Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
234/14.0GBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: ATO URGENTE
FÉRIAS JUDICIAIS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 01/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA LOCAL DE FUNDÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: IMPROCEDENTE A RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Legislação Nacional: ARTS. 103.º E 104.º, DO CPP; ART. 28.º DA L. N.º 112/2009
Sumário: Da conjugação do art.º 28º da Lei n.º 112/2009, com os art.ºs 103º, n.º 2 e 104º, n.º 2, do Código de Processo Penal, resulta inequívoco que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso das decisões neles proferidas.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Por sentença de 23-6-2015 o arguido A... foi condenado na pena de 2 anos e 4 meses de prisão por cada um dos dois crimes de violência doméstica, do art. 152º, nº 1, al. a), e nº 2, tendo a pena única sido fixada em 4 anos e 2 meses de prisão.

O arguido foi, ainda, condenado na pena acessória de proibição de contactar com a vítima B... pelo período de 4 anos e 2 meses.

2.

            Em 8-9-2015 o arguido interpôs recurso da condenação e nele invocou a verificação de nulidades, impugnou a decisão da matéria de facto, a pena aplicada e a decisão de não suspender a pena.

            O recurso foi admitido.

            A ofendida e o Ministério Público responderam ao recurso, defendendo a manutenção da decisão.

O Sr. P.G.A. emitiu parecer no sentido do não recebimento do recurso, por este ter dado entrada fora de prazo.

Foi proferido despacho não admitindo o recurso, por este ter dado entrada para além do prazo legal.

3.

   O arguido reclamou para a conferência da decisão sumária proferida, alegando:

«- A Lei 112/2009, de 16/9, é uma lei especial.

- Por conseguinte, os atos praticados no âmbito dos processos de violência doméstica têm natureza urgente, porque esta lei especial lhe atribui essa qualidade.

- Por seu turno, o nº 2 do art. 103º do CPP determina quais os atos que se praticam em férias.

- Entre os quais estão previstos, na respetiva al. g), os atos considerados urgentes em lei especial, ou seja, onde se incluem os atos respeitantes aos crimes de violência doméstica.

- Por seu turno, o art.º 104º do CPP dispõe sobre a contagem dos prazos de atos processuais, prevendo especialmente no seu nº 2 quais os prazos que correm em férias.

- O art.º 103º do CPP dispõe sobre quando os atos processuais podem ser praticados, enquanto o art.º 104º dispõe sobre a contagem dos prazos para a prática desses atos.

- Ora, nos termos do nº 2 do art.º 104º, são especificados quais os prazos que correm em férias.

- Assim, dispõe esta norma que "correm em fé rias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os actos referidos nas alíneas a) a e) do nº 2º do art.º 103º.

- Portanto, o legislador quis deixar claro quais os prazos que correm em férias, enumerando-os.

- Dessa enumeração não resultam incluídos os atos considerados urgentes em legislação especial, ou seja, consequentemente, os atos a praticar nos processos por crimes de violência doméstica.

- Ademais, sem prejuízo da diferenciação entre o quando da prática do ato processual e a contagem do prazo para essa prática, sempre se diria que sendo o nº 2 do art.º 104º uma regra especial, esta afastaria a regra geral do art.º 103º (se assim não fosse, qual a razão de ser daquela disposição legal?).

- Em suma, todos os atos relativos aos processos de crimes por violência doméstica que não impliquem o decurso de qualquer prazo, poderão ser praticados nas férias judiciais (máxime, uma audiência de discussão e julgamento). Porém, todos os atos cuja prática esteja sujeita ao decurso de um prazo, terá que respeitar a suspensão do mesmo nas férias judiciais.

- E o argumento de que houve um "lapso legislativo", como sustenta o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no Processo com o nº 627/09.SPBCTB.Cl, a fim de justificar a aplicação do nº 2 do art.º 104º do CPP à contagem dos prazos para a prática de atos considerados urgentes por legislação especial, smo e com todo o respeito, não pode colher, sob pena de estarmos a desprezar o principio da segurança jurídica e a sobrepormo-nos às funções do legislador.

