Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
909/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: CASO JULGADO
CRIME CONTINUADO
Data do Acordão: 05/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART. 29°, N.º 5, DA CRP E 30.º, N.º 2 DO CÓDIGO PENAL
Sumário:

I – O mesmo crime para efeitos de caso julgado deve ser entendido como urna certa conduta ou comportamento, como um acontecimento histórico, pelo que é a dupla apreciação jurídico-penal desse comportamento ou acontecimento que o art.29°, n.º 5, da CRP, proíbe.
II – A continuação criminosa ocorre perante a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico, havendo homogeneidade da forma de execução e unidade de dolo, com persistência de urna situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
III – Só o juiz do julgamento e não o juiz de instrução (que se pronuncia sobre indícios) dispõe de elementos que lhe permitem obter a certeza jurídica sobre a existência de continuação criminosa e, portanto, da ocorrência da exceptio judicati.

Decisão Texto Integral:

Rec. 909/04 –5 Comarca de Aveiro

Acordam, em Conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
No processo de inquérito nº 119/98.6 CAVGS do Tribunal de Aveiro, o Ministério Público acusou, para responder em processo comum singular ao abrigo do disposto no artº 16º do CPP, BB, CC, em co-autoria material e concurso real, na forma consumada, de um crime de burla e dois crimes de falsificação de documento, p.p. respectivamente pelos arts 26º, 30º nº1, 217º nº1 e 256º nº1 als. a) e b) e nº3, todos do Cód. Penal.
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O arguido BB requereu a abertura da instrução, com vista a obter despacho de não pronuncia relativamente aos crimes de falsificação que a acusação lhe imputa, deduzindo ainda a excepção da incompetência territorial do Tribunal de Aveiro.
No despacho onde declarou aberta a instrução, o Ex.mo Juiz declarou o tribunal de Aveiro competente para conhecer dos autos, e depois de requisitar os certificados do registo criminal dos arguidos e certidões das decisões condenatórias proferidas em outros tribunais, proferiu despacho onde considerou que os crimes pelos quais os arguidos estão acusados nestes autos fazem parte de uma continuação criminosa com aqueles julgados em outras comarcas, julgando deste modo verificada a excepção do caso julgado, concluindo:
“Por verificação de excepção de caso julgado, julgo legalmente inadmissível o procedimento criminal a que respeitam os presentes autos e, consequentemente, determino o seu oportuno arquivamento.”
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Inconformado com este despacho dele veio recorrer o Digno Magistrado do Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes:
Conclusões:
1 Os arguidos nestes autos vêm acusados da prática de um crime de burla e dois crimes de falsificação de documento p.p. respectivamente, pelos artº 26º, 30º nº1, 217º nº1 e 256º nº 1 a), b) e nº3, todos do Cód. Penal.
2 – Quanto ao crime de falsificação de documento – bilhete de identidade pertencente a DD – verifica-se efectivamente a excepção de caso julgado.
3 – Porém, o mesmo já não sucede relativamente aos crimes de falsificação de documento – cheque nº 3528732336 da conta nº 00141730010 do Banco Melo da Agência de Arcos de Valdevez, junto a fls. 6, cuja titularidade pertence a DD -, e de burla praticado sobe EE, dona do estabelecimento comercial “FF”.
4 – A matéria de facto objecto da acusação relativa aos referidos crimes de falsificação de cheque e de burla imputados aos arguidos nos presentes autos, não coincide com a factualidade que foi julgada no âmbito dos processos nºs 188/99 do 1º juízo Criminal do TJ de Barcelos, 76/96.9 GACMN do TJ de Caminha e 148/99 do 1º juízo Criminal de Matosinhos, pelo que nesta parte, não existe identidade de objecto processual.
5 – Sendo certo que, em todas as ocasiões, os arguidos actuaram a coberto de um desígnio criminoso autónomo e distinto de cometer novos crimes, in casu de falsificação de cheques e de burla, que iam renovando a cada momento quer quanto à vontade de os praticar, quer quanto á idealização da sua actuação e quanto ao sentimento de o estar a praticar como sendo proibidos por lei.
6 – Segundo as regras da experiência comum e das motivações psicológicas, o normal é que tenha surgido uma nova resolução criminosa em relação a cada uma das vítimas perante as quis ocorreram as referidas actuações, atenta a natureza dos delitos em causa (falsificação de cheque e especialmente o de burla) e o teor do referido artº 30º do C. Penal, sem qualquer diminuição do juízo e censura.
