Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
49/13.3GDCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ACIDENTE CAUSADO POR VEÍCULO
MÁQUINA ESCAVADORA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE
CAUSA DE FORÇA MAIOR ESTRANHA AO FUNCIONAMENTO DO VEÍCULO
Data do Acordão: 02/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JC CRIMINAL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 503.º, N.º 1, E 505.º, DO CC; ART. 109.º, N.º 2, DO CE
Sumário: I – A previsão do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil visa todo e qualquer meio de transporte terrestre (incluindo máquinas, florestais ou industriais), desde que e enquanto utilizado como meio de circulação.

II - Assim, para efeitos daquele normativo, só pode ser veículo de circulação terrestre o que estiver a ser utilizado como meio de transporte, quer de pessoas quer de mercadorias, na via pública - tal como previsto no referido art. 109.º, n.º 2 do CE - ou, até, casuisticamente, em local privado.

III – No caso concreto, em razão da dinâmica conducente ao acidente, traduzida no resvalamento de uma máquina escavadora quando estava a ser utilizada no transporte de materiais, e não na sua função específica de escavamento, remoção de terreno, tal veículo deve ser qualificado como de circulação terrestre.

IV – Caso de força maior é o acontecimento cognoscível, imprevisível, não decorrente da actividade em curso, que, por isso mesmo, lhe é exterior, e cujo efeito danoso não pode evitar-se com as medidas de precaução que racionalmente seriam de esperar. Deste modo, para estarmos na presença de uma causa de força maior é necessário que o acontecimento causal seja exterior à pessoa do detentor e da própria coisa que provoca ou produz o risco.

V – Em situação como a dos autos, o resvalamento da máquina escavadora nem sequer é estranho ao seu funcionamento, constituindo um dos riscos próprios deste género de veículos, qualquer que seja a sua causa, isto é, ainda que não seja possível identificar o risco concreto que originou o acidente.

VI – Por conseguinte, as circunstâncias em que ocorreram os factos não podem ser consideradas excepcionais ou anómalas ao ponto de poderem afastar o nexo de causalidade adequada entre os riscos próprios da escavadora e o acidente.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:                                                                                      

            A) No âmbito do processo comum (tribunal coletivo) n.º 49/13.3GDCVL que corre termos na Comarca de Castelo Branco – Juízo Central Criminal de Castelo Branco – Juiz 2, em 29/5/2018, foi proferida Acórdão, cujo DISPOSITIVO é o seguinte:

V. Decisão

Em face do exposto, o Tribunal Colectivo decide:

- Julgar improcedente a pronúncia e, em consequência, absolver os arguidos (…), (…), (…) e (…) da prática, em co-autoria material, do crime de infracção de regras de construção agravado pelo resultado, p. e p. pelos artigos 277º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 285º, ambos do Código Penal, que lhes foi imputado.

- Julgar improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual invocada pela demandada (…).

- Julgar parcialmente improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes civis e, em consequência, absolver os demandados (…), (…) e (…) do pedido de pagamento da quantia pelas mesmas peticionada.

- Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes civis (…) e (…) e, em consequência, condenar a demandada (…) a pagar a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) a cada uma das demandantes civis, assim como a pagar a quantia de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros) a ambas as demandantes, quantias essas a que acrescem juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data do presente acórdão até integral pagamento.

(…)”.

                                                           ****

B) Inconformada com a decisão recorrida, dela recorreu, em 24/10/2018, a demandada civil (…) extraindo da motivação as seguintes conclusões:       

1. O Acórdão recorrido absolveu a Recorrente da prática do crime violação das regras de construção civil agravada pelo resultado morte de um trabalhador.

2. Todavia, o que serviu para a absolver da prática do crime – por ter ficado integralmente demonstrado que não foram incumpridas quaisquer regras de segurança e muito menos praticado qualquer crime – não foi suficiente para absolver a Recorrente do pedido de indemnização civil que foi formulado contra si pelas assistentes.

3. Conforme demonstrado, a condenação civil impugnada tem como preliminar a instauração de um processo crime contra a Recorrente por alegada em obra, mas atenta a inexistência de qualquer crime, a Recorrente não se conforma, nem pode conformar com a condenação civil que lhe foi aplicada nos presentes autos.

4. O Tribunal recorrido incorreu, portanto, em erros na apreciação da prova.

5. Relevada a matéria de facto provada e não provada, outra não poderia ter sido a consequência que não a da absolvição da Recorrente relativamente ao pedido cível, ou caso assim não se entendesse (o que apenas à cautela se pode equacionar), sempre por valores muito inferiores àquele que foi arbitrado pelo Tribunal recorrido.

6. Como adiantado, em sede criminal, a Recorrente demonstrou cabalmente que não tinha praticado qualquer crime de violação das regras de construção civil agravada pelo resultado morte.

7. Aliás, em boa verdade, demonstrou que o que acidente aconteceu apenas e só devido a um infortúnio, a um evento de uma total imprevisibilidade, que se lamenta, mas que não é apto a desencadear a responsabilidade civil da Recorrente.

8. O acidente que motivou a instauração do procedimento criminal de que a Recorrente foi absolvida consistiu no resvalo de uma máquina industrial pesada de grandes dimensões, cujo balde embateu num trabalhador que foi projectado, embateu num maciço de cimento e morreu no local.

9. Porém, não obstante as consequências decorrentes do acidente o Tribunal concluiu que nada permitia determinar o modo como o acidente ocorreu, ou seja, qual foi a causa do resvalamento da máquina industrial.

10. A factualidade provada e não provada (dada por reproduzida no corpo das alegações) aponta exactamente nesse sentido, pelo que mal se compreende a razão pela qual o Tribunal recorrido tenha decidido condenar a Recorrente no pedido de indemnização civil objecto do presente recurso.

11. No facto provado nº. 16 escreve-se que “um dos trabalhos a executar na obra consistia na aplicação de parafusos de aperto dos flanges dos troços das condutas, enquadrando-se essa operação na categoria de montagem e desmontagem de condutas”.

12. Seguidamente acrescenta-se que “o Plano de Segurança e Saúde elaborado pelo arguido (…) contém uma listagem de trabalhos com riscos especiais inerentes à empreitada, na qual se alude, relativamente à execução da acção consistente na montagem/desmontagem de condutas, entre outros, ao risco potencial de quedas ao mesmo nível, ao qual é atribuído um nível de risco alto, ao risco potencial de choque na movimentação de cargas e ao risco potencial de agressões mecânicas, ao qual é também atribuído um nível de risco alto” (facto provado nº. 17).

13. No facto provado nº. 19 o Tribunal Recorrido deu como provado que das competentes fichas de segurança constavam diversas medidas de prevenção destinadas a evitar a ocorrência de acidentes de trabalho, acrescentando-se que do plano de segurança em obra foram ainda identificados “os condicionalismos locais identificados são os seguintes: condições topográficas do local e as condições geológicas e geotécnicas das suas vertentes; condições da envolvente do Estaleiro de Apoio; localização relativamente distante em relação às principais vias de acesso”.

14. A factos provados nº. 21.º a 28.º o Tribunal Recorrido descreveu, e bem, os contornos do acidente.

15. Mais à frente, deu como provado (e esta circunstância é essencial) que “a máquina escavadora utilizada para a execução da tarefa a que se aludiu encontrava-se em perfeitas condições de utilização” (facto provado nº. 34; destaque e sublinhado da Recorrente).

16. O Tribunal entendeu ainda que – e porque existe aqui uma razão de grande conexão entre o facto provado nº. 34 e o facto provado nº. 57.º – “por causa das características do terreno onde foi executada a obra, a arguida (…) decidiu utilizar uma máquina de grandes dimensões, com rastos cuja superfície de contacto com o solo é maior e com uma capacidade de carga superior à necessária para a operação de carga e descarga que iria ser realizada, afastando a utilização de uma máquina com rodas e, consequentemente, com um centro de gravidade mais alto” (destaque e sublinhado da Recorrente) – ou seja, para garantir a segurança!

17. O Tribunal deu ainda como provado que “os trabalhadores que se encontravam na obra sabiam quais eram as posições que deviam ocupar e tinham instruções expressas no sentido de se aproximarem da máquina apenas quando esta se encontrasse devidamente estacionada e estabilizada, tal como aconteceu” (facto provado nº. 62; destaque e sublinhado da Recorrente).

18. Demonstrou-se ainda que “a máquina utilizada tem uma capacidade de carga superior à da carga que nela foi transportada (…), logo acrescentando que “o limite máximo de carga da referida máquina é de milhares de toneladas” (facto provado nº. 64) e concluiu que “no local onde decorreu a obra foi efectuada a terraplanagem necessária para estacionar a máquina e para a fazer contactar com o solo na base de horizontalidade” (facto provado nº. 65; destaque e sublinhado da Recorrente)

19. Que “as pedras de menor dimensão que se encontravam no local foram desviadas para outros lugares” e que “a máquina resvalou, no máximo, 50 cm” (factos provados nº. 66.º e 67.º).

20. No que respeita aos factos não provados o Tribunal recorrido entendeu que “os arguidos não tinham procedido à avaliação de todos os riscos associados à execução da obra e respectivas medidas de prevenção, não assegurando, por consequência, as condições de segurança e de saúde em todos os aspectos relativos ao trabalho do ofendido e dos demais trabalhadores” (facto não provado nº. 11).

21. Que “a sociedade arguida e os restantes arguidos não cumpriram as boas práticas de segurança ao não proibir a permanência e movimentação de trabalhadores junto da máquina escavadora e da área ao redor da mesma após a respectiva imobilização em segurança (facto não provado nº. 13).

22. A factos não provados 15 e 16, o Tribunal foi considerou, peremptoriamente, que não tinha ficado provado que “o acidente que vitimou o ofendido (…) ocorreu por não terem sido adoptadas logo desde o início da obra as novas medidas implementadas pela sociedade arguida, em conjunto com os arguidos que actuavam sob a sua direcção, no que respeita à descarga do material com recurso à escavadora e aproximação dos trabalhadores somente após o afastamento da máquina do local” e que “antes de ter ocorrido o acidente, a sociedade arguida e os restantes arguidos não avaliaram o risco de resvalamento da máquina (destaque e sublinhado da Recorrente).

23. O Tribunal recorrido foi mais longe, considerando que não tinha ficado provado que “a máquina resvalou por não se encontrar devidamente estabilizada e estacionada num local seguro, dada a existência de pedras e a forte inclinação do terreno” (facto não provado nº. 16) e ainda que [não ficou provado que] “a existência de pedras soltas no solo onde essa máquina se encontrava, associada à forte inclinação do terreno e à presença de trabalhadores nas proximidades da máquina escavadora contribuiu de forma decisiva para que o acidente de trabalho que vitimou o ofendido (…) fosse fatal” (facto não provado 26).

24. Seguindo de perto a matéria de facto, o Tribunal entendeu ainda que não tinha ficado provado que “a sociedade arguida e os arguidos (…) e (…), actuando de forma consciente, não asseguraram que a obra não começasse sem que tivesse sido aprovado um Plano de Segurança e Saúde apto para impedir a verificação desses riscos” (facto não provado nº. 28) e que “era exigível aos arguidos (…), (…), (…) e (…) que tivessem previsto o perigo de resvalamento de uma máquina e embate da mesma no trabalhador (…), provocando-lhe as lesões atrás descritas e, em consequência, a morte, atenta a proximidade do trabalhador relativamente à máquina e o apoio desta em solo pedregoso e sem a devida compactação “(facto não provado nº. 29).

25. A factualidade supra foi determinante para que o Tribunal Recorrido concluir no sentido de não ter sido possível “determinar qual foi a causa do resvalamento da máquina identificada nos autos, não poderia o Tribunal Colectivo deixar de considerar não provado que algum dos arguidos devesse ter previsto, em especial e para além das menções constantes do Plano de Segurança e Saúde a que já se aludiu, o perigo de algum trabalhador vir a falecer em consequência do embate provocado por uma máquina após o resvalamento da mesma”.

26. Como se diz no acórdão recorrido, “quer isto dizer que, no caso em apreço, ficou por demonstrar que tinha sido praticada a conduta típica consistente em infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação ou conservação” e, “por essa razão, não poderão os arguidos deixar de ser absolvidos da prática do crime de infracção das regras de construção agravado pelo resultado, p. e. p. pelos artigos 277.º, nº. 1, alínea a) e nº. 2 e 285.º, ambos do Código Penal, que lhes foi imputado”.

27. Tais factos não foram suficientes para absolver a arguida (…), do pedido cível formulado contra si, condenando-se assim aquela no “pagamento da quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) a cada uma das demandantes civis, assim como a pagar a quantia de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros) a ambas as demandantes, quantias essas a que acrescem juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data do presente acórdão até integral pagamento”, valor ao que acrescem as custas do processo.

28. A páginas 64 a 86 do Acórdão Recorrido o Tribunal apresenta o seu iter motivacional, concluindo no sentido da responsabilização civil da Recorrente com base na responsabilidade objectiva ou pelo risco.

29. Porém, sem qualquer razão e a verdade é que tal decisão ignora o facto de “a matéria civil (…), é [ser] dependente da matéria penal, pois, sem a prática do crime inexiste obrigação de indemnizar civilmente”, sendo que “ao colocar em causa a prática do crime por parte do arguido, bule com os pressupostos da responsabilidade civil decorrente daquele” (2).

30. Dos factos provados e não provados resulta que não foram infringidas quaisquer regras de segurança e que deveria haver alguma previsão no sentido de que um acidente como aquele poderia ter ocorrido.

31. A Recorrente demonstrou que cumpriu com tudo a quanto estava obrigada e que era lícito de imaginar.

32. Na verdade, ficou demonstrado nos autos que nada na física e na engenharia explicavam o acidente.

33. Aquela breve transcrição demonstra claramente que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil geral (artigos 483.º e seguintes), como muito menos se preenchem os pressupostos da responsabilidade civil objectiva ou pelo risco.

34. A respeito desta última diga-se que o limite máximo da responsabilidade objectiva ou pelo risco é o limite da previsibilidade, ainda que ténue ou remota.

35. No caso dos autos demonstrou-se que tal linha de previsibilidade foi totalmente ultrapassada pelo acidente em si mesmo considerado.

36. Os contornos do acidente e o cabal cumprimento de todas as obrigações a cargo da (…) no que respeita à segurança na obra servem, eles próprios, para demonstrar que nada há aqui a indemnizar, porquanto se estar a falar de um acidente totalmente imprevisível e que extravasa o próprio âmbito da responsabilidade pelo risco.

37. O Tribunal recorrido decidiu lançar mão do instituto da responsabilidade civil objectiva e pelo risco, chamando à aplicação o artigo 503.º do Código Civil mas sem razão, pois os seus pressupostos não estão preenchidos.

38. Em primeiro lugar, o tribunal assenta num pressuposto errado: é que a máquina que provocou o acidente não era um veículo rodoviário em sentido próprio, mas uma máquina industrial (cfr. artigo 109.º, nº. 2 do Código da Estrada).

39. Como se diz no acórdão recorrido, “é patente que a circunstância de o acidente ter ocorrido numa altura em que a referida máquina escavadora se encontrava a laborar junto das condutas forçadas que estavam a ser substituídas, e não numa faixa de trânsito onde circulassem outros veículos, não afasta a aplicação do artigo 503º, n.º 1, do Código Civil, atrás transcrito”.

40. É precisamente pelo facto de se tratar de um veículo que operava em local vedado ao trânsito e em que executava a sua actividade industrial que a protecção conferida pelo artigo 503.º, nº. 1 do Código Civil deixa de ter aplicação.

41. Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22 de Março de 2012, no âmbito do processo nº. 232/09.6TBCCH.E1 e disponível para consulta em www.dgsi.pt “a qualificação como veículo de circulação terrestre para efeitos do artigo 503.º do Código Civil deve ser casuística e em função das circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente”.

42. No caso dos autos, não só a máquina escavadora utilizada para a execução da tarefa a que se aludiu se encontrava em perfeitas condições de utilização (cfr. facto provado nº. 34), como também resulta que não ficou provado que os arguidos devessem ter previsto “o perigo de resvalamento de uma máquina e embate da mesma no trabalhador (…), provocando-lhe as lesões atrás descritas e, em consequência, a morte, atenta a proximidade do trabalhador relativamente à máquina e o apoio desta em solo pedregoso e sem a devida compactação” (facto não provado nº. 29).

43. Tais circunstâncias relevam, visto que a máquina estava a operar no meio para o qual foi expressamente pensada.

44. O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão datado de 07 de Novembro de 2006 no âmbito do processo nº. 06A2617 aponta que “considerando que, no momento do sinistro, a retroescavadora não se encontrava na sua função específica de escavação, antes sim transitava pela via pública enquanto veículo circulante, com os riscos de circulação inerentes ao comum dos veículos terrestres a motor, o acidente deve ser considerado como acidente de viação (…)”.

45. Está sobejamente demonstrado que a máquina em questão fazia o transporte de parafusaria no alçado de uma conduta hidráulica ao longo da encosta da (...) e, por isso, em local totalmente vedado ao público.

46. No caso dos autos, está sobejamente demonstrado que a máquina em questão fazia o transporte de parafusaria no alçado de uma conduta hidráulica ao longo da encosta da (...) e, por isso, em local totalmente vedado ao público.

47. Ou seja, a contrario sensu, é ponto assente que no caso vertente nos autos o acórdão citado aplica-se sem reservas: a máquina estava parada e imobilizada, tal como provado nos autos, razão pela qual a máquina “se encontrava na sua função específica”, para usar a formulação do acórdão citado.

48. Quer isto significar que, por estar no exercício da sua função específica e não “transitava pela via pública enquanto veículo circulante, com os riscos de circulação inerentes ao comum dos veículos terrestres a motor”, então o acidente nunca poderá ser considerado como um acidente de viação gerador de responsabilidade pelo risco.

49. Este facto é de grande importância, pois decorre claramente que não se pode fazer uma analogia com um veículo de circulação terrestre propriamente dito.

50. Se uma máquina industrial circular na via pública (ainda que ocasionalmente), então sim, há lugar à sua qualificação como veículo terrestre propriamente dita.

51. Coisa diferente é circular no local da obra: “sendo um acidente causado durante e no exclusivo desempenho funcional do dumper (a máquina industrial discutida nos presentes autos), no local onde essa actividade era desenvolvida, local esse não aberto ao trânsito automóvel, mas reservado aos veículos em serviço, o acidente ocorre no desempenho dos trabalhos específicos desta máquina e em local não aberto ao trânsito (…) e sendo o acidente provocado quando o dumper reiniciava o seu trabalho específico de transporte de inertes, não estava sujeito ao seguro obrigatório de responsabilidade civil”.

52. Voltando a citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22 de Março de 2012, no âmbito do processo nº. 232/09.6TBCCH.E1 e disponível para consulta em www.dgsi.pt deve forçosamente concluir-se que “a qualificação como veículo de circulação terrestre para efeitos do artigo 503.º do Código Civil deve ser casuística e em função das circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente”.

53. No caso dos autos, o veículo em questão nunca poderá ser considerado como um veículo de circulação terrestre para efeitos de aplicação daquele normativo do Código Civil, caindo, por isso, por terra toda a argumentação trazida à colação no acórdão recorrido.

54. Por outro lado, deve ter-se também em linha de atenção o que se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16 de Dezembro de 2014, no âmbito do processo nº. 102/05.7TVLSB.E1.