- As leis primam pela certeza do que preveem e estatuem, não pela incerteza e insegurança do que prescrevem, é necessária a certeza do que é obrigatório, proibido ou permitido.

- O legislador tem de oferecer certeza e segurança jurídica à sociedade, assegurando-lhe maior segurança, certeza e precisão nas situações jurídicas, os cidadãos têm direito a, com segurança, saber com que leis podem contar.

- "O princípio da confiança é violado quando haja uma afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos (Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 287/90, 303/90, 625/98, 634/98, 186/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt)".

- Por outro lado, ao dizer-se que o disposto neste nº 2 do Artº 104º do C.P.P. abrange a al. g) do nº 2 do Artº 103°, apenas porque o legislador "não teve o cuidado de verificar que o aditamento [dessa alínea], que ocorreu na última fase do processo legislativo (...) implicava a correspondente adequação do Artigo 104º, nº 2 (...)", para além de se entender que o legislador legisla de forma perfeitamente descuidada, tratando coisas sérias com desleixo, deverá sempre entender-se que se está a adivinhar o que possa ter acontecido, sem outro fundamento que não o do descuido do legislador.

- Com efeito, se assim foi, num Estado de Direito como o Português, é obrigação do legislador corrigir tal descuido, e não do julgador suprimir aquilo que, verdadeiramente, não se sabe se foi ou não um descuido.

- A este propósito, e como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional já mencionado, "a tarefa de estabelecer o regime jurídico do processo penal por via geral e abstrata é competência do legislador e só dele. Aos tribunais cabe a aplicação do direito aos casos que lhe são submetidos, designadamente, a aplicação dessas normas que estabeleçam a tramitação processual".

- O mesmo é dizer que, para que aquele entendimento venha a ter aplicação no âmbito do Direito Penal, necessário se toma que se proceda a uma alteração legislativa, sob pena de estarmos perante uma sobreposição de poderes, e, em ultima instância, perante uma interpretação extensível inadmissível no Direito Penal Português.

- Não esqueçamos, por outro lado, que o legislador quis afastar expressamente, também, os atos descritos na al. f) do nº 2 do art.º 103º do CPP. O que nos pode levar a concluir que, efetivamente, não houve qualquer descuido do legislador, não houve qualquer lapso legislativo, mas que quis que assim fosse. Se posteriormente chegou à conclusão de que o não deveria ter feito, então terá agora que suprir essa intenção por via legislativa.

- Por ultimo, não pode deixar de se dizer que, embora por raciocínio académico, havendo o entendimento de que no conceito de prática de atos processuais se inclui o decurso dos prazos para essa prática, no que não se concorda e não se concede, sempre teria que se considerar a natureza especial do nº 2 do art. º 104º relativamente ao regime geral do nº 2 do art.º 103º. Quer isto dizer que, em matéria de decurso de prazos, a norma específica afastou a norma geral.

Como diria o poeta castelhano António Machado, "o caminho faz-se caminhando", também a Jurisprudência se tem feito decidindo sobre decisões, umas vezes de forma concordante outras de forma discordante».


*


FACTOS PROVADOS

4.

Do processo resultam os seguintes factos relevantes à decisão:

- por sentença proferida em 23-6-2015 o arguido foi condenado na pena de 2 anos e 4 meses de prisão por cada um dos dois crimes de violência doméstica, tendo a pena única sido fixada em 4 anos e 2 meses de prisão;

- o arguido foi, ainda, condenado na pena acessória de proibição de contactar com a vítima pelo período de 4 anos e 2 meses;

- o arguido e seu defensor assistiram à leitura da sentença;

- em 8-9-2015 deu entrada no processo o recurso interposto pelo arguido.


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DECISÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.


*

            O recurso interposto não foi recebido porque, e citamos:

«Dispõe o art. 28º da Lei 112/2009, de 16/9, cuja epígrafe é “celeridade processual”:

“1 - Os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.

2 - A natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal”.

