Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1207/05.OPBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: DOCUMENTO AUTENTICADO
PROVA PLENA
COMPRA E VENDA
PREÇO
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 394.º; 408.º, N.º; 897.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O documento autêntico não faz prova plena quanto à veracidade das declarações emitidas pelos outorgantes, podendo provar-se, por qualquer meio, que essas declarações não são verdadeiras – sem necessidade de arguir a falsidade do documento autêntico, uma vez que, usualmente, não é isso que está em causa –, sem prejuízo de algumas limitações estabelecidas na lei (artigo 394º do Código Civil).
2. Considerando a definição legal de compra e venda – “contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço” –, bem como o disposto nos artigos 408º, nº1 e 879º, a) do Código Civil, a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato e não depende nem da traditio nem do pagamento do preço, concebendo-se como um contrato real quoad effectum (pressupondo-se, obviamente, a observância da forma legal).
3. O pagamento, pelo comprador, de quantia inferior ao preço declarado na escritura (pagamento de € 8.800,00 contra os € 55.000,00 declarados na escritura como tendo sido recebidos pelo vendedor), não gera, de per si, nem a nulidade da escritura pública outorgada, nem do contrato de compra e venda que lhe subjaz.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO

A.....(entretanto falecida, tendo sido habilitados como seu herdeiros, B....., C.....e D.....), E....., F....., G....., H..... e I.....instauraram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra J.....e K.....pedindo:

a) que seja declarada a falsidade da escritura de compra e venda outorgada em 20 de Fevereiro de 2004, exarada a no Livro de Notas n° 175 — I de fls. 111 a 112 verso do então Segundo Cartório Notarial de Tomar, hoje, por privatização, do Cartório Notarial de L.....em Tomar;

b) seja declarada a nulidade do registo de aquisição feito a favor da ré K..... — Comércio e Indústria de Materiais de Construção do Centro, Lda. com base na aludida escritura;

c) seja ordenado o cancelamento do mesmo registo de aquisição feito a favor da ré, pela inscrição G — 1, à descrição n° 02491/050779 da Conservatória do Registo Predial de Tomar.

Em sede de ampliação do pedido, efectuada na réplica, os autores pedem ainda:

d) que seja “declarada a falsidade da escritura de compra e venda outorgada em 20 de Fevereiro de 2004, exarada a no Livro de Notas n° 175 — I de fls. 111 a 112 verso do então Segundo Cartório Notarial de Tomar, hoje, por privatização, do Cartório Notarial de L.....em Tomar, declarando-se ainda a nulidade do contrato de compra e venda que ela titula, bem como o estipulado em 5º do Acordo junto aos autos”. 

Para o efeito, alegaram, em síntese, que:

Os autores são os únicos e universais herdeiros de M.....falecido em 16 de Março de 2005;

Cerca de um ano e meio antes da sua morte, o falecido M.....outorgou uma procuração ao réu J....., conferindo-lhe poderes para vender ou prometer vender, pelo preço e condições que entendesse, inclusive, para celebrar negócios consigo mesmo, a fracção autónoma designada pela letra «C», correspondente ao primeiro andar direito, para habitação, prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua de S. João, n° 46, freguesia de S. João Baptista, em Tomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o n° 1691 e inscrito na matriz, sob o artigo 2189;

Munido destes poderes, atribuídos com carácter irrevogável e sem caducidade por morte ou interdição do mandante, o réu J....., por escritura pública outorgada em 20 de Fevereiro de 2004, declarou vender à segunda ré, que declarou comprar-lhe a mencionada fracção autónoma, pelo preço de € 55.000,00;

Nessa sequência o imóvel foi registado, na Conservatória do Registo Predial, em nome da ré K....., Lda;

Acontece, porém, que tal preço nunca foi pago, nem o falecido M.....teve conhecimento dessa venda, por isso, o conteúdo de tal escritura é falso, por ser discrepante com a realidade, atestando um facto que não se verificou, falsidade que tem a sua origem no dolo, por as declarações não serem verdadeiras.

Regularmente citados, os réus apresentaram contestação, na qual alegam, em síntese, o seguinte:

O réu J....., sobrinho do falecido M....., passou a maior parte da sua adolescência e juventude na cidade de Tomar, onde se formou, tendo nesse espaço de tempo sido entregue aos cuidados dos seus tios M.....e esposa O....., irmã do pai do réu e que foi um sobrinho estimado do falecido M....., que acompanhou e ajudou numa altura que este caracterizou de total abandono pelos seus agora intitulados herdeiros legítimos;

Em meados de 2002 o falecido M....., justificando-se com graves dificuldades financeiras, propôs-se a negociar a sua residência com o réu J....., adiantando que já tinha proposto o mesmo a outros primos e irmãos do réu sem que nenhum deles o tivesse aceite;

Ainda assim, e sempre que o réu visitava o seu tio M....., este propunha-se negociar a sua casa, confidenciando que, sem ajudas de mais ninguém, especialmente da família mais próxima, a sua reforma não lhe permitia uma sobrevivência condigna;

Em meados de Maio de 2003, o falecido M....., propôs ao réu o seguinte: este garantia-lhe uma «mensalidade para o resto da vida» num montante de 550,00 € (quinhentos e cinquenta euros), e aquele punha a casa de que dispunha em nome do réu ou de quem ele quisesse;

O réu, sentindo as reais necessidades do seu tio, procurou junto dos seus filhos e da sociedade comercial que os mesmos representam, a ré K....., Lda., alguma disponibilidade financeira e interesse para a proposta que o falecido M.....lhe dirigia;

A ré K....., Lda., viu interesse no negócio desde que, naturalmente, lhe fosse garantida a possibilidade de aquisição da referida fracção;