55. No referido acórdão decidiu-se que “provando-se que a concessionária, no âmbito da concessão, estava a executar uma obra que consistia na construção de um viaduto para uma autoestrada a uma altura de cerca de 35 metros, não subsistem dúvidas que pela natureza da obra, a mesma constitui uma actividade perigosa para efeitos do n.º 2 do artigo 493º do Código Civil, respondendo a concessionária, como dona da obra pelos danos causados na sua execução, a não ser que demonstre ter empregue todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir” (destaque e sublinhado da Recorrente).

56. No caso dos autos não se pode por em causa que a obra em questão era uma obra perigosa.

57. No entanto, resultou sobejamente demonstrado que todas as regras de segurança foram integralmente cumpridas (vd. Factos provados nº. 11, 14, 15, 17, 18, 19 e 20).

58. Por outro lado, não ficou provado que a sociedade arguida e os restantes arguidos não procederam à avaliação de todos os riscos associados à execução da obra e respectivas medidas de prevenção, não assegurando, por consequência, as condições de segurança e de saúde em todos os aspectos relativos ao trabalho do ofendido e dos demais trabalhadores (facto não provado nº. 11).

59. A contrario, demonstrou-se que a Recorrente avaliou de todos os riscos associados à execução da obra e assegurou, por consequência, as condições de segurança em todos os aspectos relativos ao trabalho do ofendido e dos demais trabalhadores.

60. Da mesma sorte, resultou como não provado que “o acidente que vitimou o ofendido (…) ocorreu por não terem sido adoptadas logo desde o início da obra as novas medidas implementadas pela sociedade arguida, em conjunto com os arguidos que actuavam sob a sua direcção, no que respeita à descarga do material com recurso à escavadora e aproximação dos trabalhadores somente após o afastamento da máquina do local” (Facto não provado nº. 15).

61. Aquela factualidade serve para demonstrar cabalmente que não pode haver responsabilização civil da Recorrente por estar demonstrado à saciedade que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos incorridos

62. Tal conclusão resulta reforçada da conjugação entre os factos provados nº. 34.º e 57.º que o Tribunal entendeu que “por causa das características do terreno onde foi executada a obra, a arguida (…) decidiu utilizar uma máquina de grandes dimensões, com rastos cuja superfície de contacto com o solo é maior e com uma capacidade de carga superior à necessária para a operação de carga e descarga que iria ser realizada, afastando a utilização de uma máquina com rodas e, consequentemente, com um centro de gravidade mais alto” (destaque e sublinhado da Recorrente).

63. Demonstrou-se ainda que o acidente não encontrava qualquer explicação nas leis da física e da engenharia que são ciências exactas.

64. É que uma coisa é poder admitir-se um risco próprio que ainda seja explicável; outra coisa é prever-se um risco que não é explicado, nem pelas leis da física, nem da engenharia.

65. A incapacidade de explicação científica para o acidente é evidente e taxativa, o que motiva que não entre em funcionamento qualquer obrigação indemnizatória.

66. A máquina – que se encontrava em perfeitas condições – resvalou, sem explicação para tanto, não se tendo apurado o que é que motivou o acidente, para além do facto de ser unânime a conclusão de acordo com a qual resulta que o mesmo assentou numa base de imprevisibilidade total e de infortúnio.

67. Nos termos do artigo 505.º do Código Civil, tem forçosamente que excluir-se a responsabilidade pelo acidente nos termos do artigo 503.º do Código Civil.

68. Ficou demonstrado que a causa do acidente resulta de uma causa de força maior, estranha ao funcionamento do veículo.

69. Cumpre chamar a atenção para o facto de a decisão cível do Tribunal recorrido extravasar grandemente o critério da equidade.

70. O normativo previsto no artigo 566.º, nº. 3 do Código Civil determina que “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, sendo que o critério da equidade é, claro, um critério de natureza subjectiva, que assenta na base da discricionariedade do julgador e, por isso, de difícil sindicância.

71. A jurisprudência dos tribunais tem vindo a admitir a aplicação de fórmulas matemáticas que permitem limitar a subjectividade subjacente a um juízo assente na equidade.

72. O Tribunal da Relação de Coimbra por acórdão datado de 06 de Julho de 2016, no âmbito do processo nº. 232/13.1TBMBR.C1 decidiu que “o único critério legal para a fixação da indemnização do dano biológico é a equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil); o que não significa, que não se use, como auxiliar, como instrumento de trabalho, fórmulas matemáticas, que têm o mérito de impedir “ligeirezas decisórias” ou involuntárias leviandades e subjectivismos, na medida em que obrigando o julgador à externalização, passo a passo, do seu juízo decisório e a uma maior “densificação” da fundamentação da decisão, contribuem para impedir raciocínios mais ligeiros e/ou maquinais na fixação de indemnização”.

73. O ofendido tinha, à data, 62 anos, recebia um ordenado mensal na ordem dos 650 euros, estava divorciado e as suas filhas já eram maiores, trabalhavam e trabalham, provendo ao seu próprio sustento e à data da morte, aquele estava a cerca de três a quatro anos da idade da reforma.

74. O valor da indemnização arbitrada às filhas do ofendido corresponde a cerca de 115 vezes o valor mensal que o ofendido auferia: € 650,00 x 115 = € 74.750,00.

75. O acidente de trabalho ocorreu por causas inimagináveis, o valor arbitrado a título de indemnização é brutal. Exponencialmente superior a qualquer critério de razoabilidade.

76. Tanto assim é que o legislador, ele próprio, já sentiu necessidade de fixar tabelas para tentar fixar o quantum de indemnização.

77. A Portaria nº. 679/2009, de 25 de Julho fixou critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel (não é o caso dos autos, mas aqui serve a analogia para efeitos de fixação de quantum indemnizatório), previu limites indemnizatórios de sobremaneira mais baixos do que aqueles que foram arbitrados aqui nos autos (vd. Tabela de danos morais a herdeiros).

78. No caso dos autos, ambas as filhas do lesado têm mais de 25 anos, trabalham e têm o seu sustento assegurado pelo seu próprio trabalho, razão pela qual resulta claro que o valor de indemnização nunca deveria ter excedido o valor de 10.260,00 / a cada filha.

79. Assim, caso não se logre absolver a recorrente do pedido de indemnização civil em que foi condenada, sempre o valor indemnizatório deverá ser reduzido com base na equidade, usando-se como critério os constantes da tabela anexa à referida Portaria.

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C) O recurso, em 20/9/2018, foi admitido.

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D) As demandantes civis, (…) e (…), em 24/10/2018, responderam ao recurso, defendendo que não merece provimento, tendo apresentado as seguintes conclusões:   

1ª – O Tribunal a quo bem entendeu quando decidiu pela condenação da demandada (…) no pagamento do pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes, aqui recorridas.

2ª – A responsabilidade pelo risco ficou suficientemente fundamentada na douta decisão recorrida, atenta a clara verificação dos seus pressupostos, designadamente a ocorrência de um facto, o resvalamento de uma máquina industrial, e o nexo de causalidade entre esse facto e a morte do pai das demandantes, aqui recorridas.

3ª – Estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade pelo risco relativa à circulação do referido veiculo.

4ª - O acidente foi causado durante e desempenho funcional da máquina escavadora, em local não aberto ao trânsito automóvel, mas reservado aos veículos de serviço na obra, estando assim relacionado com os riscos próprios do funcionamento da referida máquina, enquanto máquina industrial.

6ª- O facto de o veículo não se encontrar em circulação num local público não exclui a responsabilidade objectiva a que se reporta o nº 1 do artº 503º do Código Civil, sendo relevante no caso em apreço que os danos provocados em consequência do mencionado acidente resultaram dos riscos próprios do veículo em causa.

7ª- A máquina dos autos é um veiculo de circulação terrestre, manifestando o risco especial enquanto máquina de circulação terrestre e, consequentemente, o acidente por ela provocado é necessariamente a concretização desse risco.

8ª - O concreto acidente sobre que versam os autos não deixa de ser uma manifestação própria dos riscos da actividade viária.do referido veículo.

9ª – O resvalamento da máquina no caso vertente inclui-se nos riscos próprios da estrutura e circulação da máquina em causa.

10º - Os danos provocados em consequência do acidente dos autos resultaram dos riscos próprios do veículo em causa, pelo que bem se enquadram na responsabilidade objectiva a que se reporta o nº 1 do artº 503º do Código Civil, conforme doutamente decidido no Acórdão recorrido.

11ª - O quantum da indemnização por danos não patrimoniais deve ser, não irrelevante ou simbólico, mas significativo, visando propiciar compensação quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, à luz da equidade, tendo em conta os padrões jurisprudenciais actualizados.

12ª - A indemnização destinada a ressarcir os danos não patrimoniais sofridos pelas filhas não deve revestir carácter miserabilista, pelo que se têm por adequados os montantes fixados.

13º- Nessa conformidade, foi elaborado douto acórdão que se orientou por critérios de equidade mostrando-se justos e razoáveis, à luz da doutrina e jurisprudência assente, os valores fixados.

14ª – E assim, foi elaborada decisão que, doutamente fundamentada, correctamente interpretou e aplicou as normas jurídicas correspondentes aos factos provados.

- Deixa-se consignado que nestas conlusões, após a 4ª surge a 6ª (fls. 1431).


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            E) O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 12/11/2018, deixou expresso nos autos não ter que tomar posição quanto ao recurso, uma vez que este se confina à matéria cível.

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F) Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II. Decisão Recorrida:

“I. Relatório

(…).

II. Fundamentação de facto

Factos provados

Analisada toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, resultaram provados, com relevo para a decisão a proferir, os seguintes factos:

1. A arguida (…) é uma sociedade comercial cujo objecto social consiste em actividades de fornecimento e montagem de instalações eléctricas e mecânicas, infra-estruturas diversas, indústria de engenharia eléctrica, metalomecânica, galvanização e representações, fabrico, construção e instalação de equipamentos industriais hidromecânicos, assim como actividades relacionadas com a respectiva concepção, gestão e exploração.

2. A sociedade arguida desenvolve actividades de projecto, fornecimento, construção e manutenção de equipamentos e infra-estruturas hidromecânicas e hidroeléctricas.

3. A sociedade arguida exerce essa actividade há mais de sessenta anos, conta com cerca de 500 trabalhadores e é uma empresa nacional de topo nos sectores de infra-estruturas de energia e águas.

4. No exercício da sua actividade, a sociedade arguida executou a obra de substituição das condutas forçadas da Central (…), situada na (...) , concelho da (...) .

5. O arguido (…), trabalhador da sociedade arguida, foi o gestor responsável pela qualidade, ambiente e segurança da referida obra, tendo elaborado o respectivo Plano de Segurança e Saúde.

6. A arguida (…) era responsável pelos serviços de segurança da sociedade arguida, tendo validado internamente o Plano de Segurança e Saúde a que se aludiu.

7. A Coordenadora de Segurança em Obra era a (…), representada pela Senhora Engenheira (…).

8. O Senhor Engenheiro J (...) ocupava o cargo de Director de Obra.

9. O Senhor António (…) ocupava o cargo de Encarregado Geral da obra.

10. O arguido (…), trabalhador da sociedade arguida, desempenhava as funções de chefe de equipa, sendo o responsável pela realização de reuniões diárias com os trabalhadores.

11. O Plano de Segurança e Saúde foi validado pela Coordenadora da Segurança em obra, Engenheira (…), e aprovado pelo dono da obra, (…).

12. Nos dias 7 de Junho de 2013 e 29 de Julho de 2013, a sociedade arguida, na qualidade de responsável pela execução dos trabalhos, solicitou ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas a emissão de um parecer.

13. A 28 de Agosto de 2013, o ICNF emitiu parecer final favorável à realização da obra que se encontrava a cargo da sociedade arguida, condicionada à observação dos seguintes requisitos:

O acesso deve ser construído com perspectiva de utilização duradoura, devendo para o efeito ter um perfil longitudinal com inclinação igual ou inferior a 10%, os perfis dos taludes de aterro e de escavação devem ter uma relação de 1:2 (Vertical: Horizontal), deve ter órgão de drenagem lateral (valeta) na base do talude de escavação e pelo menos três passagens hidráulicas de atravessamento da via. O posicionamento das passagens hidráulicas deve ter em conta a necessidade de escoar adequadamente o caudal proveniente de passagens hidráulicas existentes na estrada (...) à (...) .

As operações para a construção do acesso devem obedecer ao encadeado das operações: i) corte de vegetação (desmatação) de modo a garantir uma boa identificação do terreno e condições de boa visibilidade aos operadores de máquinas e equipamentos durante a fase de movimentação de terras. O corte da vegetação deve ser realizado com recurso a equipamento motomanual (vulgo motorroçadoira); ii) abertura do acesso; iii) abertura do órgão de drenagem lateral (valeta) e construção das passagens hidráulicas; iv) colocação de sinalética normalizada, junto do início do «acesso A2», da condição «Estrada sem saída».

14. Antes do início da execução da obra, a sociedade arguida efectuou acções de sensibilização e formação junto dos trabalhadores contratados para o efeito, com o objectivo de os alertar para os riscos existentes, para as medidas preventivas a adoptar e para a metodologia do trabalho a realizar.

15. A sequência dos trabalhos a realizar, o modo de execução dos mesmos, os riscos que lhes estavam associados e as medidas preventivas a adoptar foram comunicados pelo arguido (…) aos trabalhadores em datas anteriores àquela em que ocorreu o acidente a que se reportam os presentes autos.

16. Um dos trabalhos a executar na obra consistia na aplicação de parafusos de aperto dos flanges dos troços das condutas, enquadrando-se essa operação na categoria de montagem e desmontagem de condutas.

17. O Plano de Segurança e Saúde elaborado pelo arguido (…) contém uma listagem de trabalhos com riscos especiais inerentes à empreitada, na qual se alude, relativamente à execução da acção consistente na montagem/desmontagem de condutas, entre outros, ao risco potencial de quedas ao mesmo nível, ao qual é atribuído um nível de risco alto, ao risco potencial de choque na movimentação de cargas e ao risco potencial de agressões mecânicas, ao qual é também atribuído um nível de risco alto.

18. Ao nível dos procedimentos destinados a atenuar os riscos mencionados, o Plano de Segurança e Saúde remete para as Fichas de Segurança e Saúde 0.1 e 0.2.

19. A Ficha de Segurança e Saúde 0.2, referente à movimentação de cargas pesadas, indica, a título de medida de prevenção a implementar, entre outras, a seguinte: “devem ser feitas verificações, nomeadamente: do terreno e da estabilização do equipamento de elevação; da ausência de linhas eléctricas na proximidade; do peso das cargas; do estado de conservação dos cabos, lingas e estropos e da fixação do equipamento de elevação; do ângulo dos estropos ou das lingas, para confirmar que não é excedida a sua Carga Máxima de Utilização”.

20. O mesmo Plano de Segurança e Saúde indica ainda que “os condicionalismos locais identificados são os seguintes: condições topográficas do local e as condições geológicas e geotécnicas das suas vertentes; condições da envolvente do Estaleiro de Apoio; localização relativamente distante em relação às principais vias de acesso”.

21. O plano de trabalhos referente à tarefa indicada em 16. consistia na descarga de várias caixas de cartão com porcas e anilhas, cada uma das quais tinha, pelo menos, 15 Kg, e aproximadamente cem parafusos com 5 Kg cada um, os quais se encontravam acondicionados nas mesmas caixas de cartão.

22. No local encontrava-se uma equipa de quatro trabalhadores e um manobrador de máquina, os quais procediam, conjuntamente, à descarga da parafusaria que estava a ser transportada ao longo do traçado da conduta no balde de uma máquina escavadora rotativa de rastos, no percurso descendente.

23. A execução das operações consistia na descarga dos materiais transportados no balde da máquina escavadora e no manuseamento desta mercadoria pelos trabalhadores que se colocaram em linha para minimizar o esforço e a distância despendidos nessa movimentação de carga.

24. No dia 4 de Dezembro de 2013, pelas 15h30, no local de descarga dos materiais, ao longo do traçado da conduta, a testemunha (…), que manobrava a máquina escavadora rotativa de rastos, parou a mesma e imobilizou o respectivo balde no solo para que os trabalhadores (…), (…), (…) e (…) descarregassem as caixas que continham as porcas, anilhas e parafusos referidos.

25. Durante esse processo, realizado na encosta do Vale (...) , que tem uma inclinação acentuada, a certa altura a máquina escavadora resvalou no sentido descendente, fazendo mover o balde carregado de mercadoria.

26. De seguida, o balde embateu no corpo do ofendido (…) que era o trabalhador que se encontrava mais próximo do balde.

27. Este embate projectou o ofendido, levando-o a embater contra o maciço de suporte n.º 63.

28. Em consequência do embate e da imediata projecção, o ofendido (…) sofreu lesões traumáticas meningo-encefálicas, torácicas e abdominais que lhe causaram directamente a morte, a qual se verificou logo no local onde ocorreram os factos.

29. Mediante escrito datado de 31 de Janeiro de 2012, intitulado Contrato de Utilização de Trabalho Temporário (a termo resolutivo incerto), a sociedade comercial denominada (…) cedeu à arguida (…) um conjunto de trabalhadores entre os quais se encontrava o ofendido (…), com a categoria profissional de soldador.

30. A cláusula 9ª do referido contrato estipula que “a Empresa de Trabalho Temporário deverá apresentar cópia da Apólice de Seguro de Acidentes de Trabalho e é responsável pelos acidentes de trabalho que ocorram com os trabalhadores que lhe estejam vinculados”.

31. A sociedade comercial denominada (…) celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a (…), o qual se encontra titulado pela apólice n.º (...) .

32. Consta da referida apólice que a mesma "cobre o risco de trabalho temporário da actividade de fabricação de serralharia civil, tornear, ferraria e afins".

33. O local onde decorreu a obra situa-se em pleno Parque Natural da (...) e o solo é composto de pedras e areias soltas.

34. A máquina escavadora utilizada para a execução da tarefa a que se aludiu encontrava-se em perfeitas condições de utilização.

35. A 5 de Fevereiro de 2014, a sociedade arguida apresentou um plano de acções com medidas de segurança adicionais para reforço das condições de segurança na execução dos trabalhos de aplicação de parafusos de aperto dos flanges dos troços da conduta, os quais se encontravam suspensos desde a data em que ocorreu o acidente.

36. Nesse plano de acção, a sociedade arguida fez constar operações de:

Remoção de pedras soltas de maior dimensão que se encontrassem no solo onde se movimentavam as máquinas e os trabalhadores;

Consolidação e compactação do terreno com recurso a meios humanos e mecânicos;

Verificação e avaliação do percurso, de forma a garantir as condições de acesso pedonal e de máquinas;

Garantir a manutenção da instalação de linhas de apoio para auxílio dos trabalhadores nas deslocações ao longo da conduta;

Acondicionamento de parafusos, porcas e anilhas para aperto dos flanges em caixas de madeira e descarregamento directo no solo;

Reforço de acompanhamento da estrutura de segurança à obra através de visitas bissemanais de técnico de higiene e segurança no trabalho;

Acompanhamento permanente, por parte deste técnico, durante a execução do transporte de parafusos, porcas e anilhas;

Reforço de sinalização de segurança com colocação de sinalética de segurança de «perigo de queda» e «máquinas em movimento»;

Uso obrigatório de francalete após acção de sensibilização para comunicar os riscos e perigos em causa;

Reforço do controlo do estado do piso do calçado de protecção mecânica em cada colaborador e substituição quando o estado do seu piso não se encontre capaz; Construção de novos acessos tanto pedonais como para máquinas às frentes de trabalho, para permitir menores percursos da máquina.