A primeira afirmação da norma é que o processo relativo ao crime de violência doméstica tem natureza urgente.

E tendo uma tal natureza toda a tramitação terá que ser afeiçoada a essa classificação.

Depois a norma faz uma especificação, decorrente da classificação como urgente do processo, dizendo que se lhe aplica o regime do nº 2 do art. 103º do C.P.P., que respeita ao momento da prática dos actos do processo.

… A intenção da lei ao proceder a esta qualificação foi a de imprimir celeridade ao processo e deixar de fora o prazo de interposição do recurso de despachos e sentenças seria desvirtuar essa intenção.

Por isso se tem entendido, generalizadamente, que o prazo para recorrer das decisões proferidas em tais processos é contínuo.

Neste sentido vide a decisão proferida na reclamação do despacho de não recebimento de um recurso, proferida em 7-6-2010 no processo 5/08.4GHVNG-A, e os acórdãos da Relação de Coimbra e Évora – respectivamente de 24-9-2014, processo 627/09.5PBCTB, da primeira, e de 28-6-2011, processo 1890/09.7PBFAR-A, e de 20-1-2015, processo 243/11.1TAGLG, da segunda -, que decidiram que a natureza urgente de tais processos determina que os prazos dos actos processuais que se praticam no seu âmbito correm em férias, nos termos do nº 2 do art. 104º do C.P.P.

E até o Tribunal Constitucional já se debruçou sobre a questão, no acórdão 158/2012, sendo que a origem da pronúncia foi, precisamente, a decisão de não receber um recurso interposto num processo de violência doméstica, por se ter entendido que como o prazo corria em férias o recurso tinha sido interposto para além do prazo.

Neste acórdão pode ler-se que este tribunal, reconhecendo que «o facto de a contagem do prazo de recurso não se suspender no período de férias judiciais» tem como efeito prático o encurtamento do tempo disponível para o exercício do direito ao recurso, entendeu que este efeito não viola as garantias de defesa do arguido, por ele continuar a dispor de um período de tempo considerado adequado, apenas deixando “de obter a neutralização do período de férias judiciais mediante a suspensão da contagem do prazo nesse período» efeito que, podendo «ter reflexos negativos na organização do trabalho do advogado ou defensor do arguido (do mesmo modo que o terá no dos demais sujeitos processuais) … não atinge e muito menos restringe, o direito ao recurso, cujos pressupostos, âmbito, formalidades e prazo para o exercício dos poderes processuais competentes se mantém intocados”.

Daí a decisão de não julgar inconstitucionais as normas do art. 28º, nº 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16/9, “interpretadas no sentido de que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso de decisões neles proferidas”».

            Reafirmamos, na íntegra, o que já antes foi dito e concluímos da mesma forma: o recurso interposto pelo arguido entrou no processo para além do prazo legal estabelecido para o efeito.

            Efectivamente, «pese embora a al. g) do n.º 2 do art.º 103º do Código de Processo Penal não estar contida nas alíneas a) a e), referidas no n.º 2 do art.º 104º do Código de Processo Penal, não resulta objectivamente da alteração legislativa de 2013, o propósito legislativo de afastar a aplicação do art.º 104º, n.º 2 do Código de Processo Penal aos processos por crime de violência doméstica como impõe o art.º 28º da Lei n.º 112/2009.

Da conjugação do art.º 28º da Lei n.º 112/2009, com os art.ºs 103º, n.º 2 e 104º n.º 2 do Código de Processo Penal, resulta inequívoco que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso das decisões neles proferidas.

Como o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de dizer - Acórdão n.º 158/2012, in D.R. n.º 92, Série II de 2012-05-11 -, não são inconstitucionais as normas do artigo 28.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, quando interpretadas no sentido de que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso de decisões neles proferidas» - decisão proferida em 10-3-2014 no processo 823/12.8GAVCD.P1.


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos improcede a reclamação.

Fixa-se em 4 UC´s a taxa de justiça.



Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 27 de janeiro de 2016

Olga Maurício – relatora

Luís Teixeira - adjunto