Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/05.9TATMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PRINCIPIO DO ACUSATÓRIO
PRINCIPIO DA VINCULAÇÃO TEMÁTICA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS

OPORTUNIDADE DA COMUNICAÇÃO
NATUREZA DO DESPACHO
NULIDADE;DESPACHO NÃO DECISÓRIO;FUNDAMENTAÇÃO DO DESPACHO
IRREGULARIDADE
PRAZO DE ARGUIÇÃO.
Data do Acordão: 05/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 358.º; 97.º, N.º 4; 118.º, N.º 2 123.º, N.º 3 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 156, N.º DO CÓDIGO PROCESSO CIVIL; 205.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA.
Sumário: I. – O processo penal tem a natureza acusatória sendo o seu objecto balizado pela acusação ou pela pronúncia, se a houver;
II. – O tribunal, no julgamento, está subordinado ao princípio da vinculação temática segundo o qual toda a actividade probatória a realizar tem como limite os factos que constam da acusação ou da pronúncia;
III. – Uma tomada de conhecimento nesse processo de novos factos, surgidos durante o julgamento, só é atendível nos termos dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal.
IV. – A comunicação de uma alteração não substancial aos sujeitos processuais interessados deve ser efectuada, normalmente, pelo tribunal após o termo da produção da prova, pois só após este momento o tribunal fica em condições de ter uma visão geral e totalizante sobre o conjunto da prova produzida;
V. – O despacho em que o tribunal procede à comunicação de uma alteração não substancial dos factos não se constitui como despacho decisório dado que nele o tribunal se limita a dar conhecimento de uma realidade jurídica inovadora para os sujeitos processuais e com isso permitir-lhes gizar a respectiva defesa;
VI. – Ainda que se admitisse que o despacho referido no item antecedente tem natureza decisória, e por isso necessitasse de ser fundamentado, a falta de fundamentação constituiria uma irregularidade que poderia ser sanada pelo tribunal.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
Pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, a requerimento do Ministério Público, que lhe imputava a prática de um crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30º, nº 2 e 205º, nºs 1 e 4, b), com referência ao art. 202º, b), todos do C. Penal, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido PTB, divorciado, vendedor de automóveis, nascido a 1 de Junho de 1970, na freguesia de Santa Maria dos Olivais, Tomar, residente em Tomar.
Pela ofendida A …, Lda. foi deduzido pedido de indemnização com vista à condenação do arguido no pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos.
Na sessão da audiência de julgamento de 30 de Março de 2007, foi proferido despacho comunicando uma alteração não substancial de factos e a eventual alteração da qualificação jurídica constante da acusação.
O arguido invocou a irregularidade da falta de fundamentação de tal despacho.
Assegurado o contraditório, foi proferido o despacho de fls. 1587 a 1588 que, considerando o anterior despacho tempestivo e sucintamente fundamentado, passou a explicitar de forma mais precisa os fundamentos daquele.
O arguido interpôs então recurso do dito despacho.
Seguidamente, foi proferida sentença que condenou o arguido pela prática de um crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30º, nº 2, 79º, e 205º, nºs 1 e 4, a), com referência ao art. 202º, a), todos do C. Penal, na pena de 400 dias de multa à taxa diária de € 5, perfazendo a multa global de € 2.000, tendo sido fixada a pena de prisão subsidiária de 266 dias.
Foi ainda o arguido condenado no pagamento de uma indemnização à ofendida no montante de € 68.000,27, acrescidos de juros de mora à taxa de 7% a crescida da taxa de juro fixada pelo BCE, mas sem poder exceder a peticionada taxa de 9,25%, desde a notificação do pedido e até integral pagamento.
Inconformado com a sentença, dela recorre o arguido, formulando no termo da sua motivação, comum à do recurso interposto a 30 de Março de 2007 em acta, as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
Nestes termos, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso, por corresponder inteiramente à verdade dos factos merecer o inerente provimento e, em consequência, ser a douta sentença revogada, por douto acórdão em que absolva o Recorrente da condenação de que foi alvo, assim como considerar sem qualquer efeito todo o processado desde a irregularidade cometida aquando da alteração não substancial dos factos, porquanto:
1 – Foi violado o constante no número 4 do artigo 97.º do Código de Processo Penal, assim como o vertido no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, dado que a alteração não substancial dos factos não foi acompanhada da indispensável fundamentação, tornando, por isso, impossível a consequente defesa, invalidade esta, de imediato, requerida para a respectiva acta, não obtendo o consequente provimento;
2 - Aliás, como o Arguido não se pode defender da alteração não substancial dos factos, por carência de fundamentação, foi também violado o constante no número 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que o seu direito de defesa, pura e simplesmente, não foi observado;
3 - Não foi interpretado correctamente o constante no número 1 do artigo 205.º do Código Penal, uma vez que esta norma incriminadora exige que exista uma apropriação ilegítima da coisa;
4 - Ora, no caso em apreço, nunca existiu a inversão do título de posse, pelo que assim sendo, a norma incriminadora constante no número 1 do artigo 205.º do Código Penal, nunca pode ter aplicação;
5 - Existiu erro notório na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, quando o Julgador não teve em consideração que os veículos automóveis eram transferidos para a esfera patrimonial do Arguido, dado que a pretensa Ofendida até não comercializa carros usados, conforme depoimento das testemunhas, devidamente transcrito;
6 - Aliás, no depoimento das testemunhas, devidamente transcrito, é notório que a transmissão das retomas era feita com naturalidade, ficando o Arguido com o ónus de efectuar o pagamento à A…, quando da sua venda, portanto, inexistindo a inversão do título de posse;
7 - Assim sendo, as provas obtidas através do depoimento do sócio gerente da A…, assim como da sua responsável comercial, pai e filha, impõem decisão diversa, pois aqueles reflectem que não existiu apropriação ilegítima da coisa, havendo sim uma transmissão plena dos veículos, mediante pagamento após a respectiva venda;
8 - Ora, não existindo apropriação ilegítima da coisa, esta foi objecto de transmissão contratual, portanto, obedecendo às normas referentes ao direito das obrigações, nunca podendo ser apreciadas em sede penal, dado não ter existido ilegitimidade na apropriação.
(…)”.
Respondeu ao recurso interposto em acta a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da sua contra motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1. Quando após produção da prova, o Juiz entendeu, antes de proferir sentença, proceder a operação de alteração não substancial dos factos, fê-lo no momento oportuno – ainda na fase de julgamento.
2. O artigo 358º, nº 1 CPP prevê a situação em que durante o decurso da audiência de julgamento (no caso estava a concluir-se), ocorre alteração não substancial dos factos descritos na acusação.
3. E, determina esta norma que é necessário então que o presidente comunique essa alteração ao arguido e lhe conceda prazo para preparar a sua defesa (agora na perspectiva da nova acusação/pronúncia), o que sucedeu, com despacho devidamente fundamentado. 4. Nos autos procedeu-se a uma convolação e essa operação definida como "simples alteração da respectiva qualificação jurídica, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e que permite ainda o julgamento, sem mais, respeitada a regra do artigo 358º, nº 1 CPP.
5. Pelo que não merece censura a decisão ora posta em crise, devendo o recurso ser julgado improcedente.
(…)”
Respondeu a mesma Magistrada ao recurso interposto da sentença, formulando no termo da sua contra motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1. Quando vendia aos clientes da A … veículos novos e recebia, como retoma, veículos usados, as respectivas chaves e documentos, o arguido ficava responsável pelos mesmos e obrigado a vender os veículos de retoma, no prazo de 30 dias, entregando o produto da venda à A….
2. Ao receber os veículos de retoma, o arguido sabia que os mesmos não lhe pertenciam e que os recebia apenas por força das suas funções de vendedor de automóveis da A ….
3. O arguido ficava possuidor dos veículos em nome, por conta, no interesse e sob a direcção da sua entidade patronal, a proprietária dos veículos.
4. Ao vender os veículos a terceiros, como se fossem seus, apropriando-se do produto das vendas, contra a vontade do proprietário, ao recusar entregar os veículos ainda detidos e ao apropriar-se das respectivas quantias monetárias, o arguido inverteu o título de posse.
5. O agente concretizou o crime, por várias vezes, para cada veículo, após o receber e não entregar a verba ou o carro, nos 30 dias a seguir.
6. Reafirmou a sua inversão do título de posse, a partir de Outubro de 2003, quando interpelado, recusou a entrega quer dos carros, quer dos documentos, quer do seu valor em dinheiro.
7. O arguido cometeu o crime de abuso de confiança, pelo qual foi condenado, crime p.p. pelo artigo 205º, nº 1 e nº 4, al. a), com referência aos artigos 202º, al. a), 30º nº 2 e 79º todos do CP.
8. Não há erro na apreciação da prova, uma vez que, vista a factualidade provada, outra não poderia ser a conclusão a retirar pelo Tribunal a quo, senão a de condenação que deve ser mantida.
(…)”.
Na vista a que se refere o art. 416º do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, aderindo às posições assumidas pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal.
Colhidos os vistos e efectuada a audiência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões que urge decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
a) Recurso do despacho interposto em acta:
- Falta de fundamentação do despacho que comunicou a alteração não substancial dos factos descritos na acusação e consequente inobservância do direito de defesa, com violação do art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
b) Recurso da sentença:
- Erro notório na apreciação da prova;
- Erro na apreciação da prova.
DO RECURSO NA PARTE RELATIVA AO DESPACHO
1. Apesar de nas conclusões do recurso apenas ser mencionada a irregularidade da falta de fundamentação do despacho que comunicou a alteração não substancial dos factos descritos na acusação e consequente violação do direito de defesa, certo é que na motivação do recurso é também suscitada a tempestividade da mesma comunicação, pelo que também a esta faremos referência.
Na sessão da audiência de 20 de Março de 2007 (fls. 1548 e ss.), depois de feitas as alegações e de ser facultada ao arguido a realização das suas declarações finais, foi proferido despacho designado a leitura da sentença para o dia 30 de Março de 2007.
Na sessão da audiência do dia 30 de Março de 2007, o Mmo. Juiz que presidiu a tal diligência proferiu o seguinte despacho, que se transcreve:
Vêm imputados ao arguido os factos descritos na acusação pública de fls. 460 e ss., integrativos da prática, em autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art. 205º, n.º 1 e 4, al. b), com referência aos art. 202º al. b) e 30º, nº 2, todos do Có. Penal.