37. Mediante decisão proferida a 6 de Julho de 2015 pela Autoridade para as Condições do Trabalho, a sociedade arguida foi condenada, como reincidente, pela prática de uma contra-ordenação muito grave, agravada, na forma negligente, prevista no artigo 25º, n.º 3, alínea e), do Decreto-Lei n.º 273/2003, em violação do artigo 19º, n.º 2, alínea e), da Lei n.º 27/2010, tendo-lhe sido aplicada a coima de€ 24.440,00.

38. A sociedade arguida não impugnou a decisão proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho.

39. No Juízo do Trabalho do Tribunal de Sintra correu termos o processo n.º 464/13.2TTGRD, no âmbito do qual a seguradora (…), a entidade empregadora do ofendido (…) e a beneficiária (…) firmaram um acordo na fase conciliatória.

40. Nos termos desse acordo, a referida companhia de seguros reconheceu ser devedora à beneficiária (…), filha do ofendido (…), da pensão anual e vitalícia no montante de € 2.130,24, do subsídio por morte, nos termos do artigo 65º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 98/2009, no montante de€ 5.533,68, e dos juros de mora calculados à taxa legal sobre as quantias indicadas.

41. No âmbito desse acordo, a entidade empregadora do ofendido (…) declarou que não se reconhece devedora de quaisquer direitos patrimoniais à beneficiária em virtude de o vencimento do ofendido estar integralmente transferido para a seguradora.

42. A seguradora da entidade empregadora do ofendido (…) pagou à beneficiária (…) a quantia de € 50.771,65, a título de subsídio por morte e respectivos juros de mora, e a quantia de € 35.476,68, a título de pensão remida e respectivos juros de mora.

43. As assistentes (…) e (…) também são filhas do ofendido (…).

44. O ofendido (…) faleceu no estado de divorciado.

45. Mesmo após o divórcio dos seus pais, as assistentes sempre viveram e conviveram numa relação de grande proximidade e ligação afectiva com o seu pai.

46. Poucos meses após o divórcio dos seus pais, a assistente (…) passou a residir com o pai.

47. Até ao seu casamento e durante cerca de sete anos, a assistente (…) viveu com o seu pai.

48. Embora tenha ficado a viver com a sua mãe, a assistente (…) costumava passar os fins-de-semana, feriados, dias festivos e férias escolares com o seu pai.

49. Após o divórcio, o ofendido (…) sempre fez questão de se manter próximo das suas filhas e de acompanhar o crescimento e a vida das mesmas.

50. O ofendido (…) e as suas filhas contavam com o apoio, consolo, atenção e carinho uns dos outros.

51. O ofendido (…) falava regularmente, por telefone, com as suas filhas.

52. O ofendido (…) era uma pessoa muito querida e bem considerada pela generalidade das pessoas que o conheciam.

53. O ofendido (…) tinha 62 anos de idade e era uma pessoa saudável.

54. O ofendido (…) providenciava pelo seu próprio sustento com recurso aos rendimentos auferidos em consequência da actividade profissional diariamente desempenhada na área da construção civil.

55. O ofendido (…) sofreu antes de ter falecido e teve consciência de que iria morrer longe de casa e dos seus familiares mais próximos.

56. A morte do ofendido (…) e as circunstâncias em que a mesma ocorreu causaram grande sofrimento, tristeza, desgosto e angústia às suas filhas.

57. Por causa das características do terreno onde foi executada a obra, a arguida (…) decidiu utilizar uma máquina de grandes dimensões, com rastos cuja superfície de contacto com o solo é maior e com uma capacidade de carga superior à necessária para a operação de carga e descarga que iria ser realizada, afastando a utilização de uma máquina com rodas e, consequentemente, com um centro de gravidade mais alto.

58. O condutor da máquina, que trabalhava por conta da proprietária da mesma, encontrava-se certificado com o título de condutor manobrador.

59. O referido condutor tinha experiência naquele tipo de operações e estava familiarizado com o terreno e com a máquina em causa.

60. O acidente ocorreu praticamente no último terço de terreno onde a conduta estava a ser instalada e na parte superior do mesmo.

61. À data do acidente já tinham sido executadas operações de carga e descarga como as que estavam a ser levadas a cabo quando ocorreu o acidente ao longo de quase dois terços da linha diagonal da montanha.

62. Os trabalhadores que se encontravam na obra sabiam quais eram as posições que deviam ocupar e tinham instruções expressas no sentido de se aproximarem da máquina apenas quando esta se encontrasse devidamente estacionada e estabilizada, tal como aconteceu.

63. A máquina utilizada tem uma capacidade de carga superior à da carga que nela foi transportada e pertence à sociedade comercial denominada (…), subcontratada pela sociedade arguida para proceder à realização de trabalhos de terraplanagem e de demolição e reconstrução de maciços, bem como para ceder a utilização da referida máquina.

64. O limite máximo de carga da referida máquina é de milhares de toneladas.

65. No local onde decorreu a obra foi efectuada a terraplanagem necessária para estacionar a máquina e para a fazer contactar com o solo na base de horizontalidade possível.

66. As pedras de menor dimensão que se encontravam no local foram desviadas para outros lugares.

67. A máquina resvalou, no máximo, 50 cm.

68. O arguido (…) trabalha no departamento de engenharia de uma sociedade comercial, encontrando-se incumbido da elaboração de manuais de equipamentos.

69. Aufere um vencimento mensal ilíquido na ordem dos€ 1.500,00 e vive com a esposa e com as duas filhas maiores de idade, as quais se encontram a estudar.

70. A esposa do arguido recebe um vencimento mensal de cerca de€ 1.200,00.

71. O agregado familiar do arguido (…) suporta o pagamento de encargos mensais de cerca de € 1.000,00 referentes ao pagamento de créditos bancários e das despesas relacionadas com a formação académica das filhas do arguido.

72. A arguida (…) concluiu a licenciatura em engenharia mecânica, no ramo de produção industrial, na Universidade Nova .... quando tinha 23 anos de idade.

73. Em 2011, a arguida (…) concluiu um Mas ter of Business Administration.

74. A arguida teve as suas primeiras experiências laborais ainda no período juvenil, colaborando em pequenos negócios dos pais e da avó.

75. Durante o período em que frequentou a Universidade, a arguida realizou os seus primeiros trabalhos no ramo da engenharia, no âmbito de estágios académicos.

76. Após a conclusão da licenciatura, a arguida (…) trabalhou para a empresa (…) durante cinco anos.

77. Por ter obtido uma melhor proposta de trabalho, a arguida ingressou então na sociedade comercial denominada (…), onde trabalhou, durante cerca de quinze anos, até ao mês de Março de 201 7.

78. A arguida (…) autonomizou-se do seu agregado familiar de origem aos 27 anos para viver em união de facto com o pai do seu filho.

79. Tal relacionamento durou cerca de seis anos, tendo o filho do casal ficado a cargo da arguida após a separação.

80. A nível profissional, a arguida (…) revela sentido de responsabilidade, empenho e um bom relacionamento com os seus colaboradores.

81. À data dos factos, a arguida residia com o seu filho e com a sua mãe num apartamento adquirido com recurso a um empréstimo bancário que já se encontra liquidado.

82. A arguida mantinha já uma relação de namoro com o seu actual companheiro.

83. Actualmente, a arguida (…) reside num outro apartamento do qual era proprietária até data recente.

84. À data dos factos, a arguida era Directora do Departamento de Qualidade, Ambiente e Segurança da sociedade arguida, auferindo um vencimento mensal de € 3.450,00.

85. Em consequência da extinção do seu posto de trabalho, no âmbito da reestruturação da empresa ocorrida no mês de Março de 2017, a arguida recebeu uma indemnização no valor de€ 40.000,00.

86. A arguida recebe, desde essa altura, subsídio de desemprego no valor de € 1.179,30 por mês.

87. O companheiro da arguida exerce as funções de economista.

88. A arguida (…) encontra-se a gerir, a título gratuito, um projecto de reabilitação de um condomínio que ficou inabitável na sequência de um incêndio de grandes dimensões e no qual é proprietária de um apartamento.

89. Na sequência da separação dos seus pais, ocorrida durante a sua infância, o arguido (…) ficou à guarda e cuidados do seu pai, integrado num agregado familiar reconstituído.

90. Nessa altura, o arguido revelou algum sentimento de abandono e rejeição, devido ao afastamento da figura materna, retomando o contacto com a mesma aos doze anos de idade.

91. O arguido (…) concluiu o 8º ano de escolaridade, após o que abandonou a frequência escolar por falta de motivação.

92. Iniciou o seu percurso profissional aos 14 anos de idade, na condição de trabalhador ­estudante, na área da construção civil, desenvolvendo a actividade de serralheiro.

93. O arguido (…) contraiu casamento quando tinha 23 anos de idade, tendo uma filha com 33 anos e um neto com quatro anos de idade.

94. Continua a trabalhar por conta da sociedade arguida como chefe de equipa e encarregado de obra.

95. O arguido (…) é tido, pelo seu superior hierárquico, como um trabalhador responsável, empenhado, competente e assíduo.

96. Vive com a sua esposa em casa adquirida com recurso à contracção de empréstimo bancário, pagando uma prestação mensal no valor de€ 370,00.

97. O arguido (…) aufere um vencimento mensal de cerca de € 975,00 e a sua esposa dedica-se à exploração de um estabelecimento comercial, recebendo montantes mensais correspondentes ao valor do salário mínimo nacional.

98. O arguido ocupa os seus tempos livres com a realização de actividades em conjunto com o seu neto e com a sua filha, bem como com a prática de exercício fisico.

99. Os arguidos não apresentam quaisquer antecedentes criminais.

Factos não provados

Após a realização da audiência de julgamento nos presentes autos, não ficaram provados quaisquer outros factos relevantes para a decisão a proferir, não se tendo demonstrado, designadamente:

1. A arguida (…) assumiu a qualidade de responsável da área de segurança e coordenação de segurança da obra.

2. O Plano de Segurança e Saúde foi aprovado pela Coordenação de Segurança da obra da sociedade arguida.

3. O arguido (…) desempenhava as funções de encarregado geral e era o responsável pelos registos diários de inspecção de segurança no local onde ocorreram os factos.

4. A 4 e 6 de Junho de 2013, a Divisão de Planeamento e Avaliação de Projectos do (…) desenvolveu acções de sensibilização relativamente aos acessos e trabalhos na conduta para minorar os impactos nos locais da obra.

5. A execução da obra teve início no mês de Setembro de 2013.

6. Para a execução da tarefa mencionada em 16. e 21. dos factos considerados provados foram descarregadas vinte e uma caixas com as características aí indicadas.

7. Na ocasião indicada em 24. dos factos considerados provados, o trabalhador (…) retirou a mercadoria do balde da máquina e entregou-a ao trabalhador (…) que, por sua vez, a entregou ao trabalhador (…) que a entregou ao trabalhador (…), tendo este colocado a referida mercadoria no solo, junto do maciço de apoio n. º 63.

8. A encosta do Vale (...) tem uma inclinação aproximada de 27º.

9. Os trabalhos foram realizados numa extensão com um declive de, aproximadamente, 60%.

10. O balde da máquina escavadora atingiu o ofendido (…) na zona lombar.

11. A sociedade arguida e os restantes arguidos não procederam à avaliação de todos os riscos associados à execução da obra e respectivas medidas de prevenção, não assegurando, por consequência, as condições de segurança e de saúde em todos os aspectos relativos ao trabalho do ofendido e dos demais trabalhadores.

12. A sociedade arguida e os restantes arguidos não requereram junto do ICNF a emissão de parecer para qualquer operação no terreno no local onde a máquina escavadora e os trabalhadores se movimentavam.

13. A sociedade arguida e os restantes arguidos não cumpriram as boas práticas de segurança ao não proibir a permanência e movimentação de trabalhadores junto da máquina escavadora e da área ao redor da mesma após a respectiva imobilização em segurança.

14. A 3 de Fevereiro de 2014 a sociedade arguida elaborou Ficha de Segurança e Saúde relacionada com a movimentação manual de cargas pelos trabalhadores, na qual adverte para os riscos mais frequentes neste tipo de operações, como o choque com objectos, e estabelece novas medidas de prevenção de acidentes de trabalho.

15. O acidente que vitimou o ofendido (…) ocorreu por não terem sido adoptadas logo desde o início da obra as novas medidas implementadas pela sociedade arguida, em conjunto com os arguidos que actuavam sob a sua direcção, no que respeita à descarga do material com recurso à escavadora e aproximação dos trabalhadores somente após o afastamento da máquina do local.

16. Antes de ter ocorrido o acidente, a sociedade arguida e os restantes arguidos não avaliaram o risco de resvalamento da máquina.

17. Antes de ter ocorrido o acidente nada era referido na Ficha de Segurança e Saúde anexa ao Plano de Segurança e Saúde quanto ao risco de descarga de caixas de parafusos e porcas a partir do balde da máquina em terrenos com inclinações e declives como os verificados no local onde ocorreu o acidente.

18. Nesse Plano de Segurança e Saúde nada é referido quanto à utilização da escavadora na montagem da conduta e aos riscos que lhe são inerentes, agravados com a presença de trabalhadores e a constituição pedregosa do solo e respectiva inclinação e declive.

19. Do mesmo Plano de Segurança e Saúde não consta a metodologia de trabalho a utilizar, nem a prevenção dos riscos inerentes à tarefa que a vítima executava no momento em que ocorreu o acidente.

20. A obra em causa tinha riscos específicos que a sociedade arguida e os restantes arguidos não avaliaram antes do acidente, mas apenas após a ocorrência do mesmo, no âmbito do plano que a sociedade arguida apresentou com o pedido de autorização para o reinício dos trabalhos após o acidente, do qual consta uma nova abordagem.

21. Do Plano de Segurança e Saúde e das Fichas de Segurança e Saúde existentes em Dezembro de 2013 não consta qualquer medida de prevenção do risco de resvalamento de máquinas no caso de forte inclinação do terreno.

22. A máquina resvalou por não se encontrar devidamente estabilizada e estacionada num local seguro, dada a existência de pedras e a forte inclinação do terreno.

23. A sociedade arguida e os restantes arguidos que actuavam sob as suas ordens e direcção só depois do acidente apresentaram uma metodologia adequada e segura para a execução da actividade de modo a que fosse abandonado o método de trabalho perigoso anteriormente adoptado.

24. A sociedade arguida e os restantes arguidos que actuavam sob as suas ordens e direcção permitiram, com o Plano de Segurança e Saúde que se encontrava em execução na data em que ocorreram os factos, a presença de trabalhadores junto da máquina e da área em seu redor.

25. Antes da ocorrência do acidente que vitimou o ofendido (…), a sociedade arguida e os restantes arguidos que actuavam sob as suas ordens e direcção não previram nem implementaram medidas para remover as pedras soltas existentes no solo onde a máquina escavadora se encontrava, nem qualquer medida para redução da interacção homem-máquina, de modo a garantir a integridade física dos trabalhadores e evitar o seu embate fatal.

26. A existência de pedras soltas no solo onde essa máquina se encontrava, associada à forte inclinação do terreno e à presença de trabalhadores nas proximidades da máquina escavadora contribuiu de forma decisiva para que o acidente de trabalho que vitimou o ofendido (…) fosse fatal.

27. A sociedade arguida e os arguidos (…) e (…), apesar de saberem que eram obrigados a elaborar o Plano de Segurança e Saúde de acordo com os riscos reais associados à execução da obra e a garantir o desenvolvimento e adaptação do mesmo de acordo com as especificidades dessa obra, decidiram não o fazer.

28. A sociedade arguida e os arguidos (…) e (…), actuando de forma consciente, não asseguraram que a obra não começasse sem que tivesse sido aprovado um Plano de Segurança e Saúde apto para impedir a verificação desses riscos.

29. Era exigível aos arguidos (…), (…), (…) e (…) que tivessem previsto o perigo de resvalamento de uma máquina e embate da mesma no trabalhador (…), provocando-lhe as lesões atrás descritas e, em consequência, a morte, atenta a proximidade do trabalhador relativamente à máquina e o apoio desta em solo pedregoso e sem a devida compactação.

30. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, no seu interesse e no interesse da sociedade arguida, sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas pela lei penal.

Convicção do Tribunal

(…)

III. Enquadramento jurídico-penal

Deste modo, cumpre agora proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos considerados provados nestes autos, a fim de verificar se os arguidos incorreram na prática do crime de infracção de regras de construção agravado pelo resultado, p. e p. pelos artigos 277º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 285º, ambos do Código Penal, pelo qual foram pronunciados.

Conforme resulta do disposto no artigo 277º, n.º 1, do Código Penal, “quem: a) no âmbito da sua actividade profissional infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação ou conservação; b) destruir, danificar ou tomar não utilizável, total ou parcialmente, aparelhagem ou outros meios existentes em local de trabalho e destinados a prevenir acidentes, ou, infringindo regras legais, regulamentares ou técnicas, omitir a instalação de tais meios ou aparelhagem; e) destruir, danificar ou tomar não utilizável, total ou parcialmente, instalação para aproveitamento, produção, armazenamento, condução ou distribuição de água, óleo, gasolina, calor, electricidade, gás ou energia nuclear, ou para protecção contra forças da natureza; ou d) impedir ou perturbar a exploração de serviços de comunicações ou de fornecimento ao público de água, luz, energia ou calor, subtraindo ou desviando, destruindo, danificando ou tomando não utilizável, total ou parcialmente, coisa ou energia que serve tais serviços; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de um a oito anos”.

Por outro lado, resulta do disposto no n.º 2, do citado artigo 277º, do Código Penal, que “se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos”.

Por seu turno, o n.º 3 do mesmo preceito legal estatui que “se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

Como decorre da descrição típica do crime de infracção de regras de construção e da própria epígrafe do capítulo em que se integram os artigos 272º e seguintes do Código Penal, o mencionado ilícito criminal consubstancia um crime de perigo comum.

Com efeito, conforme é referido, em síntese, por Faria Costa[1], "os crimes de perigo comum são crimes de perigo em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indiferenciável de objectos de acção sustentados ou iluminados por um ou por vários bens jurídicos (...). Se uma acção - desse modo tipificada na lei - cria um perigo concreto, por exemplo, para a vida de dezenas, centenas ou mesmo milhares de pessoas está­-se, indesmentivelmente, perante um crime que é, simultaneamente, um crime de perigo comum e de perigo concreto.".

Efectivamente, resulta da descrição típica do crime de infracção de regras de construção, p. e p. pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, que constitui elemento do tipo objectivo de ilícito a criação de perigo para os bens jurídicos aí identificados.

Quer isto dizer que, para além de consubstanciar um crime de perigo comum, o ilícito criminal em apreço configura um crime de perigo concreto.