7 – A actividade de facto está descrita na acusação proferida nestes autos, quanto ao crime de falsificação de cheque e de burla, nunca foi objecto de apreciação nem decisão de qualquer outro processo de natureza penal, nomeadamente nos referidos processos que determinaram o despacho de não pronúncia por verificação da excepção de caso julgado.
8 – Deverão, assim, os arguidos ser pronunciados pelos factos descritos na acusação relativamente ao crime de falsificação de documento (cheque) e de burla, ou seja, considerando em relação a cada tipo legal de crime, uma pluralidade ou concurso de infracções, sem consideração de qualquer unidade de sentido.
9 – Ainda que se entenda haver continuação criminosa, com aa consequente diminuição da culpa – o que não nos parece ser o caso – entre os factos destes autos e os factos objecto dos processos que levaram à alegada verificação do caso julgado sobre as demais infracções posteriormente apuradas, nem impedir o procedimento criminal, isto porque o crime continuado é constituído por várias infracções parcelares.
10 – Coma decisão recorria a M.ma JIC violou o disposto nos artºs 29º nº5 da CRP e 30º do Cód. Penal, bem como os comandos normativos dos artº 283º nº2, 308º 1,2 do CPP.
11 – Em suma, dando provimento ao recurso, deverá ser revogado o despacho de não pronúncia, substituindo-o por outro que ordene o prosseguimento dos autos quanto aos crimes imputados aos arguidos de falsificação de documento – relativo ao cheque dos autos- e de burla.
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Os arguidos não apresentaram resposta ao recurso.
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Nesta instância o Ex.mo Procurador Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
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A questão a decidir nestes autos resume-se a saber se os crimes imputados aos arguidos estão abrangidos pela excepção do caso julgado, o que passa por saber se os crimes de falsificação de cheque e de burla formam uma continuação criminosa com os crimes de idêntico tipo pelos quais os arguidos foram julgados noutros processos.
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Na dilucidação desta questão temos de ter em conta que o despacho recorrido teve em conta os seguintes factos (fls.386 a 390)

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1 - No processo do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos que correu termos no 1º Juízo Criminal com o nº 188/99 foram condenados em 21.12.1999 o arguido Caetano pela prática de um crime de receptação, dois crimes de falsificação de documentos e um crime de burla e o arguido Torres pela prática de dois crimes de falsificação e um crime de burla
Fundamentou tal condenação a prova, entre outros, dos seguintes factos (fls.245 a 257).
No dia 20 de Abril de 1998 indivíduo(s) cuja identidade se desconhece retiraram a DD urna carteira que continha, além do mais, dezanove cheques em branco do “Banco Mello” com os números 2873231 a 2873249 da conta n.0 141730010, o seu bilhete de identidade, o seu cartão de contribuinte e outros documentos pessoais.
Em data não apurada entre 20 e 24 de Abril de 1998, o arguido José Caetano apoderou-se dos aludidos dezanove cheques, bilhete de identidade e cartão de contribuinte.
Depois, os dois arguidos combinaram entre si substituir a fotografia constante do bilhete de identidade pela fotografia do arguido Serafim Torres e que aporiam nos cheques uma assinatura como sendo a de DD e que assim se apresentariam em várias lojas comerciais para adquirir objectos, fazendo-se um deles passar pelo DD.
Na execução de tal plano substituíram a fotografia do bilhete de identidade e apuseram no cheque com o nº 2873247, no lugar destinado à assinatura do sacador, uma assinatura semelhante á constante do bilhete de identidade de DD.
E, no dia 24 de Abril de 1998, dirigiram-se a estabelecimento comercial explorado por Sã Cortinas - Vista Alegra, em Barcelos, adquirindo peças de porcelana com o preço total de 65 1 500$00, entregando para pagamento o referido cheque nº 2873247, preenchendo-o o arguido Serafim nos locais destinados à quantia (algarismos e extenso) e ã data e apresentando à empregada que os atendia o também já referido bilhete de identidade alterado e o cartão de contribuinte, convencendo-a assim de estar na presença do legitimo titular de tais documentos e por isso a entregar-lhes as ditas peças de porcelana.
No julgamento do referido processo n 188/99 não se suscitaram outros factos relevantes relativos à prática dos actos criminosos (cfr. fls. 251).
Ainda nesse processo foi realizado em 26.06.2000 cúmulo jurídico de penas englobando as nele aplicadas e aquelas em que os arguidos foram condenados nos processos nº 148/99 do 1º juízo Criminal de Matosinhos; 34/99 do 2º Juízo da Guarda e nº 225/9 9 (que tivera o nº 3/99) do Tribunal de Bragança (fls. 258 segs.).
Tais penas foram posteriormente englobadas em novo cúmulo que incluiu também as aplicadas nos processos nº 210/98 9 PAPBL de Pombal e nº 532/99 do 20 Juízo Criminal de Viana do Castelo (fls. 338 segs.)
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2 - Neste processo nº 119/98. 6GA VGS é imputada aos arguidos pelo Ministério Público, mediante acusação de 22.03.2002, a prática dos seguintes factos (fls. 144 a 147):
Em data não apurada de 1998, os arguidos adquiriram a pessoa não identificada o cheque nº 3528732336, da conta nº 00141730010 do Banco Mello, agência de Arcos de Valdevez, assim como o bilhete de identidade nº 3523800, ambos pertencentes a DD.
De comum acordo, procederam a alteração do referido bilhete de identidade, colocando a fotografia do arguido Serafim Torres no local onde antes se encontrava a do respectivo titular.
No dia 11 de Maio de 1998 os arguidos dirigiram-se a estabelecimento comercial denominado “FF”, em Aveiro, propondo-se adquirir determinada quantidade de camarão.
No dia 12 de Maio de 1998 o arguido José Caetano confirmou a encomenda, ficando a entrega acordada para o dia 14.05.1998.
Nesse dia 14 de Maio de 1998 os arguidos recolheram no referido estabelecimento camarão no valor de 559.300$00, entregando o arguido Serafim Torres para pagamento do mesmo o mencionado cheque nº 3528732336, da conta nº 00141730010 do Banco Mello, que nesse acto assinou, tendo exibido o bilhete de identidade do titular da conta com a sua fotografia, sendo os restantes elementos do cheque preenchidos pela dona do estabelecimento comercial na presença dos arguidos, que acreditou serem os arguidos os legítimos utilizadores do cheque e do bilhete de identidade, erro este que os arguidos quiseram provocar.
O camarão foi posteriormente vendido na zona do Porto, repartindo os arguidos o produto de tal venda.
O cheque, quando apresentado a pagamento, foi devolvido com a indicação de “cheque revogado - furtado”.
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3 - No processo do Tribunal Judicial da Comarca de Caminha que correu termos no com o nº 76/98.9 GA CMN foram condenados em 18.10.2001 cada um dos arguidos pela prática de um crime de falsificação e um crime de burla
Fundamentou tal condenação a prova da prática, entre outros, dos seguintes factos (fls. 354 a 362):
No dia 20 de Abril de 1998 foram subtraídos a DD, além do mais, cheques em branco do “Banco Mello” da conta nº 141730010 e o seu bilhete de identidade.
Em condições não apuradas os arguidos obtiveram tais módulos de cheque e bilhete de identidade, logo formulando o propósito de preencherem e utilizarem os cheques, fazendo-se um deles passar por seu titular e repartindo pelos dois os artigos que desse modo iriam adquirindo ou os proventos auferidos pela respectiva venda.
Em execução desse plano o arguido José Caetano escreveu no lugar destinado à assinatura do saque do cheque nº 5728732409 o nome “DD”.
Os arguidos apuseram a fotografia do arguido Serafim Torres no bilhete de identidade já referido.
Em execução do mesmo plano, em 20 de Maio de 1998 os arguidos deslocaram-se a estabelecimento de ourivesaria em Caminha, onde escolheram e adquiriram diversos objectos no valor global de 140.000$00, entregando o arguido Serafim o cheque com a assinatura imitada e pedindo ao dono do estabelecimento que preenchesse os restantes elementos do cheque.
O arguido Serafim exibiu ainda ao dono do estabelecimento o referido bilhete de identidade em que ambos os arguidos haviam aposto a fotografia do primeiro.
Conseguiram assim os arguidos convencer o dono da ourivesaria a entregar-lhes os objectos a troco do cheque que, quando apresentado a pagamento, foi devolvido com a menção “furto”.
No julgamento do referido processo n.0 76/98. 9GA CMN não se suscitaram outros factos relevantes relativos à prática dos actos criminosos (cfr. fls.357).
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4 - No processo do Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos que correu termos no Juízo Criminal respectivo com o nº 148/99 foram condenados em 02.07.1999 cada um dos arguidos pela prática de um crime de falsificação e de um crime de burla.
Fundamentou tal condenação a prova da prática, entre outros, dos seguintes factos (fls. 222 a 228)
Em data não apurada posterior a 20 de Abril de 1998, os arguidos apoderaram-se de diversos documentos pertencentes a DD, designadamente o cheque nº 1028732328, da conta nº 00141730010 do Banco Mello, agência de Arcos de Valdevez, assim como o bilhete de identidade e cartão de contribuinte.
Decidiram então os arguidos utilizar o referido cheque, fazendo-se passar pelo seu verdadeiro titular.
Assim, no dia 22 de Maio de 1998, os arguidos dirigiram-se ao armazém de pescado pertencente a “ Fernando Mendes Soares, Lda.”, em Matosinhos, onde adquiriram camarão no valor total de 890.000$00.
Um dos arguidos, fazendo-se passar por DD, preencheu pelo seu próprio punho todos os elementos do cheque, designadamente apondo no lugar destinado à assinatura do titular da conta o respectivo nome, como se fosse a assinatura deste, e mostrando o referido bilhete de identidade, convencendo assim os arguidos o funcionário que os atendeu a aceitar o cheque como pagamento das referidas mercadorias.
Os arguidos venderam a mercadoria e gastaram em proveito próprio a quantia que assim obtiveram.
No julgamento do referido processo nº 148/99 não se suscitaram outros factos relevantes relativos à prática dos actos criminosos (cfr. fls. 225).
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Vejamos:
Por terem inteira pertinência para o caso que nos ocupa passamos a citar Francisco Isasca Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, pág. 220., aliás, como foi parcialmente feito no despacho recorrido, na parte em que discorre sobre o que deve entender-se por “mesmo crime”, para efeitos referido no nº5 do artº 29º da Constituição da República, que consagra o princípio “ne bis in idem”, autor que por sua vez cita Gomes Canotilho e Vital Moreira:
Para estes autores “crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou decisão que se lhe equipare (...); a expressão “crime” não pode ser tomada ao pé da letra, mas antes entendida como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressuposto de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um comportamento determinado já julgado – e não tanto de um crime - que se quer evitar. O que o nº 5 do artº 29º da Constituição da República Portuguesa proíbe é no fundo, que um mesmo concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal”.
“Nestes termos, conclui aquele primeiro autor Ob. citada pág. 229.,o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade de sentido, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados”.
Não se suscitam quaisquer dúvidas, de que relativamente ao crime de falsificação de BI de DD pelo qual os arguidos foram condenados no processo supra referido que correu termos na comarca de Barcelos é o mesmo pedaço de vida, para usar as palavras do autor citado, já que na acusação proferida nestes autos se imputa aos mesmos arguidos a falsificação do mesmo BI, que aliás foi usado em outras ocasiões, como se constata da resenha acima referida, verificando-se quanto a ele a excepção do caso julgado, não sendo, por isso, esta parte da decisão objecto de recurso.
Mas já se nos suscitam muitas dúvidas se os demais factos se relacionam com o mesmos pedaços de vida que estiveram subjacentes ás condenações por crimes de falsificação de cheque e de burla nos processos referidos em 1.,3. e 4.
Reconhecendo, embora, que tanto os cheques como os ofendidos e o produto das burlas são diferentes em todos eles, o despacho recorreu á figura do crime continuado, concluindo que os factos integradores dos crimes acusados neste processo formam uma continuação criminosa, com aqueles crimes de falsificação de cheque e de burla julgados em Barcelos, Caminha e Matosinhos, supra identificados, e por isso, que os arguidos teriam cometido apenas um crime de burla e um crime de falsificação na forma continuada e não tantos os crimes como os cheques e as burlas pelos quais foram condenados naqueles processos e estão acusados nestes autos.
O crime continuado, artº 30º nº2 do Cód. Penal, pressupõe uma única resolução criminosa, embora a execução dessa resolução se possa desdobrar em vários actos, que são unificados por uma considerável diminuição da culpa que está subjacente.
Como refere o Cons. Maia Gonçalves Cod. Penal Anotado, 9ª edição pág. 268 e 269. “A diminuição considerável da culpa do agente deve radicar em solicitações de uma mesma situação exterior que o arrastam para o crime, e não em razões de carácter endógeno. Dentro destes parâmetros, quaisquer situações podem fundamentar a verificação de uma continuação criminosa, supostos os demais requisitos enumerados no nº2.”
Quanto a estes requisitos ou pressupostos, seguindo Simas Santos e Leal Henriques, eles podem resumir-se nos seguintes Cód. Penal Anotado Simas Santos e Leal Henriques, vol. I, 3ª ed. pág. 387 :
- realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
- lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado);
- unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de « uma linha psicológica continuada»;
- persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente
Mas, para constituir crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo ou de tipo que proteja essencialmente o mesmo bem jurídico, exige o nº2 do artº 30º do C.P. que «seja executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente»
E assim, continuam os mesmos autores citando Faria e Costa “ Têm deste modo de se conjugar todos os elementos anteriores apontados não só com uma certa homogeneidade, que pode ganhar relevância à luz de um critério espácio-temporal, pelo menos como ponto de referência negativo, mas também com o circunstancialismo exógeno que faça consideravelmente diminuir a culpa do agente. E é neste específico ponto que se toca no essencial. É justamente em homenagem a uma ideia de menor exigibilidade que o crime continuado ganha solidez dogmática”.
Como refere o Prof. Eduardo Correia Unidade e Pluralidade de Infracções; Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Almedina, colecção Teses 1983, pág. 97. “deve considerar-se existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique entre as actividades do agente uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar, que ele as executou a todas sem renovar o respectivo processo de motivação.
Não nos parece que o caso em presença preencha o requisitos de onde se possa inferir uma diminuição da culpa
Com efeito, apesar de as acções em causa terem sido praticados do ponto de vista da forma da actuação, de modo essencialmente homogénio Diz-se essencialmente, porque ao contrário dos demais casos referidos, a aquisição de mercadoria configurada na acusação dos presentes autos, foi precedida de negociação, que ocorreu nos dias anteriores ao da passagem do cheque e entrega da referida mercadoria., o facto de terem sido levadas a cabo em datas distintas, durante mais de um mês 24 de Abril a 22 de Maio de 1998, aliada à circunstância de terem sido perpetradas em locais tão distantes como Aveiro, Barcelos, Caminha e Motosinhos, com ofendidos diferentes, não é compatível, pensamos nós, com a unidade de processo de motivação e de uma diminuição da culpa resultante de uma menor reflexão acerca da prática dos factos Neste sentido decidiu o Ac. STJ de 28.Jan. 1993, in Col Juris, ano I, tomo I, pág. 176 e 177, num caso semelhante ao dos autos.
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De qualquer modo, o facto os arguidos terem utilizado em todos as ocasiões os cheques que obtiveram de uma só vez, perdurando assim o meio apto para realizarem os delitos, não é só por si suficiente para afirmar que foi essa perduração do meio que levou á prática de novas acções, assim diminuindo a culpa.
Com efeito, esta circunstância, atendendo a que foram os próprios arguidos quem procedeu á falsificação do BI e dos cheques, que obtiveram para o efeito, pode permitir a conclusão de que o esquema de realização do facto teria sido gizado exactamente pelas potencialidades que oferecia o meio empregado na maior eficácia em plúrimas violações, o que em vez de diminuir a culpa, ainda a pode agravar.
Note-se que como consta das certidões juntas a fls. 326, 345, 371, os arguidos foram também condenados nos Tribunais de Bragança, Pombal, Guarda, e Tomar, pela prática de crimes falsificação de cheque e burla, cometidos em Julho e Agosto de 1998, cujas penas foram cumuladas com as dos processos de Matosinhos e Barcelos, estes dois últimos considerados no despacho recorrido.
Como refere o Ex.mo Procurador Geral Adjunto no seu parecer, a resposta á questão de saber se as acções referidas devem ser consideradas em conjunto por persistência de uma “situação exterior” facilitadora da sua execução “depende naturalmente da apreciação de todo um quadro de conjunto em relação ao qual não é fácil, á partida, descortinar uma linha psicológica de actuação unitária e/ou continuada e uma persistente identidade de circunstâncias objectivas modeladoras e atenuadoras dos sucessivos impulsos que presidiram a cada uma das implicadas actividades. Isto tendo em conta, desde logo, a descontinuidade ou desfasamento espácio - temporal destas e a heterogeneidade de algumas delas e dos respectivos sujeitos passivos, enquanto expressão de formas de actuação e comparticipação nem sempre coincidente e com valências próprias”.
Vale isto para dizer, que atendendo á especificidade das condutas aglutinadas no despacho recorrido, que foram sempre consideradas autonomamente nos vários processos já julgados, é prematuro nesta fase de instrução afirmar que elas obedeceram a um único desígnio inicial desencadeado pela circunstância de os arguidos terem em seu poder os cheques, de modo a afirmar-se que esta circunstância actuou como motor de todas as condutas.
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Sempre se dirá, no entanto, que mesmo partindo do pressuposto que as conduta objecto da acusação nos presentes autos, formam com aquelas que foram julgadas nos mencionados processos, uma continuação criminosa, o que não nos parece viável nesta fase dos autos, mesmo assim, pensamos que os arguidos devem ser submetidos a julgamento por não se poder estender a elas a excepção do caso julgado.
Já Furtado dos Santos dizia BMJ nº 47 pág. 497. Conf. ainda no mesmo sentido Ac. S.TJ de 20 de Janeiro de 1993, já citado. “ Sendo o delito continuado constituído por várias infracções parcelares, a sentença que incide sob a parte delas não produz efeitos de caso julgado sobre as demais, e, assim, não obsta ao procedimento pelas que forem descobertas depois – o princípio ne bis in idem produz efeito só em relação aos factos julgados, e o crime continuado tem tantos factos com autonomia própria quantos os delitos parcelares unidos pelo nexo de conexão”
De resto, o Prof. Eduardo Correia, na obra que dedica á problemática do caso julgado Unidade e Pluralidade de Infracções – ob. já citada, pág. 351 e seg. ao crime continuado, embora defenda tese diversa, ao equacionar as várias hipóteses em que o problema se põe, não deixa de realçar as dificuldades quando uma sentença anterior condenou alguém como autor de um crime simples, ou como agente de um concurso de crimes, e é promovida nova acção penal com fundamento em factos que não foram objecto do conhecimento do primeiro juiz, No nosso caso, do segundo do terceiro e do quarto juiz, visto que os anteriores julgadores nunca equacionaram a hipótese de continuação criminosa relativamente ás condutas aglutinadas no despacho recorrido.mas que de harmonia com a convicção do segundo estão com os julgados numa relação de continuação, e de indicar a necessidade de se proceder a julgamento, quando diz:
“ (...) quando o juiz investia e decide que certos factos estão em qualquer relação e unidade com outros apreciados numa sentença anterior, quando, pois, investiga sobre os limites da identidade do objecto processual, não pratica absolutamente nada que contradiga aquela decisão. O que tão somente faz com isso é integrar o conteúdo de tal sentença, é perguntar até que ponto se deveria ter alargado a cognição do tribunal no primeiro processo, com vista a determinar em que limites se devem entender as coisas como julgadas.
Nada impede, por conseguinte, considerar existente «para efeitos da determinação da identidade do objecto processual, uma relação de continuação entre certos factos e outros já julgados, pois que desta sorte apenas se verificam os limites da unidade jurídica que deveria ter sido conhecida e que, como tal, se deve dizer apreciada e contida na primeira sentença.”
E, continua, “ E isto parece ainda de afirmar naqueles casos em que, tendo-se acusado uma série de actividades como constituindo um crime continuado, o tribunal decide que elas dão lugar a um concurso de infracções, vindo-se a descobrir mais tarde novos factos que, no critério do segundo juiz, se encontram com os apreciados numa relação de continuação. Com efeito, cumpre ao segundo juiz integrar a sentença anterior de harmonia com o princípio segundo o qual a uma unidade jurídica deve corresponder um só processo”.
O juiz de que fala o Professor, na hipótese em questão Hipótese b) de fls. 351., que é a nossa, não pode ser outro que não o juiz de julgamento pois só este último dispõe de elementos que lhe permitam obter a certeza jurídica, para a qual são um contributo relevante a oralidade e a imediação do julgamento, acerca da apreciação dos elementos integradores ou não de continuação criminosa, elementos que, a nosso ver, não estão á disposição do Juiz de Instrução que se pronuncia sobre indícios Apesar de na mesma ob. pág. 356 e 357 o Professor admitir em nota de rodapé que avaliação se possa fazer noutras ocasiões, refere-se, pensamos nós a casos diferentes, que tenha havido sentença absolutória anterior ( hipótese d).
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Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, e consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro, que partindo do pressuposto que não se verifica a excepção do caso julgado relativamente aos crimes de falsificação de cheque e de burla acusados nestes autos, e decida em conformidade.
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Sem custas.
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Coimbra,