Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
187/08.4TBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
COMPRA E VENDA
MÚTUO
APREENSÃO DE VEÍCULO
Data do Acordão: 07/15/2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 405.º, N.º 1;408, N.º 1; 409.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 15.º, N.º 1 DO DEC.LEI N.º 54/75, DE 12/02
Sumário: I - A compra e venda financiada por um terceiro, polarizada na relação entre o consumidor e o terceiro financiador, desdobra-se num contrato de compra e venda, a pronto, ou seja, sem qualquer convenção de diferimento do preço, celebrado entre o consumidor e o vendedor, e num contrato de mútuo de dinheiro, celebrado entre o consumidor e o terceiro financiador, sendo o capital mutuado destinado ao pagamento imediato do preço estabelecido no conexo contrato de compra e venda.
II – Abrangendo o artigo 409º, nº 1, do CC, na sua letra e no seu espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda de veículo automóvel, em virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda fosse fraccionado no tempo, a figura da reserva da propriedade tem sentido no contexto do contrato de mútuo celebrado com o objectivo de financiar o contrato da compra e venda.
III - A reserva de propriedade pode tutelar o interesse do vendedor ou da entidade financiadora que com aquele colabora, compelindo o comprador ao cumprimento integral das obrigações assumidas para com aquela.
IV - Encontrando-se a entidade financiadora na posição de titular da reserva de propriedade, considerando que se demonstrou o incumprimento pelo adquirente das obrigações que originaram a reserva de propriedade e que esta se encontra registada, a favor do respectivo titular, mostram-se preenchidos os requisitos legais que conduzem à procedência da providência cautelar para a apreensão de veículo.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


            “A.....”, com sede na Rua General Firmino Miguel, nº 5, 14º, em Lisboa, interpôs recurso de apelação da decisão que, nos autos de procedimento cautelar para apreensão de veículo e respectivos documentos, que instaurou contra B....., residente na Rua Principal, Sanguinheda, S. Martinho da Cortiça, Arganil, indeferiu, liminarmente, o requerimento inicial, terminando as alegações com o pedido da sua procedência, anulando-se ou revogando-se a decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O presente recurso vem interposto de decisão que indeferiu liminarmente a providência cautelar de apreensão de veículo automóvel, requerida nos termos do artigo 15° do Decreto-Lei n° 54/75 de 12 de Fevereiro;
2ª - A requerente alegou sucintamente os seguintes factos:
No dia 26 de Dezembro de 2006 celebrou com o requerido o contrato de
financiamento para aquisição de uma viatura de marca RENAULT, modelo CLIO II
SOCIÉTÉ DIESEL, com a matrícula 68-33-UL;

Como garantia do referido contrato foi inscrita a favor da mutuante reserva de
propriedade sobre a mencionada viatura;

O requerido incumpriu as obrigações que assumiu em virtude do referido contrato,
nomeadamente não pagou as prestações n°s 2, 3, 4, 5, 6, 7, vencidas em
8/03/2007, 08/04/2007, 08/06/2007, 08/07/2007, 08/08/2007 e 08/09/2007 respectivamente;

3ª - Entendeu o Meritíssimo Juiz a quo que não se encontravam reunidos os pressupostos para o decretamento da providência, nomeadamente não se verificava um dos pressupostos que, segundo o mesmo, é a existência de um contrato de compra e
venda;

4ª - Ou seja, para o Meritíssimo Juiz a quo não basta que se verifique a existência de
reserva de propriedade inscrita a favor da requerente, nem que se verifique o
incumprimento das obrigações que originaram a mesma, é necessário, também, que a
referida reserva de propriedade seja garantia do cumprimento de um contrato de
compra e venda, e não de qualquer outro;

5ª - Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da Lei;
6ª – A reserva de propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser
constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo, daqueles cuja finalidade
e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, quando existe uma
interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda;

7ª - Nestas situações, tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao
vendedor, sub-roga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de
compra e venda a prestações, bem como, nas garantias de que este poderia dispor, no
caso, a reserva de propriedade;

