Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1582/18.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: RETRIBUIÇÃO LABORAL
COMPENSAÇÃO COM CRÉDITO SOBRE O TRABALHADOR
Data do Acordão: 06/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 279º, Nº 1 DO C. TRABALHO.
Sumário: 1. O empregador, de forma unilateral, durante a vigência do contrato não pode compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, conforme se encontra estabelecido no artigo 279.º, n.º 1, do C.T..

2. Este artigo 279.º é uma norma imperativa apenas e só quando estabelece que ao empregador está vedado, de forma unilateral, durante a vigência do contrato, compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, o que já não ocorre se tal compensação for acordada entre as partes.

3. Se o A. assumiu a prática de uma contraordenação, confessou-se devedor da respetiva coima de €2.600,00 aplicada à Ré e autorizou o desconto mensal para liquidação daquele valor, tal comportamento gerou o crédito da empregadora e a compensação invocada, porque acordada entre o A. e a Ré, não é proibida pelo artigo 279.º do C.T..

Decisão Texto Integral:

Apelação n.º 1582/18.6T8LRA.C1

Acordam[1] na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

L..., residente em ...

intentou a presente ação de processo comum, contra

B..., SA, com sede em ...

alegando, em síntese, que:

Em junho de 2015 foi admitido ao serviço da Ré como motorista TIR; em abril de 2017 denunciou o contrato; não lhe foram liquidadas todas as retribuições a que tinha direito; as retribuições de férias e subsídios de férias foram calculadas tendo em conta apenas a remuneração base e deviam tê-lo sido também tendo em conta a cláusula 74ª e o prémio TIR; nas retribuições dos meses de fevereiro de 2016 a novembro foi-lhe descontado o montante global de €3.724,00 respeitante a coimas aplicadas à Ré aquando da condução do veículo por parte do A. ao serviço daquela, o que viola o disposto no artigo 279.º do CT; prestou trabalho em dias de descanso semanal e que deve ser remunerado com o acréscimo de 200% mas foi-o sem este. 

Termina, dizendo que a presente ação deve ser considerada procedente por provada e a Ré condenada a pagar-lhe a quantia total de €8.703,02, respeitante a férias e subsídios de férias, de descontos e de trabalho suplementar.

                                                             *

Realizou-se a audiência de partes e, não tendo sido possível conciliar as mesmas, a Ré contestou alegando, em sinopse, que:

A Ré não deve qualquer quantia ao A.; o A. não trabalhou em dias de descanso; o A. é responsável pelas coimas que foram aplicadas à Ré e, por isso, tem direito de regresso; o A. acordou com a Ré pagar tais montantes em prestações através do desconto de 1/3 do seu salário.

Termina, dizendo que deve a contestação ser julgada procedente por provada e a petição inicial improcedente por não provada e que deve ser admitida a reconvenção e o reconvindo condenado no pagamento da quantia de €3.824,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.

O A. apresentou resposta e na qual concluiu pela improcedência do pedido reconvencional.

                                                             *

Foi, depois, proferido o despacho saneador de fls. 132 vº e 133. 

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Posteriormente foi proferida a sentença, de fls. 518 e segs., que julgou parcialmente procedente a presente ação e, consequentemente, condenou a Ré a pagar ao A. o montante total de €7.344,37, a título de férias, subsídios de férias, trabalho prestado em dia de descanso e descontos indevidamente efetuados no vencimento do autor.

  A , notificada desta decisão, veio interpor o presente recurso que concluiu da seguinte forma:

...

Termos em que deve ser revogada a douta sentença e, consequentemente ser a ação judicial julgada totalmente improcedente e a reconvenção procedente, com as legais consequências.

O A. não apesentou resposta.

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 582 e segs., no sentido de que a apelação deverá ser julgada improcedente.

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

II – Questões a decidir:

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º do C.P.C.), com exceção das questões de conhecimento oficioso.

Assim, cumpre conhecer as questões suscitadas pela Ré recorrente, quais sejam:

1ª – Reapreciação da matéria de facto.

2ª – Se são válidos os descontos efetuados pela Ré na retribuição do A.

3ª – Se a reconvenção devia ter sido julgada procedente.

III – Fundamentação

a) - Factos provados:

...

b) - Discussão

1ª questão

Reapreciação da matéria de facto

Conforme resulta do disposto no artigo 640.º do C.P.C.:

<<1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 . No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)>>.

