Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1855/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
Data do Acordão: 11/02/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 19.º, AL. D) DO DEC. LEI N.º 522/85, DE 31/12.
Sumário: O direito de regresso previsto no artigo 19.º, al. d) do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12 tem como pressuposto a ocorrência de deficiência do acondicionamento da carga; o sujeito passivo da obrigação de regresso é quem responde pelos danos provocados pela queda da carga, a título de culpa (directa ou presumida) ou pelo risco.
Decisão Texto Integral: 7

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A.... demandou, na comarca de Viseu, B... e C..., pedindo a condenação solidária no pagamento da quantia de 20.658,95 € e respectivos juros, como regresso, nos termos do artigo 19.º, al. d) do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12, pelo pagamento de igual quantia a lesados que foram atingidos pela queda da carga transportada no veículo de matrícula QT-57-39, propriedade da ré Enatra, conduzido pelo réu Fausto e segurado na autora.
Alega, em síntese, a autora que os lesados circulavam no veículo de matrícula 77-71-EO quando aí foram atingidos por tubos de PVC que constituíam a carga do seu segurado. Esses tubos teriam um comprimento superior à caixa (aberta) de carga do QT e por isso estariam acondicionados de forma deficiente, o que terá provocado o seu desprendimento e queda durante o trajecto do veículo e consequentemente os danos que a autora reparou.

2. A ré Enatra, entretanto faliu e a autora desistiu do pedido em relação a ela. O réu Fausto contestou, opondo, em síntese e com interesse, que a carga se desprendeu por motivos de força maior e não por culpa sua.
No prosseguimento da causa veio a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o réu C... a pagar à autora a quantia total de €15.392,18, e respectivos juros.

3. O réu não se conforma e apela da sentença, concluindo:
1) O conjunto de factos alegados pela seguradora e que consubstanciavam o seu direito foram dados como não provados.
2) Para concluir que a carga estava mal acondicionada, o tribunal considerou factos não alegados pelas partes, violando o disposto no art. 664° do CPC.
3) Considerando aliás que os mesmos deviam ter sido alegados pelo ora recorrente numa interpretação que viola as regras sobre ónus da prova indicadas nos arts. 342°, n° 2 e 487° do Código Civil.
4) Tudo porque a culpa prevista no art. 19°, al. d) do DL 522/85, de 31.12, é uma culpa efectiva e não presumida.
5) Sendo de referir que há uma prova nos autos que permitiria retirar, à contrario, conclusão oposta: a participação do acidente, efectuada pela GNR-BT, onde é referida a inexistência de violações à legislação.
6) Há contradição entre a fundamentação utilizada na sentença para concluir que a carga estava mal acondicionada e mal amarrada e os factos dados como provados; com efeito, se a própria sentença afirma claramente que a carga se soltou porque a corda se partiu, não pode concluir que a carga se soltou porque estava mal acondicionada e/ou mal amarrada.
7) O facto de a corda se partir é um dado fortuito e imprevisível, tal como o rebentamento em plena circulação de um pneu novo ou o bloqueio momentâneo de uns travões novos ou recentemente objecto de revisão.
8) A sua verificação afasta qualquer negligência do ora recorrente.
9) Aliás o conjunto de circunstâncias provadas permitem, igualmente, extrair a conclusão de que o recorrente foi um condutor extremamente cuidadoso e consciente.
10) O testemunho da única pessoa que analisou, logo após o acidente, as condições em que se encontrava acondicionada e amarrada a carga, o agente da GNR- BT, é em tudo contrário ás conclusões que a sentença retira
11) As respostas aos quesitos 4.º e 7.º não são consentâneas com as provas produzidas nos autos, designadamente os testemunhos prestados em audiência de julgamento.
12) Pelo supra exposto, a sentença apoia-se um factos mal provados e fundamenta presunções judiciais de forma grosseiramente contraditória.
13) Referindo incorrectamente a presunção constante do n° 3 do art. 503.º do Código Civil.
14) Pelo que nunca poderia ter sido provado que a queda da carga se deveu a deficiência de acondicionamento, devendo, pelo contrário, considerar-se não provado o deficiente acondicionamento da carga, com as legais consequências.