Atento o decorrer da audiência de julgamento, considerando a conjugação dos depoimentos prestados com os documentos constantes dos autos, comunica-se ao arguido a alteração não substancial dos seguintes factos descritos na acusação:
O arguido vendeu ao stand "C … Lda." o veículo com matrícula XX-XX-XX, de marca Renault, modelo Clio Van;
Os vendedores da A …Lda. ficavam responsáveis pela venda dos veículos objecto de retoma pela ofendida;
Por diversas ocasiões o arguido decidiu não proceder à entrega à ofendida dos veículos que recebia como retoma bem como dos respectivos valores;
No dia 26.05.2000, JJ …, cliente da A…, entregou ao arguido o veículo automóvel com matrícula 38-93-EA;
No dia 20.02.2001, Luciana Ferreira Pimentel Fontinha, cliente da A…, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-IN,
No dia 11.10.2002, RM …, cliente da A … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-BU,
No dia 10.01.2003, MF …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-QA;
No dia 11.04.2003, AM …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-IO;
No dia 16.05.2003, CM …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo de marca Volkswagen, modelo Golf;
No dia 28.05.2003, CF, cliente da A … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-GS;
No dia 13.08.2003, AO …, cliente da A … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-PL;
No dia 23.09.2003, a sociedade "A …, Lda", cliente da ofendida, entregou ao arguido o veículo com matrícula 21-18-LD;
No dia 28.11.2003, MO …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-OH;
No dia 12.03.2004, CM …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-MN;
No dia 11.05.2004, JC …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-PS;
IT …, cliente da A …, por intermédio de JC …, entregou ao arguido, enquanto vendedor da ofendida e por força dessas funções, a quantia de € 1.823,75;
O arguido fez seu o montante de € 68.000,27 (sessenta e oito mil euros e vinte e sete cêntimos).
Comunica-se igualmente a eventual alteração da qualificação jurídica consignada na acusação, passando a imputar-se ao arguido a prática, em autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art. 205.º n.º 1 e 4, al. a), com referência aos art. 202º al. a) e 30º n.º2, todos do Cód. Penal, atenta a consideração do valor individual de cada veículo, cujo valor máximo não ultrapassa o montante de € 7.600,29, constituindo apenas valor elevado e não consideravelmente elevado, e a configuração da actuação do arguido, traduzida na prática de crime continuado.”.
Depois de requerido e de ser concedido, prazo para a preparação da defesa, pelo arguido, através do seu Ilustre Mandatário, foi invocada a falta de fundamentação do despacho, com violação do art. 97º, nº 4 do C. Processo Penal e do art. 205º da Constituição, e arguida, nos termos do art. 123º, nº 1, do citado código, a irregularidade do mesmo e a sua consequente invalidade.
Assegurado o contraditório, foi pelo Mmo. Juiz proferido o seguinte despacho, que se transcreve:
O despacho proferido no âmbito da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, bem como relativo à alteração da qualificação mostra-se oportuno porquanto não se iniciou ainda a leitura da sentença, tendo sido garantido ao arguido a possibilidade de apresentar a respectiva defesa.
O despacho a que se alude e é aqui colocado em causa mostra-se igualmente fundamentado, mesmo que de forma sucinta.
De todo o modo poderá adiantar-se que a alteração não substancial dos factos descritos na acusação fundamentou-se de forma mais precisa nos seguintes pontos:
- A venda pelo arguido ao Stand "CA …Ld", do veículo de matrícula XX-XX-BU, fundou-se na conjugação de depoimento de CM … com a informação da Conservatória do Registo Automóvel de fls. 114, e ainda do teor de fls. 1450 a 1454 constantes dos autos, relativos à facturação do veículo novo e entrega em retoma do usado.
- A responsabilidade dos vendedores da A … na venda dos veículos objecto de retoma pela ofendida no teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas FL …, MM …, PC …, respectivamente gerente, responsável comercial e empregada de escritório da ofendida, bem como os depoimentos de AA …, LC … e Autoridade Judiciária …, estes últimos vendedores e colegas do arguido na A ….
- As datas das entregas dos veículos objectos de retoma fundaram-se nas facturas de fls. 1432, 1439, 1449, 1454, 1459, 1464, 1469, 1474, 1479, 1484, 1489 e 1494, constando dessas facturas as datas, como se disse, em que os veículos novos foram entregues aos clientes da ofendida, sendo essas as datas da troca dos correspondentes veículos de retoma.
- A entrega por IT … da quantia de € 1.823,75 efectuada ao arguido, enquanto vendedor da ofendida e por força dessas funções, por intermédio de JC …, resultou da conjugação dos depoimentos destas duas testemunhas, conjugado com o teor de fls. 1490, 1494, de onde resulta a correspondente factura, conta de cliente e valor em falta.
- Finalmente o montante de € 68.000,27 resulta da soma relativa aos montantes referentes aos veículos de retoma e quantias entregues descritas na acusação.
Face ao exposto entende-se assim não ter razão o arguido, ainda para mais agora, no que toca à fundamentação do despacho que antecede.”.
Como consta da acta da audiência de fls. 1583 e ss. (concretamente a fls. 1588), foi de imediato concedida a palavra ao Ilustre Mandatário do arguido que no seu uso disse não aceitar o despacho que negou a sua pretensão, apesar de nele já existir alguma fundamentação, e dele interpor recurso.
Consta ainda da acta que, depois de o Mmo Juiz ter relegado para a apresentação da motivação a apreciação do requerimento de interposição do recurso, e nada mais tendo sido requerido, passou à leitura da sentença.
Enunciados os elementos de facto relevantes, passemos à análise das questões suscitadas.
1.1. Como é sabido, o nosso processo penal tem, no essencial, uma estrutura acusatória.
O seu objecto é balizado pela acusação ou pela pronúncia, se a houver. Na verdade, é a acusação que delimita os factos consubstanciadores do crime a julgar pelo tribunal. Este está vinculado ao thema decidendum assim definido – princípio da vinculação temática – como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas poderá ser condenado pelos factos acusados, e não por outros. Daí que a lei fulmine com nulidade, a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, foras dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do C. Processo Penal (art. 379º, nº 1, b), do mesmo código).
Mas, em certas circunstâncias, e no que à fase do julgamento concerne, pois só esta agora releva, o C. Processo Penal possibilita o conhecimento de novos factos e a condenação do arguido por eles.
Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver – isto é, quando os novos factos conhecidos na audiência não excedem o âmbito do objecto do processo, tal como foi definido na acusação – o tribunal pode deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respectiva defesa, salvo se os novos factos tiverem sido alegados pela defesa (art. 358º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal).
Se a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia for substancial – tal como é definida no art. 1º, f), do C. Processo Penal – já o tribunal só pode deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente concordarem com a continuação do julgamento pelos novos factos, e a alteração não determinar a incompetência do tribunal (art. 359º, nº 3, do C. Processo Penal). Aqui, como nota Francisco Isasca (Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português 2ª Ed., 200 e ss.), dá-se uma reformulação do objecto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem a menor intervenção do julgador e portanto, sem beliscar o princípio do acusatório.
Mas se este acordo não é obtido, os novos factos não podem ser tomados em conta pelo tribunal para efeitos de condenação no próprio processo, valendo a sua comunicação ao Ministério Público como denúncia, se forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo (art. 359º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal).
Em ambos os casos estamos perante razões de economia e celeridade processual, aliadas a razões de segurança, incluindo do próprio arguido. E em ambos os casos assegura a lei, através do ritual imposto, uma efectiva e plena defesa deste.
1.2. Dispõe o nº 1 do art. 358º do C. Processo Penal que,
Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente, ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.”.
Como o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido na acusação, e como só pode formar a sua convicção com base nas provas produzidas em audiência (art. 355º, nº 1, do C. Processo Penal), a alteração não substancial dos factos tem que decorrer da circunstância de as provas produzidas, todas ou algumas, indiciarem ou provarem que os factos praticados não coincidem totalmente com os factos acusados. E como toda a prova tem que ser produzida em audiência, é no decurso desta que se verifica a alteração.
Sendo o processo de formação da convicção do julgador uma tarefa não raras vezes da maior complexidade – seja pela dificuldade da questão sub judice, seja pela quantidade e variedade dos meios de prova a atender e valorar – não se impõe ao julgador, nem seria razoável fazê-lo, que a conclua no decurso ou no termo da produção de prova.
Por outro lado, compreende-se que a celeridade exigida pelo processo penal, determine não raras vezes que, finda a produção de prova e produzidas as alegações, se interrompa a audiência, para prosseguir em data posterior, para a leitura da sentença. Mas esta leitura é também efectuada em audiência.
Uma vez que a alteração não substancial dos factos é do conhecimento obrigatório pelo tribunal, apenas impondo a lei a sua notificação, como forma de advertir o arguido da possibilidade de serem considerados na sentença, possibilitando-lhe desta forma a reformulação da sua defesa, se o entender fazer, não se descortina qualquer obstáculo legal a que o juiz, depois de encerrada a discussão e designado dia para a leitura da sentença, reabra a audiência e comunique tal alteração.
O despacho proferido em audiência, designando outro dia para a leitura da sentença não tem o efeito de impedir que, neste dia, não possa ser reaberta a audiência ainda para produção de prova, seja no seguimento da comunicação de novos factos, seja pela simples razão de ter o tribunal entendido melhor esclarecer aspectos de facto. O que é sempre necessário é que seja assegurado o contraditório, a defesa do arguido
Aliás, se bem que relativo a um outro aspecto processual, o C. Processo Penal prevê a reabertura da audiência para produção de prova (art. 371º, nº 1, do C. Processo Penal).
Nos autos, o Mmo. Juiz reabriu a audiência, não para a imediata leitura da sentença, mas para comunicar aos sujeitos processuais uma alteração não substancial de factos, o que fez, indubitavelmente em audiência, e estando presentes o arguido e o seu Ilustre Mandatário.
Não assiste pois razão ao recorrente quando afirma que tal comunicação não ocorreu durante a audiência.
1.3. Resulta da conjugação das alíneas a) e b) do nº 1 do art. 97º, do C. Processo Penal que os actos decisórios do juiz tomam a forma de sentença, quando conhecem a final do objecto do processo, e de despacho, quando conhecem de quaisquer questões interlocutórias ou põem termo ao processo sem, contudo, conhecerem do seu objecto.
A comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação não é, obviamente, uma sentença, pelo que só pode ser um despacho.
1.3.1. Será este despacho um acto decisório? É que, não sendo um despacho de mero expediente (cfr. art. 156º, nº 4, do C. Processo Civil), nele também não se conheceu de qualquer questão interlocutória.
Através dele, e nos termos impostos pela lei, apenas se deu conhecimento aos sujeitos processuais de factos que, não incluídos na acusação, poderiam, eventualmente, vir a ser considerados provados na sentença a proferir oportunamente. Mas sem que tais factos tivessem, necessariamente, que vir a ser considerados provados na sentença. Significa isto que no referido despacho nada se decidiu, apenas se comunicou uma possibilidade, como atrás dissemos, apenas foram os factos novos notificados ao recorrente, como advertência, para lhe possibilitar pensar de novo a sua defesa.
Adverte o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed., 19), que não são decisórios, nem os actos de mero expediente, nem aqueles que não traduzem a solução de qualquer questão.
E se a Constituição da República Portuguesa estabelece no seu art. 205º, nº 1, o dever de fundamentação das decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente, não deixa, no mesmo preceito, de relegar para a lei ordinária a forma que se deve concretizar aquele dever.
Ora, o nº 5 do art. 97º do C. Processo Penal apenas estabelece a obrigatoriedade de fundamentação para os actos decisórios.
Desta forma, admitindo-se que o despacho em questão não é um acto decisório, não estará então sujeito ao dever de fundamentação.
1.3.2. Mas se, por hipótese de raciocínio, admitirmos que tal é um acto decisório e portanto, sujeito a fundamentação, nos termos do disposto no nº 5 do art. 97º citado, é nosso entendimento que o mesmo se encontra fundamentado, ainda que de forma sintética.
O dever de fundamentação das decisões judiciais não apresenta sempre o mesmo nível de exigência para todos os actos decisórios, antes variando em função da respectiva natureza e complexidade.
Logo no início do despacho pode ler-se, “Atento o decorrer da audiência de julgamento, considerando a conjugação dos depoimentos prestados com os documentos constantes dos autos, comunica-se ao arguido a alteração não substancial dos seguintes factos descritos na acusação… “, devendo ter-se por bastante esta referência aos depoimentos prestados em audiência, na qual estiveram presentes recorrente e seu Ilustre Mandatário, e aos documentos constantes dos autos.
Aliás, a defesa fica plenamente assegurada com a notificação dos factos, nada mais exigindo o art. 358º, nº 1, do C. Processo Penal, até porque estamos perante a comunicação de uma mera possibilidade. A comunicação possibilita ao recorrente defender-se dos factos que não constavam da acusação e por isso, com os quais, não podia legitimamente contar.
Se porventura, na sentença, vierem tais factos a ser considerados provados, é nesta peça que deve então procurar-se se existe fundamentação bastante para tal ou não.
1.3.3. Mas, ainda por hipótese de raciocínio, admitamos que estamos perante um despacho decisório e não fundamentado.
A omissão da fundamentação constituiria então, nos termos dos arts. 118º, nº 2 e 123º, do C. Processo Penal, uma irregularidade.
No seguimento da imediata arguição da irregularidade do despacho, o Mmo, Juiz proferiu novo despacho no qual, expressando embora o entendimento de que aquela não ocorria, expôs de forma analítica as razões – os meios de prova produzida em relação a cada novo facto – que o determinaram a efectuar a comunicação da alteração não substancial dos factos. Isto é, embora de forma implícita, e algo contraditoriamente, o Mmo. Juiz admitiu a possibilidade de ter sido cometida a invocada irregularidade.
Como é sabido, a consequência da irregularidade é a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa ter afectado (art. 123º, nº 1, do C. Processo Penal), e que nos termos do art. 122º, nº 2, do C. Processo Penal (aplicável às irregularidades, por maioria de razão), o reconhecimento da irregularidade implica a repetição do acto viciado.
Este segundo despacho, tendo implícita a admissão da irregularidade, significa então a repetição do acto irregular, na parte em que o era.
A partir daqui, há comunicação de factos, e fundamentação de facto analítica relativamente às razões que levaram o Mmo. Juiz a comunicá-los.
Foram pois assegurados os direitos de defesa do recorrente.
1.4. Em conclusão, o despacho que comunicou a alteração não substancial dos factos descritos na acusação, embora não carecendo de fundamentação, mostra-se fundamentado, pelo que não enferma da invocada irregularidade, não se mostrando violado o art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
DO RECURSO NA PARTE RELATIVA À SENTENÇA
Para a resolução das questões suscitadas importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:
A) A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos, que se transcrevem:
“ (…).
[Da acusação]
a) No mês de Outubro de 1994 o arguido iniciou funções como funcionário da ofendida sociedade comercial por quotas "A …Lda.", adiante designada A …, com sede em Tomar, exercendo as funções de vendedor comissionista.
b) A partir do dia 1 de Fevereiro de 2003 o arguido passou a exercer as funções de vendedor de automóveis por conta da referida sociedade A….
c) Por força dessas funções, competia ao arguido vender veículos comercializados pela A….
d) Assim, em todas as ocasiões que vendia aos clientes da A … veículos em estado de novo e recebia, como retoma, veículos usados, bem como as respectivas chaves e documentos, o arguido ficava responsável pelos mesmos e obrigado a vender os veículos recebidos como retoma, no prazo de 30 (trinta) dias, entregando o produto da respectiva venda à A ….
e) Sempre que não lograsse vender os veículos que recebia como retoma no referido prazo de 30 dias, o arguido tinha o dever de comunicar tal facto à gerência da ofendida, a fim de lhe ser concedido novo prazo para a venda ou decidido qual o destino a dar aos veículos.
f) Por diversas ocasiões, o arguido firmou o propósito de não entregar os veículos que recebia como veículos de retoma, no exercício e por força das suas funções, à respectiva proprietária, a A … decidindo, ao invés vendê-los, como se seus se tratassem e fazer suas as quantias correspondentes aos preços dos mesmos, nos termos a seguir discriminados:
- No dia 26.05.2000, JJ …, cliente da A … entregou ao arguido o veículo automóvel com matrícula XX-XX-EA, de marca Rover, modelo 114 SLD, no valor de € 2.334,88, veículo que o arguido recebeu, como veículo de retoma, por força da sua qualidade de empregado (vendedor) da A …, e que, posteriormente, o arguido vendeu, por valor não concretamente apurado, mas seguramente não inferior a € 2.334,88, a MH …, o qual, por seu turno, o vendeu a LF …;
- No dia 20.02.2001, LF …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-IN, de marca Fiat, modelo 182, no valor de € 6.737,38, veículo que o arguido recebeu como veículo de retoma, na qualidade de empregado (vendedor) da A …, e que, posteriormente, o arguido vendeu, por valor que não foi possível apurar, mas não inferior a € 6.737,38, ao "Stand C. F. ", que por seu turno o vendeu, em 19 de Dezembro de 2001, a PN …;
- No dia 11.10.2002, RM …, cliente da A … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-BU, de marca Renault, modelo Clio Van, no valor de € 2.250,18, que o arguido recebeu, como veículo de retoma, por força das suas funções de vendedor da A …, e que o arguido, posteriormente, vendeu, por valor não concretamente apurado, mas seguramente não inferior a € 2.250,18, ao stand "C ….", com sede em Cernache do Bonjardim que, por seu turno, o vendeu a MJ …;
- No dia 10.01.2003, MF …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-QA, de marca Volkswagen, modelo Golf, no valor de € 7.424,39, veículo que o arguido recebeu como veículo de retoma, em razão da sua qualidade de empregado (vendedor) da A …, veículo a que, posteriormente, deu um destino não concretamente apurado;
- No dia 11.04.2003, AM …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-IO, de marca Nissan, modelo Pick Up Foresto, no valor de € 5.300,97, veículo que o arguido recebeu, como veículo de retoma, enquanto vendedor da ARAL, e ao qual, posteriormente, deu um destino não concretamente apurado;
- No dia 16.05.2003, CM …, cliente da A …., entregou ao arguido o veículo de marca Volkswagen, modelo Golf, no valor de € 3.714,51, veículo que o arguido recebeu como veículo de retoma, por força das suas funções de vendedor da sociedade ofendida e que, posteriormente, deu destino não concretamente apurado;
- No dia 28.05.2003, CF …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-GS, de marca Volkswagen, modelo Polo, no valor de € 6.000, veículo que o arguido recebeu como veículo de retoma, no âmbito das funções que exercia como vendedor da A …, viatura que o arguido, posteriormente, expôs em venda num Stand de Automóveis sito na Estrada de Coimbra, em Tomar;
- No dia 13.08.2003, AO …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-PL, de marca Volkswagen, modelo Passat, no valor de € 7.600,29, veículo que o arguido recebeu como veículo de retoma, por força das suas funções de vendedor da A …, e que, posteriormente, vendeu, por valor não concretamente apurado, mas não inferior a € 7.600,29, a MM …, que por sua vez o vendeu a GG …;
- No dia 23.09.2003, a sociedade "A – C, Ldª", cliente da ofendida, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-LD, de marca Citroen, modelo Xsara, no valor de € 6.532,76, viatura que o arguido recebeu, como veículo de retoma, no âmbito e por força das suas funções que exercia como vendedor da A …, ao qual, posteriormente, deu um destino não concretamente apurado;
- No dia 28.11.2003, MO …., cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-0H, de marca Volkswagen, modelo Golf, no valor de € 6.280,85, viatura que o arguido recebeu, como veículo de retoma, por força das suas funções de vendedor da A…, e que o arguido vendeu a FL …por um preço que não foi possível apurar, mas seguramente não inferior a € 6.280,85;
- No dia 12.03.2004, CM …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-MN, de marca Seat, modelo Ibiza, no valor de € 7.000,31, viatura que o arguido recebeu, como veículo de retoma, enquanto funcionário (vendedor) da A …, viatura esta que o arguido vendeu por um preço que não foi possível apurar, mas não inferior a € 7.000,31, à sociedade "J. C. A. ", pertencente a JC …, que por seu turno o vendeu a VM ….; - No dia 11.05.2004, JC …, cliente da A …, entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-PS, de marca Volkswagen, modelo Golf, no valor de € 5.000, viatura que o arguido recebeu como veículo de retoma, enquanto vendedor da A …, e que o arguido vendeu, posteriormente, por montante que não foi possível apurar, mas seguramente não inferior a € 5.000 ao stand "CA … Lda.", que o vendeu, por seu turno, em 11 de Junho de 2004, a JF … .