Acresce que, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no artigo 662.º do CPC.

Lidas as alegações e respetivas conclusões, constatamos que a Ré recorrente indica os pontos concretos da matéria de facto que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios, ou seja, os depoimentos que identifica e que impõem decisão diversa e, ainda, a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Assim sendo, a recorrente cumpriu na totalidade o ónus que sobre si impendia, pelo que, este tribunal pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.

A Exm.ª juiz do tribunal recorrido fundamentou a decisão sobre a matéria de facto nos termos supra transcritos.

Alega a recorrente que os factos não provados: sempre que o autor prestou trabalho suplementar tal quantia lhe fosse paga sob a rubrica “Ajudas de custo (A+B)” e que tal resultasse de acordo celebrado nesse sentido e os constantes dos artigos 26 a 30 da contestação deveriam ter sido dados como provados, tendo em conta a prova testemunhal, documental e o depoimento de parte do A.

Vejamos, então, se assiste razão à recorrente e seguindo a sua alegação:

- Sempre que o autor prestou trabalho suplementar tal quantia lhe fosse paga sob a rubrica “Ajudas de custo (A+B)” e que tal resultasse de acordo celebrado nesse sentido.

A recorrente entende que esta matéria devia ter sido dada como provada.

Não acompanhamos a recorrente.

...

Assim sendo, improcede a pretendida alteração da matéria de facto que deve manter-se como não provada.

2ª questão

Se são válidos os descontos efetuados pela Ré na retribuição do A.

A Ré recorrente alega que os descontos que foram efetuados no salário do A. foram legais, quer porque resultam de acordo celebrado com o apelado, quer porque decorrem de infrações praticadas por este e que são da sua responsabilidade, já que foram praticadas com culpa.

 A este propósito consta da decisão recorrida o seguinte:

“Quanto ao montante descontado no vencimento do autor a título de coimas pagas por contraordenações por aquele praticadas ao serviço da ré, no total de € 3.724,00, tem a ré de proceder à devolução de tal montante.

Com efeito, na vigência do contrato de trabalho, apenas nos casos contemplados no art 279º, nº 2 do C.T, pode a entidade empregadora descontar o vencimento do trabalhador ou efetuar compensação com crédito que tenha sobre o mesmo.

A admissibilidade da compensação, instituto jurídico previsto na Lei Civil, enquanto forma de extinção da obrigação, é de rejeitar na vigência do contrato de trabalho, sendo, em regra, proibida a compensação/desconto/dedução de créditos que o empregador detenha sobre o trabalhador, atendendo à maior fragilidade deste último e por forma a evitar comportamentos abusivos por parte daquele.

Atendendo à proibição legal, não podia a ré descontar o vencimento do autor, mesmo que com o seu acordo, dado que o direito à retribuição, como “crédito alimentar”, é sempre “direito irrenunciável”.

Assim, tem a ré de pagar ao autor a quantia de €3.724,00 indevidamente descontada na sua remuneração.

Pelos motivos supra improcede na totalidade a reconvenção.”

Vejamos, então, se assiste razão à Ré recorrente:

Na verdade, resulta da matéria de facto apurada que:

- No processamento das retribuições dos meses de fevereiro de 2016 a novembro de 2016 foi descontado ao autor o montante global de €3.724,00, referente ao pagamento pela ré de coimas relativas a contraordenações praticadas ao serviço da ré, aquando da condução pelo autor de veículo a ele afeto.

- Foram instaurados diversos autos de contraordenação à ré por infrações cometidas aquando da condução de veículo sua propriedade pelo autor.

- Em virtude dessas infrações a ré pagou coimas no montante, pelo menos, de €3.824,00.

- Através de documento particular intitulado “Confissão de Dívida Com Acordo de Pagamento”, datado de 18 de novembro de 2015, o autor confessou-se devedor e comprometeu-se a pagar à ré a quantia de €2.600,00, em prestações mensais, através do desconto de 1/3 do seu salário até tal quantia se encontrar totalmente saldada.

