banho garagem no rés-do-chão e 1.° andar com 3 divisões, cozinha, casa de banho, vestíbulo e marquise, a confrontar do norte com João Mendes dá Silva, sul com serventia, nascente com estrada e poente com o proprietário e inscrito na respectiva matriz sob o art. 1735.º;
3.1.2. O imóvel dos requerentes referido em 1. confronta, a sul, com a faixa de terreno mencionada em 7. dos factos provados, e um terreno, mais concretamente um muro, do imóvel dos requeridos;
3.1.3. Que vem a ser, a poente, um pequeno quintal com um poço meeiro, na divisória poente, a confrontar de norte com João Mendes da Silva, sul com a faixa de terreno mencionada em 8. e o muro referido em 2., poente com os requeridos e nascente com os requerentes;
3.1.4. Os requerentes, na qualidade de segundos outorgantes, celebraram a 18 de Novembro de 1977 a escritura de fls. 10 a 14 dos autos, com o seguinte conteúdo:
« COMPRA E VENDA
(...)
PRIMEIRO
Maria Domicília Dias(...) Júlio Dias (...) que outorga por si e como procurador de Josefina Clarisse Dais Ribeiro (...) e de Maria Irene Dias Franco
SEGUNDO
Aurélio Pimenta Duarte(...) como procurador de Manuel Pimenta Duarte
E pelos primeiros outorgantes(...) foi dito:
Que pela presente escritura e pelo preço de DUZENTOS E QUARENTA MIL ESCUDOS, que já receberam do segundo, ao constituinte deste vendem um prédio urbano constituído por casa térrea, com cinco divisões, seis janelas e duas portas, com área de trinta e seis metros quadrados e quintal, sito na vila de Ansião, em Além Ponte, a confrontar do norte com Francisco Duarte da Silva, sul com servidão, nascente com estrada e poente com herdeiros de José Mendes, inscrito na matriz respectiva sob o artigo número oitocentos e dois(...).
Disse o segundo outorgante que, para o seu constituinte, aceita a presente venda»;
3.1.5. Na sua qualidade de emigrantes em França, quer quando vêm de férias a Portugal, quer quando usam o imóvel por intermédio de familiares, desde 1977 e até à data presente, os requerentes vêm abrindo e fechando portas e janelas; procedendo à limpeza da casa; procedendo a alguns reparos e obras de melhoramento e conservação; confeccionando e tomando refeições; recebendo familiares e amigos; pernoitando no seu interior; remexendo a terra no pequeno quintal a poente e nela semeando milho; batata e feijão, entre outros produtos hortícolas; regando essas sementeiras e plantações do poço (a poente desse quintal);
3.1.6. Os requerentes têm feito o referido em 5. da matéria provada à vista de toda a gente, incluindo os requeridos; sem oposição de quem quer que fosse, incluindo os requeridos; de forma continuada no tempo e na forme convicção de não lesarem ou ofenderem direitos ou interesses alheios.
3.1.7. Os requeridos são donos e legítimos possuidores do imóvel urbano, situado na Rua da Rainha Santa Isabel, em Ansião, com a seguinte descrição matricial: casa de habitação de rés-do-chão e 1.° andar com a área matricial de 140 m.2 com 3 divisões no rés- do- chão e no 1.º andar 4 divisões, cozinha e um casa de banho, com logradouro com área matricial de 138 m.2 e inscrita na matriz respectiva sob o artigo n.º 1734, a confrontar do norte com serventia, sul com Raul Duarte, nascente com estrada e poente com o proprietário;
3.1.8. A “servidão/serventia” referida em 1.; 4. e 7. corresponde a um trato de terreno, com largura de cerca de 2,90 metros lineares, por aproximadamente 14,10 metros lineares de comprimento;
3.1.9. Que se localiza no terreno dos Requeridos;
3.1.10. Os requeridos, por si e seus ascendes, há mais de 100 anos, vivem no local e, por si e antepossuidores, sempre têm circulado na faixa de terreno mencionada em 8. dos factos provados, de pé e de carro, com veículos, transportando tudo o necessário ao amanho da terra, bem como as necessidades domésticas;
3.1.11. Usando e fruindo tal espaço com a convicção de que lhes pertence; sem oposição de quem quer que fosse ou seja, incluindo os requerentes; à vista de toda a gente, incluindo os requerentes; sem interrupções no tempo e convictos de que não lesaram nem lesam direitos ou interesses de outrem;