g) Também em 13 de Julho de 2004, IT …, cliente da A …, por intermédio de JC …, entregou ao arguido, enquanto vendedor da ofendida e por força dessas funções, a quantia de € 1.823,75 (mil, oitocentos e vinte e três Euros e setenta e cinco cêntimos), por aquele devidos à A …, na sequência da venda do veículo Volkswagen Caddy, quantia essa que se destinava a ser entregue à ofendida.
h) Todos os veículos e quantias monetárias acima mencionadas pertenciam à A … e foram entregues ao arguido, em razão da sua função de vendedor de automóveis daquela sociedade, o qual as recebia como responsável, para, posteriormente, serem entregues ao legítimo proprietário, a A …, o que o arguido bem sabia.
i) Todavia, até ao momento presente o arguido não entregou os veículos, nem o produto da respectiva venda à A …, não obstante a referida sociedade tenha, por diversas vezes, solicitado tal entrega.
j) Designadamente, desde inícios do mês de Outubro de 2004, o gerente da A …, FM …, contactou o arguido para que este devolvesse quer todos os veículos que lhe tivessem sido entregues como veículos de retoma, quer o produto da venda dos mesmos, o que o arguido não fez, recusando entregar os veículos ou o respectivo valor monetário à A …, tendo, antes, vendido os mesmos, nos termos acima descritos, e feito seus os valores monetários resultantes da respectiva venda, que se cifram em € 68.000,27 (sessenta e oito mil euros e vinte e sete cêntimos).
k) Ao receber os veículos supra mencionados, o arguido sabia que os mesmos não lhe pertenciam e que os recebia, apenas, por força das suas funções de vendedor de automóveis da A ….
l) Mais sabia o arguido que tinha o dever de entregar tais veículos, ou a quantia monetária equivalente ao valor dos mesmos, à respectiva proprietária, a A ….
m) Todavia, e apesar disso, ao invés de os entregar à A …, como lhe competia e lhe era exigido, o arguido, apropriou-se dos mesmos, vendendo-os a terceiros como se de seus se tratassem e fazendo seu o produto da respectivas vendas, sem conhecimento, nem o consentimento do respectivo proprietário, com o intuito de se apropriar das quantias monetárias provenientes da venda dos mesmos, às quais deu um destino não apurado.
n) O arguido agiu com o propósito de fazer ingressar no seu património os veículos acima descritos ou o valor monetário dos mesmos, o que conseguiu, não os restituindo à sua legítima proprietária, dispondo deles como se dele fossem, bem sabendo que os mesmos lhes haviam sido entregues por acordo que o obrigava à sua entrega, o que quis.
o) O arguido agiu, em todos os momentos, com vontade livre e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era e é proibido e punido pela lei penal.
[Do pedido cível]
p) O demandado prometeu e convenceu a demandante que pagaria o seu débito no montante de € 68.000,27.
[Mais se provou]
q) Como vendedor de automóveis o arguido aufere o vencimento mensal de € 500,00, montante ao qual acrescem as comissões.
r) O arguido tem uma filha de 7 anos de idade, para quem contribui com a prestação de alimentos no montante mensal de € 250,00.
s) O arguido reside com os pais.
t) Tem o 10º ano de escolaridade.
u) Não tem antecedentes criminais.
(…)”
B) Considerou não provados os seguintes factos, que se transcrevem:
“ (…).
[Com eventual interesse para a decisão da causa não ficaram demonstrados os factos que se encontram em oposição com os provados, bem como os seguintes factos:]
- O Arguido ficava constituído como fiel depositário dos veículos recebidos como retoma.
- No dia 21 de Abril de 1997, JJ … entregou ao arguido o veículo automóvel com matrícula XX-XX-EA.
- No dia 28 de Junho de 2000, LF … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-IN.
- No dia 27 de Setembro de 2002, RM … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-BU.
- Em 21 de Outubro de 2002, MF … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-QA.
- Em 25 de Maio de 2003, AM … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-IO.
- Em 28 de Outubro de 2003, CM …entregou ao arguido o veículo de marca Honda, modelo Civic, com matrícula XX-XX-FG
- Em 28 de Outubro de 2003, CM … entregou ao arguido o veículo de marca Volkswagen, modelo Golf, com matrícula XX-XX-FG.
- O arguido vendeu o veículo de matrícula XX-XX-FG à sociedade "CV ….J. R".
- Em 15 de Maio de 2003, CF … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-GS.
- Em 3 de Agosto de 2003, AO … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-PL.
- Em 3 de Agosto de 2003, a sociedade "A, Ldª" entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-LD.
- Em 22 de Novembro de 2003, MO … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-OH.
- Em 16 de Dezembro de 2003, CM … entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-MN.
- Em 19 de Abril de 2004, JC …entregou ao arguido o veículo com matrícula XX-XX-PS.
- O arguido fez seu o montante global de € 70.027,90 (setenta mil, vinte e sete Euros e noventa cêntimos).
- Atento o não cumprimento da promessa de pagamento do demandado, a demandante sentiu-se enganada.
- Desde 27 de Novembro de 2002, o arguido desempenhava a categoria profissional de chefe de vendas.
- Os documentos dos veículos automóveis recebidos como retoma eram entregues a M. M..
(…)”.
C) E dela consta a seguinte fundamentação da matéria de facto, que se transcreve:
“ (…).
Os factos ora dados como provados e não provados resultaram da conjugação dos diversos depoimentos prestados com os documentos constantes dos autos e examinados em audiência de julgamento.
O arguido optou por não dar conta da sua versão dos acontecimentos.
Para prova do início de funções do arguido, bem como em que consistiam, o Tribunal fundou-se nos depoimentos coincidentes, e coerentes de FL …, MM … e PC …, respectivamente gerente, responsável comercial e empregada de escritório da ofendida e que trabalharam com o arguido, acompanhando o seu percurso na sociedade.
Para além do contrato de trabalho constante de fls. 12 e 13, o Tribunal serviu-se ainda dos testemunhos de AA …, LC … e AJ …JE …, todos colegas vendedores do arguido, de quem se declararam amigos, esclarecendo de forma idêntica quais as funções desempenhadas pelo arguido e que acompanharam como vendedores da ofendida.
A tanto não obstou o contrato de trabalho junto pelo arguido a fls. 555 e 556, correspondente apenas a um pequeno período de tempo em relação àquele tratado na acusação, sendo que igualmente nesse contrato o arguido lidava com clientes e fazia o acompanhamento na entrega das viaturas, liderando as vendas da ofendida.
Todos os funcionários da ofendida explicaram como o arguido, juntamente como os outros vendedores, eram responsáveis pela venda dos automóveis usados e objecto de retoma pela ofendida. Todos os funcionários, aqui se incluindo todos os vendedores da ofendida, afirmaram que o arguido, como qualquer outro vendedor, tinha como tarefa proceder à venda dos veículos usados retomados no prazo de 30 dias, constituindo tais veículos parte integrante do preço dos automóveis novos adquiridos pelos clientes. Todos confirmaram que os veículos retomados pertenciam à ofendida, devendo os vendedores dar conta àquela das vendas realizadas em reuniões semanais ou quinzenais, ficando os vendedores com os documentos, chaves e declarações de venda, fazendo posteriormente imputar os valores das retomas nas contas dos clientes, onde faltava precisamente o valor deduzido do veículo usado, avaliado e fixado pelos vendedores.
Como resulta do teor das facturas passadas pela ofendida pela venda dos veículos novos, os automóveis novos eram entregues nas datas da emissão da respectiva factura, coincidindo tais datas com aquelas em que foram entregues os veículos usados para retoma, aquando da troca pelo veículo novo, e não nas datas apostas nas propostas de compra e venda.
Os clientes da ofendida relataram de forma verosímil e desinteressada a compra do veículo novo e a entrega à A … do usado para retoma e que fez parte do respectivo preço, aqui se destacando as testemunhas …
No que respeita ao cliente CM …, como resultou do seu depoimento e do teor de fls. 1463, o mesmo procedeu à entrega para retoma de um VW Golf, evidenciando o documento preenchido pelo arguido um lapso relativamente à matrícula, em face da informação da Conservatória do Registo Automóvel de fls. 117. Do mesmo modo, a testemunha JR …, a quem pertence a sociedade "CJ. R" não conhece o arguido nem se lembra de lhe adquirir qualquer veículo.
Do depoimento conjugado entre IT …e JC …, o Tribunal pôde descobrir que a compra do veículo adquirido à ofendida foi realizado por intermédio de JA, que contactou com o arguido, a quem efectuou o pagamento da entrada inicial e que não chegou a entrar nas contas da ofendida.
Os valores das retomas são aqueles que o arguido determinou quando procedeu à avaliação dos usados, já pensando na posterior venda, imputando o correspondente valor no preço do veículo novo comercializado pela ofendida, encontrando-se os valores das retomas descritos nos documentos de fls. 1430 e ss., consistentes nas propostas de compra e venda, apontamentos de serviço e ainda contas dos respectivos clientes, onde tais montantes ainda se encontram em dívida.
Por intermédio dos registos das Conservatórias do Registo Automóvel constantes dos autos, cópia de contrato de compra e venda de fls. 418, depoimentos desinteressados e credíveis …., testemunhas que adquiriram posteriormente veículos de retoma, foi possível estabelecer o percurso de alguns dos veículos usados entregues para retoma e que o arguido fez seus.
Resultou do teor do depoimento de todos os funcionários da ofendida o exigir por parte desta dos veículos de retoma e respectivos documentos a todos os vendedores, designadamente em Outubro de 2004, aquando da realização da feira de Santa Iria, exigência à qual apenas o arguido se negou, não procedendo à correspondente entrega ou então dos respectivos montantes em falta cuja soma alcança a quantia de € 68.000,27, que o arguido chegou a prometer realizar em conversas com outros funcionários da sociedade, designadamente …, sendo o depoimento desta última testemunha relevante na leitura da diversa documentação junta aos autos.
