Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
364/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERAFIM ALEXANDRE
Descritores: RELEVÂNCIA DA DESISTÊNCIA DE QUEIXA
Data do Acordão: 02/25/2004
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: ALBERGARIA A VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Legislação Nacional: ART.113º, N.º 5 E 6, 116º, N.º 2 E 178º, NOS CASOS DOS ARTIGOS 153º A 165º, 167º, 168º E 171º A 175º, DO C. PENAL
Sumário:

No caso das excepções previstas no art.º 178º, nomeadamente do seu actual n.º 4, do C. Penal, relativamente à necessidade de queixa, não só o M. Público pode acusar, como o procedimento criminal deixa de estar na disponibilidade dos ofendidos ou de quem os representa.
Decisão Texto Integral:

Recurso n.º 0364/2004.
Comarca de Albergaria.A-Velha


Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:

Nos autos de Processo Comum Colectivo, n.º 469/02, da comarca de Albergaria-A-Velha, ocorreu, nomeadamente, o seguinte:
1º- o M.º Público acusou A e B, ambos melhor identificados nos autos, imputando:
ao primeiro:
- um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 30º, n.º 2, 172º, n.º 2 e 177º, n.º 3, do C. Penal; e
- um crime de actos sexuais com adolescente, p. e p. pelos artigos 3º, n.º 2, 174º e 177º, n.º 3, do C. Penal;
à segunda:
- um crime de lenocínio de menores, p. e p. pelos artigos 176º, n.º 3 e 177º, n.º 1, al. a), do C. Penal.
2º- As ofendidas eram C (nascida a 15-1-1988) e D (nascida a 26-11-1986).
3º- Na a audiência de julgamento de 24-9-2003 (acta de fols. 375 a 382) ocorreu, além do mais, o seguinte:
a)- Como Magistrado do Ministério Público esteve presente o Dr. Manuel Martins;
b)- Depois de aberta a audiência, pelo Juiz Presidente, foi proferido o seguinte Despacho:
Atenta a natureza dos crimes porque vêm acusados os arguidos e idade das vítimas ao abrigo do disposto no artigo 87º, n.º 3 do Código de Processo Penal determino que a presente audiência decorra com exclusão da publicidade. Apenas serão admitidos a assistir ao julgamento, para além daqueles que nele intervêm, os advogados estagiários presentes”.
c)- Seguidamente foi dada a palavra ao Digno Magistrado do Ministério Público para se pronunciar quanto à questão prévia, sendo que pelo mesmo foi proferida a seguinte PROMOÇÃO:
Afirma o requerente que o Ministério Público não expressou as razões que justificaram o início do procedimento criminal por interesse das vítimas. Não nos parece correcto esta afirmação na medida de que o próprio texto citado no artigo 9º do requerimento consta a razão do interesse das vítimas expressa no seguinte texto: “até porquanto da prática dos factos participados resultou a gravidez das menores”. Assim sendo parece-nos que pela base perde razão de ser o requerido pela defesa”.
d)- De seguida, pelo Mm.º Juiz Presidente foi proferido o seguinte DESPACHO:
“Relativamente à desistência de queixa apresentada a fls. 238 e seguintes pelos pais da ofendida D, julgo a mesma irrelevante porquanto tal direito assiste à própria vítima, pois que, como se diz em tal requerimento, e resulta de certidão que o acompanha, perfez já os 16 anos de idade (artigo 113º, n.ºs 5, 1 e 3 do Código Penal).
Relativamente à questão prévia suscitada na contestação a fls. 306 e seguintes, sendo embora certo que cada um dos dois crimes por que vem acusado o arguido A reveste natureza semi-pública (artigo 178º, n.º 1 do Código Penal) não é menos certo que nos casos excepcionais previstos no n.º 4 do mesmo normativo o Ministério Público dentro do dever funcional aí previsto tem a faculdade dar início ao procedimento criminal independentemente de queixa. Tal quer dizer que mantendo embora os tipos criminais a natureza semi-pública, se torna desnecessário, nesses casos, a queixa. O titular do direito de queixa mantém, apesar disso, a faculdade de desistir do procedimento criminal. Face a tal excepcional regime tinha o Ministério Público legitimidade de dar início ao procedimento criminal e para acusar improcedendo assim a excepção suscitada pela defesa. Termos em que se indefere à referida questão prévia”.
e)- Seguiu-se a produção de prova, ouvindo o arguido e a arguida;
f)- Durante a audição desta, consta:
“Neste momento pela arguida foi dito que pretende desistir do procedimento criminal contra o arguido A relativamente à sua filha C. Mais esclarece o Tribunal que por decisão proferida pelo Tribunal de Oliveira de Azeméis lhe foi conferido em exclusivo o poder paternal da C.