Na verdade, citando novamente Faria Costa[2], dir-se-á que “o perigo enquanto realidade dogmática - e não só, acrescente-se - vale o mesmo, exactamente o mesmo, que o dano. Sucede, porém, que a violação do bem jurídico está normalmente ligada, de maneira absorvente, à ideia de dano. Daí toda a urgência em perceber que, quer o perigo, quer o dano são formas de violação do bem jurídico. O que se verifica é que há situações de perigo-violação e situações outras de dano-violação. O que faz com que os crimes de perigo concreto - enquanto crimes de perigo-violação - sejam crimes de resultado, talqualmente um crime de dano-violação (...).”.

Quanto aos bens jurídicos protegidos pela incriminação, esclarece o citado artigo 277º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, que estão em causa a vida ou integridade física de outrem e os bens patrimoniais alheios de valor elevado.

De facto, como refere Paula Ribeiro de Faria[3], “procura-se garantir a segurança em determinadas áreas de actuação humana e o regular funcionamento de serviços fundamentais, contra comportamentos susceptíveis de colocar em perigo a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios de valor elevado”.

A conduta típica que caracteriza o crime de infracção de regras de construção, no que releva para o caso em apreço, encontra-se descrita na alínea a), do n.º 1, do artigo 277°, do Código Penal, atrás transcrita, e consiste em infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação ou conservação.

Deste modo, constituem elementos do tipo objectivo de ilícito, por um lado, a execução de actividades de planeamento, direcção ou execução de uma construção ou de outra das obras indicadas na norma incriminatória e, por outro lado, a infracção de regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no exercício dessas actividades.

Para além disso, exige ainda o preenchimento do tipo objectivo de ilícito do crime de infracção de regras de construção que o agente actue “no âmbito da sua actividade profissional”.

Em primeiro lugar, considerando os concretos factos pelos quais os arguidos foram pronunciados, importa começar por determinar o que poderá consubstanciar uma construção ou a sua conservação.

Conforme esclarece Paulo Pinto de Albuquerque[4]”, “a «construção» é uma obra humana, de carácter duradouro ou temporário, realizada sobre ou sob o solo ou no mar, de modo fixo, móvel ou suspenso, cuja montagem exige a aplicação de regras técnicas geralmente reconhecidas (...). Por exemplo, são «construções» um muro, um edifício, uma tenda, um pavilhão prefabricado, uma plataforma petrolífera, um silo, uma ponte, um aqueduto, um viaduto ou um túnel. Mas não são «construções» os meios de transporte.”.

Já a conservação de uma construção previamente executada traduzir-se-á, como é bom de ver, na realização dos trabalhos necessários para efectuar alguma reparação ou melhoramento de que a mesma careça.

Por outro lado, tendo em conta a descrição típica constante do artigo 277°, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, impõe-se ainda concretizar os conceitos de planeamento, direcção e execução da dita construção.

Pela clareza da exposição, transcrevem-se, a este propósito, as palavras de Paula Ribeiro de Faria[5] quando sustenta que “o legislador não se referiu à actividade de construção como um todo, mas distinguiu várias fases às quais obedece esse mesmo processo de construção. Temos que ter em conta que a obra deverá ser planeada e acompanhada na sua execução por técnicos devidamente qualificados (direcção da obra). Em primeiro lugar, e pela ordem natural das coisas, temos a fase de planeamento. A construção pressupõe, por regra, a realização de uma memória descritiva dos trabalhos a executar, do caderno de encargos e do projecto da obra. Aqui inclui-se a actividade do arquitecto, ao delinear a obra e ao definir-lhe os traços essenciais e os levantamentos estatísticos e paisagísticos. Por execução de construção entende-se toda a actividade de construção civil devendo ser assinalado ao conceito um sentido amplo. Assim sendo, participa na execução da construção não apenas o directamente envolvido no levantamento do edificio, mas também o que toma parte nos trabalhos de melhoramento e modificação em edificios já existentes. São abrangidos pelo conceito os trabalhos auxiliares que se encontram directamente relacionados com a construção principal, como a abertura de covas para obtenção de material de construção, como areia, ou saibro, ou para a montagem dos alicerces, ou o levantamento de andaimes. Do mesmo modo, encontram-se aqui incluídas as obras de delimitação da zona de construção, ou o levantamento de dispositivos de segurança para evitar a queda de materiais de construção ou instrumentos. Por conseguinte, o legislador penal ao falar de execução da obra teve presente toda a actividade que contribui ou concorre para o ultimar da construção. (...). A direcção da obra, por seu turno, refere-se ao conjunto de determinações e ordens que têm por objectivo definir tecnicamente o seguimento dos trabalhos de construção, demolição ou instalação, de acordo com o projecto ou plano aprovados. Director da obra é assim «aquele que decide sobre o tipo e modo de execução técnica da obra como um todo - não apenas de trabalhos laterais ou secundários; por outras palavras, aquele cujas imposições e proibições são determinantes para a execução sob um ponto de vista técnico» (...). (...). Director da obra é, em princípio o empreiteiro ou aquele em quem este delega as suas funções, e não o dono da obra. Mesmo que este último dê indicações sobre a execução da obra parte-se da aceitação de que o faz no pressuposto de que as suas indicações não são contrárias a regras elementares da técnica cujo cumprimento cabe ao empreiteiro assegurar. Claramente distinta é a situação em que o dono da obra procede à construção sob a sua própria responsabilidade. Aí será evidentemente o director da obra e poderá preencher com o seu comportamento este tipo legal[6].

De todo o modo, o preenchimento do tipo objectivo de ilícito do crime de infracção de regras de construção pressupõe ainda a violação de regras que devam ser observadas ao nível do planeamento, ao nível da direcção ou ao nível da execução de uma construção.

Conforme esclarece a alínea a), do n.º 1, do artigo 277º, do Código Penal, as regras em causa poderão ter quer natureza legal e regulamentar, quer natureza técnica.

Assim, importa, antes de mais, determinar quais são as regras cuja violação poderá consubstanciar o preenchimento desse elemento do tipo objectivo de ilícito.

Conforme esclarece Paulo Pinto de Albuquerque[7] 7, "as regras legais, regulamentares e técnicas são as regras que compõem o saber técnico (knowhow) para o planeamento e execução da obra, bem como para a prevenção de acidentes dos trabalhadores e de terceiros à obra que vivam ou circulem junto à obra. O reenvio para normas legais e regulamentares não põe em causa o princípio da legalidade, pois estas normas integram o tipo penal (acórdão do TC n.º 102/2008, sobre a constitucionalidade da imputação do crime previsto e punido pelos artigos 277°, n.º 1, al.ª b), e n.º 2 e 3, e 285º, do Código Penal, com referência ao artigo 30º do Decreto 41821, de 11 de Agosto de 1958, que aprovou o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, artigos 6°, n.º 3, e 14º, do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, e n.º 11 da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril). As regras técnicas podem ter fundamento na lei, em regulamentos ou em usos profissionais, abrangendo «quer as normas geralmente respeitadas ou reconhecidas no sector da actividade da construção, quer outras regras ou procedimentos que sejam impostos pelos documentos contratuais, pelos planos de execução da obra ou pelos planos de segurança no trabalho» e, bem assim, os «métodos ou procedimentos ad hoc, concebidos e destinados à execução de trabalhos concretos e singulares» (...). Estas regras são de direito público, pelo que o consentimento do trabalhador, que é exposto ao perigo, é irrelevante (...).".

Entre as regras legais que regulamentam o planeamento da obra encontram-se, precisamente, as normas constantes do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, que procede à revisão da regulamentação das condições de segurança e de saúde no trabalho em estaleiros temporários ou móveis, constante do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, mantendo as prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho estabelecidas pela Directiva n.º 92/57/CEE, do Conselho, de 24 de Junho, ao qual se reportam a acusação e a decisão instrutória.

De igual forma, também a Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, a que se reportam quer a acusação, quer a decisão instrutória e que estabelece o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, se encontra incluída no âmbito das regras técnicas e regulamentares a que se tem vindo a aludir.

De facto, a infracção das regras previstas nos diplomas legais citados no que diz respeito à segurança da obra poderá consubstanciar o preenchimento do elemento do tipo objectivo de ilícito do crime de infracção de regras de construção em apreço.

No que respeita, em especial, à execução da obra, salienta Paula Ribeiro de Faria[8]8 que "são reconhecidas de uma forma geral aquelas regras que são utilizadas na prática, na convicção de que são necessárias para a segurança da obra (parece aqui fazer-se apelo a uma noção de natureza semelhante ao animus, ou elemento psicológico que integra o costume como fonte de direito). Uma vez que esse reconhecimento geral passou a não ser necessário basta que se trate de regras que devam ser seguidas, ou porque decorrem das condições técnicas gerais a observar naquele particular ramo de construção (usualmente as que se referem à «robustez e boa execução da obra, adequada qualidade dos materiais relativamente à obra em concreto, bem como à quantidade ajustada dos componentes», em LEAL­ HENRIQUES/SIMAS SANTOS art. 277º 853), ou porque são impostas pela análise do concreto caderno de encargos para a obra.".

Mas, conforme foi já referido, o preenchimento do tipo objectivo de ilícito do crime de infracção de regras de construção, p. e p. pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, exige ainda que o agente, ao infringir as regras mencionadas, actue "no âmbito da sua actividade profissional".

Quer isto dizer que "sujeito activo desta alínea é (...) aquele que planeia, executa ou dirige a obra. Cada uma das pessoas que intervém nestas diferentes fases toma-se assim responsável pela violação de regras vigentes nos sectores respectivos, e apenas, e pela consequente criação de perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado. O planeamento da obra pertence àquele que executa os planos concretos de trabalho. Surge aqui em primeira linha o arquitecto, que é responsável pelo projecto de construção, e o técnico de estatística. Director da obra é aquele que determina sob o ponto de vista técnico, através de indicações e ordens, o seguimento do trabalho de construção (...). (...). Trata-se de um delito específico (...), na medida em que o preenchimento do tipo supõe elementos pessoais de natureza particular. Se bem que, como se acabou de dizer, o responsável por cada uma destas fases apenas responda pela violação de regras nesse âmbito, a verdade é que no caso da direcção da obra, e devido à violação de regras de instrução e escolha, pode o agente vir a alargar a sua responsabilidade à infracção de regras de execução (culpa in eligendo e instruendos?[9]",

Para além dos elementos objectivos referentes à conduta típica a que já se aludiu, o preenchimento do tipo de ilícito pressupõe ainda que a infracção das regras mencionadas crie, em concreto, um perigo para um dos bens jurídicos enunciados na norma incriminadora, a saber, a vida, a integridade física de outrem e bens patrimoniais alheios de valor elevado.

Na verdade, "tendo presente que haverá perigo típico «quando na contextualidade concreta a comunidade, representada pelo julgador, no momento a que se reporta o juízo de perigo - o momento da entrada do objecto do bem jurídico no horizonte causal da acção do agente, e de acordo com um observador dotado de todas as circunstâncias de facto e de todas as leis cognoscíveis por um 'homem-plenamente informado' nesse momento, e que assim valora aquelas dimensões que densificam o conceito de perigo, faz um juízo de probabilidade da ocorrência do dano» (MARTA FELINO RODRIGUES, 2010, p. 277), o «dono da obra» firma-se «director da obra» enquanto (lhe compete) aprova(r) o «plano de segurança e saúde para a execução da obra» (concretização enquanto desenvolvimento para tal fase do «plano de segurança e saúde em projecto» que antecede aquele) que fez (ou mandou fazer), prescrevendo (nessa medida proibindo como importa à prevenção de efectivos riscos concretos de lesão dos bens jus tutelados) o avanço dos trabalhos (...) enquanto não for objecto de autorização ou verificação, v. g., pelo engenheiro «director de obra» da boa execução técnica de cada uma das fases de construção (...) cuja violação integrará o nexo de causalidade entre a acção e ou a omissão concretamente incumprida(s) e o perigo de verificação do(s) evento(s) que o «dono da obra» cuida de prevenir mediante a aprovação de tais regras[10]

Por último, constitui ainda elemento do tipo objectivo de ilícito do crime de infracção de regras de construção a verificação do necessário nexo de causalidade entre a conduta que consubstancia uma infracção às regras que devem ser observadas e a criação do perigo a que se aludiu.

Relativamente ao tipo subjectivo de ilícito do crime imputado aos arguidos no âmbito dos presentes autos, é conhecida a estrutura tripartida que caracteriza a generalidade dos crimes de perigo comum que se encontram previstos no Código Penal.

De facto, como esclarece Paula Ribeiro de Faria[11], “o tipo legal do art. 277º segue a estrutura comum aos crimes de perigo comum. Assim, o n.º 1 configura-se como um crime doloso, quer em relação à conduta, quer quanto ao perigo. No caso do n.º 2 temos uma combinação dolo-negligência (quanto à conduta e quanto ao perigo, respectivamente). No caso do n.º 3 a conduta é negligente e a criação de perigo também o é (negligência­-negligência). Uma vez que estamos perante um crime de perigo comum concreto, o perigo não só é um verdadeiro elemento típico que terá que existir objectivamente, como tem que ser abrangido pelo dolo do agente ou não ter sido tomado em conta por este último (negligência).”.

Ainda assim, decorre do que já foi mencionado que os arguidos foram pronunciados pela prática de um crime de infracção de regras de construção, p. e p. pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, agravado nos termos previstos no artigo 285º do mesmo diploma legal.

Nestes termos, impõe-se atender ao disposto no citado artigo 285º do Código Penal, do qual resulta que “se dos crimes previstos nos artigos 272º a 274º, 277º, 280º, ou 282º a 284º resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.

De facto, o crime de infracção de regras de construção pelo qual os arguidos foram pronunciados constitui, precisamente, um dos crimes a que alude a disposição legal agora transcrita.

Em todo o caso, conforme esclarecem M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio[12], “o crime base (um dos mencionados na norma) tanto pode ser doloso como negligente, devendo o resultado agravante verificar-se em relação com a pessoa colocada em perigo num primeiro arco de tempo pela conduta do agente. Imprescindível, por isso, a demonstração da relação causal entre a conduta e o resultado, que ou será a morte ou a ofensa corporal de gravidade.”.

Quer isto dizer que a agravação do crime fundamental imputado aos arguidos exige ainda o preenchimento de três pressupostos consistentes, por um lado, na verificação do resultado morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa e, por outro lado, na existência de um nexo de causalidade entre a conduta e o perigo pela mesma provocado e o dano, isto é, "o perigo concreto criado pela conduta tem de concretizar-se numa pessoa que se encontra dentro do círculo de pessoas que foram expostas ao concreto perigo criado pelo agente.[13].

Em terceiro lugar, e em face do disposto no artigo 18º do Código Penal, o resultado morte ou ofensa à integridade física grave de terceiro terá que ser imputável ao agente a título de negligência.

Com efeito, dispõe o preceito legal citado que “quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação é sempre condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência”.

Conforme resulta do disposto no artigo 15º do Código Penal, “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”

Com base no disposto nas alíneas a) e b) deste preceito, “costumam os Autores distinguir entre culpa consciente ( em que o agente sente a possibilidade - prevê - da ocorrência da morte da vítima, ou o perigo de ela ocorrer, acreditando, contudo, que a sua perícia a evitará. Isto é: a morte é prevista, mas levianamente espera-se que não venha a ter lugar); e culpa inconsciente (em que o agente não prevê essa consequência como resultado da sua conduta. Ou seja: a morte não é prevista, mas meramente previsível[14].

Importa ainda atender, no caso em apreço, ao disposto no artigo 26º do Código Penal, nos termos do qual "é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros (...)”.

Deste modo, resulta do preceito transcrito que, para poder responsabilizar mais do que um agente, a título de co-autoria, é necessário que se mostrem preenchidos os dois requisitos mencionados no mesmo preceito.

Com efeito, terá que existir acordo entre os vários intervenientes na prática do facto tipificado como crime, quer se trate de um acordo expresso ou tácito, quer de uma mera consciência de colaboração de carácter bilateral, e, para além disso, uma participação directa na execução do facto, juntamente com os restantes agentes do crime, consistindo a mesma na contribuição objectiva de cada um dos agentes para a realização do facto, deste modo se repartindo entre todos o domínio do facto[15].

Quer isto dizer, como salientam Leal-Henriques e Simas Santos[16]:, que “a co­autoria exige (…) a verificação do elemento subjectivo (uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado criminoso) e do elemento objectivo (uma execução igualmente conjunta, não sendo, porém, indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos a praticar). Pode dizer-se, com o STJ (...) que a essência da co-autoria consiste em que cada comparticipante quer causar o resultado como próprio, mas com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas.”.

Por último, verificando-se que um dos arguidos pronunciados pela prática do crime de infracção de regras de construção agravado pelo resultado, p. e p. pelos artigos 277º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 285º, ambos do Código Penal, é uma sociedade comercial, é relevante considerar as circunstâncias em que as pessoas colectivas poderão ser criminalmente responsabilizadas pela prática de factos executados pelos seus representantes.

De facto, resulta do disposto no artigo 11 º, n.º 1, do Código Penal, que, “salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal”.

De todo o modo, o n. º 2, do citado artigo 11 º, do Código Penal, estatui que “as pessoas colectivas e entidades equiparadas, com excepção do Estado, de pessoas colectivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 152º-A e 152º-B, nos artigos 159º e 160º, nos artigos 163º a 166º sendo a vítima menor, e nos artigos 168º, 169º, 171 º a 176º, 217º a 222º, 240º, 256º, 258º, 262º a 283º, 285º, 299º, 335º, 348º, 353º, 363º, 367°, 368º-A e 372º a 376º, quando cometidos: a) em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem”.

Conforme esclarece Paulo Pinto de Albuquerque[17], “o critério de imputação da responsabilidade criminal às pessoas colectivas e equiparadas é duplo: ou reside no cometimento da infracção criminal em nome e no interesse da pessoa colectiva por uma pessoa singular colocada em posição de liderança na pessoa colectiva ou equiparada, sendo esta posição de liderança baseada na sua pertença a um órgão da pessoa colectiva competente para fiscalizar aquelas decisões ou ainda na atribuição de poderes de representação pela pessoa colectiva àquela pessoa singular; ou reside no cometimento da infracção criminal em nome e no interesse da pessoa colectiva por qualquer pessoa singular que ocupe uma posição subordinada na pessoa colectiva ou equiparada e o cometimento do crime se tenha tomado possível em virtude de uma violação pelas pessoas que ocupam uma posição de liderança dos seus deveres de controlo e supervisão sobre os respectivos subordinados (nestes precisos termos, acórdão do STJ, de 26.1.2011, processo 357/03.lGBMCN.Pl.Sl).”.

Em todo o caso, conforme esclarece o n.º 4, do artigo 11 º, do Código Penal, “entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade”.

Ainda assim, nos termos previstos no artigo 11º, n.º 7, do Código Penal, “a responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes”.

Contudo, “não há crime nem responsabilidade penal sem culpa como nenhuma pessoa pode ser responsável pela culpa de outra. Assim sendo, a responsabilidade das sociedades há-de sê-lo por facto e culpa própria e não por facto e culpa de outra pessoa. Para responsabilizar criminalmente a sociedade é, pois, necessário que possa atribuir-se-lhe a culpa pelo facto típico penal que objectivamente lhe é atribuído. É necessário reter a ideia de que a sociedade possui uma vontade própria e que a sua responsabilidade penal necessita da verificação da sua própria culpa, não bastando a culpa de terceiro, como sucede na responsabilidade civil extracontratual, nos termos do disposto nos arts. 500º e 998º do Código Civil.[18]"18

Encontrando-se indicados todos os elementos que integram os tipos objectivo e subjectivo de ilícito do crime de infracção de regras de construção agravado pelo resultado, p. e p. pelos artigos 277°, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 285º, ambos do Código Penal, cumpre agora aferir se os factos considerados provados nos presentes autos integram o preenchimento de todos esses elementos.