4. Contra-alegou a apelada no sentido da confirmação do julgado. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir.
Os factos dados como provados em primeira instância, com interesse para a decisão do recurso, são os seguintes:
1) No dia 5 de Janeiro de 1999, pelas 14 horas, na E.N. n.° 323, ao Km 106,700, no lugar de Cepões, área desta comarca, verificou-se um acidente de viação no qual foram intervenientes, por um lado, o veículo pesado de mercadorias, de serviço particular, de matrícula QT-57-39, propriedade de B..., e conduzido pelo seu motorista, Fausto António Ferreira; e por outro lado, o veículo ligeiro misto, de serviço particular, de matrícula 77-71-EO, conduzido pelo seu proprietário Manuel Rebelo Ribeiro;
2) O veículo de matrícula QT-57-39 era uma camioneta Toyota, de caixa aberta e 3.500 Kilos de peso bruto;
3) O veículo de matrícula QT-57-39 era conduzido por conta, ao serviço, sob as ordens e direcção efectiva da respectiva proprietária, que era quem custeava as despesas inerentes à sua utilização e funcionamento - v.g. combustível, seguro, impostos, pneus, assistência oficinal;
4) procedendo ao transporte de tubos de PVC;
5) Os referidos tubos não cabiam na caixa de carga do veículo, tendo sido empilhados com uma das extremidades encostada ao taipal traseiro da caixa de carga e a outra sobre o tejadilho da cabine, ficando os tubos apoiados no malhal existente sobre o taipal dianteiro da caixa de carga,
6) No local do acidente a E.N. n.° 323 desenvolvia-se em curva para o lado direito, atento o sentido de marcha Viseu - Vila Nova de Paiva;
7) Na zona da curva a visibilidade era inferior a 50 metros.
8) A faixa de rodagem da E.N. n.° 323 dispunha de uma largura total de 5,50 metros;
9) sendo igualmente dividida em duas sub-faixas de rodagem servindo o trânsito em sentidos contrários de marcha, as quais se apresentavam divididas entre si por um traço longitudinal contínuo demarcado a branco no eixo médio da via;
10) O pavimento da E.N. n.°323 apresentava-se asfaltado e em bom estado de conservação, o tempo estava seco e o ar limpo;
11) Ambos os veículos intervenientes no sinistro transitavam pela E.N. n.°323, seguindo o veículo QT no sentido de marcha Viseu - Vila Nova de Paiva, e o veículo EO em sentido contrário de marcha, no sentido Vila Nova de Paiva - Viseu.
12) Os tubos rolaram para o lado esquerdo, para fora da caixa de carga, no preciso momento em que, em sentido contrário passava o veículo EO, o qual viria a embater nos tubos de PVC, entrando um deles pelo pára-brisas do referido veículo, atingindo os seus ocupantes;
13) As extremidades dianteiras dos tubos referidos em 4) e 5), da forma como se encontravam empilhados, ficavam fora do limite dianteiro da caixa de carga cerca de 50 cms a partir do topo superior do malhal sobre o qual estavam apoiados e sobrevoando diagonalmente o tecto da cabine e o intervalo desta com a carroçaria, com o esclarecimento de que aquelas não ultrapassavam o limite superior da frente do referido tecto (Ques 1º).
14) O dito malhal tinha atado, em cada uma das suas extremidades laterais, um ferro de 20 ml de espessura e colocado verticalmente, os quais amparavam os tubos de PVC compreendidos entre si (ferros) e se prolongavam (os ditos ferros) cerca de 30 a 40 cms para além do limite superior do malhal (Ques 3º).
15) Os tubos de PVC tinham sido amarrados pelo Réu com uma corda, com diversas voltas atadas na carroçaria desde a sua traseira até à frente (Ques 4º)
16) Ao descrever a curva referida em 6), partiu o segmento de corda que amarrava os tubos no lanço/volta mais dianteira (Ques 6º);
17) o que ocorreu por motivo de pressão exercida pela carga (Ques 7º)
18) Em consequência do referido nas respostas aos quesitos 6.º e 7.º alguns dos tubos se soltaram para fora do malhal, com o esclarecimento que tal apenas ocorreu com a extremidade dianteira desses tubos que inicialmente apoiada no malhal rolou e caiu sobre a parte superior da frente do taipal esquerdo, ali ficando diagonal e lateralmente fora da caixa de carga, enquanto a outra extremidade permanecia, num plano inferior, sobre a retaguarda do piso da carroçaria (Ques 22º).
19) A viagem em causa foi uma de muitas que o Réu efectuou naquele percurso, com carga igual (Ques 23º).
20) Na altura do acidente o Réu foi submetido a teste de alcoolémia que acusou uma TAS de 0,00 g/l (Ques 25º).


5. Com estes factos, mais precisamente com os que descrevem o acidente, o sr. juiz entendeu que o acidente ocorreu por culpa do réu apelante, condutor do veículo de carga, e que este, sendo responsável pelo deficiente acondicionamento da carga, também teve culpa no respectivo desprendimento e queda. Culpa que se presume nos termos do artigo 503.º, n.º 3 do Código Civil.
O réu condutor é que não se conforma e centra a crítica à sentença recorrida em duas vertentes: erro no julgamento de facto e erro na decisão de direito.
No primeiro caso afirma que as respostas aos quesitos 4.º e 6.º deveriam ter sido outras. No quesito 4.º indagava-se se os tubos tinham sido amarrados pelo réu com uma corda fina e muito usada e a resposta foi que “os tubos de PVC tinham sido amarrados pelo Réu com uma corda, com diversas voltas atadas na carroçaria desde a sua traseira até à frente”. O apelante insurge-se contra o facto de estar dito que tinham sido amarrados pelo réu, quando o certo é que também o foram por outras pessoas.
Ora, apesar de os elementos por si indicados não permitirem seguramente alterar a resposta ao quesito, o certo é que também se nos afigura não ser relevante, já que isso não excluiria a acção do réu.
Também a resposta ao quesito 7.º não é de alterar. É que não obstante uma testemunha ter dito que a carga ia correctamente amarrada e se soltou porque a corda partiu e não porque a amarração tivesse afrouxado, o certo é que a experiência comum diz que se não houvesse pressão sobre a corda também não teria partido. O que a resposta ao quesito, portanto, nos diz é que a corda que amarrava os tubos se partiu na última laçada e os tubos se desprenderam e caíram. Por conseguinte os factos são de manter.