Perguntado ao arguido pelo mesmo foi dito nada ter a opor à desistência de queixa apresentada.
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Dada a palavra ao Digno Magistrado do Ministério Público pelo mesmo foi dito:
Promoção:
Dada a posição assumida pela arguida e uma vez que se encontra presente o pai da ofendida C pretende-se que o mesmo seja ouvido.
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Logo após pelo Mm.º Juiz Presidente foi proferido o seguinte:
Despacho:
“Face às declarações da arguida e uma vez que se encontra presente o pai da C determina-se que o mesmo seja ouvido”.
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Neste momento fiz comparecer..o pai da C, a testemunha Ee pelo mesmo foi dito que efectivamente o poder paternal da C foi atribuído judicial à mãe, pensa que em Agosto deste ano.
Logo após e por decisão do Mm.º Juiz Presidente fiz comparecer perante os Srs. Juizes a menor D e seus pais, F e G e por todos conjuntamente foi dito pretenderem desistir do procedimento criminal contra o arguido A.
Dada a palavra ao arguido pelo mesmo foi dito que mão se opõe à desistência de queixa formulada pela ofendida D e seus pais, em conjunto.
De seguida foi dada a palavra ao Digno Magistrado do Ministério Público e pelo mesmo foi proferida a seguinte:
Promoção:
“Uma vez que o procedimento criminal referente aos crimes imputados ao arguido, A Santos, e relativo ás menores C e D, o de abuso sexual de crianças previsto e punido pelos artigos 172º, n.º 2 e artigo 177, n.º 3, ambos do Código Penal e o de actos sexuais com adolescentes previsto e punido pelos artigos 174º e 177, também do Código Penal, têm natureza semi-pública, na medida que nos termos do artigo 178º, n.º 1 do Código Penal, a legitimidade para o exercício da acção penal depende do exercício do direito de queixa por parte do ofendido ou seu representante, a desistência é válida, ainda nos termos do artigo 116º do Código Penal e determina a extinção do procedimento criminal, razão pela qual promovo que se declare válida a desistência de queixa e do procedimento criminal quanto àqueles crimes”
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Dada a palavra ao ilustre mandatário do arguido por ele foi dito nada a ter a requerer.
Assim, e após deliberação do Tribunal Colectivo o Mm.º Juiz Presidente ditou para a acta o seguinte Despacho:
“Pese embora as agravantes que sob cada um dos crimes recaem nos termos do artigo 177º, n.º 3 do Código Penal, cremos todavia que os tipos base são aqueles que resultam da secção segunda que o antecede.
Assim sendo, e não obstante o que no inicio desta audiência deixámos dito quer o crime do artigo 172º, n.º 2 quer do artigo 174º ambos do Código Penal se revestem de natureza semi-pública (artigo 178º, n.º 1 proémio do mesmo Código Penal).
Assim sendo e face à posição assumida pelos ofendidos, pelo arguido e pelo Ministério Público, as desistências de queixa apresentadas são válidas e devem ser declaradas relevantes.
Muito embora existam entendimentos doutrinais e jurisprudenciais diferentes do adoptado cremos que a interpretação que se faz do artigo 178º, n.º 1 e 4 é mais consentânea com o texto da lei e as regras de interpretação. A posição contrária, sufragada pela referida doutrina e jurisprudência é, em nosso entender, inadmissível, já que faz interpretação extensiva do texto da norma o que salvo o devido respeito não é permitido. Termos em que declaro extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido A relativamente aos crimes de abuso sexual a crianças e actos sexuais com adolescentes por que vem acusado. Por esta razão determino a sua imediata libertação”.
g)- Segui-se o julgamento agora apenas contra a arguida B.