Conforme resulta da fundamentação de facto que antecede, a arguida (…) é uma sociedade comercial cujo objecto social consiste em actividades de fornecimento e montagem de instalações eléctricas e mecânicas, infra-estruturas diversas, indústria de engenharia eléctrica, metalomecânica, galvanização e representações, fabrico, construção e instalação de equipamentos industriais hidromecânicos, assim como actividades relacionadas com a respectiva concepção, gestão e exploração.

Efectivamente, a sociedade arguida desenvolve actividades de projecto, fornecimento, construção e manutenção de equipamentos e infra-estruturas hidromecânicas e hidroeléctricas.18 Cfr. Germano Marques da Silva, in Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, Editorial Verbo, 2009, pág. 258.

Mais se demonstrou que a sociedade arguida exerce essa actividade há mais de sessenta anos, conta com cerca de 500 trabalhadores e é uma empresa nacional de topo nos sectores de infra-estruturas de energia e águas.

Acresce ainda que, no exercício da sua actividade, a sociedade arguida executou a obra de substituição das condutas forçadas da Central Hidroeléctrica de (...) , situada na (...) , concelho da (...) .

Já o arguido (…), trabalhador da sociedade arguida, foi o gestor responsável pela qualidade, ambiente e segurança da referida obra, tendo elaborado o respectivo Plano de Segurança e Saúde.

Por seu turno, a arguida (…) era responsável pelos serviços de segurança da sociedade arguida, tendo validado internamente o Plano de Segurança e Saúde a que se aludiu.

No entanto, a Coordenadora de Segurança em Obra era a (…), representada pela Senhora Engenheira (…).

A factualidade considerada provada nos presentes autos revela ainda que o Senhor Engenheiro (…) ocupava o cargo de Director de Obra, enquanto o Senhor (…) ocupava o cargo de Encarregado Geral da obra.

O arguido (…), também ele trabalhador da sociedade arguida, desempenhava as funções de chefe de equipa, sendo o responsável pela realização de reuniões diárias com os trabalhadores.

Ora, o Plano de Segurança e Saúde elaborado pelo arguido (…) foi validado pela Coordenadora da Segurança em obra, Engenheira (…), e aprovado pelo dono da obra, (…).

Por outro lado, resultou demonstrado nos presentes autos que, nos dias 7 de Junho de 2013 e 29 de Julho de 2013, a sociedade arguida, na qualidade de responsável pela execução dos trabalhos, solicitou ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas a emissão de um parecer.

Tal parecer veio a ser emitido pelo ICNF a 28 de Agosto de 2013, tendo o mesmo sido favorável à realização da obra que se encontrava a cargo da sociedade arguida, mas condicionado à observação dos requisitos atrás indicados.

Resulta ainda da fundamentação de facto que antecede que, ainda antes do início da execução da obra, a sociedade arguida efectuou acções de sensibilização e formação junto dos trabalhadores contratados para o efeito, com o objectivo de os alertar para os riscos existentes, para as medidas preventivas a adoptar e para a metodologia do trabalho a realizar.

Efectivamente, a sequência dos trabalhos a realizar, o modo de execução dos mesmos, os riscos que lhes estavam associados e as medidas preventivas a adoptar foram comunicados pelo arguido (…) aos trabalhadores em datas anteriores àquela em que ocorreu o acidente a que se reportam os presentes autos.

Um dos trabalhos a executar na obra consistia na aplicação de parafusos de aperto dos flanges dos troços das condutas, enquadrando-se essa operação na categoria de montagem e desmontagem de condutas.

A este propósito, cumpre salientar que o Plano de Segurança e Saúde elaborado pelo arguido (…) contém uma listagem de trabalhos com casos especiais inerentes à empreitada, na qual se alude, relativamente à execução da acção consistente na montagem e desmontagem de condutas, entre outros, ao risco potencial de quedas ao mesmo nível, ao qual é atribuído um nível de risco alto, ao risco potencial de choque na movimentação de cargas e ao risco potencial de agressões mecânicas, ao qual é também atribuído um nível de risco alto.

Já ao nível dos procedimentos destinados a atenuar os riscos mencionados, o Plano de Segurança e Saúde remete para as Fichas de Segurança e Saúde 0.1 e 0.2.

Ora, conforme resulta da fundamentação de facto que antecede, a Ficha de Segurança e Saúde 0.2, referente à movimentação de cargas pesadas, indica, a título de medida de prevenção a implementar, entre outras, a seguinte: “devem ser feitas verificações, nomeadamente: do terreno e da estabilização do equipamento de elevação; da ausência de linhas eléctricas na proximidade; do peso das cargas; do estado de conservação dos cabos, lingas e estropos e da fixação do equipamento de elevação; do ângulo dos estropos ou das lingas, para confirmar que não é excedida a sua Carga Máxima de Utilização”.

Mais se demonstrou que o mesmo Plano de Segurança e Saúde indica ainda que “os condicionalismos locais identificados são os seguintes: condições topográficas do local e as condições geológicas e geotécnicas das suas vertentes; condições da envolvente do Estaleiro de Apoio; localização relativamente distante em relação às principais vias de acesso”.

De todo o modo, o plano de trabalhos referente à tarefa relativa à colocação de parafusos de aperto pressupunha a descarga de várias caixas de cartão com porcas e anilhas, cada uma das quais tinha, pelo menos, 15 Kg, e aproximadamente cem parafusos com 5 Kg cada um, os quais se encontravam acondicionados nas mesmas caixas de cartão.

A fundamentação de facto que antecede revela ainda que se encontrava no local uma equipa de quatro trabalhadores e um manobrador de máquina, os quais procediam, conjuntamente, à descarga da parafusaria que estava a ser transportada ao longo do traçado da conduta no balde de uma máquina escavadora rotativa de rastos, no percurso descendente.

Com efeito, a execução das operações consistia na descarga dos materiais transportados no balde da máquina escavadora e no manuseamento desta mercadoria pelos trabalhadores que se colocaram em linha para minimizar o esforço e a distância despendidos nessa movimentação de carga.

Efectivamente, no dia 4 de Dezembro de 2013, pelas 15h30, no local de descarga dos materiais, ao longo do traçado da conduta, a testemunha H (...) , que manobrava a máquina escavadora rotativa de rastos, parou a mesma e imobilizou o respectivo balde no solo para que os trabalhadores (…), (…), (…) e (…) descarregassem as caixas que continham as porcas, anilhas e parafusos referidos.

Acontece, porém, que, durante esse processo, realizado na encosta do Vale (...) , que tem uma inclinação acentuada, a certa altura a máquina escavadora resvalou no sentido descendente, fazendo mover o balde carregado de mercadoria.

De seguida, o balde embateu no corpo do ofendido (…) que era o trabalhador que se encontrava mais próximo do balde.

Mais se demonstrou que este embate projectou o ofendido, levando-o a embater contra o maciço de suporte n.º 63.

Em consequência do embate e da imediata projecção, o ofendido (…) sofreu lesões traumáticas meningo-encefálicas, torácicas e abdominais que lhe causaram directamente a morte, a qual se verificou logo no local onde ocorreram os factos.

A factualidade considerada provada revela ainda que, mediante escrito datado de 31 de Janeiro de 2012, intitulado Contrato de Utilização de Trabalho Temporário (a termo resolutivo incerto), a sociedade comercial denominada (…) cedeu à arguida (…) um conjunto de trabalhadores entre os quais se encontrava o ofendido (…), com a categoria profissional de soldador.

Inclusivamente, a cláusula 9ª do referido contrato estipula que “a Empresa de Trabalho Temporário deverá apresentar cópia da Apólice de Seguro de Acidentes de Trabalho e é responsável pelos acidentes de trabalho que ocorram com os trabalhadores que lhe estejam vinculados”.

Aliás, a sociedade comercial denominada (…) celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a (…), o qual se encontra titulado pela apólice n.º (...) .

Conforme resultou demonstrado no âmbito dos presentes autos, consta da referida apólice que a mesma “cobre o risco de trabalho temporário da actividade de fabricação de serralharia civil, tornear, ferraria e afins”.

Para além disso, verifica-se ainda que o local onde decorreu a obra está situado em pleno Parque Natural da (...) e que o solo é composto de pedras e areias soltas, sendo certo que a máquina escavadora utilizada para a execução da tarefa a que se aludiu estava em perfeitas condições de utilização.

Por outro lado, a fundamentação de facto que antecede revela ainda que, no dia 5 de Fevereiro de 2014, a sociedade arguida apresentou um plano de acções com medidas de segurança adicionais para reforço das condições de segurança na execução dos trabalhos de aplicação de parafusos de aperto dos flanges dos troços da conduta, os quais se encontravam suspensos desde a data em que ocorreu o acidente.

Com efeito, nesse plano de acção a sociedade arguida fez constar operações de: remoção de pedras soltas de maior dimensão que se encontrassem no solo onde se movimentavam as máquinas e os trabalhadores; consolidação e compactação do terreno com recurso a meios humanos e mecânicos; verificação e avaliação do percurso, de forma a garantir as condições de acesso pedonal e de máquinas; garantir a manutenção da instalação de linhas de apoio para auxílio dos trabalhadores nas deslocações ao longo da conduta; acondicionamento de parafusos, porcas e anilhas para aperto dos flanges em caixas de madeira e descarregamento directo no solo; reforço de acompanhamento da estrutura de segurança à obra através de visitas bissemanais de técnico de higiene e segurança no trabalho; acompanhamento permanente, por parte deste técnico, durante a execução do transporte de parafusos, porcas e anilhas; reforço de sinalização de segurança com colocação de sinalética de segurança de «perigo de queda» e «máquinas em movimento»; uso obrigatório de francalete após acção de sensibilização para comunicar os riscos e perigos em causa; reforço do controlo do estado do piso do calçado de protecção mecânica em cada colaborador e substituição quando o estado do seu piso não se encontre capaz; construção de novos acessos tanto pedonais como para máquinas às frentes de trabalho, para permitir menores percurso da máquina.

Decorre também da factualidade considerada provada no âmbito dos presentes autos que, mediante decisão proferida a 6 de Julho de 2015 pela Autoridade para as Condições do Trabalho, a sociedade arguida foi condenada, como reincidente, pela prática de uma contra-ordenação muito grave, agravada, na forma negligente, prevista no artigo 25º, n.º 3, alínea e), do Decreto-Lei n.º 273/2003, em violação do artigo 19º, n.º 2, alínea e), da Lei n.º 27/2010, tendo-lhe sido aplicada a coima de € 24.440,00.

De todo o modo, a sociedade arguida não impugnou a decisão proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho.

Para além disso, constata-se que, por causa das características do terreno onde foi executada a obra, a arguida (…) decidiu utilizar uma máquina de grandes dimensões, com rastos cuja superfície de contacto com o solo é maior e com uma capacidade de carga superior à necessária para a operação de carga e descarga que iria ser realizada, afastando a utilização de uma máquina com rodas e, consequentemente, com um centro de gravidade mais alto.

Já o condutor da máquina, que trabalhava por conta da proprietária da mesma, encontrava-se certificado com o título de condutor manobrador, tinha experiência naquele tipo de operações e estava familiarizado com o terreno e com a máquina em causa.

Aliás, o acidente ocorreu praticamente no último terço de terreno onde a conduta estava a ser instalada e na parte superior do mesmo.

De facto, decorre da factualidade considerada provada no âmbito dos presentes autos que, à data do acidente, já tinham sido executadas operações de carga e descarga como as que estavam a ser levadas a cabo quando ocorreu o acidente ao longo de quase dois terços da linha diagonal da montanha.

Para além do mais, os trabalhadores que se encontravam na obra sabiam quais eram as posições que deviam ocupar e tinham instruções expressas no sentido de se aproximarem da máquina apenas quando esta se encontrasse devidamente estacionada e estabilizada, tal como aconteceu.

A máquina utilizada tem uma capacidade de carga na ordem dos milhares de toneladas e, portanto, superior à da carga que nela foi transportada e pertence à sociedade comercial denominada (…), subcontratada pela sociedade arguida para proceder à realização de trabalhos de terraplanagem e de demolição e reconstrução de maciços, bem como para ceder a utilização da referida máquina.

Por fim, resultou provado nos presentes autos que, no local onde decorreu a obra, foi efectuada a terraplanagem necessária para estacionar a máquina e para a fazer contactar com o solo na base de horizontalidade possível, tendo sido desviadas as pedras de menor dimensão e sendo certo que a máquina resvalou, no máximo, 50 cm.

Em face da factualidade considerada provada, afigura-se inequívoco que, de facto, no local atrás identificado foi executada pela sociedade arguida uma obra de construção, consistente na substituição das condutas forçadas da Central de (...) .

Por outro lado, dúvidas não restam de que a morte do ofendido (…) ocorreu durante a execução dos trabalhos que se traduziam no transporte dos materiais a aplicar pelos trabalhadores nas referidas condutas.

No entanto, conforme resulta do que foi já mencionado em sede de fundamentação de facto, ficou por demonstrar que ao nível do planeamento, ao nível da direcção ou ao nível da execução da referida obra de construção tenham sido infringidas regras legais, regulamentares ou técnicas que devessem ter sido observadas.

De facto, a este propósito não poderá deixar de se atender aos factos que se encontram delimitados pela decisão instrutória por referência ao despacho de acusação deduzido pelo Ministério Público.

Efectivamente, a primeira regra legal que, segundo a acusação, teria sido infringida pelos arguidos é o artigo 20º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro.

Como é sabido, o citado artigo 20º do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, estatui que “a entidade executante deve: a) avaliar os riscos associados à execução da obra e definir as medidas de prevenção adequadas e, se o plano de segurança e saúde for obrigatório nos termos do n.º 4 do artigo 5°, propor ao dono da obra o desenvolvimento e as adaptações do mesmo; b) dar a conhecer o plano de segurança e saúde para a execução da obra e as suas alterações aos subempreiteiros e trabalhadores independentes, ou pelo menos a parte que os mesmos necessitam de conhecer por razões de prevenção; e) elaborar fichas de procedimentos de segurança para os trabalhos que impliquem riscos especiais e assegurar que os subempreiteiros e trabalhadores independentes e os representantes dos trabalhadores para a segurança, higiene e saúde no trabalho que trabalhem no estaleiro tenham conhecimento das mesmas; d) assegurar a aplicação do plano de segurança e saúde e das fichas de procedimentos de segurança por parte dos seus trabalhadores, de subempreiteiros e trabalhadores independentes; e) assegurar que os subempreiteiros cumpram, na qualidade de empregadores, as obrigações previstas no artigo 22º; f) assegurar que os trabalhadores independentes cumpram as obrigações previstas no artigo 23º; g) colaborar com o coordenador de segurança em obra, bem como cumprir e fazer respeitar por parte de subempreiteiros e trabalhadores independentes as directivas daquele; h) tomar as medidas necessárias a uma adequada organização e gestão do estaleiro, incluindo a organização do sistema de emergência; i) tomar as medidas necessárias para que o acesso ao estaleiro seja reservado a pessoas autorizadas; j) organizar um registo actualizado dos subempreiteiros e trabalhadores independentes por si contratados com actividade no estaleiro, nos termos do artigo seguinte; 1) fornecer ao dono da obra as informações necessárias à elaboração e actualização da comunicação prévia; m) fornecer ao autor do projecto, ao coordenador de segurança em projecto, ao coordenador de segurança em obra ou, na falta destes, ao dono da obra os elementos necessários à elaboração da compilação técnica da obra”.

Ora, em face dos factos que se encontram descritos na acusação, a alínea a) do preceito legal agora transcrito teria sido infringida em virtude de os arguidos não terem avaliado o risco de resvalamento da máquina utilizada no transporte dos materiais aplicados na obra e, consequentemente, não terem proibido a permanência e movimentação de trabalhadores junto da máquina após a imobilização e estabilização da mesma.

Em primeiro lugar, decorre da fundamentação de facto que antecede que o mencionado risco de resvalamento foi considerado na elaboração do Plano de Segurança e Saúde, na medida em que na Ficha de Segurança e Saúde 0.2 é salientada a necessidade de efectuar verificações do terreno e da estabilização do equipamento de elevação utilizado para a movimentação de cargas pesadas.

A previsão e implementação de tais medidas são adequadas para prevenir o risco de resvalamento a que atrás se aludiu.

Por outro lado, resulta também do que já foi mencionado que a proibição da permanência e movimentação de pessoas junto de máquinas escavadoras depois de as mesmas se encontrarem imobilizadas e de terem sido accionados os respectivos mecanismos de estabilização não constitui uma norma de segurança que se encontre prevista ao nível das instruções de funcionamento e utilização de máquinas dessa natureza.

De igual forma, como se refere em sede de fundamentação de facto, tal procedimento não corresponde também a qualquer regra técnica que, no domínio da construção civil, seja adoptada quando se recorre à utilização de máquinas escavadoras.

Consequentemente, ficou por demonstrar que a actuação dos arguidos tenha consubstanciado uma infracção ao disposto no artigo 15º da Lei n. º 102/2009, de 10 de Setembro.

Com efeito, resulta do preceituado no n.º 1, do citado artigo 15º, que “o empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspectos do seu trabalho”.

Já o n.º 2, do mesmo artigo 15º, da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, estatui que “o empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da actividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção: a) evitar os riscos; b) planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos factores ambientais; c) identificação dos riscos previsíveis em todas as actividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na concepção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na selecção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos; d) integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador no conjunto das actividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adoptar as medidas adequadas de protecção; e) combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de protecção; f) assegurar, nos locais de trabalho, que as exposições aos agentes químicos, físicos e biológicos e aos factores de risco psicossociais não constituem risco para a segurança e saúde do trabalhador; g) adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à concepção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista a, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais; h) adaptação ao estado de evolução da técnica, bem como a novas formas de organização do trabalho; i) substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso; j) priorização das medidas de protecção colectiva em relação às medidas de protecção individual; 1) elaboração e divulgação de instruções compreensíveis e adequadas à actividade desenvolvida pelo trabalhador”.

Mas, para além disso, a acusação, para a qual remete a decisão instrutória, aponta também à actuação dos arguidos a infracção de uma outra regra técnica, na medida em que os mesmos não teriam previsto, nem implementado quaisquer medidas de remoção das pedras soltas existentes no solo.

Contudo, esse facto ficou por demonstrar, antes resultando da fundamentação de facto que antecede que não só foram previstas acções de terraplanagem e nivelamento do terreno, como as mesmas foram, de facto, executadas, tendo sido movimentadas terras e pedras existentes no local, de forma a permitir uma maior estabilização do terreno.

 Quer isto dizer que, no caso em apreço, ficou por demonstrar que tenha sido praticada a conduta típica consistente em “infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação ou conservação”.

Por essa razão, não poderão os arguidos deixar de ser absolvidos da prática do crime de infracção de regras de construção agravado pelo resultado, p. e p. pelos artigos 277º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 285º, ambos do Código Penal, que lhes foi imputado.