- Consta de tal documento:

“Cláusula 1ª

Fonte da dívida. Confissão de dívida

1. O Segundo Outorgante (ora autor), no dia 15 de outubro de 2015, em A71 Peage de Bizeneuille, Montmarault, 03390 França, praticou, no exercício das suas funções de motorista ao serviço da Primeira Outorgante (ora ré), a seguinte infração, que deu origem ao Processo nº ..., e que consistiu em:

Uso irregular do dispositivo destinado a controlar as condições de trabalho (…)

2. O Segundo Outorgante assume e declara que a prática da infracção referida no nº 1 desta cláusula ocorreu, exclusivamente, por sua actuação, não se devendo, designadamente, a qualquer instrução, directiva ou orientação da Primeira Outorgante ou de qualquer outro seu trabalhador ou representante, assumindo o Segundo Outorgante a exclusiva responsabilidade do cometimento da mesma.

3. A infracção antes referida já implicou o pagamento pela Primeira Outorgante, às entidades competentes, da quantia de 2600,00€ (dois mil e seiscentos euros), o que ocorreu no dia 15 de Outubro de 2015 (…); redundando, assim, num prejuízo para aquela, do qual o Segundo Outorgante declara assumir a inteira responsabilidade.

4. À data actual, o valor referido no número anterior da presente cláusula encontra-se totalmente em dívida à Primeira Outorgante pelo Segundo Outorgante, confessando-se este, expressa, livre e irrevogavelmente, como devedor daquela, sem quaisquer reclamações ou reservas.

Cláusula 2ª

Liquidação da dívida

1. Para efeitos de liquidação do valor em dívida acima mencionado, o Segundo Outorgante declara instruir e autorizar que a Primeira Outorgante proceda ao desconto mensal nas quantias (designadamente, salários, compensações, indemnizações e ajudas de custo), líquidas de descontos legalmente obrigatórios, que o Segundo Outorgante venha a auferir enquanto trabalhador da Primeira Outorgante, até tal dívida se encontrar totalmente saldada.

2. Os descontos mencionados no número anterior da presente cláusula serão efectuados no valor de 1/3 (um terço) das quantias líquidas referidas no número anterior da presente cláusula, efectuando-se o primeiro desconto no processamento salarial do corrente mês de assinatura deste acordo e, em todo o caso, garantindo que o Segundo Outorgante receba mensalmente, pelo menos, o valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida.

Cláusula 3ª

1. No caso de, terminando o contrato de trabalho existente entre a Primeira Outorgante e o Segundo Outorgante, independentemente do motivo e forma da cessação, haver um montante da dívida referida na cláusula 1ª que se encontre ainda por pagar nessa data, tal valor vencer-se-á imediatamente nesse momento, ficando a Primeira Outorgante desde já autorizada pelo Segundo Outorgante a, nos termos legais, descontar o montante em falta em quaisquer quantias que o Segundo Outorgante tenha direito a receber pela cessação do seu contrato de trabalho.

2. No caso do valor do desconto referido no número anterior não for suficiente para extinguir o remanescente da dívida, o Segundo Outorgante ficará obrigado a pagar à Primeira Outorgante o montante em falta no prazo de 30 (trinta) dias contados da cessação do contrato de trabalho.

3. No caso de não cumprimento pelo Segundo Outorgante, da obrigação prevista no número anterior da presente cláusula, vencer-se-ão juros de mora à taxa legal aplicável, contados da data aí referida, sem necessidade de qualquer outra comunicação da Primeira Outorgante nesse sentido.

Cláusula 4ª

Força de Título Executivo

As partes atribuem ao presente acordo a força de título executivo.

Loureira, 18 de Novembro de 2015”

                                                             *

É consabido que, <<quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor (…)>> verificados os requisitos descritos no n.º 1 do artigo 847.º do C.C.. Esta é a compensação legal e unilateral, imposta por uma das partes à outra, sendo que, no caso de a mesma ser voluntária ou convencional aqueles requisitos não se verificam.

Por outro lado, conforme se estatui no n.º 1 do artigo 279.º do C.T., <<na pendência de contrato de trabalho, o empregador não pode compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, nem fazer desconto ou dedução no montante daquela>> - sublinhado nosso. O disposto neste normativo só não se aplica nos casos previstos no seu n.º 2.

Significa isto que o empregador, de forma unilateral, durante a vigência do contrato, não pode compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador.

Mas poderá fazê-lo por acordo firmado com o trabalhador?

Parece-nos que a resposta terá de ser afirmativa, na medida em que aquele preceito apenas se refere ao empregador, ou seja, não proíbe, de forma genérica, que um crédito salarial se extinga por “compensação”.