h)- Foi designado para leitura do acórdão o dia 29-9-2003;
i)- À respectiva leitura compareceu como Magistrado do Ministério Público o Dr. Bruno Espirito Santo (acta de fols. 389):
j)- A final (..não ficando provada a prática de qualquer crime..) veio esta a ser absolvida (acórdão de fols. 383 a 388).
l)- Desta decisão não foi interposto recurso:
m)- Em 9-10-2003 foi junto aos autos o ofício de fols. 394 donde consta:
“Tenho a honra de informar V. Ex.as que o assunto objecto do ofício em referência, mereceu do Excelentíssimo Senhor Conselheiro Vice Procurador-Geral da República o despacho que, a seguir, se transcreve:
“Designo, para intervir nos termos propostos pelo Ex.mo Senhor Procurador_Geral
Distrital de Coimbra, o Ex.mo Senhor Dr. Pedro Manuel Branquinho Ferreira Dias. Comunique. Lx. 06.10.03 “
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n)- É este Digno Magistrado que, ...por determinação hierárquica, nos termos do disposto no art.º 68º n.º 1 do EMP.., interpõe recurso do último referido despacho no qual conclui:
1º- Presentemente, os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual previstos no Código Penal têm, em regra, natureza semi-pública, uma vez que o procedimento criminal depende de queixa do ofendido ou de outras pessoas.
2º- É o caso dos crimes de abuso sexual de crianças e de actos sexuais com adolescentes pp. e pp.. respectivamente, pelos arts. 172º n.º 2 e 177º n.º 3 do Cód. Penal e 174º e 177º n.º 3, do mesmo diploma, de que se achava acusado o arguido A
3º- A ideia subjacente, que foi particularmente cara, nomeadamente à Reforma de 1995, traduz-se no facto de se considerar que a intervenção do direito penal, neste domínio, pode ser mais prejudicial que benéfica, na perspectiva da vitima, sendo, por vezes, preferível esquecimento do que a publicidade e, mesmo, o escândalo.
4º- Excepciona-se, porém, nos termos do art. 178º n.º 1, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 99/2001, de 25/8, quando de qualquer desses crimes resultar suicídio o morte da vitima e quando o crime for praticado contra menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para requer procedimento criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo. Neste último caso, existe a possibilidade do MP poder suspender provisoriamente o processo, tendo em conta o interesse da vitima, ponderado com auxílio de um relatório social (n.ºs 2 e 3).
5º- Sem prejuízo desta possibilidade, e quando os crimes forem praticados contra menor de 16 anos de idade, pode o MP dar início ao procedimento se o interesse d vitima o impuser (n.º 4, também do art. 178º)..
6º- Na sequência, aliás, do consagrado na disposição geral do art. 113º, n.º 6.
7º- Ora, no caso sub judice, foi o MP, que depois de ter tido conhecimento dos factos em causa, através de uma participação da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Oliveira de Azeméis, deu início ao procedimento criminal contra o arguido A, ao abrigo da norma do art. 178º n.º 4 do Cód. Penal, invocando o interesse das vítimas, menores de 16 anos, que ficaram ambas grávidas do arguido, e fundamentando a sua posição (Cfr. a fls. 6 e também a fls. 125).
8º- Em momento algum do processo, os representantes legais das menores ofendidas apresentaram queixa contra o arguido ou manifestaram vontade em fazê-lo.
9º- Pelo que, não tinham legitimidade para, no início da audiência do julgamento, desistirem da queixa contra o arguido.
10º- O mesmo se verifica, em relação à menor D, que tem agora já 16 anos de idade.
11º- É que, nos termos do art. 116º n.º 2 do Cód. Penal, só o queixoso, isto é, quem tenha legitimamente exercido o direito de queixa. pode desistir da queixa.
12º- Ora, tendo o presente processo sido iniciado, oficiosamente, pelo MP, no interesse das vítimas, o respectivo procedimento criminal deixou de estar na disponibilidade das ofendidas ou dos seus representantes legais (Cfr. nesse sentido o ac. da Rel. do Porto d 31/1/2001, in C.J., Ano XXVI, T. 1, Pg. 232).
13º- Nesta conformidade, as desistências de queixa apresentadas teriam de se consideradas irrelevantes.