As condições pessoais do arguido foram pelo próprio relatadas, que sobre tal matéria se dispôs a falar.
A falta de antecedentes criminais resulta do respectivo certificado de registo criminal.
A demandante não logrou demonstrar prejuízos não patrimoniais próprios decorrentes da conduta do demandado.
(…)”.
Do erro notório na apreciação da prova
1. Na conclusão 5 da motivação do recurso invoca o recorrente o vício do erro notório na apreciação da prova, alegando que na apreciação da prova produzida em audiência o julgador não levou em consideração que os veículos automóveis eram transferidos para a sua esfera patrimonial, pois a ofendida nem sequer comercializa carros usados, conforme depoimentos das testemunhas, devidamente transcritos.
Estabelece o art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal que,
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.”.
Por outro lado, o Acórdão do STJ nº 7/95, de 19 de Outubro (DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995), fixou jurisprudência no sentido de serem estes vícios de conhecimento oficioso.
Ocorre o vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c), do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341 e ss. e Acs. do STJ de 02/10/1996, nº 045267, da R. de Lisboa de 16/12/2002, nº 0069953, e da R. do Porto de 12/11/2003, nº 0342994, todos em http://www.dgsi.pt). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Mas, quer este vício, quer qualquer dos outros, previstos nas alíneas do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, atrás referidas, têm que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, tais como, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Cons. Maia Gonçalves, C. Processo Penal Anotado, 10 ª Ed., 729, Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 339 e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 77 e ss.).
Ora, o recorrente invoca o vício, não por referência ao conteúdo da sentença recorrida, em si mesmo, ou conjugado com regras da experiência comum, mas fazendo apelo a elementos àquela estranhos, como o são, os depoimentos prestados em audiência.
Ou seja, embora invocando o vício do erro notório na apreciação da prova, o que o recorrente pretende é antes impugnar a decisão sobre a matéria de facto por entender que foi efectuada uma errada valoração ou apreciação da prova produzida em audiência, o que é coisa diferente.
Por outro lado, nem o vício invocado, nem qualquer um dos outros dois vícios previsto no nº 2 do art. 410º do C. Processo penal, se evidenciam na sentença posta em crise.
Concluindo, improcede o vício do erro notório na apreciação da prova.
Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
2. Alega o recorrente que da prova produzida em audiência resulta, em síntese, que como vendedor de automóveis da ofendida, quando procedia à venda de um veículo novo, ficava possuidor do automóvel usado recebido como retoma, detendo toda a documentação e chaves, podendo, nos termos acordados, submetê-lo a reparações que suportaria, e vendê-lo pelo preço que entendesse, mesmo que superior ao valor da venda do veículo retomado que constava do contrato de compra e venda do veículo novo, sendo esta a quantia que tinha que entregar à ofendida. Desta forma, estava o recorrente obrigado a entregar à ofendida o valor da retoma que constava do contrato de compra e venda do veículo novo, depois de vendido o veículo retomado, pois como o automóvel retomado estava na sua posse, passando a ser sua propriedade, ficava obrigado ao seu pagamento, pelo que a questão não tem natureza penal, já que não existiu inversão do título da posse nem apropriação ilegítima, antes se tratando de um simples incumprimento de natureza obrigacional.
E para ancorar este entendimento diverso da matéria de facto provada, invoca os depoimentos das testemunhas …, sócio gerente e responsável comercial da ofendida, respectivamente, extractando partes das suas declarações, com referência aos suportes técnicos onde se encontram gravadas.
Com a motivação o recorrente indica ao tribunal de recurso os defeitos que, em seu entender, afectam a decisão impugnada, isto é, indica o que considera que foi mal julgado, por forma a que aquele tribunal possa avaliar a bondade das razões invocadas.
Nas conclusões que, como sabemos, devem ser o resumo das razões do pedido, o recorrente concretiza (ou deve concretizar), o onde e o porquê se decidiu mal e o como se deve decidir (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., 101).
As conclusões devem conter:
- Quando o recurso versa matéria de direito, as normas jurídicas violadas, o sentido em que o recorrente entende que o tribunal interpretou ou aplicou cada norma e o sentido em que deveria ter sido interpretada e aplicada e, no caso de erro na determinação da norma aplicada, a que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada (nº 2 do art. 412º do C. Processo Penal);
- Quando o recurso versa matéria de facto, os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e as provas que devem ser renovadas, sendo que, quando tenha havido gravação da prova, as provas que impõem diversa decisão e as provas que devem ser renovadas são indicadas por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição (nºs 3 e 4 do art. 412º do C. Processo Penal).
E bem se compreendem estas exigências feitas pela lei às conclusões da motivação do recurso.
O verdadeiro julgamento da causa é o realizado na 1ª instância onde, na plena actuação dos princípios da imediação e da oralidade, são todas as provas produzidas.
O recurso para a Relação, mesmo o que versa apenas matéria de facto, não é um novo julgamento onde se aprecia toda a prova produzida na comarca, como se o julgamento nesta efectuado não tivesse existido, mas antes um remédio jurídico destinado a corrigir os erros in judicando ou in procedendo. Por esta razão, deve o recorrente que se sente afectado por tais erros, indicá-los com precisão, bem como às provas que os evidenciam. Depois, a 2ª instância procederá à reanálise dos meios de prova especificados pelo recorrente e das questões impugnadas, e concluirá ou não, pelo erro na apreciação da prova e consequente ou não, alteração da factualidade provada, e concluirá ou não, pelo erro quanto a determinada solução de direito (cfr. Ac. nº 59/2006 do TC, de 18/01/2006, proc. nº 199/2005, http://www.tribunalconstitucional.pt, e Ac. do STJ de 17/05/2007, CJ, S, XV, II, 197).
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, não cumpriu plenamente o imposto pelo art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal.
Com efeito, nas conclusões da motivação, o recorrente não indicou os pontos de facto que considera erradamente julgados, e tendo referido os depoimentos de duas testemunhas, não é contudo feita referência aos suportes técnicos.
No entanto, não se desconhece o entendimento, hoje expressamente consagrado na de lei (art. 417º, nº 3, do C. Processo Penal, na redacção em vigor) de que, quando a motivação não contém conclusões ou destas não é possível deduzir total ou parcialmente as especificações atrás referidas, há lugar ao convite para que o recorrente apresente ou corrija as conclusões.
Face ao teor da motivação do recurso, verifica-se que o recorrente indica as provas que impõem decisão diversa – os depoimentos das duas testemunhas – bem como os suportes técnicos.
Mas não indica os pontos de facto que considera erradamente julgados, limitando-se a afirmar que a propriedade dos veículos retomados passava para a esfera patrimonial do recorrente pelo que não existiu qualquer apropriação ilegítima da sua parte, nem inversão do título da posse.
Porém, se bem que com alguma benevolência, pode admitir-se que esta alegação indica que o recorrente questiona então os seguintes factos provados constantes da sentença:
- O da alínea d), no segmento “ (…) e obrigado a vender os veículos recebidos como retoma, (…), entregando o produto da respectiva venda à ARAL;
- O da alínea e);
- O da alínea f), corpo, desde o seu início e até, “ (…) quantias correspondentes aos preços dos mesmos (…)”;
- Os das alínea h), k), l), m) e n).
3. Uma vez aqui chegados, vejamos se os depoimentos indicados pelo recorrente, conjugados com os depoimentos a que a Digna Magistrada do Ministério Público refere na sua contra-motivação, impunham decisão diversa da recorrida.
3.1. Relativamente ao depoimento de …, sócio e gerente da ofendida, o recorrente extracta as seguintes afirmações:
- “O cliente entregava o carro e a documentação ao vendedor, com a declaração de venda assinada.“ (cassete 1/ volta 250);
- “O vendedor era fiel depositário porque ficava com a posse do carro.” (cassete 1/ volta 259);
- “Era ele que ficava com o título, o livrete, registo de propriedade e o modelo 2 assinado.” (cassete 1/ volta 303);
- “Tinham comissão pela venda do carro e outro proveito pela venda do carro usado.” (cassete 1/ volta 313);
- “Não chegava à posse da ARAL.” (cassete 1/ volta 525);
- “Funcionava como uma pequena empresa.” (cassete 1/ volta 530);
- “Ficava em falta o valor da retoma.” (cassete 1/ volta 556);
- “Formalmente não ia, mas materialmente entrava na ARAL, para pequenas reparações, por conta do arguido.” (cassete 1/ volta 576);
- “Ele tinha a posse real e efectiva do carro.” (cassete 1/ volta 592);
- “Ficava a dever o custo da retoma à A …..” (cassete 1/ volta 602);
- “Era o primeiro proprietário do carro.” (cassete 1/ volta 610);
- “Os carros eram dos vendedores.” (cassete 1/ volta 627).
Tentando confrontar e harmonizar estas afirmações, com o teor do depoimento, transcrito no volume X dos autos, na medida em que tal é possível, temos que:
a) No que respeita às afirmações, “O cliente entregava o carro e a documentação ao vendedor, com a declaração de venda assinada.“ (cassete 1/ volta 250) e “Era ele que ficava com o título, o livrete, registo de propriedade e o modelo 2 assinado.”, há que referir, em primeiro lugar, e a fim de as contextualizar, o que disse a testemunha relativamente ao contrato que ligava recorrente e A …. Assim:
Pergunta da Digna Magistrada do Ministério Público (MP) – Então e desculpe, que é o contrato que tinham com este vendedor, ele vendia os carros novos?
Resposta da testemunha (T) – Era vender viaturas novas.
MP – A A pagaria uma comissão de
T – Pela venda do carro novo.
MP – X por cento.
T – Exactamente.
(…)
MP – E este vendedor estava autorizado pela … a receber os veículos antigos
T – Exactamente, a ser fiel depositário desses veículos… (fls. 1660)
(…)
MP – Esse termo fiel depositário. O senhor agora
T – Não, eu considerava assim porque ele ficava com a posse do carro.
(…)
MP – (…) Está aqui um Volkswagen novo não é, que são os carros que a ARAL vendia e tem para vender, não é isso?
T – Exactamente.
(…)
MP – Vender o carro novo. A … tinha dado autorização a este senhor para que ele recebesse os veículos de retoma, da Volkswagen ou de outra marca qualquer.
T – De outra marca. (fls. 1661)
MP – A … esperava que esta pessoa depois por sua conta, vendesse esses carros é isso?