8ª - Este entendimento encontra pleno acolhimento no artigo 591° do Código Civil, bem como, no principio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405° do Código Civil, uma vez que, não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor;
9ª - Ora, a própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no n° 3 do seu artigo 6o quando refere que "o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda: (...)
10ª - O acordo sobre a reserva de propriedade".
11ª - Entendimento este, que também tem sido sufragado em diversos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, entre os quais destacamos o acórdão de 27-06-2002, consultado na base de dados do Ministério da Justiça em www.dqsi.pt, cujo n° de documento é RL200206270053286, o acórdão de 13-05-2003 consultado na mesma base de dados de que não se encontra disponível o n° de documento e que teve como relator o Mª Juiz Desembargadora Rosa Maria Coelho, e o acórdão, mais recente, proferido pela 1a Secção do mesmo Tribunal de 7 de Dezembro de 2004;
12ª - Por outro lado, importa esclarecer que, ao contrário do que foi defendido pelo Meritíssimo Juiz a quo, o direito que a requerente tem de reaver a viatura não decorre das cláusulas do contrato de mútuo, mas sim da propriedade que tem sobre ela, condicionada é certo, mas ao não se verificar a condição que implicaria a transmissão da mesma para a requerida, então a propriedade permanece na sua esfera jurídica e é com base nesse direito de propriedade que lhe assiste o direito de reaver a viatura ao abrigo do artigo 15° do Decreto-Lei n° 54/75 (Neste sentido veja-se o Acórdão da 7a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo n° 11785/05, de 30-12-2005);
13ª - Posto isto, e encontrando-se inscrita a favor da recorrente reserva de propriedade sobre a viatura que se requereu a apreensão, bem como, estando indiciariamente provado que o requerido não cumpriu as obrigações que originaram a constituição da reserva de propriedade, sem prejuízo de se apresentarem outras provas, nomeadamente a prova testemunhal, julgamos que se encontram reunidos os pressupostos para o decretamento da requerida providência cautelar de apreensão de veículos, nos termos do artigo 15° do Decreto-Lei n° 54/75;
14ª - Pelo que, a procedência do presente recurso é manifesta.
Não foram apresentadas contra-alegações.

Este Tribunal da Relação considera que se encontram provados, com interesse relevante para a decisão do mérito do agravo, os seguintes factos:

1 – A requerente veio peticionar a entrega imediata da viatura Renault, modelo Clio II, Société Diesel, com a matrícula 68-33-UL, bem assim como dos respectivos documentos, entregando-se os mesmos a um fiel depositário.

2 – Invoca, para tanto, ter celebrado com o requerido um contrato de crédito, que teve por objecto o financiamento de 8.000,00 euros, quantia essa que se destinou à aquisição, por parte daquele, do mencionado veículo automóvel, que lhe foi vendido, por “C.....”, com a constituição de reserva de propriedade, a favor da requerente, que se encontra registada, na Conservatória do Registo de Automóveis.

3 - Porém, o requerido deixou de pagar as prestações do contrato referenciado e, mesmo depois de interpelado para, em prazo indicado, pôr termo à mora, não procedeu ao pagamento das quantias em dívida, o que levou a requerente a declarar-lhe, por escrito, que procedia à resolução desse contrato.

4 - O requerido ainda não entregou a viatura.

                                                                *

Tudo visto e analisado, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

A única questão a decidir, na presente apelação, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º e 684º, nº 3, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber se a entidade financeira de crédito concedente de mútuo para aquisição de veículo automóvel, com reserva de propriedade registada a seu favor, goza de legitimidade para requerer a presente providência cautelar nominada da sua apreensão.

DA APREENSÃO DE VEÍCULO PELA ENTIDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO

Sendo a requerente uma entidade financeira de crédito que concedeu o mútuo ao requerido, com o qual este adquiriu um veículo automóvel, que registou em seu nome, mas com inscrição de registo de reserva de propriedade, a favor daquela, importa saber se a entidade financeira ou, apenas, o vendedor da viatura, em cujo nome a mesma se não encontra registada, têm legitimidade para solicitar a providência cautelar da sua apreensão.

No caso em apreço, está-se em presença de uma compra e venda financiada, tendo por objecto um veículo automóvel, coexistindo dois contratos autónomos, estrutural e formalmente, com vista à consecução de uma finalidade económica comum, mas com uma ligação funcional entre si, ou seja, um contrato de compra e venda e um contrato de crédito, com registo da reserva da propriedade da viatura, a favor da entidade financiadora.