Assim, ainda no mês de Maio de 2003, o falecido M....., no âmbito do acordo verbal celebrado, começou a receber, em dinheiro, da ré K....., Lda. e através do réu J....., um montante mensal de Euros: 550,00 €, através dos cheques enumerados no art. 25° da petição inicial;

Por já terem ajustado o montante das prestações e as mesmas estarem a ser pagas, o réu J..... e o falecido M....., no dia 5 de Setembro de 2003, no Segundo Cartório Notarial de Tomar e sob o conselho do Sr. Notário, formalizaram a procuração e ainda o acordo mencionados nos arts. 20° e 21° da petição inicial;

O que o M.....exigia como contrapartida da possibilidade de transmissão da fracção C, era o pagamento mensal da quantia de Euros: 550 € até ao mês da sua morte;

Desconhecendo quantas mais rendas tinham ainda de ser pagas a M....., que estava vivo e gozava de boa saúde, aqueles outorgantes e aqui réus decidiram-se por um montante que consideraram razoável e expectável;

O réu J..... (na qualidade procurador do seu tio/proprietário) e a ré K....., Lda. (outorgante naquela escritura na qualidade de compradora), não podendo determinar com exactidão o valor da transmissão dita em D), estipularam o montante de Euros 55 000 € como sendo o valor total de todas as rendas que seriam pagas ao M....., até final do referido acordo;

M.....soube da venda da referida fracção C, tendo concordado com os termos da mesma, sendo que foi o próprio M.....quem comunicou a venda que fez, a alguns deles, autores.

Concluíram pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido tendo, ainda, invocado o disposto no art. 292° do Código Civil, peticionado a redução do preço exarado na escritura pública de compra e venda, para a quantia de € 11.000,00.

Os autores apresentaram réplica, na qual ampliaram o pedido, nos termos indicados, e a causa de pedir, invocando a nulidade da escritura, com fundamento, na sua falsidade, a nulidade do próprio contrato de compra e venda, em virtude de, como inferem dos argumentos aduzidos na contestação, a estipulação do preço não ter resultado de liberdade contratual, sendo fictício, nem do valor do bem imóvel que dele foi objecto, sendo que tal nulidade também resulta, ainda, de o negócio ser indeterminável.

Findos os articulados, teve lugar a audiência preliminar, na qual foi proferido despacho saneador, admitida a ampliação do pedido e da causa de pedir e organizadas a matéria assente e a base instrutória, que foram objecto de reclamação apresentada pelos autores, que foi indeferida.

Instruída a causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Respondeu-se aos quesitos, após o que foi preferida sentença que concluiu da seguinte forma:

“Termos em que julgo a presente acção não provada e improcedente e, em consequência, absolvo os réus, J.....e K....., Lda. de todos os pedidos.

Custas a cargo dos autores — art. 446° do CPC.

Notifique e registe”.

Não se conformando, os autores recorreram, peticionando da seguinte forma:

“Termos em que, embora se peça a este Venerando Tribunal que se declare nula a sentença, pode ser conhecida a falsidade do título e a nulidade do contrato de compra e venda, por a matéria de facto provada fornecer os elementos necessários para julgar a apelação procedente, decretando-se a falsidade da escritura pública e declarando-se, ainda, a nulidade do contrato de compra e venda que ela titula, bem como o estipulado em 5º do Acordo junto aos autos”.

Formulam as seguintes conclusões.

“1ª. A sentença é nula por conhecer de cinco vícios da vontade: simulação, erro na declaração, erro sobre o objecto negocial, erro sobre os motivos e dolo, dos quais não podia tomar conhecimento, por as partes não terem alegado qualquer daqueles vícios.

2ª A Sentença é nula por conhecer de pedido de redução do negócio formulado pelos réus, sem que estes tenham deduzido reconvenção, nem alegado factos para tal.

3ª A sentença é nula por não apreciar nem decidir, sobre o pedido de declaração da nulidade do contrato de compra e venda titulado pela escritura e do estipulado em 5°. do Acordo, pedido ampliado na réplica.

4ª Na escritura não foi pago nem recebido o preço de 55.000,00 euros dela constante, havendo, apenas, o pagamento de 8.800,00 euros, em prestações mensais de 550,00 euros cada, sendo discrepante o seu conteúdo com a verdade, pelo que se verifica a falsidade da escritura.

5ª O preço de 55.000,00 euros, constante do contrato de compra e venda, não resultou de qualquer vontade negocial, mas da necessidade com que os outorgantes se deparam de, no contrato, ter que ser indicado um preço, pelo que nem preço representa, não podendo ser considerado preço, acarretando a nulidade da compra e venda.

6ª Não houve entrega da fracção à compradora, não se tendo verificado outro dos efeitos essenciais do contrato.

7ª O facto do pagamento consistir em prestações mensais de 550,00 euros cada até à morte do dono da fracção, tendo efectivamente sido pagos 8.800,00 euros, acarreta a indeterminabilidade do negócio por os pagamentos a fazer dependerem da morte do dono da fracção, que nunca se saberia quando podia ocorrer.

8ª A cláusula 5ª. do «Acordo» viola as normas imperativas da compra e venda e do mandato, sendo nula.

9ª A Sentença recorrida viola os art°.s 280°.- n°. 1, 372°.- n°.s 1 e 2, 405°., 874°. e 879°.- als. b) e c), todos do Código Civil, e art°.s 264°., 659°. - n°. 3, 660°. - n°. 2, 664°. e 668°.- n°. 1, al. d) , todos do Código de Processo Civil.

10ª Nos termos e para os efeitos do art°. 748°., n°. 2, do C.P.C., os recorrentes não mantêm interesse nos agravos admitidos nos autos”.