T – Exactamente. Tinha um prazo de trinta dias.
MP – Então a … tinha vários vendedores?
T – Tinha quatro vendedores.
MP – Quatro vendedores, semanalmente o departamento comercial reunia com os vendedores?
T – Exactamente.
MP – E os vendedores diziam quantos carros tinham recebido de retoma? (fls. 1662)
T – Tinham, exactamente, tinham. Diziam e os carros que tinham em negócio, era-lhes dado normalmente trinta dias para eles venderem o carro e entregarem o produto do carro, o produto do carro não era realmente o produto do carro que eles vendiam, era o dinheiro que estava em falta em relação ao carro novo. (fls. 1663)
Concretamente no que respeita agora às afirmações indicadas pelo recorrente, afirmou a testemunha (a fls. 1664 a 1665):
MP – Que tinha vendido o carro. Portanto, para o cliente, o cliente estava a entregar o carro à…?
T – Exactamente. Pronto, o cliente julgava que estava a entregar o carro à …, mas como aquele funcionário não tinha realmente … era comissionista, era comissionista, era ele o responsável pelo carro.
MP – O funcionário ficava com o veículo, a quem é que o cliente entregava as chaves, o livrete, o título?
T – Ele ficava … era ele ficava com o título, o impresso, que é o impresso de venda, chamado modelo 2.
MP – Que se chama declaração de venda, é isso?
T – Declaração de venda, vulgo modelo 2, e os livretes, os documentos do carro, o livrete e o registo de propriedade. (fls. 1664)
MP – E o cliente assinava logo a declaração a dizer que vendia o carro?
T – Exactamente.
MP – Não dizia era a quem?
T – Não, porque esse modelo 2 tem duas assinaturas, uma quem vende e depois outra quem compra, a compra ficava reservada para a entidade para a pessoa que iria
MP – Para quando se encontrasse comprador, é isso? É isso?
T – Exactamente.
b) No que respeita à afirmação, “O vendedor era fiel depositário porque ficava com a posse do carro.” (cassete 1/ volta 259, afirmou a testemunha (a fls. 1660 a 1661);
MP – E este vendedor estava autorizado pela ARAL a receber os veículos antigos
T – Exactamente, a ser fiel depositário desses veículos
(…)
MP – Esse termo fiel depositário, o senhor agora
T – Não, eu considerava assim porque ele ficava com a posse do carro.
c) No que respeita à afirmação, “O vendedor era fiel depositário porque ficava com a posse do carro.” (cassete 1/ volta 259), afirmou a testemunha (a fls. 1665):
MP – A … ficava então à espera que desse entrada na contabilidade, esses € 10.000 da retoma?
T – Exactamente.
MP – Por exemplo, é isso?
T – É isso mesmo.
MP – Independentemente do carro ser vendido por mais ou por menos?
T – Exactamente, é por isso que eles eram comissionistas, tinham uma comissão pela venda do carro e depois tinham outro proveito, que eu chamo proveito, pela venda do carro usado, que às vezes era até substancialmente mais elevado do que a comissão, julgo eu não é.
d) No que respeita às afirmações, “Não chegava à posse da ARAL.” (cassete 1/ volta 525) e, “Funcionava como uma pequena empresa.” (cassete 1/ volta 530), afirmou a testemunha (a fls. 1676):
Pergunta do Ilustre Mandatário (A) – (…) Sr… , o senhor referiu à Meritíssima Magistrada do Ministério Público a determinada altura que o arguido, portanto o sr. … ficava na posse do carro. A minha pergunta era a seguinte, portanto o arguido fazia um negócio com o carro novo, nesse carro … nesse negócio vinha uma viatura de retoma, portanto …não é relevante para a situação, essa viatura nunca chegava à posse da …?
T – Não chegava à posse da …, porque como eu já disse, ele tinha liberdade e como era até 2003, era … era um comissionista e como já disse ao sr. Doutor, e o sr. Doutor bem sabe, que ele era … estava junto das finanças, estava devidamente certificado, ele poderia funcionava como uma pequena empresa, empresa em nome individual, como o sr. Doutor isso sabe, eu sei que o sr. Doutor tem uma experiência anterior nesse ramo. Ora bem, eu dava … a ARAL dava a possibilidade dele ganhar uma comissão com a venda do carro novo e ter ainda um proveito acrescido com a venda do carro da retoma, para a qual nós não pedíamos mais do que o valor pela qual que faltava para a venda do carro novo.
e) No que respeita às afirmações, “Ficava em falta o valor da retoma.” (cassete 1/ volta 556), “Formalmente não ia, mas materialmente entrava na A…, para pequenas reparações, por conta do arguido.” (cassete 1/ volta 576), “Ele tinha a posse real e efectiva do carro.” (cassete 1/ volta 592), “Ficava a dever o custo da retoma à A….” (cassete 1/ volta 602), “Era o primeiro proprietário do carro.” (cassete 1/ volta 610), e “Os carros eram dos vendedores.” (cassete 1/ volta 627), afirmou a testemunha (a fls. 1677 a 1681):
A – Ou seja, a … nunca contabilizava o carro como seu, portanto esse carro era logo de imediato vendido pelo preço de retoma ao sr. …
T – Ficava em falta o dinheiro
A – Da retoma?
T – Da retoma exactamente.
A – Valor esse por que era alienado ao sr….?
T – Exactamente.
(…)
A – Sim senhor, sr. …então vamos lá a ver uma coisa, portanto este senhor ficava com o carro, esse carro nunca ia, nem formal, nem materialmente à posse da A…, ficava de imediato na posse do sr…, que alienava, fazia dele o que quisesse?
T – Não era bem assim, formalmente não ia, materialmente às vezes ia, porque ele precisava de algumas pequenas reparações que eram feitas sobre a responsabilidade do vendedor, neste caso o Sr. PB.
(…) Se o carro precisava de alguma reparação e se a reparação era de molde a ser feita na ARAL face à sua especificidade técnica.
(…) Ele poderia, mas era livre de fazer essa reparação onde quisesse.
(…) Noutro lado.
A – Portanto, ele tinha a posse real e efectiva do carro?
T – Tinha, tinha.
A – Sim senhor. Portanto vamos … segundo o que eu julgo perceber, o esclarecimento perfeito na minha perspectiva, que o sr. …, o carro … ele fazia o contrato, esse contrato era sancionado por alguém da gerência …
T – Sim senhor, era parte comercial, era exactamente.
A – Era a sr.ª D… que sancionava o contrato e este senhor como ficava com o carro, ficava a dever o custo da retoma à …?
T – Exactamente.
A – Portanto o carro era
T – O custo da retoma, que era a diferença entre a venda do carro novo e o preço pela qual ele vendedor se propunha a ficar com o carro.
(…)
Porque ele era o primeiro vendedor, era o primeiro proprietário entre aspas do carro, e ele comercial conforme entendesse, ganhando aquilo
A – Ora bem, como a …tinha alienado esse carro para ele vender, e depois ressarcir a … do custo da retoma, esses carros nunca poderiam ser contabilizados na conta 31, compras, porque já não eram da …, eram do vendedor?
T – Exactamente.
(…)
Por isso ele estava colectado e funcionava como uma empresa em nome individual, ele ia registar nos registos dele
(…)
As compras, para depois apresentar às finanças
3.2. Relativamente ao depoimento de…, sócia e responsável comercial da ofendida, o recorrente extracta as seguintes afirmações:
- “O cliente entregava o carro e a documentação ao vendedor, com a declaração de venda assinada.” (cassete 3/ volta 136);
- “A …não ficava com a posse do carro.” (cassete 3/ volta 144);
- “Quem ficava com a documentação toda era o vendedor.” (cassete 3/ volta 151);
- “O cliente assinava a declaração modelo 2 e dava as chaves e os documentos e o vendedor ficava com tudo.” (cassete 3/ volta 156);
- “O vendedor tinha que entregar à … o que falta que estava na factura.” (cassete 3/ volta 166);
- “O vendedor ficava perfeitamente autónomo.” (cassete 3/ volta 168);
- “Eles próprios, com o seu dinheiro, que os reparavam.” (cassete 3/ volta 197);
- “A gerência não comercializava viaturas usadas.” (cassete 3/ volta 209);
- “O que ficava em falta era o dinheiro.” (cassete 3/ volta 267);
- “Os usados eram perfeitamente da responsabilidade dos vendedores.” (cassete 3/ volta 283);
- “Eram detentores da retoma.” (cassete 3 /volta 679);
- “Faziam as reparações e se ganhassem era deles.” (cassete 3/ volta 669);
- “Se ao tentar vender a viatura com prejuízo, o problema era deles.” (cassete 3/ volta 78 verso);
- “Ficavam com a posse dele.” (cassete 3/ volta 101 verso).

Passemos agora à confrontação e harmonização destas afirmações, com o teor do depoimento, transcrito no volume X dos autos, na medida em que tal é possível.
a) No que respeita às afirmações, “O cliente entregava o carro e a documentação ao vendedor, com a declaração de venda assinada.” (cassete 3/ volta 136), “A ARAL não ficava com a posse do carro.” (cassete 3/ volta 144), “Quem ficava com a documentação toda era o vendedor.” (cassete 3/ volta 151), “O cliente assinava a declaração modelo 2 e dava as chaves e os documentos e o vendedor ficava com tudo.” (cassete 3/ volta 156), “O vendedor tinha que entregar à …o que falta que estava na factura.” (cassete 3/ volta 166) e, “O vendedor ficava perfeitamente autónomo.”, disse a testemunha;
T – Nesse dia (o da realização do negócio) o carro estava preparado, o cliente chegava, eles marcavam a data … tentar ajustar de preferência quando o cliente gostava de receber o seu … a sua viatura nova. E aí, nessa altura havia a transacção ou seja, o cliente entregava o seu carro usado, entregava a documentação toda do carro que tinha em seu poder, do automóvel e entregava as chaves. Ou seja, entregava o seu carro no todo.
(…) Ao vendedor. (…) Com a documentação. Pronto, eu não a enumerei … A declaração de venda era assinada pelo proprietário do automóvel, permitindo imediatamente a transacção do automóvel.
MP – Esse carro fazia parte do preço?