 IV. Pedido de indemnização civil

Como decorre do que já foi dito, as assistentes (…) e (…) deduziram, nos presentes autos, um pedido de indemnização civil contra os quatro arguidos, tendo solicitado a condenação destes no pagamento da quantia global de€ 75.000,00, a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial pelos mesmos causados.

Nos termos do disposto no artigo 71º do CPP, “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.

Por seu turno, resulta do artigo 377º, n.º 1, do CPP, que “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no artigo 82º, n.º 3”.

Assim, importa começar por aferir se o pedido de indemnização civil formulado nos presentes autos se revela fundado, devendo ou não, em consequência, ser julgado procedente.

A este respeito, determina o artigo 129º do Código Penal que “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

Deste modo, tanto a apreciação dos pressupostos de que depende a responsabilidade civil extracontratual dos demandados pelos danos eventualmente causados, como a determinação dos danos indemnizáveis terá que ser efectuada à luz das disposições constantes do Código Civil.

Com efeito, dispõe o artigo 483º, n.º 1, do Código Civil, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[19], “a simples leitura do artigo 483º mostra que vários pressupostos condicionam, no caso da responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, cabendo a cada um desses pressupostos um papel especial na complexa disciplina das situações geradoras do dever de reparação do dano. É necessário, desde logo, que haja um facto voluntário do agente (não um mero facto natural causador de danos), pois só o homem, como destinatário dos comandos emanados da lei, é capaz de violar direitos alheios ou de agir contra disposições legais; em segundo lugar, é preciso que o facto do agente seja ilícito (...); em terceiro lugar, que haja um nexo de imputação do facto ao lesante (...); depois, que à violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano, pois sem dano não chega a pôr-se qualquer problema de responsabilidade civil (...); por último, que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação.”.

De todo o modo, no caso em apreço, tendo a demandada (…) invocado a excepção dilatória de ilegitimidade processual, importa começar por aferir se os demandados têm legitimidade para contradizer o pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes.

De facto, sustenta a demandada que a sociedade comercial denominada (…), na qualidade de entidade empregadora do ofendido (…), transferiu para a companhia de seguros então denominada (…) a responsabilidade civil emergente dos danos causados em consequência de acidentes de trabalho.

Por essa razão, conclui a demandada (…) que é parte ilegítima para contradizer o pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes, na medida em que apenas a referida companhia de seguros teria legitimidade para o efeito.

Antes de mais, refira-se que, como salienta Castro Mendes[20], “a legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo”.

De facto, nos termos previstos no artigo 30º, n.º 1, do CPC, “o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”.

Por seu turno, como esclarece o n.º 2 do citado preceito do CPC, “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha”.

Mas, para além disso, importa ainda salientar que, nos termos do disposto no artigo 30º, n.º 3, do CPC, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

É sabido que, através da introdução, no Código de Processo Civil, da norma agora citada pretendeu o legislador solucionar a clássica discussão doutrinária estabelecida em torno do critério que deveria presidir à determinação da legitimidade, optando, claramente, por consagrar a tese sufragada por Barbosa de Magalhães, em detrimento da posição defendida por Alberto do Reis.

Com efeito, é hoje inequívoco que para a aferição da legitimidade das partes é relevante atender à relação jurídica controvertida “com a configuração subjectiva que o autor (unilateralmente) lhe dá” e não à relação jurídica controvertida “tal como se apresenta ao tribunal, depois de ouvidas ambas as partes e de examinadas as razões de uma e outra[21]”.

Ora, no caso em apreço, tendo as demandantes civis peticionado a condenação dos demandados no pagamento de uma indemnização pelos danos causados em consequência da actuação dos próprios demandados, dúvidas não restam de que os mesmos têm legitimidade para contradizer o pedido formulado.

De todo o modo, existindo a possibilidade de a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos em causa ter sido transferida para uma companhia de seguros, poder­-se-ia questionar a existência de um litisconsórcio necessário entre esta e os demais responsáveis.

Efectivamente, resulta do disposto no artigo 33º, n.º 1, do CPC, que “se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade”.

Por outro lado, nos termos previstos no n.º 2, do mesmo artigo 33º, do CPC, é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal”.

Já o n.º 3 do citado artigo 33º, do CPC, esclarece que “a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.

De todo o modo, encontrando-se em causa, no caso em apreço, um acidente que consubstanciou, em simultâneo, um acidente de trabalho, impõe-se atender ao disposto no artigo 17º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, do qual resulta que “quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais”.

Acresce que, nos termos previstos no n.º 2 do citado artigo 17°, “se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido”.

Quer isto dizer que, em caso de condenação no pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes, não assiste aos demandados qualquer direito de regresso sobre a entidade empregadora do sinistrado, nem sobre a companhia de seguros pela mesma contratada.

Pelo contrário, conforme esclarece o citado artigo 17° da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, no seu n.º 4, “o empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente”.

Por último, não deixará de se acrescentar ainda que, em conformidade com o disposto no n.º 5, do mencionado artigo 17º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, “o empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo”.

Quer isto dizer que se encontra em causa uma situação de litisconsórcio voluntário e não necessário, já que a intervenção da entidade empregadora e da sua seguradora constituem um direito que lhes assiste e não qualquer imposição legal.

Aliás, ainda que fossem chamados à colação outros seguros que possam ter sido contratados por alguma das restantes sociedades comerciais que intervieram na execução da obra em apreço, a solução relativa à legitimidade processual das partes sempre seria a mesma.

De facto, é sabido que, “no seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros” (cfr. artigo 137º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que estabelece o regime jurídico do contrato de seguro).

Ainda assim, também o artigo 140º, n.º 1, do diploma legal agora mencionado, estatui que “o segurador de responsabilidade civil pode intervir em qualquer processo judicial ou administrativo em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco ele tenha assumido, suportando os custos daí decorrentes”.

Nos termos previstos no n.º 2 do citado preceito legal, “o contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado”.

Para além disso, conforme esclarece o n.º 3, do mesmo preceito, “o direito de o lesado demandar directamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador”.

Mais uma vez, a formulação legal em causa remete para uma situação de litisconsórcio voluntário, e não para qualquer litisconsórcio necessário cuja preterição pudesse fundamentar a ilegitimidade das partes demandadas.

Aliás, mesmo no que respeita aos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, o artigo 146º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, dispõe que “o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador", o que, mais uma vez, afasta qualquer imposição no sentido de o lesado demandar o segurador e não o próprio causador do dano22.

Deste modo, verificando-se que os demandados têm interesse em contradizer o pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes civis, não poderá deixar de ser julgada improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual invocada pela demandada (…).

Sendo assim, em face do que atrás foi já mencionado, importa agora aferir se se encontram preenchidos, no caso em apreço, os pressupostos que fundamentam a responsabilização dos demandados pela reparação dos danos invocados.

A este propósito resultou provado, no âmbito dos presentes autos, que as demandantes (…) e (…) são filhas do ofendido (…), o qual faleceu no estado de divorciado.

Mais se demonstrou que, mesmo após o divórcio dos seus pais, as demandantes civis sempre viveram e conviveram numa relação de grande proximidade e ligação afectiva com o seu pai.

Acresce ainda que, poucos meses após o divórcio dos seus pais, a demandante (…) passou a residir com o pai.

De facto, até ao seu casamento e durante cerca de sete anos, a demandante (…) viveu com o seu pai.

Já a demandante (…), embora tenha ficado a viver com a sua mãe, costumava passar os fins-de-semana, feriados, dias festivos e férias escolares com o seu pai.

Na verdade, após o divórcio, o ofendido (…) sempre fez questão de se manter próximo das suas filhas e de acompanhar o crescimento e a vida das mesmas.

Por outro lado, decorre da fundamentação de facto que antecede que o ofendido (…) e as suas filhas contavam com o apoio, consolo, atenção e carinho uns dos outros.

Acresce que o ofendido (…) falava regularmente, por telefone, com as suas filhas e era uma pessoa muito querida e bem considerada pela generalidade das pessoas que o conheciam.

Consta ainda da factualidade considerada provada no âmbito dos presentes autos que o ofendido (…) tinha 62 anos de idade e era uma pessoa saudável que providenciava pelo seu próprio sustento com recurso aos rendimentos auferidos em consequência da actividade profissional diariamente desempenhada na área da construção civil.

Por último, resultou demonstrado que o ofendido (…) sofreu antes de ter falecido e teve consciência de que iria morrer longe de casa e dos seus familiares mais próximos, sendo certo que a sua morte e as circunstâncias em que a mesma ocorreu causaram grande sofrimento, tristeza, desgosto e angústia às suas filhas.

Deste modo, é patente que, em consequência do acidente a que se reportam os presentes autos, foram causados os danos de natureza não patrimonial a que se aludiu.

Contudo, a factualidade considerada provada, conforme resulta do que foi já mencionado, não revela que tais danos tenham sido provocados em consequência da prática de qualquer facto ilícito e culposo executado por algum dos arguidos.

Quer isto dizer que ficaram por demonstrar os pressupostos de que dependeria a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito a que se reporta o artigo 483º, n.º 1, do Código Civil, e que constitui o fundamento do pedido formulado pelas demandantes civis.

De todo o modo, admitindo o Código Civil, em matéria de acidentes causados por veículos, a constituição, excepcional, da obrigação de indemnizar independentemente de culpa (cfr. artigo 483º, n.º 2, do Código Civil), importa ainda aferir se se encontra demonstrado o preenchimento dos pressupostos mencionados no artigo 503º, n.º 1, do Código Civil.

De facto, nos termos deste preceito legal, “aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.

É certo que, como já foi referido, o acidente que vitimou o ofendido (…) ocorreu numa altura em que o mesmo, no exercício da sua actividade profissional, desenvolvia a tarefa consistente no transporte de materiais que iriam ser aplicados na obra de substituição das condutas forçadas da Central de (...) .

Contudo, ainda antes de se aferir se tal actividade poderia consubstanciar uma actividade perigosa, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 493º, n.º 2, do Código Civil, impõe-se averiguar se o acidente que vitimou o ofendido se encontra abrangido pela previsão do citado artigo 503º, n.º 1, do Código Civil, já que, nos termos do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 21/11/1979, disponível in www.dgsi.pt, “o disposto no artigo 493º, n.º 2, do Código Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre”.

De facto, refere-se na fundamentação do citado Assento que “a responsabilidade civil por danos causados por qualquer veículo de circulação terrestre se encontra sujeita, quer ao regime geral da responsabilidade por factos ilícitos prevista nos artigos 483º, n.º 1, e 487º, n.º 1, do Código Civil, quer ao regime excepcional de responsabilidade pelo risco a que se refere o seu artigo 503º, conforme se prove ou não uma actuação dolosa ou simplesmente culposa do responsável e somente a esses. O da presunção de culpa do n.º 2 do artigo 493º respeita aos casos de danos causados no exercício de outras actividades perigosas que não têm para a sua disciplina, como a da viação acelerada, o regime bem mais gravoso da responsabilidade objectiva ou independente da culpa. Pelo que há, em tais condições, como se acentuou no acórdão de 17 de Outubro de 1978 (Boletim, n.º 280, página 266), regimes jurídicos distintos para cada uma das referidas actividades perigosas: para as de carácter geral, o do artigo 493º, n.º 2, ou seja o da responsabilidade com base na culpa, mas com inversão do ónus da prova; e para a decorrente da condução de veículos terrestres, o dos artigos 483º, n.º 1, e 487°, n.º 1, quando se prove a culpa, ou o do artigo 503º quando ela se não prove e se não verifique qualquer dos casos de exclusão mencionados no artigo 505º”.

No caso em apreço, verifica-se que na origem do acidente esteve o resvalamento de uma máquina escavadora de rastos que, nesse momento, estava a ser utilizada na obra para assegurar o transporte dos materiais que o ofendido e os demais trabalhadores iriam aplicar nas condutas forçadas a cuja substituição se procedia.

De acordo com a definição constante do artigo 109º, n.º 2, do Código da Estrada, “máquina industrial é o veículo com motor de propulsão, de dois ou mais eixos, destinado à execução de obras ou trabalhos industriais e que só eventualmente transita na via pública, sendo pesado ou ligeiro consoante o seu peso bruto exceda ou não 3500 kg”.

Deste modo, dúvidas não restam de que a máquina escavadora a que se reportam os presentes autos é um veículo e, para além disso, consubstancia um veículo de circulação terrestre.

Por outro lado, é patente que a circunstância de o acidente ter ocorrido numa altura em que a referida máquina escavadora se encontrava a laborar junto das condutas forçadas que estavam a ser substituídas, e não numa faixa de trânsito onde circulassem outros veículos, não afasta a aplicação do artigo 503º, n.º 1, do Código Civil, atrás transcrito.

Com efeito, a este propósito sustentou já o Supremo Tribunal de Justiça[22]23 que “um tractor é um veículo de circulação terrestre e, embora operando em local não aberto à circulação, não deve ser excluído o risco próprio que potencia como unidade circulante, não sendo de afastar o regime jurídico constante do art. 503º, n.º 1, do Código Civil. Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 13.3.2008, in CJ/STJ, Ano XVI, Tomo I, 2008, págs. 175 a 177 - "E se a um acidente como o dos autos não são aplicáveis as regras estradais, nem por isso fica descoberto de protecção legal, aplicando-se, nessas situações, as normas que regem a responsabilidade civil extracontratual em geral e as que especialmente dispõem sobre tais acidentes, como é o caso dos arts. 503º e segs. do Código Civil.”. 23

Por outro lado, importa ainda verificar se, em face das concretas circunstâncias em que ocorreu o acidente que vitimou o ofendido (…), é possível concluir que os danos causados provieram dos riscos próprios do veículo atrás identificado.

Antes de mais, é relevante salientar que o próprio legislador esclareceu que o facto de o veículo não se encontrar em circulação não exclui a responsabilidade objectiva a que se reporta o n.º 1, do artigo 503º, do Código Civil.

Assim, também no caso em apreço se impõe concluir que a circunstância de o acidente ter ocorrido numa altura em que a máquina escavadora se encontrava imobilizada e devidamente estabilizada não obsta a que os danos causados sejam reparados nos termos previstos no citado preceito legal.

Na verdade, conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela[23], “a responsabilidade objectiva cobre os «danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação». Dentro desta fórmula legal cabem não só os danos provenientes dos acidentes provocados pelo veículo em circulação (atropelamento de pessoas, colisão com outro veículo, destruição ou danificação de coisas), como pelo veículo estacionado (choque ou colisão provocada por veículo parado fora de mão ou estacionado em lugar indevido, ou parado na sua mão mas sem estar devidamente sinalizado; acidente causado pela porta do veículo que ficou indevidamente aberta; explosão do depósito da gasolina; atropelamento ou colisão provocada por um veículo que inesperadamente se destravou, etc.), sendo irrelevante, por outro lado, que o acidente ocorra nas vias públicas ou fora delas (...). (...). Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo - os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais, isto é, os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel: é o caso, por exemplo, de alguém tropeçar no veículo recolhido na garagem e se ferir nele, como poderia ter-se ferido em qualquer outro objecto aí arrumado, ou de alguém ter entalado a mão própria ou de outrem ao fechar a porta do automóvel, ou de o condutor ter agredido outrem com um acessório do veículo, como poderia tê-lo feito com qualquer outro instrumento contundente.”.

Verifica-se, no caso em apreço, que o acidente que vitimou o ofendido (…) ocorreu em consequência do resvalamento da máquina escavadora que estava a ser utilizada no transporte de materiais, a qual embateu no corpo do ofendido, projectando-o contra um maciço de betão.

Quer isto dizer que os danos provocados em consequência do mencionado acidente resultaram dos riscos próprios do veículo em causa.

De facto, não poderá deixar de se considerar um risco com essas características aquele que se traduz no resvalamento de um qualquer veículo de circulação terrestre, independentemente de tal resvalamento poder ter ficado a dever-se às deficientes condições do solo, a um deficiente accionamento dos mecanismos de estabilização do próprio veículo ou a qualquer outra razão relacionada com os aspectos mecânicos inerentes ao funcionamento do veículo.

É certo que o veículo em causa consubstancia, como já foi referido, uma máquina industrial especialmente concebida para a execução de trabalhos de construção civil relacionados com a movimentação de terras e de outros materiais.

Ainda assim, não deixará de se notar que, no caso concreto, o risco que acabou por se concretizar no momento em que ocorreu o acidente não corresponde ao específico risco da actividade que estava a ser desenvolvida com recurso à utilização da máquina escavadora, como poderia ter sucedido se o acidente se tivesse traduzido, por exemplo, na queda de algum trabalhador atingido pelos materiais transportados.

Quer isto dizer que, no caso em apreço, estão preenchidos todos os pressupostos de que depende a responsabilidade objectiva a que alude o artigo 503º, n.º 1, do Código Civil.

Sendo assim, cumpre agora determinar quem deverá ser responsabilizado, nos termos previstos no preceito legal citado, pelos danos que, no caso concreto, resultaram dos riscos próprios do veículo a que se tem vindo a aludir.

A este propósito esclarece o n.º 1, do citado artigo 503º, do Código Civil, que é responsável “aquele que tiver a direcção efectiva” do veículo “e o utilizar no seu próprio interesse”.

No que diz respeito ao primeiro dos requisitos mencionados, esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela[24]que “tem correntemente a direcção efectiva do veículo o proprietário, o usufrutuário, o adquirente com reserva de propriedade, o comodatário, o locatário, o que o furtou, o condutor abusivo e, de um modo geral, qualquer possuidor em nome próprio (...). Embora a responsabilidade recaia, assim, normalmente sobre o proprietário, este não é responsável, se, pelo acto de aquisição da propriedade, não tomou a direcção efectiva do veículo ou se perdeu, por qualquer circunstância, essa direcção, como no caso de furto ou de entrega ao promitente-comprador, ao locatário ou, em certas circunstâncias, ao comodatário (...).”.

Conforme resulta da factualidade considerada provada no âmbito dos presentes autos, a sociedade arguida executava a obra de substituição das condutas forçadas da Central de (...) na qualidade de empreiteira contratada pelo dono da obra.

Por seu turno, a própria sociedade arguida subcontratou a sociedade comercial denominada (…) para proceder à realização das obras de construção civil referentes à demolição dos maciços e subsequente reconstrução dos mesmos e à execução de trabalhos de terraplanagem, incluindo o acordo firmado pelas partes a disponibilização da utilização da máquina escavadora em causa.

Acresce que a fundamentação de facto que antecede revela ainda que a referida máquina escavadora era conduzida, no momento em que ocorreu o acidente, por um trabalhador contratado pela sociedade comercial proprietária da mesma.

Deste modo, em face do que atrás foi mencionado, à partida seria a proprietária da máquina em causa a responsável pelo ressarcimento dos danos emergentes dos riscos que lhe são inerentes.

Contudo, não poderá deixar de se salientar que, conforme esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela[25], "a fórmula, aparentemente estranha, usada na lei - ter a direcção efectiva do veículo - destina-se a abranger todos aqueles casos em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva, por se tratar das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências para que o veículo funcione sem causar dano a terceiros. A direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo e constitui o elemento comum a todas as situações referidas, sendo a falta dele que explica, em alguns dos casos, a exclusão da responsabilidade do proprietário. Tem a direcção efectiva do veículo aquele que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento (...).”.

De facto, apesar de não ser a proprietária do veículo em causa, a sociedade comercial (…) usufruía as vantagens decorrentes da utilização do mesmo na obra que executava.