Os réus apresentaram contra alegações, propugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu como provada a seguinte factualidade, aditando ainda esta Relação à factualidade consignada nas alíneas B) e C) outros elementos constantes do documento junto pelos autores a fls. 21 e 22 dos autos, documento que não foi impugnado pelos réus:

Por escritura notarial lavrada em 16 de Agosto de 2005, foram os AA. habilitados como herdeiros legítimos de M....., falecido a 16/03/2005, no estado de viúvo (alínea A) da matéria assente);

Em 05/09/2003, no Segundo Cartório Notarial de Tomar, por escrito intitulado de «Procuração» M.....declarou que: «Constitui seu bastante procurador, J....., ( ... ) a quem confere os poderes incluindo os de substabelecer para vender ou prometer vender pelo preço e demais condições que entender a fracção autónoma designada pela letra C, correspondente ao primeiro andar direito, para habitação, do prédio urbano submetido ao regime da propriedade horizontal, sito na Rua de São João, n° 46, freguesia de S. João Baptista, concelho de Tomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o número mil seiscentos e noventa e um, inscrito na matriz sob o artigo 2.189, receber o respectivo preço e dele dar quitação, bem como onerar, designadamente para hipotecar, o imóvel atrás referido» (alínea B) da matéria assente);

No escrito dito em B) M.....declarou ainda que J.....poderia ainda fazer negócio consigo mesmo (alínea C) da matéria assente);

E que “A presente procuração é irrevogável e sem caducidade por morte ou interdição do mandante, tudo nos termos dos artigos 265º, nº3, e 1175, 1170, parágrafo 2, do Código Civil” (aditamento). 

Por escritura de 20/02/2004, lavrada de folhas 111 a 112 verso, no livro de notas n° 175 - I, do então 2°. Cartório Notarial de Tomar, J.....declarou vender a fracção autónoma C, identificada na alínea B) supra, a uma sociedade por quotas denominada «K....., Lda.», segunda ré, ali representada por N.....(alínea D) da matéria assente);

Na referida escritura, J....., que a outorgou na qualidade de procurador de M....., declarou que vendia a referida fracção C pelo preço de 55.000,00 euros, quantia que declarou ter recebido (alínea E) da matéria assente);

O prédio referido no escrito dito em B) como pertencendo à descrição n° 1691, é o mesmo a que corresponde descrição n° 44.154 objecto da escritura dita em D) (alínea F) da matéria assente);

Pela apresentação n° 8 de 23.02.2004, mostra-se inscrita a aquisição, a favor da ré K....., Lda., por compra a M....., da fracção autónoma dita em B), descrita na C.R.P. de Tomar sob a ficha n° 02491/050709 (resultante da anterior descrição n° 44.154, por a referida fracção «C» ter sido extractada) (alínea G) da matéria assente);

Pela apresentação n° 03, de 010207, foi inscrita a constituição da ré «K........, Lda.», com um capital social de € 5.000, dividido em 2 quotas iguais, cada uma pertencente aos sócios J.....e sua mulher, P......(alínea H) da matéria assente);

Por escritura pública de 21/08/2001, aqueles dois únicos sócios da ré K....., Lda., dividiram cada uma das suas quotas em duas novas quotas, dos valores nominais de 2.375,00 euros e 125,00 euros, declarando ceder as quotas dos valores nominais de 2.375,00 euros a cada um dos seus filhos, N.....e Q......, e declarando reservar as quotas do valor nominal de 125,00 euros para si (alínea I) da matéria assente);

Posteriormente, aquelas quotas de 125,00 euros foram, pelo réu J.....e mulher, cedidas àqueles dois filhos, que são os actuais únicos sócios da ré K....., Lda., compradora, sendo seu gerente N.....(alínea J) da matéria assente);

Também na data e local referido em B), o réu J.....e M....., identificando-se como primeiro e segundo outorgantes, respectivamente, subscreveram o escrito denominado «Acordo», do seguinte teor:

«1°

Pelo presente acordo o primeiro outorgante obriga-se a pagar ao segundo outorgante a quantia de Euros: 550 € (quinhentos cinquenta euros) todos os meses,

ÚNICO - Aquela quantia será paga pelo primeiro outorgante, até ao dia 15 de cada mês, através de numerário, cheque ou transferência bancária a favor do segundo outorgante.

Aquele montante apenas será devido pelo primeiro outorgante e exigível pelo segundo outorgante, enquanto este for vivo, extinguindo-se a obrigação com a morte deste.

Verificando-se a falta de pagamento de uma mensalidade o segundo outorgante notificará o primeiro outorgante para que este, em quinze dias úteis, pague o valor em falta, acrescido de Euros: 150 € (cento e cinquenta Euros).

Na presente data, o segundo outorgante, outorgará Procuração Irrevogável constituindo o primeiro outorgante seu bastante procurador conferindo-lhe poderes suficientes para prometer vender, vender ou onerar a fracção autónoma designada pela letra «C» (... ), sita na freguesia de S. Baptista Tomar (... ).

Findo o prazo previsto na cláusula 3ª, tem o segundo outorgante a faculdade de resolver o presente acordo e, caso o segundo outorgante tenha procedido à venda da referida fracção, exigir o pagamento imediato de uma indemnização num montante igual ao valor de mercado da identificada fracção, descontado o valor de todas as mensalidades entregues pelo primeiro outorgante ao segundo outorgante.» (alínea L) da matéria assente);

Após a celebração dos escritos ditos em M) e B), a ré K....., Lda., e N......emitiram os seguintes cheques:

Cheque n° 7089044246, sacado sobre o banco Barclays à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido por N......;

Cheque n° 6889044257, sacado sobre o banco Barclays à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido por N......;

Cheque n° 3293207695, sacado sobre o banco Barclays à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido por N......;

Cheque n° 1497822001, sacado sobre o banco Montepio Geral, à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido pela ré K....., Lda.;

Cheque n° 9397822003, sacado sobre o banco Montepio Geral, à ordem de M....., no montante de 550€ (quinhentos e cinquenta Euros), emitido pela ré K....., Lda.;

Cheque n° 7597822005, sacado sobre o banco Montepio Geral, à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido pela ré K....., Lda.;

Cheque n° 4778665596, sacado sobre o banco Montepio Geral, à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido pela ré K....., Lda.;

Cheque n° 3890665597, sacado sobre o banco Montepio Geral, à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido pela ré K....., Lda.;

Cheque n° 2090665599, sacado sobre o banco Montepio Geral, à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido pela ré K....., Lda.;

Cheque n° 7090467250, sacado sobre o banco Montepio Geral, à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido pela ré K....., Lda.;

Cheque n° 5290467252, sacado sobre o banco Montepio Geral, à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido pela ré K....., Lda.;

Cheque n° 9590467253, sacado sobre o banco Montepio Geral, à ordem de M....., no montante de 550 € (quinhentos e cinquenta Euros), emitido pela ré K....., Lda.;

Cheque n° 6980830306, sacado sobre o banco Barclays, à ordem de M....., no montante de 550€ (quinhentos e cinquenta Euros), emitido por N......;

Cheque n° 2780830343, sacado sobre o banco Barclays, à ordem de M....., no montante de 550€ (quinhentos e cinquenta Euros), emitido por N......;

Cheque n° 2380830365, sacado sobre o banco Barclays, à ordem de M....., no montante de 550€ (quinhentos e cinquenta Euros), emitido por N......;

Cheque n° 2693207728, sacado sobre o banco Barclays, à ordem de M....., no montante de 550€ (quinhentos e cinquenta Euros), emitido por N.....(alínea M) da matéria assente);

A ré K....., Lda. e N…, como contrapartida pela transmissão da fracção C, nos termos descritos em D), entregaram a M....., até ao falecimento deste, a quantia total de € 8.800, resultante da soma dos cheques ditos em M) (alínea N) da matéria assente);

Para a realização da escritura de Compra e Venda, nos termos referidos em D) supra, foram os outorgantes confrontados com a necessidade de indicarem o seu preço (alínea O) da matéria assente);

Em virtude do falecimento da autora A…., foram processualmente habilitados B....., C.....e D..... (alínea P) da matéria assente);

Pelo menos, à data da escritura da compra e venda, N.....residia com os seus pais (resposta ao n° 1 da base instrutória);

O falecido M....., nos últimos dias da sua vida, desconhecia a venda da fracção C (resposta ao n° 3 da base instrutória);

O mandatário J…… também não comunicou aos herdeiros do M.....a outorga daquela escritura de compra e venda (resposta ao n° 4 da base instrutória);

A fracção C, objecto da escritura referida em D), não foi entregue à ré K....., Lda. (resposta ao n° 5 da base instrutória);

O réu J.....estudou e formou-se em Tomar, onde viveu a sua adolescência e juventude, tendo sido o seu tio M.....o seu encarregado de educação (resposta ao n° 6 da base instrutória).

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664 do mesmo diploma.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, assentamos que, no caso dos autos, cumpre apreciar:

- da dinâmica das relações estabelecidas entre o de cujus M.....e o réu J.....e entre este e a ré sociedade; 

- das nulidades da sentença;

- da “falsidade do título”;

- da nulidade dos negócios (contrato  de compra e venda outorgado em 20/02/2004 e cláusula 5ª do acordo efectuado em 5 de Setembro de 2003).

2. Começamos por uma breve abordagem da dinâmica das relações estabelecidas entre os vários sujeitos, perspectivada em função da factualidade assente, abstraindo-nos, nesta fase, da caracterização dos negócios respectivos:

- em 5 de Setembro de 2003, por escrito particular, o M.....e o réu J...... celebraram o acordo aludido na alínea L), pelo qual, grosso modo, o réu se obrigou a pagar ao M....., mensalmente e até à morte deste, a quantia de €550,00, obrigando-se o M.....a outorgar procuração conferindo àquele poderes (irrevogáveis) para vender uma fracção autónoma de prédio urbano, admitindo a celebração de negócio consigo mesmo;

- na mesma data o M.....outorga a referida procuração, a que se reportam as alíneas B) e C) (vide ainda o aditamento efectuado à factualidade assente);           

- por escritura pública outorgada em 20 de Fevereiro de 2004 o réu J......, na qualidade de procurador do M....., declarou vender à ré sociedade (nesse acto representada por um sócio gerente, filho do M.....), pelo preço de €55.000,00, que declarou ter recebido, a referida fracção, tendo a ré declarado aceitar a venda nos termos exarados.         

- o M.....faleceu a 16/03/2005, no estado de viúvo, deixando os autores como “herdeiros legítimos”.

3. Os autores/recorrentes aduzem nulidades da sentença invocando duas ordens de razões, a saber: a) o tribunal a quo conheceu de questões que não lhe era lícito conhecer, bem como de pedido de redução do negócio formulado pelos réus, sem que estes tenham deduzido reconvenção; b) não se apreciou nem decidiu sobre o pedido de declaração da nulidade do contrato de compra e venda titulado pela escritura outorgada em 20/02/2004, e da clausula nº5 constante do acordo celebrado em 05/09/2003 e aludido na alínea L) dos factos assentes.

Nos termos do art. 668º nº1, al) d do C.P.C. é nula a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

A primeira parte do preceito (omissão de conhecimento) tem directa correspondência com o dever imposto ao juiz, de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, salvo relação de prejudicialidade (art. 660º, nº2); A segunda (conhecimento indevido) com a proibição do tribunal conhecer outras questões para além daquelas que as partes formularam, justificando-se no entanto a apreciação daquelas que “a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento” (2ª parte do mesmo preceito).[ [i] ]

Delimitando o campo de actuação do tribunal, é pacífico o entendimento que o conhecimento das questões suscitadas pelas partes não se confunde nem se subsume à apreciação de todas as razões ou argumentos expendidos no processo. Como esclarece Alberto dos Reis “são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”. [ [ii]  ]

Quanto ao excesso de pronúncia, não compete ao tribunal investigar e delimitar o litígio para além dos termos em que as partes conformaram a lide – atendendo à causa de pedir, ao pedido e à defesa (excepções). [ [iii]  ]

No entanto, o tribunal é livre na actividade de interpretação e aplicação da lei.

À luz do que se deixou exposto, vejamos, então, o caso em apreço.

                                             *

Os autores estruturam a sua pretensão em duas vertentes: na petição inicial, direccionam o pedido para a escritura pública de compra e venda outorgada em 20/02/2004, cuja “falsidade” pretendem que o tribunal “declare” e, na réplica, em sede de ampliação do pedido, atacam o negócio que lhe subjaz (compra e venda), peticionando que se “declare” a nulidade desse contrato. Nesse articulado (réplica), pretendem ainda que se declare a nulidade de um outro negócio, celebrado em 5 de Setembro de 2003, nulidade limitada à cláusula 5ª do acordo.

Em sede de causa de pedir, os autores/ recorrentes invocam, na petição inicial, que:

- “Não houve o pagamento do preço declarado naquela escritura pelos seus outorgantes, pai e filho, na qualidade em que intervieram” – art. 17º; 

- “O conteúdo da escritura de compra e venda é falso, por ser discrepante com a verdade, o que acarreta a sua falsidade, atestando um facto que não se verificou” – art. 18º;

- “Falsidade que tem na sua base dolo, por as declarações não serem verdadeiras” – art. 19º;

- “A falsidade da escritura, acarreta a nulidade do resisto (…)” – art. 20º;

Na réplica, os autores, perante a invocação do acordo celebrado em 5 de Setembro de 2003, entre o réu J...... e o M....., aludido na alínea L) dos factos assentes, argumentam o seguinte:

- “O dito acordo e os factos vertidos na contestação demonstram que a R não pagou o preço declarado na escritura, nem qualquer outro”- art.6º;

- “E o preço declarado na escritura é fictício, nem preço é, por não resultar da liberdade contratual, nem do acordo de vontades do comprador e do vendedor, nem do valor do bem, em violação flagrante dos arts. 405º e 874º do Código Civil”- art. 7º;

E, depois, nos arts. 9º e 10º do mesmo articulado, aduzem:

- “E, se os AA sabiam da falsidade da escritura, ficaram agora a saber que o próprio negócio jurídico, o contrato de compra e venda, é nulo, o que se arguiu para a produção de legais efeitos” – art. 9º    

- “É nulo, não só porque o declarado preço foi encontrado em violação dos normativos citados, como ainda em violação grosseira das als. b) e c) do art. 879º do Código Civil, violação da obrigação de pagar o preço” - art. 10º;

- “É nulo porque tal negócio jurídico se mostra indeterminável”- art. 12º;

Invocam, ainda, que “é nulo o estipulado em 5º do dito Acordo, por violar normas imperativas da compra e venda e do mandato” (art. 15º) – sem no entanto especificar concretamente quais as normas em causa;

                                             *

É verdade que, na sentença, a Sra. juiz alude aos requisitos da simulação do negócio jurídico, fazendo-o, no entanto, em termos meramente conceptuais e de uma forma (intelectual) puramente especulativa, logo inóqua, o que resulta do próprio texto da decisão. Assim, pode ler-se:

“Essa falta de veracidade do negócio jurídico poderia, ainda, em termos gerais, integrar uma simulação, sabido, como é que o Tribunal não está sujeito às qualificações jurídicas das partes — art. 664° do CPC.

A simulação é uma das modalidades de divergência intencional entre a vontade real (ou elemento interno da declaração negociai) e a vontade declarada (declaração propriamente dita), constituindo um vício da declaração negociai que, consoante os casos, tem como sanção a nulidade do negócio.

Nos termos do art. 240 do CC, há simulação sempre que se verifiquem, cumulativamente, os seguintes pressupostos: (…)

Cumpre relembrar que os autores se limitaram a alegar, nos já referidos arts. 17° e 18° da petição inicial que a escritura atesta a celebração de um negócio jurídico que não se verificou e que o preço constante da escritura não foi pago.

Nada mais alegaram, sequer, algum facto adequado a integrar o intuito de enganar ou de prejudicar terceiros.

Por isso, não pode dar-se como existente a simulação.

Assim, cumpre apreciar os restantes vícios, estes expressamente invocados pelos autores, como sejam a existência de dolo e a indeterminabilidade do objecto do negócio” (cfr. p. 323 – 36).

Assim sendo e não olvidando que estamos perante excepção de conhecimento oficioso, entendemos que não ocorre a nulidade invocada.

                                             *

Quanto ao dolo e ao erro sobre os vícios da vontade, enquanto causas de anulação do negócio jurídico, verifica-se que os autores não invocaram circunstancialismo subsumível a qualquer das hipóteses contempladas nos arts. 251º e 252º e seguintes do Cód. Civil (diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem), nem se arrogaram no direito de anular os negócios celebrados com esse específico fundamento.

A Sra. juiz termina a sua exposição, quanto a essa matéria, da seguinte forma:

É verdade que não foi a anulação da escritura que pediram, antes a declaração de nulidade da mesma, sendo que a consequência do dolo, com os requisitos acima apontados não é a nulidade, mas sim, a anulabilidade — art. 254° n° 1 do CC.

Mesmo que, por recurso às disposições conjugadas dos arts. 9° e 236° do CC e 661° e 664° do CPC, se pudesse, fazer uma interpretação do pedido, no sentido de se concluir pela possibilidade de decretar a anulabilidade da escritura, invés da peticionada declaração de nulidade, sempre restaria um obstáculo intransponível à improcedência deste pedido.

É que os autores nem sequer articularam qualquer circunstância concreta ou facto objectivo praticado por qualquer dos réus, susceptível, uma vez demonstrado, de enquadrar, por um lado, a existência de um artificio, de uma dissimulação, de uma qualquer forma engenhosa ou artificiosa de, por assim dizer «levar à certa», induzir em erro o falecido M.....ou fazê-lo permanecer na ignorância em relação a algum dos elementos constitutivos, seja da procuração, seja da subsequente compra e venda, nem tão-pouco conseguiram provar que a vontade daquele estivesse inquinada por erro que tenha determinado a outorga de tal procuração, bem como que, não fora a existência desse desconhecimento ou falsa percepção da realidade, no espírito de M....., este não teria conferido ao réu J..... quaisquer poderes para celebrar negócios de transmissão da fracção autónoma C.

Em face do exposto, impõe-se a conclusão de que os autores, a quem incumbia o ónus de alegação e prova dos factos integradores do tal bonus malus gerador do erro, bem como de que a declaração negocial de M.....foi por ele determinada, não conseguiram demonstrar qualquer dos pressupostos de que o art. 254° do CC faz depender a possibilidade de declarar anulável a escritura de compra e venda.

Ora, surge com alguma linearidade e decorre do que se expôs supra que a referência dos recorrentes ao “dolo”, se reporta apenas à questão da invocada “falsidade” da escritura de compra e venda.

Assim sendo, não se encontra motivo para que, na sentença recorrida, a Sra. juiz faça a abordagem que consta de fls. 326 a 331 e, nessa perspectiva, entendemos que ocorre, efectivamente, um excesso de pronúncia.

No entanto, esse vício não tem a virtualidade de afectar a sentença na sua globalidade, justificando-se apenas considerar irrelevante essa específica fundamentação exposta na decisão.

                                             *

Quanto à nulidade da sentença “por conhecer de pedido de redução do negócio formulado pelos réus, sem que estes tenham deduzido reconvenção, nem alegado factos para tal”, trata-se de alegação sem o mínimo fundamento porquanto, como à evidência resulta da sentença recorrida, não se conheceu aí desse pedido. Aliás, refere-se na sentença, expressamente, o seguinte:

“Do mesmo modo, fica prejudicado o pedido de redução do negócio formulado pelos réus” – como não podia deixar de ser, uma vez que se julgou improcedente a pretensão formulada pelos autores e os réus pretendiam a redução do negócio jurídico apenas para o caso da acção proceder, como expressamente indicado no art. 67º da contestação.

                                             *

Por último – e na ordem sequencial indicada nas alegações de recurso –, resta apreciar do “não conhecimento do pedido ampliado na réplica”.

Também aqui ressalta a falta de razão dos recorrentes.

Começa por notar-se que, no relatório da decisão, a Sra. Juiz identificou expressamente o pedido de ampliação, mencionando-o, pelo que estranho seria se depois, em sede de fundamentação, não apreciasse da alegação dos autores a esse propósito.

E apreciou essa factualidade e argumentos, como resulta da fundamentação exposta a propósito da determinabilidade do objecto do negócio – cfr. fls. 332 e seguintes.

Improcede, pois, a invocada nulidade da sentença.

 

4. Nas alegações de recurso os recorrentes começam por enunciar o conjunto de factos provados que relevam, no seu entender, “para o julgamento do pedido de falsidade do título”, reportando-se à escritura pública que titula o contrato de compra e venda realizado em 20 de Fevereiro de 2004, referindo-se depois à “tese” exposta na decisão recorrida, e identificando dois arestos do S.T.J. que, no seu entender, “contrariam a tese da Mma. Juiz a quo”.

Comecemos por delimitar o campo em que se situam os apelantes: a avaliar pelo articulado da petição inicial e, agora, pelo que é exposto em C) das alegações de recurso, estará em causa apreciar da “falsidade da escritura” pública que titula o contrato de compra e venda, o que remete para o domínio da falsidade do documento (vício que afecta o documento).      

Nos termos do art. 371.º, n.º 1, o documento autêntico, como é a escritura pública, só faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo – ou seja, os elementos alusivos à parte em que, no documento, se menciona, por exemplo, que o notário o leu, explicou e entregou cópias –, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora – ou seja, a parte correspondente às declarações emitidas perante o notário.

No entanto, o documento autêntico não faz prova plena quanto à veracidade das declarações emitidas pelos outorgantes, podendo provar-se, por qualquer meio, que essas declarações não são verdadeiras – aliás, sem necessidade de arguir a falsidade do documento autêntico, uma vez que, usualmente, não é isso que está em causa –, sem prejuízo de algumas limitações estabelecidas na lei – cfr. o art. 394º.

No caso, não há qualquer elemento constante da factualidade assente que permita concluir que o documento que titula o contrato em causa enferme de qualquer vício.

Mais ainda, entendemos que os autores nem sequer alegaram factos que suportem a invocada falsidade (do documento). Efectivamente, na petição inicial, como já se disse, os autores limitam-se a invocar que não ocorreu o pagamento declarado na escritura. Ora, a eventual divergência entre o que foi declarado na escritura – no que ao caso interessa, a declaração do vendedor alusiva ao “preço já recebido de cinquenta e cinco mil euros” – e a realidade dos factos, não afecta o documento em si mesmo ou, dizendo de outra maneira, a falsidade ideológica ou intelectual não configura hipótese de falsidade do documento/título. [ [iv]  ]

E, lendo-se os arestos citados pelos recorrentes, nada se retira em contrário do que se expôs ou em abono do que pretendem os recorrentes. [ [v]  ]

Improcedem, pois, as alegações de recurso.

5. Quanto ao pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado e da cláusula 5ª do acordo de 5 de Setembro de 2003, formulado na réplica, os recorrentes insistem da invalidade dos negócios, com base nos argumentos já expendidos nos articulados e que foram apreciados na sentença recorrida, para a qual se remete (art. 715º, nº5 do C.P.C.)  – nomeadamente quanto determinabilidade do objecto –, justificando-se, no entanto, algumas considerações que se prendem, essencialmente, com a caracterização dos negócios, sendo evidente a concatenação entre todos.

Quanto ao contrato de compra e venda, dúvidas não há que se verificam todos os elementos típicos do contrato, isto é, a declaração de venda/compra, a identificação do objecto transaccionado, e a estipulação do preço (art. 874º), tendo sido celebrado na forma correcta, por escritura pública.

Saber se o preço foi pago e a coisa foi entregue são questões que se prendem com o cumprimento/incumprimento do contrato, não tendo qualquer repercussão na ponderação da validade ou regularidade do negócio.

Efectivamente, considerando a definição constante do referido preceito – “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço” –, bem como o disposto nos arts. 408º, nº1 e 879º, al) a, a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato e não depende nem da traditio nem do pagamento do preço, concebendo-se como um contrato real quoad effectum (pressupondo-se, obviamente, a observância da forma legal). [ [vi]  ]

Conclui-se, pois, que a eventual falta de pagamento do preço convencionado entre as partes e constante da escritura pública que titula o contrato nunca motivaria a nulidade do negócio, justificando, eventualmente, acção de cumprimento, que os autores, herdeiros legítimos do M....., manifestamente, não quiseram instaurar.

                                             *        

Noutra ordem de considerações, dir-se-á ainda que os autores vão mais longe e chegam a afirmar, na réplica, que “o preço declarado na escritura é fictício, nem preço é, por não resultar da liberdade contratual, nem do acordo de vontades do comprador e do vendedor, nem do valor do bem, em violação dos arts. 405º e 874º do Código Civil” ( art. 7º) – nas alegações de recurso mantêm a argumentação, referindo que se trata de “um preço fictício, aparente”.

Trata-se de afirmação conclusiva, que não se mostra alicerçada em qualquer facto que os autores tenham alegado e que também não tem suporte na factualidade assente. Quanto ao valor do bem, esse elemento é irrelevante para o caso. Como se referiu na decisão recorrida, o preço é um elemento essencial do contrato de compra e venda mas o critério de determinação do mesmo já não faz parte da sua essência e o preço estipulado pode até ser inferior ou superior ao valor de mercado da coisa vendida.

E nem se diga, como fazem os autores no art. 8º da réplica, que essa conclusão emerge das afirmações feitas na contestação, pelos réus/recorridos (arts. 34º, 35º, 36º e 37º desse articulado), o que nos leva a abordar o acordo celebrado em 5 de Setembro de 2003 e a procuração outorgada na mesma data.

É notório que o contrato de compra e venda se insere numa dinâmica negocial mais vasta e que, em bom rigor, o programa contratual estabelecido entre o M.....e o réu J...... se concretizou em várias fases e procedimentos, ao longo do tempo, não podendo isolar-se cada um dos negócios, sob pena de se desvirtuar esse programa. Vejamos.

A procuração outorgada pelo M.....em 5 de Setembro de 2003 – procuração conferida, expressamente, também no interesse do procurador e portanto revogável apenas no condicionalismo a que alude o art. 265º, nº3 –, tem a sua relação subjacente no acordo celebrado entre este e o réu J......, na mesma data, consubstanciando já um acto de execução desse acordo, como resulta da sua cláusula 4ª. [ [vii]  ]

Efectivamente, desse negócio resulta, para o M....., a obrigação de outorgar, na mesma data, “Procuração Irrevogável” constituindo o réu J...... “seu bastante procurador conferindo-lhe poderes suficientes para prometer vender, vender ou onerar a fracção autónoma designada pela letra «C» (... )”, conforme cláusula 4ª.

A contra prestação do réu J...... traduz-se na obrigação de pagamento ao M.....da quantia de Euros: 550 €, todos os meses, até ao dia 15 de cada mês, extinguindo-se a obrigação com a morte do M.....– cláusulas 1ª e 2ª.

Mais convencionaram as partes – e podiam livremente fazê-lo, considerando o disposto nos arts. 810º e 432º, nº1 – uma cláusula penal para o caso de incumprimento temporário (mora) da prestação por parte do réu (cláusula 3ª), bem como o direito à resolução do contrato, verificado que esteja o condicionalismo aludido na cláusula 5ª, com o seguinte teor:

“Findo o prazo previsto na cláusula 3ª, tem o segundo outorgante a faculdade de resolver o presente acordo e, caso o segundo outorgante tenha procedido à venda da referida fracção, exigir o pagamento imediato de uma indemnização num montante igual ao valor de mercado da identificada fracção, descontado o valor de todas as mensalidades entregues pelo primeiro outorgante ao segundo outorgante».

Daqui decorre que os outorgantes – M.....e o réu J...... –, na fixação das prestações recíprocas, se alhearam por completo do valor da fracção em causa, posteriormente objecto do contrato de compra e venda, não sendo possível encontrar uma equivalência de prestações, em termos muito similares, parece-nos, ao que acontece, tipicamente, no contrato de renda vitalícia. [ [viii] ]

No caso, parece-nos não poder enquadrar o negócio celebrado nesta figura contratual porquanto a obrigação a cargo do M.....não é configurável como uma alienação “de certa soma de dinheiro, ou qualquer outra coisa móvel ou imóvel, ou um direito”, já que os elementos constantes do processo não permitem concluir que a procuração tenha sido conferida exclusivamente no interesse do procurador.

É neste contexto que deve entender-se a factualidade assente sob a alínea O), bem como a resposta aos quesitos 2º e 27º. [ [ix] ]

Ou seja, o valor de €55.000,00 estipulado na escritura tem de perspectivar-se em função do contrato celebrado entre o réu J...... e o M....., em 5 de Setembro de 2003, o que não significa que não tenha valência como preço, reportado à aquisição da fracção  – saliente-se que está provado que foi a ré K....., Lda. e o N......, quem, como contrapartida pela transmissão da fracção C, nos termos descritos em D), entregaram a M....., até ao falecimento deste, a quantia total de € 8.800, resultante da soma dos cheques ditos em M) – cfr. a alínea N) da matéria assente.

Também não é indiferente o circunstancialismo exterior que rodeia os vários negócios, em boa parte explicando-os: o N......é filho do réu J...... e teve intervenção na escritura de compra e venda na qualidade de sócio gerente da sociedade compradora, relevando ainda a factualidade indicada sob as alíneas H) a J) e na resposta ao quesito 6º.

Como refere Pais de Vasconcelos, “a dependência da procuração irrevogável em relação à situação ou à relação jurídica subjacente ou fundamental não se restringe ao regime da revogação ou da extinção. O modo de exercício dos poderes representativos outorgados pela procuração irrevogável depende da relação subjacente, do seu conteúdo, e da ponderação dos interesses atendíveis do procurador, do outorgante da procuração e dos terceiros interessados, se os houver, no quadro do princípio da boa fé”. [ [x] ]   

Tudo em ordem a concluir que os contraentes estipularam, efectivamente, um preço.

Improcedem, pois, as conclusões de recurso, não se vislumbrando fundamento para declarar a nulidade do contrato de compra e venda celebrado em 20/02/2004, nem da cláusula 5ª do acordo efectuado em 05/09/2003.

                                             *

Conclusões:

1. O documento autêntico não faz prova plena quanto à veracidade das declarações emitidas pelos outorgantes, podendo provar-se, por qualquer meio, que essas declarações não são verdadeiras – sem necessidade de arguir a falsidade do documento autêntico, uma vez que, usualmente, não é isso que está em causa –, sem prejuízo de algumas limitações estabelecidas na lei (art. 394º do Cód. Civil).

2. Considerando a definição legal de compra e venda – “contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço” –, bem como o disposto nos arts. 408º, nº1 e 879º, al) a do Cód. Civil, a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato e não depende nem da traditio nem do pagamento do preço, concebendo-se como um contrato real quoad effectum (pressupondo-se, obviamente, a observância da forma legal).

3. O pagamento, pelo comprador, de quantia inferior ao preço declarado na escritura (pagamento de €8.800,00 contra os €55.000,00 declarados na escritura como tendo sido recebidos pelo vendedor), não gera, de per si, nem a nulidade da escritura pública outorgada, nem do contrato de compra e venda que lhe subjaz.    

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelos autores/apelantes.

[i] Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora, p.690; aludindo aos vícios formais e, nestes, aos casos de invalidade da sentença, abrangendo as nulidades, vide Fernando Luso Soares, Processo Civil de Declaração, Almedina, 1985, p. 850-852.      

[ii] Código de Processo Civil Anotado, vol. v, Reimpressão, Coimbra Editora, p. 143.

[iii] “Além de um litígio e de um pedido de composição, a parte tem de apresentar ao tribunal um projecto de composição, sendo a função do tribunal apenas estudar esse projecto e acolhê-lo ou repudiá-lo, não lhe cabendo investigar, para além dele, outras possíveis formas de composição da lide”, Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, Associação Académica da Fac. de Direito de Lisboa, p.70.

[iv] Segundo Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. III, AAFL, 1979, P. 355, a falsidade ideológica ou intelectual é a discrepância entre o conteúdo do documento e a verdade. Se em certo documento se diz “A pagou a B 10 contos” e não houve tal pagamento, verifica-se este tipo de falsidade.  

[v] Acs. do STJ de 19/02/2004, proferido no processo 03B4370 (Relator: Cons. Neves Ribeiro) e de 09/02/2006, proferido no processo 05B3177 (Relator: Araújo Barros), acessíveis in www.dgsi.pt, Refira-se que não se encontra no primeiro aresto citado o texto assinalado nas alegações de recurso.

[vi] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, p. 146; Sobre a distinção entre negócios reais quoad constittutionem e quoad effectum, vide Meneses Cordeiro, Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3ª edição, Almedina, 465-469. 

[vii] Sobre a “procuração irrevogável” e a sua concatenação com a relação jurídica que lhe serve de base, vide Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, 1995, p. 301-311 

[viii] Nos termos do artº 1238º, contrato de renda vitalícia “é aquele em que uma pessoa aliena em favor de outra certa soma de dinheiro, ou qualquer outra coisa móvel ou imóvel, ou um direito, e a segunda se obriga a pagar certa quantia em dinheiro ou outra coisa fungível durante a vida do alienante ou de terceiro”.  No Ac. do S.T.J. de 07/02/1980, proferido no processo JSTJ00007255 (Relator: Rodrigues Bastos) acessível in www.dgsi.pt. refere-se que se trata de um contrato que “tem carácter aleatório, na medida em que a duração da obrigação é a da vida de uma ou mais pessoas, sendo desconhecido, para ambos os contraentes, qual deles lucrará ou se prejudicará com o contrato”.

[ix] Os quesitos têm a seguinte redacção:

2ª: O preço declarado na escritura dita em D) pelos seus outorgantes, pai e filho, na qualidade em que intervieram, não foi efectivamente pago?

27º: O réu Venceslau Bernardo (na qualidade Procurador do seu tio/proprietário) e a ré Tomarnova Lda. (outorgante naquela escritura na qualidade de compradora), não podendo determinar com exactidão o valor da transmissão dita em D), estipularam o montante de Euros 55.000 como sendo o valor total de todas as rendas que seriam pagas ao António Ferreira, até final do referido acordo dito em L?     

Resposta conjunta aos quesitos: provado apenas o que consta das alíneas D) e E) da matéria assente.

[x] Obr. cit. p. 310.