T – Esse carro era valor … exacto. Fazia. Fazia porque é assim … o cliente sabe que o seu carro vale quinhentos contos (…) se compra um carro por cinco mil contos (…), ele só passa um cheque de quatro mil e quinhentos contos.
MP – A … ficava dona desse carro ou não?
T – Não. A … não ficava dona desse carro.
MP – Então porquê?
T – A … não ficava em posse de nada. (tudo a fls. 1771 a 1772)
(…)
T – Quem ficava com a documentação toda do automóvel usado … (…) que o cliente entregava era o vendedor que na altura em que estava a fazer a entrega da viatura nova …
(…)
T – Pronto. O usado, o cliente assinava uma declaração modelo 2 que … assinava. Ao assinar permitia imediatamente a transacção dessa viatura e dava tudo. Jogos de chaves, os documentos, enfim. Dava tudo. E o vendedor recolhia e ficava com … com tudo, com a documentação toda.
MP – E então depois?
T – Então depois o vendedor recepcionava o montante da viatura nova, dirigia-se ao escritório. Há uma pessoa encarregue do registo de todas as entradas de dinheiro em função da facturação que é a D…., secretária comercial. Ela … nós usávamos um livrinho … uns livrinhos onde ia … onde se ia apontando o número da factura e a característica do negócio, o espelho, no fundo do negócio. E o vendedor … e o vendedor pegava no usado e ia tentar vendê-lo, colocá-lo no mercado, vendê-lo a particular, fazer … achava que devia fazer … enfim, o vendedor tinha que entregar na A… a falta que estava da … da factura.
MP – Portanto, o vendedor ficava com o carro na mão …
T – Na mão, perfeitamente autónomo. (tudo a fls. 1774 a 1775)
b) No que respeita às afirmações, “Eles próprios, com o seu dinheiro, que os reparavam.” (cassete 3/ volta 197) e “A gerência não comercializava viaturas usadas.” (cassete 3/ volta 209), disse a testemunha:
MP – A senhora até 2003, alguma vez lhes disse … não, não. Não vendeste o carro a trinta dias, o senhor tem que me entregar o carro para nós o vendermos.
T – Se eles não conseguissem … se eles não conseguissem obviamente que a …os … os recebia.
MP – Mas aconteceu isso?
T – Aconteceu uma ou duas vezes, sim, sim. Mas é assim, a situação quando eles começaram todos a trabalhar lá, desde o momento em que a gerência lhes dá esta possibilidade de eles no fundo terem um segundo negócio, que é a colocação da viatura usada e mesmo que ela desse alguma mais valia, ficarem … desse algum lucro ficarem com esse dinheiro, porque muito …houve muitas vezes que eles fizeram reparações em carros usados. Eles próprios com o seu dinheiro os repararam.
(…)
MP – Mas era para não ter preocupações com aqueles carros usados, para não se mexer nesse negócio?
T – Não. Porque a … não é isso. A …nunca teve espaço físico … porque é assim, o negócio dos usados obriga a um stand condigno para ter as viaturas, obriga a uma manutenção das viaturas, obriga a que as viaturas estejam expostas devidamente. E a … está focalizada unicamente para a Volkswagen e neste caso também para a Audi e a questão do negócio dos usados ou é para ter ou é para não ter. E a … e a gerência fez esta opção. Fez a opção de não comercializar viaturas usadas. Porque nem quer em termos de espaço físico opcional, tínhamos capacidade de manutenção, manutenção porque é assim, um carro, um Volkswagen, que se possa retomar quando se vai vender um Volkswagen, e se nós somos concessionários Volkswagen … (…) ele tem que estar devidamente apresentado. Ele tem que estar bonito, tem que estar bem preparado, tem que ter garantia.
MP – Portanto, era uma opção da gerência … não vender.
T – Exactamente. (tudo a fls. 1778 a 1780)
c) No que respeita às afirmações, “O que ficava em falta era o dinheiro.” (cassete 3/ volta 267) e “Os usados eram perfeitamente da responsabilidade dos vendedores.” (cassete 3/ volta 283), disse a testemunha:
MP – Portanto, nessa altura então as viaturas continuavam a não entrar, nem sequer na escrita da empresa?
T – Não.
MP – Não eram existências, não eram …
T – Não, não, não.
(…)
T – (…) Mas aquilo que ficava sempre em falta, o sistema foi sempre igual …
MP – Era dinheiro?
T – Era … ficava um montante na conta do sr. … como exemplo, ficavam a faltar … ele tinha comprado um Golf, era a factura do carro novo. Ele tinha comprado um Golf por vinte e cinco mil euros, tinha sido avaliada a sua retoma pelo … vendedor, em cinco mil e na conta não estava fechada a zero. Faltavam … faltavam cinco mil …
Pergunta do Mmo. Juiz (J) – (…) quando refere que a conta do cliente estava deficitária. (…) Então o que é que … querendo dizer com isso que faltava o valor da retoma?
T – Exacto.
J – mas era o cliente que lhe faltava pagar esse valor?
T – Não, não. Era o vendedor.
J – Era o vendedor?
T – Exactamente. Nós nunca que eu saiba a … mandou e isso tenho cem por cento de certeza. A … nunca mandou para carta de … para casa de ninguém, de nenhum cliente a dizer, … meu amigo, o senhor está em falta, está devedor do montante … nunca. Era o vendedor. Os usados eram perfeitamente da responsabilidade dos vendedores. (tudo a fls. 1783 a 1786)
d) No que respeita às afirmações, “Eram detentores da retoma.” (cassete 3 /volta 679), “Faziam as reparações e se ganhassem era deles.” (cassete 3/ volta 669), “Se ao tentar vender a viatura com prejuízo, o problema era deles.” (cassete 3/ volta 78 verso) e “Ficavam com a posse dele.” (cassete 3/ volta 101 verso), disse a testemunha:
T – (…) Eles faziam as reparações, negociações, enfim, tudo aquilo que eles entendessem na viatura ou não, vendiam a particular ao comércio, era aquilo que lhes surgisse e se ganhassem … se ganhassem era deles. (a fls. 1809)
(…)
T – Desde que a conta … não é a questão de ser meu ou ser da A…. A questão é aqui … desde que a conta do cliente estivesse saldada, não é?
(…)
T – E mesmo … e … e mesmo que eles ao tentarem colocar a viatura a vender, mesmo com prejuízo para eles … (…) o problema é deles.
A – Pronto. Porque a viatura era deles?
T – Porque os cheques que entraram normalmente na conta quando entravam para pagar, não … não muito o sr. … mas … algumas vezes, mas os colegas, é cheques em que eles vendem o carro ao comerciante e depois aquilo vem com troco, vem com uma mais-valia. E vai à conta deles. E ao ir à conta deles deixa lá depois a mais-valia na conta deles e eles depois … com a … é que liquidavam o todo. (a fls. 1818)
(…)
T – Ficavam na posse deles. No fundo o carro não era deles porque não estava averbado em nome deles. Continuava averbado em nome do antigo cliente com a assinatura do cliente a permitir a venda em qualquer momento.
4. Feito o enquadramento das afirmações expressamente referidas pelo recorrente (algumas não coincidindo inteiramente com o teor da respectiva transcrição) no contexto em que estão inseridas, vejamos agora, de forma sucinta embora, o afirmado pelas testemunhas … …e, ambos colegas de trabalho do recorrente na …, na data dos factos, e cujos depoimentos serviram para fundar a convicção do tribunal recorrido, como consta da sentença, e foram referidos pela Digna Magistrada do Ministério Público na contra-motivação.
a) A testemunha …disse.
- Nas vendas com retoma de um carro usado ficava responsável, tipo fiel depositário da viatura retomada, ficava com os documentos, com as chaves e responsáveis pela sua venda que tinha que ser feita em mais ou menos um mês, entregando depois o valor do carro à … (a fls. 1686);
- Se o carro retomado fosse vendido por preço superior ao valor dado como retoma no contrato, este valor tinha que ser entregue à … , ficando o excesso para o vendedor (a fls. 1689);
- Também acontecia que, se avaliassem mal o carro retomado, terem que por dinheiro do próprio bolso, pois a … recebia sempre o valor atribuído à retoma (a fls. 1691);
- Havia reuniões de quinze em quinze dias, nas quais os vendedores eram chamados à
atenção pela situação dos carros em falta; assim que vendia um carro entregava o dinheiro à … porque achava que era o seu dever, o dinheiro não era seu (a fls. 1692);
- Se não conseguissem vender o veículo retomado podia acontecer que entrassem com o dinheiro em falta à …, mas se o dinheiro não fosse entregue a …podia exigir a viatura em falta; antes da feira de Santa Iria de 2004, foi feita uma reunião onde foi pedida a entrega das viaturas no stand da … para terem mais possibilidades de serem vendidas, todos os vendedores, com excepção do arguido, entregaram as viaturas, porque entendiam que a … tinha direito sobre elas (a fls. 1694 a 1695);
- Nunca se percebeu de que os procedimentos para a venda dos veículos retomados variassem de vendedor para vendedor (a fls. 1700).
b) A testemunha …disse:
- Os vendedores eram praticamente os gerentes das retomas, tinham que dar os valores das viaturas retomadas, recebê-las e colocá-las no comércio (a fls. 1711);
- A gerência da …. não tinha a noção do valor de uma retoma e aprovava integralmente os valores atribuídos pelos vendedores (a fls. 1714 a 1715);
- Feita a venda de um carro novo, a retoma era colocada (vendida) nos comerciantes pelo vendedor, que era a forma mais rápida de obter o reembolso do valor atribuído (a fls. 1716);
- Tinham um prazo de trinta dias para entregar à A… o valor atribuído à retoma (a fls. 1717);
- A ideia não era, caso não conseguissem vender a retoma, entregá-la pois eram comissionistas, não tinham ordenado, se vendiam recebiam, se não vendiam não recebiam (a fls. 1718 a 1719);
- O factor número um do seu trabalho era a comissão dos carros novos, e depois podia ganhar mais alguma coisa com as retomas, e era assim com todos os vendedores (a fls. 1719 a 1721);
- Quando colocava os carros retomados, entendia que o valor era da A… (a fls. 1722);
- Quando recebia o dinheiro dos comerciantes onde havia colocado as retomas, entregava o valor atribuído à retoma na … porque era desta, e se houvesse algum excedente relativamente ao preço da venda, ficava com ele (a fls. 1724 a 1725);
- Se não conseguissem vender o carro retomado tinham que o entregar à … pois era propriedade desta pois os vendedores apenas poderiam ser, até à venda, um fiel depositário, por terem a responsabilidade do bem e supões que os outros vendedores teriam a mesma posição; na feira de Santa Iria todos os vendedores entregaram viaturas, menos o … (a fls. 1726 a 1728);
- Os vendedores não tinham que pôr dinheiro do próprio bolso e não houve casos em que tal tivesse acontecido pois, em última análise, entregavam a viatura à … (a fls. 1738 e 1741);
- Perguntado pelo Ilustre Mandatário do recorrente se a … tinha transmitido a propriedade do veículo retomado para o vendedor, disse que não, que o carro andava na posse do vendedor, até à venda, em nome do antigo dono (fls. 1743);
- Os carros eram retomados no negócio da venda pela … mas não entravam na contabilidade desta (a fls. 1744);
- Os carros retomados não eram propriedade sua, as existências das retomas eram da … (a fls. 1747 e 1748);
- Se o carro retomado precisasse de algumas reparações ou substituição de componentes, era o vendedor que pagava, na esperança de obter o reembolso desta despesa na venda; se tal não viesse a ser possível, o que lhe aconteceu uma vez, aquela despesa era suportada pelo vendedor (a fls. 1757 a 1759).