6. O cerne da questão é este: saber se a seguradora tem o direito de regresso para reaver o que pagou aos lesados e contra quem. Se é credora do réu condutor ou da ré proprietária do veículo, ou não é credora de ninguém, por não haver direito de regresso.
Diz o artigo 19.º, al. d) do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12, diploma que estabelece o regime do seguro obrigatório, que, “satisfeita a indemnização, a ré seguradora apenas tem direito de regresso... contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda de carga decorrente de deficiência de acondicionamento”.
O espírito do legislador – não parece difícil surpreendê-lo – foi o de assegurar prioritariamente a indemnização aos lesados no âmbito do seguro obrigatório e depois sancionar quem culposamente deu origem ao particular factor causador do dano, na medida em que não se trata só de um acidente de viação, no sentido comum de infracção às regras de condução de veículos e aos normais deveres de diligência dos condutores enquanto conduzem, mas particularmente da violação dos deveres de cuidado no acondicionamento da carga transportada, com vista a prevenir a eventual ocorrência de danos inerentes a esse factor particular de risco.
Obrigado à prestação de regresso – diz a lei – é o responsável civil pelos danos causados a terceiros em virtude da queda da carga decorrente de deficiência de acondicionamento. Aqui tratamos de um acidente de viação (e não podemos deixar de considerar que de um acidente de viação se trata) em que os danos são causados pela queda da carga, pelo que o seu regime é o previsto para o comum dos acidentes causados por veículos, designadamente o resultante dos artigos 483.º, 487.º e 503.º (e outros) do Código Civil e as disposições do Código da Estrada sobre a matéria. Depois de saber quem é o responsável pelo acidente originado pela queda da carga – se o condutor se o proprietário do veículo – esse será o obrigado à prestação de regresso se a queda se deu por deficiência de acondicionamento.
Coloca-se então, no caso vertente, a questão de saber, primeiro que tudo, se a carga caiu por deficiência de acondicionamento; se não o foi não haverá direito de regresso; se o foi importará então saber quem é o responsável civil, por culpa ainda que presumida ou pelo risco.
O que os factos nos dizem é que a carga caiu porque a corda se partiu na última laçada, mas que os tubos iam acondicionados segundo as regras de cuidado, tendo em conta os meios disponíveis – as características do próprio veículo e o material posto à disposição do condutor pela proprietária. O que significa que o condutor provou que não houve culpa da sua parte (n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil). Não se provou, como de resto havia sido alegado, que utilizou uma corda fina e frágil; que encostou os tubos à caixa do veículo com ferros que depois dobraram e facilitaram o deslaçamento da amarração. Nada disso. O que ele fez, dentro do que lhe era possível fazer, tudo indica que foi bem feito. O material que a proprietária do veículo lhe proporcionou é que não suportou a pressão dos tubos durante o trajecto e supostamente pela acção de forças próprias que a circulação do veículo desencadeou.
Logo é a proprietária do veículo que responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do mesmo, já que dele tinha a direcção efectiva e o utilizava no seu próprio interesse, conforme resulta dos factos provados (artigo 503.º, n.º 1 do Código Civil). Foi por isso que a seguradora pagou aos lesados.
A sentença refere, a propósito, a violação de várias disposições legais e regulamentares, vigentes ao tempo do acidente, que regiam sobre a matéria de acondicionamento de cargas neste tipo de veículos, mas era a proprietária do veículo que lhes devia cumprimento, já que se relacionavam com as características daquele meio de transporte e com instrumentos técnicos para acondicionamento de cargas, que ela devia ter disponibilizado ao seu condutor. Se tal tivesse sido observado, então agora seria possível equacionar a responsabilidade do condutor. De outro modo a responsabilidade será sempre da proprietária. Não é justo obrigar o condutor por conta de outrem a responder pelos riscos próprios de condições técnicas da responsabilidade do proprietário do veículo.
Podemos assim concluir que o direito de regresso previsto no artigo 19.º, al. d) do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12 tem como pressuposto a ocorrência de deficiência do acondicionamento da carga; o sujeito passivo da obrigação de regresso é quem responde pelos danos provocados pela queda da carga, a título de culpa (directa ou presumida) ou pelo risco.
E sendo assim, a haver direito de regresso no caso em apreço, seria a proprietária do veículo – a ré B...– e não o réu apelante quem deveria satisfazer a prestação.

7. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, em consequência do revogam a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelada seguradora.
Coimbra,
Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Custódio Costa e Ferreira de Barros