3.1.12. O trato de terreno mencionado em 8. é de passagem de pé e serve o prédios referido em 1.; 4 e 5, bem como um terceiro a poente, agora pertencente à herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de Manuel Mendes Murtinho e cuja utilização pelos requerentes se restringe a pé;
3.1.13. Os requerentes, como o falecido Murtinho, desde a estrada, a nascente, para poente, em direcção às traseiras ou quintal, como deste (a poente) para a estrada (a nascente), têm circulado a pé desde 1977 a até Agosto de 2003 e sempre usaram, e têm usado, a pé, o trato de terreno mencionado em 8., à vista de toda a gente, incluindo os requeridos; sem oposição de quem quer que fosse, incluindo os requeridos; de forma continuada no tempo e na firme convicção de não lesarem ou ofenderem direitos ou interesses alheios;
3.1.14. O falecido Murtinho, quando pretendia utilizar a faixa de terreno mencionada em 8. dos factos provados, de outra forma que não a pé, solicitava aos requeridos autorização para tal, combinava com os requerentes, de modo a lavrar a terra em conjunto, utilizando o mesmo tractor que os requeridos e o estrume e as batatas foram sempre transportadas às costas ou de carro de mão;
3.1.15. Os Requeridos prolongaram um muro (com referência ao muro referido em 2.) a ½ blocos de altura de nascente para poente e vice versa nele instalando pilares de cimento que servem para fixação de arame/ estendal de roupas;
3.1.16. O que fizeram há mais de 15 anos,
3.1.17. Deixando um espaço de entrada para o quintal dos requerentes de 1,58 metros lineares, permitindo ainda a passagem;
3.1.18. No ano de 2002 trataram os requeridos de calcetar, a paralelepípedos ou rectângulos de cimento antiderrapante, toda a superfície da servidão de passagem;
3.1.19. Eliminando os sinais visíveis de sulcos na terra batida que havia no solo feitos pelo trânsito de pessoas a pé;
3.1.20. Aquando do referido em 18 e 19, o Requerente propôs-se suportar metade do custo do calcetamento, com condição do muro referido em 2. dos factos provados ter cortados pelos menos dois blocos para a entrada folgada para o quintal dos requerentes;
3.1.21. Tal proposta foi rejeitada pelos Requeridos;
3.1.22. No período compreendido entre o dia 14 e 20 de Agosto de 2003, estando os Requerentes na Figueira da Foz, trataram os requeridos de mandar executar um portão em ferro, que chumbaram na parede da sua casa e fixaram no chão com trinco amarrado a aloquete/cadeado sem chave;
3.1.23. Deixando o espaço para uma passagem de pé;
3.1.24. Os requerentes têm na sua cobertura pelas traseiras um atrelado de automóvel bem como um ciclomotor, com atrelado;
3.1.25. Os requeridos colocaram o seu Ford Fiesta vermelho no local de passagem e adentro do portão;
3.1.26. O requerente procedeu à destruição de um seu canteiro;
3.1.27. Quando os requerentes adquiriam o seu imóvel foram suficientemente elucidados pelos vendedores das limitações de uso mencionadas em 12. dos factos provados para a faixa de terreno mencionada em 8.;
3.1.28. Excepcionalmente, quando utilizaram a faixa de terreno, que não a pé, os requerentes solicitaram autorização aos requeridos, o que raramente aconteceu;
3.1.29. Os requerentes transportaram o atrelado e o ciclomotor para o local referido em 24. sem autorização dos requeridos;
3.1.30. Toda a área que compõe os imóveis do requerente e dos requeridos era pertença do Sr. José Mendes, avô do marido requerido, vindo os seus bens a ser partilhados pela viúva e pelos seus filhos;
3.1.31. De tal partilha resultou a individualização da área que actualmente correspondente ao imóvel dos requerentes;
3.1.32. Tal imóvel passou a ser propriedade de uma tia do marido requerido, tendo-lhe sucedido um seu primo que resolveu vendê-lo;
3.1.33. Os requerentes edificaram a sua casa no mesmo local onde existia que lhes foi vendida e, porque não tinham passagem de carro, e estavam plenamente conscientes disso, não construíram uma garagem nas traseiras, vindo a integrá-la na própria casa;
3.1.34. Na mesma época, os requerentes construíram umas escadas de acesso à faixa de terreno referida em 8., vindo mais tarde a tapá-las e a deixar uma saída da sua casa directa para o quintal anexo nas traseiras.
***

3.2. De direito
3.2.1. Má fé
O instituto da má fé processual tem assento legal nos artºs 456º a 459º do Cód. Proc. Civil e visa sancionar a parte ou – se esta for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade – o respectivo representante legal, que preencha com a sua actuação processual a respectiva previsão.
Segundo o nº 2 do artº 456º, diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Ao contrário do que sucedia antes da revisão do Código de Processo Civil operada pelo Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12, actualmente as condutas passíveis de integrar má fé não têm de ser necessariamente dolosas, já que o instituto passou a abranger também a negligência grave.
O Prof. Alberto dos Reis Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, reimpressão, pág. 262. distinguia, em matéria de conduta processual, quatro tipos de lide: a lide cautelosa, em que a parte esgota todos os meios para se assegurar de que tem razão e apesar disso vê inviabilizada a sua pretensão (ou oposição); a lide simplesmente imprudente, em que a parte comete imprudência leve ou levíssima; a lide temerária, em que a parte está convencida que tem razão mas incorre em culpa grave ou erro grosseiro, indo a juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas (de facto ou de direito) que devia empregar para desfazer o seu erro, comprometendo a sua pretensão; e a lide dolosa, em que a parte, apesar de ciente de que não tem razão, litiga e deduz pretensão (ou oposição) conscientemente infundada.
Ao sancionar, actualmente, a litigância com negligência grave a lei está a proibir a lide temerária, a qual pressupõe culpa grave ou erro grosseiro.

Com base na redacção do nº 3 do artº 456º do Cód. Proc. Civil anterior à revisão operada pelo Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12 (de resto já provinda do § único do artº 465º da versão inicial do Código), é corrente distinguir má fé material (ou substancial) e má fé instrumental. O critério distintivo, segundo o Prof. Alberto dos Reis Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, reimpressão, pág. 263., “não pode ser senão este: o dolo substancial diz respeito ao fundo da causa, ou melhor, à relação jurídica material ou de direito substantivo; o dolo instrumental diz respeito à relação jurídica processual. No primeiro caso, o litigante usa de dolo ou má fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça. (...).
No segundo caso, a parte procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta” Cfr. tb. Prof. Lebre de Freitas, Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. 2º, pág. 196. Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, I volume, pág. 318..
A distinção parece continuar a fazer sentido, sucedendo que, actualmente, para além de a má fé se poder fundar não apenas em dolo mas também em negligência grave, será substancial se a parte infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava ou não devia ignorar, se alterar a verdade dos factos ou se omitir factos relevantes para a decisão da causa artº 456º, nº 2, als. a) e b); e será instrumental se a parte praticar omissão grave do dever de cooperação, ou fizer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão artº 456º, nº 2, als. c) e d) Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, I volume, pág. 318.
.

Apesar da indiscutível natureza de provisoriedade das providências cautelares (cfr. artº 381º e 392º do Cód. Proc. Civil), nada na lei afasta a aplicabilidade do instituto da má fé em sede dos procedimentos conducentes ao decretamento de tais providências Ac. STJ de 19/10/99, relatado pelo Ex.mo Cons. Ferreira Ramos, in www.dgsi.pt/jstj e Ac. Rel. Coimbra de 27/01/2004, relatado pelo Ex.mo Des. Jorge Arcanjo, in www.dgsi.pt/jtrc., sendo até sustentado no Ac. do STJ de 06/06/2000 que, nesses casos, basta que o requerente não actue com a prudência normal BMJ, nº 498, pág. 179. No acórdão em questão afirma-se textualmente: “Nas providências cautelares bastará, até, que o requerente não tenha agido com a prudência normal, pois neste caso, se a providência for considerada injustificada, o requerente responde pelos danos culposamente causados ao requerido —artigo 390.°, n.° 1”. .
Contudo, se bem vemos, também aqui há que distinguir.
Os procedimentos cautelares bastam-se com uma averiguação sumária e provisória (sumaria cognitio) da provável ou aparente existência do direito ameaçado (fumus boni iuris), com vista a evitar, enquanto a acção principal não define a situação, a sua lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora).
Por isso, sendo o processo mais célere e a produção da prova menos aprofundada e segura, é habitual, na decisão de facto, aludir-se a “factos indiciados” e não a “factos provados”. E a improcedência do procedimento cautelar não significa necessariamente a improcedência da acção principal que poderá vir a ser total ou parcialmente procedente Ac. do STJ de 19/10/1999, já referido..