5. Consagra o art. 127º do C. Processo Penal o princípio da livre apreciação da prova segundo o qual esta, salvo disposição legal em contrário, é apreciada em conformidade com as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
A livre convicção do julgado não significa porém, o arbítrio ou a decisão irracional “puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação” (Prof. Castanheira Neves, citado por Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 4ª Ed., 85).
Pelo contrário, a livre apreciação da prova exige uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, mas também nas da lógica e da ciência, e tudo para que dela resulte uma convicção do julgador objectivável e motivável, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.
Doutrina o Prof. Figueiredo Dias (Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.), que no processo de formação da convicção há que ter em conta os seguintes aspectos:
- A recolha dos dados objectivos sobre a existência ou não dos factos com interesse para a decisão, ocorre com a produção de prova em audiência;
- É sobre estes dados objectivos que recai a livre apreciação do tribunal, como se referiu, motivada e controlável, balizada pelo princípio da busca da verdade material;
- A liberdade da convicção anda próxima da intimidade pois que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos conhecimentos não é absoluto, tendo como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, portanto, as regras da experiência humana;
- Assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.
Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss.).
Como atrás dissemos, o recurso em matéria de facto perante os tribunais da Relação não se destina a realizar um novo julgamento, apenas constituindo remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância.
O recurso da matéria de facto não pressupõe portanto, uma reapreciação pelo tribunal superior dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida – o tribunal de recurso não efectua um novo julgamento nem forma uma nova convicção –, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera determinarem uma diversa decisão (cfr. Ac. do STJ de 19/12/2007, processo nº 07P4203, em http://www.dgsi.pt).
Isto posto.
5.1. As afirmações das testemunhas extractadas pelo recorrente, que acabam de ser contextualizadas, e com base nas quais pretende demonstrar que se impunha diferente decisão de facto relativamente aos factos provados dos quais se extrai a inversão do título da posse, são em si mesmas insusceptíveis de produzirem o resultado processual pretendido. Vejamos.
Começaremos por referir que nos encontramos num campo que suscita algumas dificuldades, na medida em que nem sempre o sentido vulgar, comum, de uma palavra, corresponde ao sentido à mesma dado por um técnico do direito. Vem isto a propósito da utilização feita pelas testemunhas…. …., ao longo dos respectivos depoimentos, de palavras e expressões como fiel depositário, posse, posse real e efectiva e, detentores da retoma, sendo certo que não são juristas e que por isso, tais palavras, para além de não poderem ser desenquadradas do contexto em que foram proferidas, apenas devem ser entendidas no seu sentido comum.
Como dissemos, o recorrente, apresentando a versão de que as retomas dos veículos usados se tornavam propriedade dos vendedores, pretende demonstrar a impossibilidade de ter cometido o crime pelo qual foi condenado, pela não verificação da inversão do título da posse e consequente apropriação ilegítima da coisa, elementos do respectivo tipo.
E para tanto invocou os depoimentos das testemunhas FM e MM e as expressões por estes proferidas atrás enunciadas.
5.1.1. Relativamente à testemunha…., usou o mesmo as expressões fiel depositário, referida ao vendedor relativamente às viaturas retomadas, bem como que aquece ficava na posse destas. Mas isto, quando explicava o relacionamento de facto que existia entre a ofendida …, que geria, e os seus vendedores, entre eles, o recorrente. Ora, não só o fiel depositário não tem a posse do bem objecto do depósito – mas apenas a sua detenção ou posse precária – como logo adiante a testemunha explica que a … autorizava os seus vendedores a receber as retomas que tinham que vender, em princípio, no prazo de trinta dias, que os carros usados não chegavam à posse da ofendida porque esta dava a possibilidade aos vendedores de, para além da comissão auferida pela venda da viatura nova, obterem um proveito acrescido resultante da venda do veículo retomado, se o preço deste viesse a ser superior ao valor que lhe havia sido atribuído pelo vendedor, como retoma, no contrato de compra e venda da viatura nova, e que os carros usados formalmente não iam à posse da …, mas que às vezes, materialmente iam, quando precisavam se efectuar reparações e estas eram feitas na ofendida. É pois notório o significado que a testemunha atribui ao termo posse, ter as viaturas nas suas instalações.
E se é certo que a testemunha afirmou que o primeiro vendedor era o primeiro proprietário, a verdade é que disse algo mais, que era o primeiro proprietário entre aspas, não carecendo de explicação, cremos, a utilização da expressão entre aspas neste contexto.
Por outro lado, se é verdade que, a pergunta do Ilustre Mandatário do recorrente sobre se o carro retomado era do vendedor, a testemunha respondeu exactamente, também na pergunta imediatamente formulada antes pelo mesmo Ilustre Mandatário sobre se a A… não contabilizava o carro retomado como seu, pelo que era logo vendido de imediato ao recorrente e pelo preço da retoma, a testemunha respondeu apenas que ficava em falta o dinheiro da retoma, sendo certo que já anteriormente, a instâncias da Digna Magistrada do Ministério Público a testemunha havia já afirmado que o recorrente tinha consciência de que os carros retomados não eram dele e, respondendo a pergunta da mesma Magistrada sobre se o recorrente ficava com as viaturas retomadas e respectivos documentos para, em nome e interesse da A… os transformar em dinheiro, na verba previamente fixada no documento de venda do veículo novo, respondeu, exactamente (fls. 1673 e 1674).
5.1.2. Relativamente à testemunha …, quanto ao uso por esta feito da palavra posse, valem as considerações anteriormente feitas, com o esclarecimento de ter a testemunha afirmado também que a A…, por opção da gerência, não negociava directamente veículos usados, e que os veículos retomados eram recebidos dos clientes compradores de veículos novos pelos vendedores, que ficavam com os respectivos documentos, os avaliavam sem interferência da gerência, e os vendiam, entregando à …o valor da avaliação.
Acresce que a testemunha afirmou também, que o valor atribuído ao carro retomado pelo vendedor e aceite pelo cliente comprador do carro novo, fazia parte do preço deste ou seja, aquele valor era deduzido ao montante a pagar pelo cliente, relativamente à compra da nova viatura (fls. 1771), que o carro retomado fazia parte do negócio celebrado com o cliente comprador do carro novo (fls. 1777) e que se os vendedores não conseguissem vender os carros retomados dentro dos prazos fixados pela … aqueles tinham que lhos entregar (fls. 1803).
5.1.3. Decorre portanto dos depoimentos destas duas testemunhas, e ao contrário do pretendido pelo recorrente, que as viaturas retomadas, embora ficassem entregues aos vendedores que haviam realizado a compra e venda de viaturas novas, não lhes pertenciam, antes pertencendo à ….. Aliás, o recorrente nunca indicou qual o meio de aquisição do direito de propriedade dos veículos retomados por parte dos vendedores.
E o mesmo decorre dos depoimentos das testemunhas … …, ambos vendedores da … e colegas de trabalho do recorrente, que não existindo regras distintas para os vendedores, se não vendessem os carros retomados nos negócios de venda de veículos novos nos prazos fixados pela …, esta podia exigir a sua entrega, como sucedeu uma vez, pois sobre eles tinha direitos, era a sua proprietária.
5.2. O que resulta dos depoimentos destas quatro testemunhas é que a …, concessionária de determinadas marcas de veículos automóveis, tendo ao seu serviço vendedores comissionistas, por opção de gestão – que aqui se não discutem, como não se discutem eventuais questões de direito fiscal – decidiu não negociar directamente veículos usados provenientes de retomas englobadas em contratos de compra e venda de veículos novos. Mas como aos veículos retomados era atribuído um determinado valor pelos vendedores da …, e este valor era deduzido ao que o cliente tinha que pagar pelo carro novo, os vendedores tinham um certo prazo, fixado pela …, mas susceptível de prorrogação, para procederem à venda da retoma, sendo certo que, se a lograssem efectuar por valor superior ao que haviam atribuído ao veículo na venda do veículo novo – e que constava em falta, na contabilidade da … – haveriam para si a diferença, da mesma forma que, se apenas lograssem vende-lo por preço inferior, teriam que por a diferença, sem prejuízo de, não o vendendo, o entregarem à ….
Desta forma, não se vendo que, dos depoimentos das testemunhas…., agora apoiados nos depoimentos das testemunhas … …, possa extrair-se, como pretende o recorrente, que este, enquanto vendedor comissionista da …, se tornava proprietário dos veículos usados retomados por aquela, no âmbito de contratos de compra e venda de veículos novos, não existem razões para alterar qualquer um dos pontos de facto atrás elencados (incompatíveis, com o invocado direito de propriedade do recorrente).
Em conclusão do que antecede, tendo o tribunal recorrido apreciado a prova produzida com plena observância do prescrito no art. 127º do C. Processo Penal, considera-se fixada a matéria de facto nos precisos termos em que o foi na sentença recorrida.
Esta matéria de facto preenche o tipo do crime por cuja prática foi o recorrente condenado, e não vem questionada a pena concreta aplicada a qual, em todo o caso, se algum reparo merece, será pela sua benevolência.
III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar pr