O sistema de financiamento do consumidor, baseado, exclusivamente, na compra e venda a prestações, sofria uma limitação importante que se traduzia nas próprias disponibilidades financeiras e liquidez do vendedor que, em virtude da convenção de diferimento, prescindia de receber, imediatamente, o preço dos bens fornecidos ao consumidor, renunciando à liquidez necessária, não só para fazer face aos encargos exigíveis, mas, também, para recompor o seu «stock» de mercadorias.

Porém, tudo se alteraria com o fabrico e distribuição em massa do automóvel que, mantendo um preço elevado, conduziu ao esvaziamento do regime da compra e venda a prestações, sob pena de o vendedor ser incapaz de, por si só, dispor de liquidez suficiente para conceder crédito aos seus clientes e, simultaneamente, de assegurar a reconstituição dos seus «stocks».

Mas, para além de esgotar a capacidade de resposta satisfatória do instituto da compra e venda a prestações, contribuiu, inevitavelmente, para o aparecimento de um outro sujeito, na relação jurídico-económica gerada pela concessão de crédito ao consumidor, que, assim, se trilateralizava[1].

Este novo sujeito, especializado no negócio da concessão de crédito, interpondo-se entre o consumidor e o vendedor, vinha libertar este último da função de financiamento que até, então, desempenhava, em acumulação com a sua actividade principal de intermediação na circulação de bens.

Ora, a trilateralização da operação de concessão de crédito ao consumidor opera, por meio de uma de três técnicas jurídico-negociais, isto é, a cessão de créditos, a utilização de títulos cambiários e a compra e venda financiada[2].

Porém, sendo evidente a específica identidade estrutural de cada um deles, a cessão de créditos e a utilização de títulos cambiários comungam de uma característica que consiste no facto de o contrato de crédito, propriamente dito, ser celebrado entre o consumidor e o vendedor, que realizam uma normal compra e venda a prestações, sendo que este último, para colmatar as insuficiências financeiras que, também, o constrangem, se refinancia junto de um terceiro, para o qual transfere, em última instância, o papel de financiar toda a operação.

Distintamente, a compra e venda financiada por um terceiro, o “contrato de crédito”, tal a designação do documento subscrito pela requerente e pelo requerido, em vez de se localizar na relação entre consumidor e vendedor, polariza-se naquele e no terceiro financiador, desdobrando-se num contrato de compra e venda, a pronto, ou seja, sem qualquer convenção de diferimento do preço, celebrado entre o consumidor e o vendedor, e num contrato de mútuo de dinheiro, celebrado com o terceiro financiador, sendo o capital mutuado destinado ao pagamento imediato do preço estabelecido no conexo contrato de compra e venda.

Estipula o artigo 381º, nº 1, do CPC, que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.
Por outro lado, dispõe o artigo 15º, nº 1, do DL nº 54/75, de 12 de Fevereiro, na redacção dada pelo DL nº 178-A/2005, de 28 de Outubro, que “vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula”.

Preceitua ainda o artigo 16º, nº 1, do já citado DL nº54/75, de 12 de Fevereiro, que “provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”, a partir da qual, dentro dos quinze dias seguintes, prossegue o respectivo artigo 18º, nº 1, “...o credor deve promover a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de penhor, regulado na lei de processo civil, conforme haja ou não lugar a concurso de credores; dento do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação”.

Nestes termos, face ao conjunto do normativo legal acabado de elencar, constituem condições de exercício do procedimento cautelar para apreensão de veículo, o incumprimento pelo adquirente das obrigações que originaram a reserva de propriedade e que esta se encontre registada, a favor do respectivo titular.

Estando em causa, na hipótese em apreço, uma compra e venda financiada por um terceiro, o denominado “contrato de crédito”, detendo a entidade financiadora o registo da reserva de propriedade do veículo, cujas prestações mutuárias o adquirente deixou de pagar, mesmo depois de interpelado para, em prazo indicado, pôr termo à mora, gozará a mesma da faculdade de promover a sua apreensão para, em seguida, como já anunciou ao requerido que iria acontecer, instaurar a acção principal de restituição definitiva da viatura, com base na resolução do contrato?

Nos contratos de alienação, a transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se, por mero efeito do contrato, com excepção, que é a situação que agora interessa considerar, da faculdade de as partes estipularem a reserva de propriedade da coisa, com a inerente suspensão do efeito translativo da propriedade[3], até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento, nos termos das disposições combinadas dos artigos 408º, nº 1 e 409º, nº 1, ambos do CC[4].