Para além do mais, é patente que a direcção da obra estava atribuída a um técnico da sociedade arguida, sendo esta que controlava e geria todos os actos de execução nela praticados.

Quer isto dizer que a direcção efectiva do veículo estava atribuída, se não exclusivamente, pelo menos em conjunto à sociedade arguida e à sociedade proprietária do mesmo.

“O segundo requisito - utilização no próprio interesse - visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem.[26]”.

De todo o modo, conforme esclarece Antunes Varela[27], “o interesse na utilização tanto pode ser um interesse material ou económico (se a utilização do veículo visa satisfazer uma necessidade susceptível de avaliação pecuniária), como um interesse moral ou espiritual ( como no caso de alguém emprestar o carro a outrem só para lhe ser agradável), nem sequer sendo caso de exigir aqui que se trate de um interesse digno de protecção legal.”.

Também no que respeita ao requisito agora mencionado se afigura que tanto a sociedade arguida, como a sociedade proprietária do veículo o utilizavam no seu próprio interesse.

Em primeiro lugar, o interesse da sociedade arguida corresponde ao interesse na conclusão dos trabalhos que, perante o dono da obra, se comprometeu a executar e que, portanto, consubstanciam o cumprimento do contrato de empreitada com o mesmo outorgado.

Por seu turno, o interesse da sociedade proprietária da máquina escavadora traduz-­se também no interesse económico inerente à disponibilização da mesma mediante a contrapartida acordada com a sociedade arguida.

Seguindo, mais uma vez, os ensinamentos de Antunes Varela[28], dir-se-á que “no caso de aluguer, sendo o veículo conduzido pelo locatário ou às suas ordens, o veículo é utilizado tanto no interesse do locatário, como no do locador, e qualquer deles se pode dizer que tem a direcção efectiva do veículo, devendo por isso aceitar-se que ambos respondem solidariamente pelo dano. Havendo comodato, a responsabilidade do comodante deve ainda manter-se, salvo se o empréstimo tiver sido feito em condições (maxime de tempo) de o comodatário tomar sobre si o encargo de cuidar da conservação e do bom funcionamento do veículo. De contrário, continuando este dever a cargo do dono ou utente do veículo, como sucede quando o empréstimo se destina a uma viagem isolada ou a um passeio de curta duração, a responsabilidade objectiva recai simultaneamente sobre comodante e comodatário. Não faria sentido que a responsabilidade objectiva, em grande parte assente sobre as deficiências de conservação ou funcionamento do veículo, se transferisse por inteiro do comodante para o comodatário.”.

Embora no caso em apreço a cedência da máquina à sociedade arguida tenha integrado o acordo firmado no âmbito do contrato de subempreitada pela mesma celebrado com a sociedade comercial denominada (…), afiguram-se aplicáveis os mesmos princípios.

Por essa razão, encontrando-se em causa a utilização da máquina escavadora a que se tem vindo a aludir na realização de trabalhos de enorme relevância no contexto da empreitada executada pela sociedade arguida, afigura-se inequívoco que sobre a mesma recai, em exclusivo ou, pelo menos, em conjunto com a proprietária do veículo, a responsabilidade objectiva fundada no risco próprio do veículo.

De facto, conforme salienta o Supremo Tribunal de Justiça[29]", “tem (...) a direcção efectiva aquele que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento. Por outras palavras, como refere ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 11.ª ed, p. 412, ao responsável nos referidos termos ajusta-se a designação abreviada de detentor. Em regra, o responsável é o dono do veículo, por ser a pessoa que aproveita das especiais vantagens da sua utilização. Há, porém, situações em que a responsabilidade objectiva do dono do veículo não se justifica, como, por exemplo, se houver um direito de usufruto sobre a viatura, ou se o dono o tiver alugado ou se lhe tiver sido furtado. Nestes casos, à luz dos princípios gerais do direito, o dono do veículo não deve arcar com os riscos próprios da sua utilização, recaindo então, e por isso mesmo, a responsabilidade sobre o detentor. Ou seja, "direcção efectiva do veículo" significa ter um poder de facto ou exercer controle sobre o veículo, independentemente da titularidade ou não de algum direito sobre o mesmo (MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra, p. 351).”.

Deste modo, dúvidas não restam de que a sociedade arguida é responsável pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente que se encontra em apreciação no âmbito dos presentes autos.

Note-se que a circunstância de se admitir a hipótese de tal responsabilidade poder ser solidária com uma outra entidade que não é parte na causa não obsta à apreciação do pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes civis.

Naturalmente, não tendo a sociedade comercial proprietária do veículo sido demandada nos presentes autos, não compete ao Tribunal apreciar se a mesma é ou não responsável pelo ressarcimento de tais danos.

Ainda assim, resulta do disposto no artigo 497º, n.º 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 499º do mesmo diploma, que "se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade".

Já o n.º 2, do citado artigo 497°, do Código Civil, estatui que “o direito de regresso entre os responsáveis existe na medida das respectivas culpas e das consequências que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis”.

Nestes termos, não poderá a sociedade demandada (…) deixar de ser condenada no pagamento de uma indemnização destinada a compensar os danos provocados em consequência do acidente a que se tem vindo a aludir.

Pelo contrário, os demandados (…), (…) e (…), que não tiveram qualquer intervenção ao nível da condução ou da direcção efectiva da máquina em causa, não são responsáveis pelo ressarcimento de quaisquer danos resultantes dos riscos inerentes à circulação da mesma.

Por essa razão, impõe-se a absolvição dos demandados (…), (…) e (…) do pedido de pagamento da quantia indicada pelas demandantes civis.

No que diz respeito aos danos que deverão ser indemnizados pela sociedade comercial denominada (…), verifica-se que as demandantes civis solicitaram uma indemnização por danos não patrimoniais consistentes, por um lado, na perda do direito à vida do ofendido (…) e no sofrimento pelo mesmo sentido nos momentos que antecederam a sua morte e, por outro lado, no sofrimento causado às próprias demandantes civis em consequência da morte do seu pai.

Assim, importa começar por referir que, nos termos do disposto no artigo 496º, n.º 1, do Código Civil, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

Acresce que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, “por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”.

Por outro lado, dispõe o n.º 4, do mencionado artigo 496º, do Código Civil, que “o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”.

Antes de mais, não deixará de se referir que, conforme resulta da fundamentação de facto que antecede, para além das demandantes civis, o ofendido A (...) tem uma outra filha que não formulou qualquer pedido de indemnização civil no âmbito dos presentes autos, o que poderia suscitar alguma dúvida relativamente à legitimidade processual das demandantes.

De facto, o artigo 496º, n.º 2, do Código Civil, atrás transcrito, atribui, em conjunto, ao grupo de familiares aí indicados o direito à indemnização, “por morte da vítima”, relativamente aos danos de natureza não patrimonial.

De todo o modo, a norma em causa limita-se a atribuir a titularidade do direito à indemnização aos familiares nela indicados, nada estatuindo acerca da legitimidade processual para a formulação do competente pedido de indemnização civil.

A este propósito afiguram-se esclarecedoras as palavras do Supremo Tribunal de Justiça[30] quando refere que, “nos termos do art. 496º, n.º 2, do CC, a indemnização pelo dano morte (a que pode ainda adicionar-se a indemnização pelos danos sofridos pela vítima antes de falecer) é concedida conjuntamente e de forma sucessiva aos grupos de familiares aí identificados. Há quem extraia desta formulação legal uma situação de litisconsórcio necessário. Outros, pelo contrário, identificam nela uma mera regra de direito material que não obsta a que cada um dos interessados faça valer a sua quota-parte de forma individualizada. Esta divisão é visível na jurisprudência deste Supremo Tribunal. Na jurisprudência deste Supremo Tribunal prevalece a tese que nega o litisconsórcio necessário activo (Acs. do STJ, de 15-4-97, em www.dgsi.pt e na CJSTJ, tomo II, pág. 42, de 23-3-95, na CJSTJ, tomo I, pág. 230, e de 16-1-02, Proc. nº 2989/01, da 3ª Secção). O preceituado no n.º 2 do art. 496º do CC não representa uma situação de litisconsórcio necessário activo, antes constitui uma norma que atribui a indemnização, de forma escalonada, a um conjunto de interessados, de acordo com o grau de parentesco considerado relevante. Abstraindo da natureza jurídica da indemnização pela perda da vida, como direito próprio da vítima que se transmite para os familiares identificados ou como direito que se constitui directamente na esfera dos familiares em consequência da morte, o legislador assumiu naquele preceito, de forma autónoma e fora do quadro do direito sucessório, uma determinada regra atributiva e distributiva da indemnização. Ora, tal não colide com a possibilidade de ser reclamada por cada um dos sujeitos a quota-parte da indemnização que lhe caiba, matéria que se integra no mérito da pretensão e que não colide com a legitimidade activa. No que concerne à indemnização pela morte do pai do A. e aos danos morais precedentes, a pretensão do A. é restrita à que lhe respeitar em consequência da aplicação do art. 496º, n.º 2, do CC, tendo em conta que existirá ainda outra interessada, a sua mãe, que não figura na presente acção. Com esta clarificação, para além de não estarmos perante uma situação de preterição de litisconsórcio necessário activo, o facto de o A. peticionar a indemnização pelo direito à vida do seu pai sem estar acompanhado da mulher da vítima e mãe do A. não se reconduz a uma situação de ilegitimidade processual, antes a uma questão de mérito que será decidida oportunamente consoante as regras do art. 496º do CC.”. No mesmo sentido, veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/03/2015, proc. n.º 4578/10.2TBALM.L2-6, disponível in www.dgsi.pt.

Passando agora à análise dos danos concretamente invocados pelas demandantes civis, importa começar por referir que, no que respeita à reparação dos danos não patrimoniais sofridos pelo ofendido (…) nos momentos que antecederam a sua morte (cfr. artigo 496º, n.º 4, segunda parte, do Código Civil), resultou provado que, efectivamente, o mesmo sentiu sofrimento e, inclusivamente, teve consciência de que iria morrer longe de casa e dos seus familiares, o que terá provocado incomensurável angústia e desespero.

Para além disso, solicitam ainda as demandantes civis que lhes seja atribuída uma indemnização pela própria perda do direito à vida de que era titular o ofendido (…).

No que concerne aos restantes danos não patrimoniais invocados, dúvidas não restam de que, nos termos do disposto no artigo 496º, n.º 4, in fine, do Código Civil, assiste às demandantes civis o direito de serem indemnizadas pelo dano sofrido como consequência necessária da morte do seu pai.

De facto, decorre do que já foi mencionado que o desaparecimento do ofendido continua a causar enorme sofrimento às suas filhas, em face da relação de proximidade que mantinham.

Por outro lado, é facto notório que, ressalvadas circunstâncias muito excepcionais, a morte de um familiar próximo causa profundo sofrimento e desgosto.

Sucede ainda que as circunstâncias em que ocorreu a morte do ofendido (…) são susceptíveis de provocar perturbação e sofrimento acrescidos, tendo em conta que a mesma foi inesperada e teve lugar em circunstâncias violentas.

Também no que respeita ao dano não patrimonial consistente na morte do ofendido (…) não restam hoje quaisquer dúvidas de que a perda do direito à vida deve ser incluída, como dano (não patrimonial) autónomo, no cálculo da indemnização[31].

Por outro lado, é hoje maioritária a tese, que parece ser a mais conforme com a letra e o espírito do preceito atrás transcrito, de que o direito de indemnização pela perda do direito à vida pertence, por direito próprio, e não por via sucessória, às pessoas mencionadas no n.º 2, do artigo 496º, do Código Civil[32].

Com efeito, conforme refere Antunes Varela[33] a este propósito, “nenhum direito de indemnização se atribui, por via sucessória, aos herdeiros da vítima, como sucessores mortis causa, pelos danos morais correspondentes à perda da vida, quando a morte da pessoa atingida tenha sido consequência imediata da lesão", pelo que, "no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais ( quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no n.º 2 do artigo 496º”.

Por último, importa ainda acrescentar que também o pressuposto relativo ao nexo de causalidade se encontra preenchido, nos termos em que o concebe a teoria da causalidade adequada consagrada no artigo 563º do Código Civil.

Na verdade, decorre do disposto nesse preceito legal que “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

Deste modo, como refere Antunes Varela[34], importa fazer apelo “ao prognóstico objectivo que, ao tempo da lesão (ou do facto), em face das circunstâncias então reconhecíveis ou conhecidas do lesante, seria razoável emitir quanto à verificação do dano. A indemnização só cobrirá aqueles danos cuja verificação era lícito nessa altura prever que não ocorressem, se não fosse a lesão. Ou, por outras palavras: o autor do facto só será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem produzido.”.

Ora, a este respeito é inequívoco que tanto o sofrimento causado ao ofendido A (...) , como a própria morte deste e o desgosto e sofrimento sentidos pelas demandantes civis foram provocados em consequência do acidente a que se reportam os presentes autos.

Como é sabido, “os danos que a pessoa responsável é obrigada a indemnizar são os que tiverem como causa (jurídica) o acidente provocado pelo veículo. (...). Há, porém, quanto aos danos causados por veículos, uma directriz especial que tem aqui o seu lugar próprio. É que a responsabilidade objectiva se estende apenas aos «danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação» (art. 503º, 1)[35]”.

Deste modo, cumpre agora determinar o valor da indemnização a atribuir às demandantes civis a título de compensação por cada um dos danos alegados e demonstrados nos presentes autos, na medida em que, não sendo possível a reconstituição natural (cfr. artigos 562º e 566º, n.º 1, ambos do Código Civil), terá que se proceder à fixação de uma indemnização em dinheiro.

A esse propósito, determina expressamente o n.º 4, do artigo 496º, do Código Civil, que o montante da indemnização será fixado equitativamente, devendo ser tidas em consideração as circunstâncias mencionadas no artigo 494º do mesmo diploma.

De facto, e citando de novo Pires de Lima e Antunes Varela[36], “o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”.

Assim sendo, é manifesto que a situação económica da sociedade demandada é mais favorável do que a situação económica das demandantes civis.

Do mesmo modo, também a gravidade do dano é extremamente elevada, uma vez que foi violado o bem jurídico mais fortemente tutelado pelo ordenamento jurídico e que consiste na própria vida humana.

Para além disso, impõe-se atender à idade do ofendido (…), assim como ao facto de o mesmo ter sentido intenso sofrimento nos momentos que antecederam a sua morte.

Ponderadas todas as circunstâncias relevantes apuradas nos autos, e recorrendo aos critérios mencionados, o Tribunal Colectivo considera equitativa e justa a atribuição, às demandantes civis, das quantias parcelares de € 5.000,00, a título de compensação pelo sofrimento do ofendido (…) nos momentos que antecederam a sua morte, de € 50.000,00, a título de compensação pela perda do direito à vida do ofendido, e de€ 10.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos por cada uma das demandantes civis em consequência da morte do seu pai.

Note-se que, em conformidade com o que atrás foi já mencionado, as quantias atribuídas às demandantes civis a título de compensação pelo sofrimento do ofendido (…) nos momentos que antecederam a sua morte (€ 5.000,00) e pela perda do direito à vida (€ 50.000,00) correspondem apenas à quota-parte de dois terços pertencente às demandantes civis.

Por fim, cumpre ainda salientar que a quantia global de € 75.000,00 atrás indicada foi já objecto da competente actualização, pelo que o valor fixado é o devido à data da prolação desta decisão (cfr. artigo 566º, n.º 2, do Código Civil).

A respeito dos juros devidos, foi já fixada Jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que “sempre que a indemnização por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação[37].”.

Em face do exposto, os juros de mora devidos às demandantes civis, calculados à taxa legal de 4%, deverão ser contados a partir da data deste acórdão.

Por último, resultando do teor da fundamentação de facto que antecede que a companhia de seguros contratada pela entidade empregadora do ofendido (…) indemnizou já uma das suas filhas na sequência do acordo firmado no processo que correu termos no Tribunal do Trabalho, impor-se-ia ainda averiguar se existe alguma sobreposição entre a indemnização já paga e a agora fixada.

De todo o modo, conforme esclarece o Supremo Tribunal de Justiça[38]39, “o problema da indemnização coloca-se, apenas, com relação a um só dano, o patrimonial, nada tendo que ver com as indemnizações tendo causa diversa, particularmente o não patrimonial - cfr. Pedro Romano Martinez, Direito de Trabalho, 3.ª Ed., Coimbra 2006, notas, pág. 858. As duas indemnizações apenas se poderão completar até ao ressarcimento integral do dano causado, podendo embora o lesado optar pela indemnização mais favorável para ele, tendo que restituir o que haja recebido da sua seguradora de trabalho (cfr. Acs. do STJ, de 30.11.93, CJ, STJ, III, 250, 23.10.2008, P.º n.º 2318, de 12.9.2006, P.º n.º 06A2244, de 6.3.2008, P.º n.º 04B1310, acessíveis in www.dgsi.pt e 6.3.2007, in P.º n.º 87-A 189, 10.7.2008, P.º n.º 2101/7.ª Sec., e, ainda, toda a vasta jurisprudência no mesmo sentido, concentrada in A Indemnização Fundada em Acidentes de Viação na Jurisprudência Portuguesa, a págs. 23 e segs., do Cons.º Leite de Campos, sob a égide daquela Lei n.º 2127, destacando-se os Acs. de 30.5.78, de 27.3.1984, BMJ n.ºs 277/267 e 335/279. A jurisdição não laboral exerce a sua missão sem limitações de montantes (cfr. Ac. deste STJ, de 16.6.2010, P.º n.º 142/06.9GTAVR Pl.Sl) e a Relação, implicitamente, assim o reputando; o direito à reparação por acidente causado por outros trabalhadores ou terceiros não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral, dispõe o n.º 1, do art.º 32.º, da Lei n.º 100/97. É que existe uma relação de proximidade da causa de dano por acidente de viação e de trabalho, porém privilegia-se o risco do causador do acidente de viação, donde o exercício ilimitado em tal fixação no tribunal não laboral (Acs. deste STJ, de 10.7.2008, P.º n.º 2101/08 7.º Sec. e de 30.6.2009, P.º n.º 1995.05.3TBVCD). E a seguradora laboral é que usufrui de legitimidade para invocar o pagamento da prestação que efectuou, reclamando-a junto do responsável pelo sinistro[39]”.

Ora, no caso em apreço importa assinalar que a seguradora laboral efectuou já o pagamento da indemnização devida à filha do ofendido (…) que, por assumir a qualidade de beneficiária nos termos e para os efeitos da legislação laboral aplicável, tem direito ao recebimento do subsídio por morte e da pensão cujo pagamento foi assegurado pela referida seguradora.

Deste modo, dúvidas não restam de que nem o dano já indemnizado, nem a ofendida entretanto ressarcida coincidem com os danos invocados e com as demandantes que formularam o pedido de indemnização que se encontra em apreciação.

Quer isto dizer que o recebimento de uma indemnização pela irmã das demandantes civis não tem qualquer interferência ao nível da atribuição da indemnização por estas peticionada.”


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III. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

As questões a conhecer são as seguintes:

1) Saber se a demandada deve ser absolvida do PIC.

            2) Saber se os montantes indemnizatórios devem ser reduzidos.

                                                                       ****

1) Da absolvição do PIC:

Estabelece o n.º 1, do art. 377.º, do CPP que “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art. 82.º”.