14º- Mal andou, por conseguinte, o Tribunal colectivo, ao considerá-las válidas e relevantes, declarando, em consequência, e sem mais, extinto o procedimento criminal contra o referido arguido, sem ter em atenção a forma como se tinha iniciado o processo e sem cuidar se tais desistências iam de encontro aos interesses das menores ou se, pelo contrário, visava outro tipo de interesses.
15º- Do mesmo modo, discordamos completamente da posição assumida pelo Ministério Público, em sede de julgamento, ao ter promovido que se declarassem válidas a referidas desistências de queixa.
16º- Para além do mais, não se vê que o interesse das menores justificasse passar uma esponja sobre o sucedido, uma vez que estamos perante uma situação clara de predominância do interesse do procedimento criminal sobre o do segredo, dado que divulgação dos factos foi tão extensa, nomeadamente na comunicação social, que já não há, neste momento, intimidade alguma a preservar ou danos acrescidos a evitar (Numa situação algo idêntica, vide o ac. da Rel. de Coimbra, de 26/2/03, no proc. n.º 3910/02, da 2º Secção, sendo relator o Desembargador Barreto do Carmo).
17º- Por outro lado, não deixa de ser chocante que o arguido, homem maduro, com 62 anos, pai de filhos, que exibia poder económico, não tenha sido submetido a julgamento pelos factos gravíssimos pelos quais se encontrava suficientemente indiciado, apenas devido às desistências de queixa que, ilegitimamente, os representantes legais das menores apresentaram, sendo certo que, no caso da menor C, a sua representante legal foi a sua mãe, B, co-arguida, neste mesmo processo, acusada de um crime de lenocínio de menores p. e p. pelos arts. 176º n.º 3 e 177º n.º 1 al. a) do Cód. Penal. E
18º- O Tribunal colectivo interpretou, assim, em nosso entender, erroneamente a lei e, devido a essa deficiente interpretação, violou, entre outros, os arts. 178º n.ºs 1 e 4, 116º n.º 2 e 113º n.º 6, todos do Cód. Penal.
Vossas Excelências, contudo, melhor apreciarão, fazendo, como sempre, Justiça.
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Respondeu o arguido A concluindo que o recurso deve improceder.
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
Já no Rec. n.º 1035/98 de 3-2-99, desta Relação, em que fomos relator, se decidiu:
A questão está, assim, em saber se, face ao art.º 178º, nº 2, do C. Penal, como se entendeu no despacho recorrido, o Mº Público carece de legitimidade para acusar por os pais da ... (artº 113º C. Penal) não terem exercido o direito de queixa, ou se, como entende o Mº Público, o poder de iniciar o inquérito engloba o direito de acusar.
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Foi imputado ao arguido a prática do crime do art.º 172º, nº 1, do C. Penal. Esta norma prevê: quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
É esta a redacção actual da mesma norma, já que a alteração introduzida pela Lei 65/98 de 2/9, a manteve, alterando apenas os nºs 2 e 3, do mesmo artigo.
Por sua vez o art.º 178º, nº 1, quer na actual redacção quer na anterior (dado não ter sido alterado pela referida Lei) estatui que: O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163º a 165º, 168º e 171º a 175º depende de queixa, salvo quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vitima.
E o nº 2, do mesmo artigo referia, antes daquela alteração: Nos casos previstos no número anterior, quando a vítima for menor de 12 anos, pode o Ministério Público dar início ao processo se especiais razões de interesse público o impuserem.
Coma a Lei 65/98 passou este nº 2 a ter a seguinte redacção: Nos casos previstos no número anterior, quando o crime for praticado contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.
Há que aplicar ao caso a redacção anterior à Lei 65/98 já que os factos terão sido praticados em 20 de Fevereiro de 1998, data em que a vítima ainda não tinha 12 anos.
Ninguém põe em causa que o interesse público impunha que o Mº Público desse início ao processo. Não é essa, pois, a questão suscitada.
Quanto à questão objecto do recurso:
A favor da tese defendida no despacho recorrido poderíamos fazer uma observação: conhecendo o legislador, como não podia deixar de conhecer, a tradicional distinção entre crimes particulares, semi-públicos e públicos e que a queixa é uma condição objectiva de procedibilidade, porque introduziu, pelo D. L. 48/95, de 15 de Março, a redacção referida no nº 2, do art.º 178º, em que reduziu a necessidade de queixa apenas ao início do processo ?