Como refere Leal Amado[2] <<(…) consistindo o salário num crédito cuja especial natureza exige o pagamento efectivo, bem se compreendem as preocupações restritivas neste domínio evidenciadas pelas leis do trabalho, as quais encontram expressão no art. 279.º do C.T.: a função alimentar do salário e a correspondente necessidade de assegurar o seu pagamento conduziram a limitar aqui o jogo da compensação. (…)

Ora, o que se afigura lícito deduzir do disposto no presente artigo é que esta norma visa impedir que o empregador – e apenas ele – recorra a esta espécie de acção directa, frustrando ou sacrificando o crédito retributivo do trabalhador. O artigo em análise já não constitui qualquer espécie de obstáculo à utilização do crédito salarial pelo trabalhador, com o objectivo de saldar dívidas suas para com o empregador. Vale dizer, o art. 279.º não permite que a entidade patronal actue como compensante, mas não proíbe que o trabalhador actue como tal – ou, por outras palavras, o crédito retributivo não poderá funcionar, à luz desta norma, como <<crédito principal>>, mas nada impede que ele funcione como <<contra-crédito>>. Fora da previsão deste artigo ficam também, naturalmente, as hipóteses de compensação voluntária, bilateral, em que as duas partes estejam de acordo em compensar os recíprocos créditos e débitos. Significa isto, em suma, que a proibição contida no art. 279.º se restringe às hipóteses de compensação legal (unilateral) e, dentro destas, às hipóteses de compensação unilateral por parte do empregador. Diferente será o caso na eventualidade de a declaração de compensação ser feita pelo trabalhador, bem como na hipótese de compensação convencional ou voluntária. Estas são situações que exorbitam da respectiva previsão normativa, pelo que a operatividade da compensação não encontra qualquer entrave neste preceito>>[3].

Como também escreve Júlio Gomes[4], a propósito do artigo 271.º do C.T. de 2003, <<destaque-se que a proibição de compensação se aplica apenas ao empregador “podendo o trabalhador invocá-la” (…)>>.

Regressando ao caso dos autos, como já referimos, resulta da matéria de facto provada que, através do respetivo documento, o A. confessou-se devedor e comprometeu-se a pagar à Ré a quantia de €2.600,00, em prestações mensais, quantia esta respeitante a uma coima aplicada à Ré pela prática de uma contraordenação cuja responsabilidade foi assumida pelo A. e já paga por aquela.

Mais acordaram para efeitos de liquidação do valor em dívida, e o A. autorizou o desconto mensal nos salários, compensações, indemnizações e ajudas de custo que viesse a auferir, o que veio a ocorrer nas retribuições dos meses de fevereiro de 2016 a novembro de 2016, no montante total de €3.724,00.

O A. assumiu a prática da contraordenação, confessou-se devedor da respetiva coima de €2.600,00 aplicada à Ré e autorizou o desconto mensal para liquidação daquele valor. E, é precisamente aquela prática que o A. aceitou e esta responsabilidade que assumiu do pagamento da coima que geram o nascimento do crédito da empregadora.

Desta forma, temos de concluir que entre o A. e a Ré foi acordada uma compensação que, pelos fundamentos já avançados, não é proibida pelo citado artigo 279.º do C.T..

Na verdade, esta norma é imperativa mas no que respeita ao prescrito na mesma, ou seja, à proibição de compensação unilateral por parte do empregador.

Não esquecemos a natureza especial da relação laboral nem a posição de maior fragilidade do trabalhador, no entanto, entendemos que, em caso de consenso, não pode ser ignorada a autonomia das partes (nem há razões de ordem pública que a afastem), sendo certo que o trabalhador não invocou qualquer vício da vontade que tivesse afetado a genuinidade do acordo de pagamento estabelecido com a Ré empregadora.

Assim sendo, não acompanhamos a sentença recorrida quando refere que “atendendo à proibição legal, não podia a ré descontar o vencimento do autor, mesmo que com o seu acordo, (…)”

Como já referimos, mas repetimos, o artigo 279.º do C.T. é uma norma imperativa apenas e só quando estabelece que ao empregador está vedado, de forma unilateral, durante a vigência do contrato, compensar (descontar) a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, o que já não ocorre se tal compensação (desconto) for acordada entre as partes.

No que concerne à restante quantia de €1.124,00 descontada nas retribuições do A. e relativamente à qual não se provou a existência de qualquer acordo nesse sentido, pelos motivos já expostos, estava vedado à Ré tal comportamento por força do disposto no artigo 279.º do CT.

Pelo exposto, a compensação invocada pela Ré recorrente é válida no que respeita à quantia de € 2.600,00, a única constante do acordo de pagamento e, consequentemente, ao montante que a mesma foi condenada a pagar ao A. deve ser descontado o valor de € 2.600,00.

Procede, assim, em parte, esta conclusão da recorrente.

3ª questão

Se a reconvenção devia ter sido julgada procedente

Antes de mais, cumpre dizer que por força da apreciação da anterior questão e da validade da compensação, a recorrente já obteve, em parte, o que peticiona, ou seja, a sua não condenação no pagamento da quantia de €2.600,00.

No que concerne à restante quantia de €1.124,00 descontada nas retribuições do A., desde já avançamos que improcede o pedido da Ré.

Na verdade, a Ré recorrente alega que, no dia 26/04/2016, o apelado incumpriu os tempos de trabalho e de repouso e, como consequência, a apelante teve de pagar diversas coimas no montante total de € 1.124,00; que as partes acordaram que o apelado pagaria tal montante da sua responsabilidade em prestações mensais, através de desconto de um terço no seu salário, pelo que, os descontos foram legais.

Acontece que, da matéria de facto provada não resultam quaisquer factos capazes de sustentar tais alegações e respetivo pedido.

Na verdade, como já referimos, apurou-se que a Ré pagou coimas no montante de, pelo menos, €3.824,00 e que através de documento intitulado “confissão de dívida com acordo de pagamento”, o A. confessou-se devedor e comprometeu-se a pagar mas apenas a quantia de €2.600,00

Acresce que dos factos descritos nos pontos 14 a 18, sem mais, não se pode retirar a responsabilidade do A. pela prática das contraordenações imputadas à Ré mas, tão só, que a Ré ministrou formação profissional ao A. nos termos aí definidos e que foram instaurados diversos autos de contraordenação à Ré por infrações cometidas aquando da condução de veículo sua propriedade, por parte do A.

Assim sendo, ao contrário do alegado pela recorrente, não se provou que o desconto da quantia de €1.124,00 resultou de acordo celebrado com o A. nem que decorreu de infrações da responsabilidade deste. E também não se provou, nem seria este o processo competente para tal, que a Ré organiza sempre o trabalho de modo a que os trabalhadores possam cumprir o disposto no Reg. (CEE) n.º 3825/85 e no Reg. (CE) n.º 561/2006, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30/08.

Pelo exposto, não se apurou a existência deste crédito da Ré sobre o A., inexiste qualquer direito de regresso da mesma e, consequentemente, improcede a reconvenção deduzida pela ora recorrente.

Na procedência parcial do recurso impõe-se a revogação e manutenção da sentença recorrida em conformidade.

IV – Sumário[5]

1. O empregador, de forma unilateral, durante a vigência do contrato, não pode compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, conforme se encontra estabelecido no artigo 279.º, n.º 1, do C.T..

2. Este artigo 279.º é uma norma imperativa apenas e só quando estabelece que ao empregador está vedado, de forma unilateral, durante a vigência do contrato, compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, o que já não ocorre se tal compensação for acordada entre as partes.

3. Se o A. assumiu a prática de uma contraordenação, confessou-se devedor da respetiva coima de € 2.600,00 aplicada à Ré e autorizou o desconto mensal para liquidação daquele valor, tal comportamento gerou o crédito da empregadora e a compensação invocada, porque acordada entre o A. e a Ré, não é proibida pelo artigo 279.º do C.T..

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se:

em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida na parte em que condenou a Ré a pagar ao A. a quantia de €7.344,37, condenando-se a Ré a pagar ao A. a quantia de € 4.744,37 (quatro mil setecentos e quarenta e quatro euros e trinta e sete cêntimos) e,

no mais, em manter a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente e recorrido na proporção 2/3 e 1/3, respetivamente.

                                                                         Coimbra, 2020/06/26

                                                                                        (Paula Maria Roberto)

                                                                           (Ramalho Pinto)

(Felizardo Paiva)


[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Ramalho Pinto
                        Felizardo Paiva
[2] Contrato de Trabalho, À luz do novo Código do Trabalho, Coimbra editora, 2009, págs. 316 e 317.
[3] No mesmo sentido, Romano Martinez, Direito do Trabalho, 3ª edição, idt, Almedina, pág. 598.
[4] Direito do Trabalho, volume I, Coimbra Editora, pág. 792.
[5] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.