Por sua vez, o Assento nº 7/99, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no DR, I-A, de 3.8.1999, veio fixar jurisprudência neste sentido: “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377º, nº 1, do CPP, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.”

Desta forma, havendo absolvição da imputação criminal, o tribunal poderá e deverá condenar no pedido civil se os factos que sustentavam aquela imputação forem simultaneamente constitutivos do pedido de indemnização civil e este se fundar em responsabilidade civil extracontratual.

Assim, a condenação no pedido civil não pode basear-se em factos diferentes dos imputados na acusação, devendo os factos provados em julgamento preencher os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

Em resumo, no caso em apreço, por um lado, o Tribunal a quo considerou que ficaram por demonstrar os pressupostos de que dependeria a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito a que se reporta o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, fundamento do pedido formulado pelas demandantes civis.

            Porém, por outro lado, veio a condenar a demandada (…), tendo em conta que, admitindo o Código Civil, em matéria de acidentes causados por veículos, a constituição, excecional, da obrigação de indemnizar independentemente de culpa (cfr. artigo 483.º, n.º 2, do Código Civil), está demonstrado o preenchimento dos pressupostos mencionados no artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil.

            Por sua vez, a recorrente defende que, não estando demonstrado que praticou algum crime, não pode haver uma condenação em sede de pedido de indemnização cível com base no instituto jurídico civil da responsabilidade objetiva ou pelo risco.

            Mais refere que a causa da perda da vida do ofendido foi apenas um acidente de trabalho e que os danos não foram provocados em consequência da prática de qualquer facto ilícito e culposo executado por algum dos arguidos.

            Acrescenta, ainda, que não estão preenchidos os pressupostos a que alude o artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil, e que, sem embargo de todo o exposto, em último caso, a sua responsabilidade pelo acidente deve ficar excluída, nos termos do artigo 505.º, do Código Civil, na medida em que o acidente resultou de uma causa de força maior, estranha ao funcionamento do veículo.

            Por seu turno, as demandantes cíveis, a este propósito, além de remeterem para a fundamentação do acórdão recorrido, salientam, no essencial, que a responsabilidade pelo risco exige a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, à exceção da ilicitude e da culpa, ou seja, para que se afirme a responsabilidade pelo risco basta a ocorrência de um facto naturalístico (lícito ou ilícito) e de um nexo de causalidade entre o facto e o dano e, também, que não estamos em presença de uma causa de exclusão da responsabilidade (artigo 505.º, do Código Civil).


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            O pedido de indemnização civil formulado em processo penal tem de ser apreciado e julgado, do ponto de vista substantivo, com recurso à lei civil, sem quaisquer limitações, com exceção da responsabilidade contratual que aqui não tem cabimento.

Assim sendo, previamente à análise dos pressupostos da responsabilidade pelo risco importa determinar se, tendo o PIC sido intentado com fundamento em culpa dos demandados, como o foi no presente caso, o tribunal pode, não se provando a culpa, decidir com base no risco, sem incorrer em excesso de pronúncia, atendendo a que a causa de pedir não pode ser livremente alterada, e que o juiz está, em princípio, vinculado aos factos alegados pelas partes.

            Nas palavras de Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. I, 10ª edição, pgs. 695 e ss., «A causa de pedir, nas acções de indemnização, não consistirá na culpa do agente (mesmo tratando-se de responsabilidade fundada na prática de factos ilícitos), mas também não se limita ao dano sofrido pelo autor. Como facto jurídico donde procede o pedido (artº 498, nº 4, do Cód. Proc. Civ.), a causa de pedir neste tipo de acção especial abrange todos os pressupostos da acção de indemnizar.Quando, porém, o autor pede em juízo a condenação do agente na reparação do dano, num dos domínios em que vigora a responsabilidade objectiva, mesmo que invoque a culpa do demandado, ele quer presuntivamente (a menos que haja qualquer declaração em contrário) que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. Interpretar à letra, rigidamente, a invocação feita pelo autor, obrigando-o a interpor nova acção para obter o mesmo efeito fundamental com base na mesma ocorrência, seria uma violência que não cabe no espírito da lei processual vigente, fortemente impregnada pelo princípio básico da economia processual.

Consequentemente, se o autor invocar a culpa do agente na acção destinada a obter a reparação do dano, num caso em que excepcionalmente vigore o princípio da responsabilidade objectiva, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu.

Face ao exposto, nenhuma censura merece o acórdão recorrido, ao ter apreciado o PIC em sede de responsabilidade objetiva, ou seja, não é pela circunstância de não terem ficado demonstrados os pressupostos de que dependeria a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito a que se reporta o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, que deve ser excluída, sem mais, a responsabilidade da ora recorrente.


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Constituem fundamentos da responsabilidade civil extra-contratual, prevista nos artigos 483º e ss., o facto voluntário do agente, a ilicitude, a culpa, o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

A responsabilidade pelo risco reveste natureza excepcional: nos termos do artigo 483º, nº 2, CC só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos expressamente especificados na lei.

Constitui entendimento corrente na doutrina e na jurisprudência que a responsabilidade pelo risco exige verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, à excepção da ilicitude e da culpa, ou seja, para que se afirme a responsabilidade pelo risco basta a ocorrência de um facto naturalístico (lícito ou ilícito) e de um nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. I, 10º edição, pg. 636; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 11ª edição, 612; acórdão do STJ, de 2006.10.10, Silva Salazar, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06 A 2764, da Relação do Porto, de 2008.09.30, Pinto dos Santos, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 0825401).

No caso vertente, não se tendo provado culpa por parte da ora recorrente na produção do acidente, importa determinar se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade pelo risco, conforme consta do acórdão recorrido.

Dispõe o n.º 1, do artigo 503.º, do Código Civil que aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, ainda que ele não se encontre em circulação.


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Podemos afirmar, desde logo, como consta do acórdão recorrido, que o acidente foi causado por um veículo de circulação terrestre?

Entendemos que o preceito em causa visa todo e qualquer meio de transporte terrestre (incluindo máquinas, florestais ou industriais), desde que e enquanto utilizado como meio de circulação.

Por isso, partilhamos o entendimento de que, tratando-se de uma máquina industrial, se o evento ocorre quando a mesma está a ser utilizada exclusivamente na actividade para que foi criada, deixa de poder considerar-se, para efeitos desta norma, como veículo de circulação terrestre.

O acidente em causa nestes autos ocorreu com uma máquina escavadora de rastos, que não é um veículo automóvel em sentido estrito, mas uma máquina industrial (tal qual é definida no artigo 109.º, nº 2, do Código da Estrada) destinada a ser manobrada em condições bem específicas.

Entendemos que só pode ser um veículo de circulação terrestre, para efeitos do citado artigo 503.º, quando estiver a ser utilizada como meio de transporte, quer de pessoas quer de mercadorias na via pública (tal como previsto no referido art. 109º/2 do CE) ou, até, casuisticamente, em local privado, nas circunstâncias referidas no acórdão ora em crise.

No caso em apreço, como resulta dos pontos 22 a 27 dos factos provados, salvo o devido respeito, o acidente que vitimou o ofendido ocorreu em consequência do resvalamento da máquina escavadora que estava, na altura, a ser utilizada no transporte de materiais e não na sua função específica, ainda que momentaneamente imobilizada.

O acidente não ocorreu num momento em que estivesse em curso a concreta actividade para que a escavadora foi concebida – escavar, revolver terreno.

Concluímos, deste modo, que a máquina escavadora deve, no caso presente, ser qualificada como veículo de circulação terrestre para efeitos do art. 503º, do Código Civil.


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Além disso, também entendemos que, perante as concretas circunstâncias em que ocorreu o acidente em causa nos autos, devemos concluir, sem embargo de se conceder que a ora recorrente foi alheia ao acidente (empregou todas as providências exigidas com o fim de prevenir os danos ocorridos), que os danos causados provieram dos riscos próprios do mencionado veículo, e não devido às contingências próprias da vida, pelas razões que constam do acórdão recorrido, nada havendo, portanto, a este propósito, a censurar.

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            Aqui chegados, e por fim, devemos concluir, como defende a recorrente, que a causa do acidente resulta de uma causa de força maior, estranha ao funcionamento do veículo, devendo, por isso, excluir-se a responsabilidade da recorrente pelo acidente, nos termos do artigo 505.º, do Código Civil?

Como ensina a doutrina, caso de força maior é o acontecimento cognoscível, imprevisível e que não deriva da actividade em curso, e que, por isso mesmo, lhe é exterior, e cujo efeito danoso não pode evitar-se com as medidas de precaução que racionalmente seriam de esperar.

Significa isto que, para estarmos na presença de uma causa de força maior é necessário que o acontecimento causal seja exterior à pessoa do detentor e da própria coisa que provoca ou produz o risco.

No caso em apreço, o resvalamento da máquina escavadora nem sequer é estranho ao seu funcionamento, constituindo um dos riscos próprios deste género de veículos, qualquer que seja a sua causa, isto é, ainda que não seja possível identificar o risco concreto que originou o acidente.

Por isso mesmo, as circunstâncias em que ocorreram os factos não podem ser consideradas excepcionais ou anómalas ao ponto de poderem afastar o nexo de causalidade adequada entre os riscos próprios da escavadora e o acidente.

Desta forma, salvo sempre o devido respeito, parece inteiramente justificada a conclusão de que a recorrente é responsável pelos danos causados (nos termos do art. 503°, n° 1, do C.Civil), na medida em que não está demonstrado que o acidente é imputável ao lesado ou a terceiro, ou que resultou de causa de força maior estranha ao funcionamento da escavadora.


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            2) Dos montantes indemnizatórios:

            A recorrente considera que o valor indemnizatório deve ser reduzido com base na equidade, não devendo exceder o valor de 10.260,00 euros a cada filha da vítima.

            As demandantes civis solicitaram uma indemnização por danos não patrimoniais consistentes, por um lado, na perda do direito à vida do ofendido (…) e no sofrimento pelo mesmo sentido nos momentos que antecederam a sua morte e, por outro lado, no sofrimento causado às próprias demandantes civis em consequência da morte do seu pai.

            Relativamente a estes danos não patrimoniais, preceitua o art.º 496.º n.º 2 do Código Civil que “Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”. Acrescenta o seu n.º 4 que “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”.

Causando-se a morte a alguém, viola-se o bem jurídico mais fundamental da pessoa humana.

A perda do direito à vida é então o dano mais grave que inabalavelmente merece a tutela do direito, sendo assim indemnizável nos termos do art.º 496.º n.º 1 e 2 do Código Civil.

In casu, a titularidade deste direito, pela morte de A (...) , cabe às demandantes, de iure próprio em conformidade com o art.º 496.º n.º 2 do Código Civil.
Este dano foi computado pelas demandantes em € 50.000,00.

A compensação pela perda do direito à vida, dano não patrimonial sofrido pela vítima, deverá ser fixado segundo a equidade, à luz do artigo 496.º, nº 3, do Código Civil, recorrendo-se, como indicadores a ter em conta, ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado, e às demais circunstâncias a que importe atender, nos termos do artigo 494.º, do mesmo diploma legal.

Vem sendo entendido pela jurisprudência do STJ que “a vida constitui o supremo bem, um valor absoluto, ora tendo como irrelevantes outros elementos que não a vida em si mesma (ac. de 26-10-2010 - proc. 209/07.6TBVCD.P1.S1), ora considerando que a vida não só tem um valor de natureza igual para toda a gente, mas também um valor social, uma vez que o homem é um ser em situação, encarando a vida que se perde na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral, no papel excecional que desempenha na sociedade, assinalado por um valor de afeição mais ou menos forte (ac. de 08-09-2011 – Proc. 336/04.2TVLSB.L1.S1).”

Daqui decorre que, nesta matéria, deve ser, desde logo, tomado em consideração o seguinte: 1) a vontade e alegria de viver da vítima; 2) a sua saúde; 3) o seu estado civil; 4) os seus projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, designadamente a sua situação profissional e sócio-económica.

A indemnização deve ser fixada num valor que não seja meramente simbólico, não se compadecendo com miserabilismos indemnizatórios.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos indicados parâmetros diminuírem ou aumentarem casuisticamente, tem, recentemente, ressarcido o dano morte (supressão da vida) com uma indemnização entre € 50.000,00 e 60.000,00 – ver, sobre este assunto, Acórdão do STJ, de 31/1/12, Processo n.º 875/05.7TBILH.C1 – 6ª Secção, relatado pelo Exmo. Conselheiro Nuno Cameira.

Por outro lado, sempre que, como é o caso, a indemnização seja fixada com fundamento num juízo de equidade, a jurisprudência tem entendido que os tribunais de recurso devem ser parcimoniosos na sua intervenção, limitando-a às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”.

E de todo o conjunto de circunstâncias a que importa atender, no caso que estamos a apreciar, sobressai, a nosso ver, no sentido do quantitativo devido, a idade da vítima, que era 62 anos.

De sublinhar que a perda do bem vida atinge só a vítima, e não será através da indemnização em apreço, neste particular, que se atenderá à falta que o falecido veio a fazer a outrem, designadamente aos seus familiares mais próximos.

Daí que, a ter que se proceder a uma graduação de montantes, deva ela ter em conta a idade da vítima, os projetos e expectativas próprios de pessoas com uma idade como a sua.

Por outras palavras, segundo as leis naturais da vida, não estamos perante uma vítima com a probabilidade de dezenas de anos de vida para preencher, e em que se poderia realizar, antes estava próximo da idade de reforma.

Contudo, está provado que a vítima era saudável.

Tudo visto, face a actual esperança de vida, entende-se dever manter o montante da indemnização pela perda do bem vida, que reputamos como justo e equilibrado.

Também é indemnizável como dano não patrimonial da vítima o sofrimento que este padeceu entre o momento que foi atingido e a morte (art.º 496.º n.º 1 do Código Civil).

Face ao que consta do ponto 55 dos factos provados, reputamos como justo e equilibrado o valor atribuído ao dano ora em causa.

No tocante aos danos morais sofridos pelas filhas da vítima, da matéria de facto provada, resulta, em síntese, que, entre a vítima e aquelas, havia laços afetivos muito fortes e que a morte de A (...) lhes causou grande sofrimento, assim como grande tristeza e saudade.

As demandantes nutriam pela vítima o amor natural devido a um pai, porquanto sentiram, como se provou, o desgosto e a tristeza da sua morte.

Assim sendo, também aqui, reputamos como justo e equilibrado o valor atribuído ao dano ora em causa. 

É tempo de dizer que a recorrente não avança com razões concretas para que haja uma diminuição das quantias fixadas pelo tribunal recorrido, limitando-se a manifestar o seu inconformismo face aos valores atribuídos, chamando a atenção para a circunstância da jurisprudência admitir a aplicação de fórmulas matemáticas que permitem limitar a subjetividade subjacente a um juízo assente na equidade, assim como para a tabela constante da Portaria n.º 679/2009, de 25 de julho.

Acontece que quaisquer tabelas financeiras para o cálculo indemnizatório não são vinculativas, apenas servindo como critério geral de orientação para a determinação equitativa do dano (art.566 n.º 3, do Código Civil).

Por isso, é de repudiar a utilização pura e simples de critérios mais positivistas, assentes em equações de complexidade variável, como determinadas fórmulas matemáticas utilizadas em alguns arestos (cf., por ex., Ac do STJ de 4/2/93, C.J. ano I, tomo I, pág.129, e de 6/7/2000, C.J. ano X, tomo II, pág.144), encontrando-se criticamente comentadas no estudo do Cons. Sousa Dinis, “ Dano Corporal em Acidente de Viação “, publicado na C.J. do STJ ano V, tomo II, pág.11, e C.J. ano IX, tomo I, pág.6 e segs.

Além disso, não esqueçamos que os tribunais não estão vinculados às tabelas fixadas na Portaria n.º 679/2009, de 25 de junho que se destinam apenas a agilizar as propostas razoáveis na resolução extrajudicial (cf., por ex., Ac STJ, de 28/11/2013 - proc. nº 177/11 -, em wwwdgsi.pt).

Por conseguinte, são de manter os valores atribuídos pelo Tribunal a quo.


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  IV – DECISÃO:

            Pelo exposto, acordam os Juízes neste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente.


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(elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

Coimbra, 27 de fevereiro de 2019

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (adjunto)

           


[1] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 867.
[2] ln ob. cit., pág. 867.
[3] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 912.
[4] ln Comentário do Código Penal, 3ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 978.
[5] ln ob. cit., pág. 915.
[6] Relativamente aos conceitos de planeamento, execução e direcção vejam-se ainda as anotações de M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio ao artigo 277º do Código Penal, in Código Penal, Parte Geral e Especial, Almedina, 2014, pág. 1062.
[7] ln ob. cit., pág. 979.
[8] ln ob. cit., pág. 918
[9] Cfr. Paula Ribeiro de Faria, in ob. cit., pág. 917.
[10] Cfr. M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, in ob. cit., pág. 1063.
[11] ln ob. cit., pág. 928.
[12] ln ob. cit., pág. 1086.
[13] Cfr. J.M. Damião da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 1030.
[14] Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, I Volume, Parte Geral, 3ª Edição, Editora Rei dos Livros, 2002, pág. 180.
[15] Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, in ob. cit., pág. 339 16 ln ob. cit., pág. 339.
[16] In ob. cit., pág. 339.
[17] ln ob. cit., pág. 136
[18] Cfr. Germano Marques da Silva, in Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, Editorial Verbo, 2009, pág. 258.
[19] ln Código Civil Anotado, Volume I, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 444.
[20] ln Direito Processual Civil, II Volume, Edição AAFDL, 1987, pág. 187.
[21] Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 141.
[22] Cfr. Acórdão de 08/05/2013, proc. n.º 254/08.4TB0DM.E1.S2, in www.dgsi.pt.
[23] In ob. cit., pág. 487.
[24] ln ob. cit., pág. 485
[25] ln ob. cit., pág. 486.
[26] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. cit., pág. 486.
[27] ln Das Obrigações em Geral, Volume I, 9ª Edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1998, pág. 681.
[28] ln ob. cit., pág. 688.
[29] Cfr. Acórdão de 09/03/2010, proc. n.º 698/09.4YRLSB.Sl, in www.dgsi.pt.
[30] Cfr. Acórdão de 07/12/2016, proc. n.º 366/13.2TNLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[31] Cfr., neste sentido, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Volume I, 9ª Edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1998, pág. 631, e Abrantes Geraldes, in Temas da Responsabilidade Civil, II Volume, Indemnização dos Danos Reflexos, Almedina, 2005, pág. 22.
[32] Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2005, proc. n.º 05Bl 612, in www.dgsi.pt.
[33] ln ob. cit., pág. 635.
[34] ln ob. cit., pág. 928.
[35] Cfr. Antunes Varela, in ob. cit., pág. 690.
[36] ln ob. cit., pág. 474.
[37] Cfr. Jurisprudência n.º 4/2002, de 09/05/2002 in Diário da República, Iª Série –A, de 27/06/2002.
[38] Cfr. Acórdão de 27/10/2011, proc. n.º 488/07.9GBLSA.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[39] No mesmo sentido, vejam-se também os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10/06/2013, proc. n.º 2541/11.5TBVLG.Pl, e de 18/01/2016, proc. n.º 289/08.0TTOAZ-A.Pl, ambos in www.dgsi.pt.