Mas pelo mesmo D. L. introduziu também o nº 5, do art.º 113º, em que usa semelhante fórmula e, pela Lei 65/98, introduziu o seu nº 6, em que refere; quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode, nos casos previstos na lei, dar início ao procedimento quando o interesse da vítima o impuser.
Se atendermos às razões do referido art.º 113º, nº 5 (quando o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas, no caso, ao agente do crime...) somos levados a concluir que foi intenção do legislador caracterizar de público tal crime, já que, nesse caso, nunca poderia haver o exercício do direito de queixa e então o início do procedimento seria um acto inútil se tal procedimento não pudesse conduzir à acusação.
Essa intenção resulta também explicitamente da exposição de motivos da Proposta de Lei nº 92/VI (DAR, II Série-A, de 24-2-94) em que se diz: Uma outra nota que acentua a protecção do menor é a possibilidade de o Ministério Público, sempre que especiais razões de interesse público que o justifiquem, poder desencadear a acção penal quando a vítima for menor de 12 anos. O sublinhado é nosso. Não se fala apenas em dar início ao processo mas sim em desencadear a acção penal.
Trata-se de um reforço da protecção do menor, atenta a sua especial vulnerabilidade e a falta de protecção familiar, de que pode estar carecido, como refere Maia Gonçalves. Se a finalidade de tal norma é proteger o menor da carência de protecção familiar, isto é, de quem teria o direito de queixa, não se compreenderá que se deixe ficar a acção penal dependente dessa queixa que se quis suprir.
E aquando da discussão na Assembleia da República da Proposta que veio a dar lugar à lei 65/98, pela voz autorizada do Ministro da Justiça: sendo, em regra, semipúblicos, os crimes sexuais podem actualmente ser perseguidos, independentemente de queixa, por iniciativa do Ministério Público, quando especiais razões de interesse público o impuserem e a vítima for menor de 12 anos.
Parece-nos, assim, que outro entendimento não teve o legislador.
Mas há outros argumentos.
Desde logo, a Constituição atribui ao Mº Público a função de exercer a acção penal.
Mas que significa tal função? A lei não o define.
Diz Germano M. da Silva (Curso de Processo Penal I, pág. 228 e seguintes): O D. L. 35.007 parecia da à acção penal o sentido de promoção do processo penal em sentido estrito, isto é, da fase judicial do processo e traduzir-se na actuação do MP em juízo, que se iniciaria com a acusação. O D. L. 605/75 não utilizava a expressão acção penal e antes promoção do processo penal e assim sucede também com o CPP/87. Segundo o art.º 1º do CPP/29 “a todo o crime (ou contravenção) corresponder uma acção penal, que será exercida nos termos deste Código”. Compreende no conceito toda a actividade dirigida a obter a punição do réu; compreendendo nessa actividade a de todas as pessoas que, cada uma na sua esfera de acção, cooperam para se obter aquele fim.
Não é unívoco o conceito de acção penal. Umas vezes equivale a processo - e será o seu sentido mais amplo -, outras vezes a promoção da actividade judicial no processo - e será o seu sentido mais restrito -, e outras ainda corresponderá à mera prossecução da actividade processual.
Sendo assim, a fórmula usada pelo legislador no D. L. 48/95 nem é, afinal, nada de extraordinário por corresponder à nossa tradição legislativa.
Por outro lado, e isso parece-nos decisivo, se é certo que o critério para a distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares é essencialmente pragmático (são públicos aqueles em que a lei não exige queixa, semi-públicos aqueles em que exige queixa e particulares os que exigem queixa e acusação) certo é que é a natureza dos interesses que está subjacente àquela distinção. Ora, se é a lei que expressamente faz depender do interesse público que o Mº Público possa iniciar o processo, mais não está do que a definir como público ou semi-público tal crime.
Aliás, outro raciocínio se poderá fazer:
Se os crimes sexuais, como resulta do art.º 178º, nº 1, são, em princípio, semi-públicos (dependem de queixa e já não de acusação particular) o que o nº 2 faz é deixar de exigir a queixa e como semi-público, em que a queixa foi suprida, já o Mº Público sempre terá legitimidade para acusar. Ou seja, o raciocínio do despacho recorrido só teria verdadeiramente sentido se o crime fosse particular, se fosse exigida a acusação particular, o que não é.