Este pacto de reserva de domínio contém uma cláusula que permite assegurar ao alienante da coisa ou ao reservatário a propriedade sobre a mesma, para a hipótese do respectivo adquirente não cumprir as obrigações assumidas, considerando-se o negócio celebrado, mediante condição suspensiva da integral satisfação daquelas, ou seja, do integral cumprimento pelo adquirente do automóvel das obrigações contraídas perante a financiadora que, assim, difere o efeito real do contrato para este momento.

Com efeito, apesar de o terceiro financiador não ser o alienante da coisa, mas mero reservatário do automóvel, e de a reserva de propriedade, por definição, só poder ser constituída a favor do vendedor[5], importa interpretar o segmento inicial do artigo 409º, nº 1, do CC, segundo o qual “nos contratos de alienação é licito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa…”, de acordo com o princípio da unidade do sistema jurídico.

Para tanto, importa considerar que a interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um mero conceptualismo formalista, apoiado, estritamente, nos elementos literal ou gramatical e lógico ou racional, mas antes perspectivar a descoberta do “pensamento legislativo”, atendendo às circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo em que a norma é aplicada, vinculada à vontade do legislador ideal que pensa as leis com o sentido mais razoável que o seu texto comporta[6], num critério subsidiário da interpretação objectivista actualista, em conformidade com o preceituado pelo artigo 9º, nº 1, do CC.

Com efeito, a lei vale para todas as épocas, mas, em cada época, de maneira como esta a compreende e desimplica, segundo a sua própria consciência jurídica[7], enquanto referência do sentido de cada norma ao ordenamento jurídico global[8].

Quer isto dizer que o sentido decisivo da lei deve ser, para o intérprete, aquele que, partindo da vontade do legislador, expressa na letra da lei com um mínimo de correspondência verbal, implique a presunção de que aquele consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados[9].

Assim sendo, considerando que o artigo 409º, nº 1, do CC, abrange, na sua letra e no seu espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel, em virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo, contrapõe-se o entendimento de que a figura da reserva da propriedade apenas tem sentido no contexto da compra e venda a prestações e bem assim como de que não só o vendedor pode reservar para si a propriedade da coisa de que é titular[10].

Por isso, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, com assento no artigo 405º, nº 1, do CC, pese embora o triângulo dos sujeitos contratuais interessados, pode a reserva de propriedade tutelar o interesse do vendedor ou da entidade financiadora que com aquele colabora, compelindo o comprador ao cumprimento integral das obrigações assumidas para com esta, através da restituição do veículo[11].

É que a reserva de propriedade pode ser constituída, legalmente, para garantir um crédito de terceiro, em especial, quando este tenha a sua fonte num contrato relacionado com a compra e venda de veículo, como acontece com o contrato de mútuo celebrado com o objectivo de financiar o primeiro contrato, ou seja, o contrato de compra e venda.

E isto, sem prejuízo de o vendedor, por já ter recebido da entidade financiadora o montante global do preço da venda da viatura, não sendo já titular de um direito de crédito sobre o comprador[12], se encontrar, em princípio, impedido de resolver o contrato de alienação.

O adquirente de um bem associa o pagamento do respectivo preço ao cumprimento simultâneo do contrato de compra e venda e do contrato de financiamento, através da satisfação mensal da prestação devida, aceitando a reserva de propriedade, que as partes preferem à hipoteca ou ao penhor, por exigências de simplicidade impostas pelo comércio jurídico, como a garantia do cumprimento deste último contrato.

E o vendedor, também, tem interesse em que a consagração da reserva de propriedade se encontre registada, a seu favor ou da entidade financeira, porquanto, nos casos de crédito ao consumo, existe uma manifesta interdependência entre os contratos de financiamento e de compra e venda, face à incapacidade do comprador em pagar, a pronto, a viatura e do vendedor em assegurar a este a capacidade creditícia necessária.

E isto, sem prejuízo de, na falta de outra disposição legal, tendo em consideração, tão-só, o estipulado pelo artigo 409º, do CC, a reserva de propriedade não ser transmissível, ao contrário do que acontece com os créditos garantidos por penhor ou hipoteca, que se transmitem com estas garantias, embora sejam, tendencialmente, equivalentes as situações dos créditos garantidos pela reserva de propriedade, em relação aos créditos assegurados por aquelas outras garantias reais transmissíveis.

Efectivamente, a reserva de propriedade consiste numa cláusula contratual que difere a transmissão da propriedade, para momento posterior ao do contrato, eventualmente, subordinada ao cumprimento de alguma condição[13].

Assim sendo, encontrando-se a entidade financiadora na posição de titular da reserva de propriedade, considerando que se demonstrou o incumprimento das obrigações do contrato de crédito, que originaram a constituição da reserva de propriedade registada a seu favor e a subsequente declaração resolutória que empreendeu, mostram-se preenchidos os requisitos legais que conduzem à procedência do pedido de apreensão do veículo.

Colhem, deste modo, as conclusões constantes das alegações da requerente.

                                                      *

CONCLUSÕES:

I - A compra e venda financiada por um terceiro, polarizada na relação entre o consumidor e o terceiro financiador, desdobra-se num contrato de compra e venda, a pronto, ou seja, sem qualquer convenção de diferimento do preço, celebrado entre o consumidor e o vendedor, e num contrato de mútuo de dinheiro, celebrado entre o consumidor e o terceiro financiador, sendo o capital mutuado destinado ao pagamento imediato do preço estabelecido no conexo contrato de compra e venda.

II – Abrangendo o artigo 409º, nº 1, do CC, na sua letra e no seu espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda de veículo automóvel, em virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda fosse fraccionado no tempo, a figura da reserva da propriedade tem sentido no contexto do contrato de mútuo celebrado com o objectivo de financiar o contrato da compra e venda.

III - A reserva de propriedade pode tutelar o interesse do vendedor ou da entidade financiadora que com aquele colabora, compelindo o comprador ao cumprimento integral das obrigações assumidas para com aquela.

IV - Encontrando-se a entidade financiadora na posição de titular da reserva de propriedade, considerando que se demonstrou o incumprimento pelo adquirente das obrigações que originaram a reserva de propriedade e que esta se encontra registada, a favor do respectivo titular, mostram-se preenchidos os requisitos legais que conduzem à procedência da providência cautelar para a apreensão de veículo.

                                                               *

 DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, devendo o Exº Juiz determinar, em conformidade, a tramitação legal pertinente ao presente procedimento cautelar.

                                                      *

 

Custas, a cargo do requerido-apelado.

Voto de vencido do sr. Desembargador Nunes Ribeiro:

Vencido pelas razões constantes do acórdão desta Relação (por unanimidade) proferido no agravo n.º 3291/07.2TVLSB.C1, de que fomos relator.
Consequentemente, manteríamos a decisão recorrida.


[1] Giuseppe Carriero, O Crédito ao Consumo, QRGCL, nº 48, Banca d’ Italia, 1998, 7 a 55.
[2] Paulo Ferreira Duarte, Contratos de Concessão de Crédito ao Consumidor: Em Particular, as Relações Trilaterais Resultantes da Intervenção de um Terceiro Financiador, Dissertação de Mestrado, 2000, 89.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 376.
[4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 208 e 209.
[5] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, reelaborada, Almedina, 2006, 296 a 298.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 6ª edição, revista e ampliada, 1965, 150.
[7]  Karl Larenz, citado por Baptista Machado, «in» Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, 3ª reimpressão, Almedina, 2002, 191.
[8] Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 5ª edição, 1979, 114 e 120.
[9] Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 2ª edição, Coimbra, 1963, 151 e 152.
[10] É esta a posição objectora defendida por Paulo Ferreira Duarte, «in» Contratos de Concessão de Crédito ao Consumidor: Em Particular, as Relações Trilaterais Resultantes da Intervenção de um Terceiro Financiador, Dissertação de Mestrado, 2000, 193.
[11] RL, de 30-5-2006, CJ, Ano XXXI, T3, 105; em sentido contrário, o Acórdão do STJ, de 12-5-2005, CJ (STJ), Ano XIII, T2, 94, mas com voto de vencido do Sr. Conselheiro Salvador da Costa, no sentido que aqui se defende.
[12] RL, de 13-3-2003, CJ, Ano XXVIII, T2, 74.
[13] Pinto Duarte, Alguns Aspectos Jurídicos dos Contratos não Bancários de Aquisição e Uso de Bens, nº 22, 54.