Como escreve Abrantes Geraldes Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 2ª edição, págs. 81/82., são requisitos gerais para o decretamento de providências cautelares não especificadas a probabilidade séria da existência do direito invocado, o fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; a adequação da providência à situação de lesão iminente; e a não existência de providência específica que acautele aquele direito.
No caso da restituição provisória de posse, são pressupostos do decretamento da providência a posse, o esbulho e a violência (artº 393º do CPC), sendo, pois, a posse, o direito cuja probabilidade séria de existência constitui requisito indispensável.
A circunstância de, em sede de procedimento cautelar, não só não resultar indiciada a existência da posse alegadamente esbulhada, como até resultar indiciada a sua inexistência não implica necessariamente que o mesmo venha a suceder na acção principal.
E a contradição entre a factualidade alegada pelo requerente no que tange à probabilidade da existência do seu direito e a factualidade nessa matéria indiciada no procedimento cautelar, mesmo aliada a indícios de dolo ou negligência grave do requerente, não poderá, se bem vemos, conduzir à condenação imediata por litigância de má fé, sob pena de, finda a acção principal, poder chegar-se à conclusão de que tal condenação foi precipitada e injusta.
Ou seja, afigura-se-nos que em sede de procedimentos cautelares, a condenação por litigância de má fé apenas poderá fundar-se em má fé instrumental ou, no caso de má fé substancial, quando não respeite a factos (designadamente à existência ou não do direito alegadamente ameaçado ou violado) que hajam de ser objecto de apreciação na acção principal.

No caso dos autos, como se diz no despacho sob recurso (cfr. fls. 65 a 67), os requerentes alegaram que são vizinhos dos requeridos, só tendo uma servidão/serventia a separar as suas casas de habitação e quintais (artº 8º do requerimento inicial); que a referida situação de vizinhança se configura com uma servidão/serventia de passagem, de pé e de carro, de permeio entre os imóveis de requerentes e requeridos (artºs 10º e 11º); e que adquiriram a compropriedade do tracto de terreno por onde a passagem é feita (artº 20º), bem como o direito de nele passarem (servidão de passagem) de pé e carro, por usucapião (artº 21º).
Contudo, da matéria de facto indiciada resulta que aquele tracto de terreno se situa na propriedade dos requeridos, que há mais de 100 anos, vivem no local e exercem poderes de facto, susceptíveis de integrar o conceito “posse” sobre tal imóvel e faixa, com as restrições de passagem a pé dos demais donos dos terrenos confinantes (cfr., supra, 3.1.8.; 3.1.9.; 3.1.10. e 3.1.11.). Ao que acresce que os requerentes, aquando da compra do seu imóvel, foram elucidados pelos vendedores da existência e limitações do uso da servidão com vista ao acesso à parte traseira (quintal) da sua propriedade (cfr., supra, 3.1.27.), pelo que, quando, excepcionalmente, utilizaram a faixa de terreno sem ser a pé, solicitaram autorização aos requeridos (cfr., supra 3.1.28.) e, porque não tinham passagem de carro e estavam plenamente conscientes disso, não construíram uma garagem nas traseiras, vindo a integrá-la na casa que edificaram no local onde existia a que lhes foi vendida (cfr., supra, 3.1.33.).
Alegaram também os requerentes que estão privados do acesso à terra, água do poço e móveis (artº 42º do requerimento inicial), o que não corresponderá à verdade, já que da matéria de facto indiciada resulta (cfr., supra, 3.1.34.) que, quando edificaram a sua casa, os requerentes construíram umas escadas de acesso à faixa de terreno por onde se realiza a passagem, vindo mais tarde a tapá-las e a deixar uma saída da sua casa directa para o quintal anexo nas traseiras.
Ou seja, em síntese, a má fé dos requerentes que se indicia é de natureza substancial, referindo-se a factos que hão-de ser objecto de apreciação mais profunda e segura na acção principal, apresentando-se-nos como prudente e sensato deixar para aquela acção o juízo definitivo sobre a existência ou não da má fé ora indiciada.
Nos termos e com o alcance referidos, consideram-se procedentes as conclusões da alegação dos agravantes, o que conduz ao provimento do agravo.
***

4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo e, consequentemente, relegando para a acção principal o juízo definitivo sobre a má fé dos aqui agravantes, em revogar o despacho recorrido.
As custas são a cargo dos agravados.
***

Coimbra,