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Assim sendo, outra conclusão não se poderá extrair do art.º 178º, n.º 2, do C. Penal que não seja a de que a possibilidade de o Mº Público iniciar o processo criminal, independentemente de queixa, torna-o parte legítima para acusar, independentemente dessa mesma queixa. O interesse público subjacente a tal possibilidade supera o interesse particular típico da necessidade de queixa”.
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A situação não era a mesma, mas o sentido da decisão já ali se descortina. O que ali se discutia era se o M.º Público podia, no caso, acusar, aqui o que se discute é se pode haver desistência da queixa. Mas as razões acabam por ser as mesmas.
Agora, para este caso especial da desistência de queixa, acresce ainda o disposto no art.º 116º, n.º 2, do C. Penal. Se não houve queixosos, precisamente porque não houve queixa, porque legalmente não era precisa, como é que se pode aceitar com válida a desistência de queixa?
Repare-se que, pela acusação, os actos imputados ao arguido A se iniciaram, em relação à C, em Agosto de 2000, quando esta tinha 12 anos e que ao actos relacionados com a D, se iniciaram em Janeiro de 2002, quando esta tinha 15 anos.
Não faz qualquer sentido que (como, aliás, se decidiu no primeiro despacho na referida audiência – supra alínea d) – o M.º Público possa dar início ao procedimento criminal e deduzir acusação, independentemente de queixa, e se venha admitir como relevante esta mesma desistência. Seria tornar inútil tal possibilidade, seria subverter o espirito e os fins que a lei pretendeu atingir e seria menosprezar os interesses que a lei pretendeu proteger.
Poder-se-á dizer que, neste caso, e em relação à menor C, a titular do direito de queixa (a mãe da menor) não é a agente dos crimes cuja desistência foi aceite (os do arguido A). Mas não é bem assim. É que aquela é também arguida por crime relacionado com os crimes do arguido. Os actos de fomentar, favorecer ou facilitar, de que é acusada, são precisamente referidos aos actos do arguido.
E este entendimento, salvo melhor opinião, não é interpretar extensivamente o texto da lei. A lei é clara ao estatuir regime próprio quando o interesse da vítima o impuser.
Neste caso, os eventuais interesses das vítimas que poderiam existir (o segredo dos factos, o evitar do escândalo e a exposição pública) estão e foram, em concreto, não só ultrapassados, pela realidade, mas sobretudo pelo superior interesse das vítimas.
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E não há aqui qualquer natureza subsidiária, no sentido de que o M.º Público intervém enquanto e só porque o menor não quer ou não pode fazer queixa. É subsidiária no sentido de que se substitui, definitivamente, ao menor. O interesse público, subjacente às referidas normas legais, não é subsidiário dos interesses particulares. Não se trata de qualquer critério de mera oportunidade, como é bem evidente. É uma razão de política criminal. É o interesse público que está em causa.
Como diz Maia Gonçalves (anotação ao n.º 6, do art.º 113): “este dispositivo veio permitir que os crimes semi-públicos, em casos previstos na lei, como os dos artigos 152º, n.º 2 e 178º, n.º 2, passem a ter natureza de públicos...”
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Nada impede que o M.º Público, como órgão da administração da justiça (art.º 219º, n.º 1, da CRP) sujeito ao princípio da subordinação hierárquica (art.º 219º, n.º 4 da CRP) e tendo como uma das funções primordiais defender a legalidade, possa interpor recurso duma decisão com um sentido que antes, um seu agente, tinha defendido.
É perfeitamente admissível uma ordem superior que mande seguir uma determinada interpretação legal de entre várias possíveis.
Nem tal integra o conceito de venire conta factum proprium. O M.º Público não é um interessado duma certa decisão.
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O recurso tem, pois, de proceder.
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Nestes termos, revogando-se o despacho recorrido, por não admissível a desistência de queixa, deverá o julgamento prosseguir para apreciação dos factos imputados ao arguido A.
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Custas pelo arguido (decaiu na oposição – art.º 513º, n.º 1, do CPP -) fixando-se a taxa de justiça em 4 ucs.
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Coimbra: