Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3520/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
Data do Acordão: 03/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 562.º E 566.º N.º 3 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A qualificação do dano é matéria de direito. A natureza patrimonial do dano afere-se com base no critério da situação hipotética, presente e futura, da fortuna do lesado (artigo 562.º do CC). Haverá dano desta espécie se puder afirmar-se que o lesado, não fora a lesão, teria ou terá o seu património em maior valia, presentemente ou no futuro.
2. Nesta operação comparativa há que partir do princípio que o lesado empregará os mesmos meios e adoptará o mesmo esforço que naturalmente usaria na gestão dos seus bens e na sua actividade profissional.

3. Se para alcançar os mesmos proventos que iria auferir tem maior penosidade, não é esta que tem de ser compensada mas a perda de ganho resultante da manutenção do grau de esforço anterior à lesão.

4. É suficiente a mera perda potencial de ganho, isto é, a inadequação do mesmo esforço e dedicação do lesado para atingir o mesmo resultado produtivo, ainda que em concreto esteja assegurada retribuição igual à que já era auferida antes da lesão.

5. Deve, por isso, optar-se pela reparação do dano patrimonial inerente à diminuição de ganho, efectivo ou potencial, que resulte da percentagem de incapacidade apurada, da sua duração previsível e dos proventos que o lesado deveria arrecadar e que se frustraram.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... intentou no 1º Juízo da Comarca de Tomar acção declarativa com processo ordinário contra a B..., pedindo a condenação desta no pagamento de Esc. Esc. 3.524.440$00, acrescida de juros de mora desde a citação, total indemnizatório, de cariz patrimonial e não patrimonial, devido pelos danos provocados à A. em acidente de viação em que interveio determinado veículo objecto de contrato de seguro celebrado para esse fim com a demandada.
Contestou aquela Ré refutando a culpa do segurado na ocorrência e impugnando os danos, terminando com a improcedência da acção.
O processo seguiu os seus termos e a final foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e condenando a Ré a pagar à A. a quantia de € 8.121,91 acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação para os danos patrimoniais e desde a sentença para os danos não patrimoniais.
Inconformada, apelou a A. formulando as seguintes conclusões:
1ª – O dano não patrimonial pelos incómodos, dores e angústias sofridos pela recorrente deve merecer indemnização não inferior a € 9.000;
2ª – O dano patrimonial decorrente da perda de capacidade de trabalho de 5% de que a recorrente ficou a sofrer deve merecer a compensação de € 8.000.
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A Ré contra-alegou.
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Colhidos os vistos cumpre decidir.
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:
A) – No dia 03 de Agosto de 1998, cerca das 12,00 horas, a condutora do veículo de matrícula “PC-63-90”, que se encontrava no estacionamento do edifício da “Portugal Telecom” sito na Rua Manuel de Matos em Tomar, pretendendo abandonar esse estacionamento, efectuou uma manobra de marcha atrás.
B) – A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo “PC-63-90” encontrava-se transferida para a R. por contrato de segura titulado pela apólice n.º 034/00069823/000.
C) - Nas circunstâncias referidas em A), a Autora havia saído da porta do edifício virada a Norte e caminhava no sentido Poente - Nascente para sair da zona do edifício e em direcção à Rua Manuel de Matos, a 70 centímetros do edifício.
D) – Aquando do referido na alínea anterior, o veículo “PC” embateu com a sua traseira no corpo da A., provocando a queda desta.
E) – Em consequência do referido na alínea anterior a Autora sofreu traumatismo dos joelhos e do pé direito, ferida em ambos os joelhos, entorse grau II da articulação tibio-társica direita e contusão da coluna lombo sagrada.
F) – A A. foi de imediato transportada ao Hospital Distrital de Tomar, onde foi assistida, e esteve doente por trinta dias, com incapacidade para o trabalho.
G) – A A., depois de regressar a casa, esteve aí acamada por cinco dias.
H) – Em 11/08/98, resultante do referido em E), a A. sentiu dores e dificuldade de marcha, tendo recorrido ao serviço de urgência do Hospital de Santo António, no Porto, onde lhe foi recomendado repouso de 3 semanas e prática de tratamentos de fisioterapia.
I) – A A. foi submetida a 4 consultas de fisiatria e realizou 15 sessões de fisioterapia.
J) – A A. sofreu, em consequência do acidente, dores e incómodos, que lhe retiraram o sono, e dificuldades de mobilidade do pé direito, sendo o quantum doloris de grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
L) – A A. deixou de fazer as viagens de férias que tinha programado e de gozar férias durante 25 dias.
M) – A A. ainda hoje sofre dores no pé, especialmente nas mudas de tempo e quando está frio, mantendo igualmente queixas dolorosas com radicuralgia à direita, que lhe dificultam a vida pessoal e profissional.
N) – A A. apresenta discontomia L4 e L5 com compromisso radicular da raiz L4 e L5 e vestígio cicatricial no joelho direito de três centímetros, sendo o dano estético fixável em grau 2 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
O) – A A., que é doente cardíaca, sofreu susto provocado pelo acidente e pensou que ia morrer.
P) – A A. sofre de uma IPP geral de 5%, decorrente das lesões causadas pelo acidente, cujas sequelas são responsáveis por alguns esforços acrescidos no exercício da sua actividade profissional.
Q) – A A. despendeu em tratamentos de fisioterapia, consultas de fisiatria, fisioterapia e consultas médicas, esc. 5.000$00.
R) – A A. pagou pela aquisição de um pé elástico, que lhe foi receitado, esc. 2.500$00, e em remédios despendeu esc. 6.940$00.
S) – No acidente ficou danificada uma saia da A. no valor de esc. 10.000$00.
T) – A A. era ao tempo do acidente chefe de serviços administrativos da E. B. n.º 1 de Tomar, auferindo o salário mensal de esc. 220.000$00.
U) - A A. nasceu em 29 de Junho de 1943 – (cfr. documento junto pela A. a fls. 62).
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Nos termos do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC as conclusões do recurso delimitam o âmbito do respectivo conhecimento.
Assim circunscreve-se este à quantificação do montante indemnizatório que deve corresponder a dois específicos danos sofridos pela A. pelos quais está aceite a responsabilidade da Ré por via do contrato de seguro.
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1ª Questão:
Na sentença os danos não patrimoniais decorrentes das lesões originadas pelo acidente foram valorados em € 3.000, sendo certo que o dano atinente à incapacidade permanente geral da apelante foi qualificado como dano não patrimonial e, como tal, objecto de valoração autónoma.
Nos termos do art.º 496 do CC, na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade objectiva mereçam a tutela do direito (nº 1); e deverá tal fixação ser equitativa, tendo-se em conta as circunstâncias do art.º 494, ou sejam, o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e outras que se justifiquem.
No plano da lesada, relevam a idade da A. à data do acidente – 54 anos – e o seu estatuto sócio-económico de chefe de serviços administrativos da Escola Básica nº 1 de Tomar.
No plano objectivo das características das lesões são de tomar em consideração:
- O traumatismo dos joelhos e pé direito, ferida em ambos os joelhos, entorse grau II da articulação tíbio-társica direita e contusão da coluna lombo-sagrada,
- Doença com 30 dias no Hospital e cinco dias de retenção em casa na cama,
- Dores e dificuldades na marcha em 11/08/98;
- Dores e incómodos, com perturbação do sono e dificuldade de mobilidade do pé direito, sendo o quantum doloris grau 3 numa escala de 7 de gravidade crescente:
- Dores recorrentes no pé, com mudas de tempo e frio, com queixas dolorosas que dificultam a vida pessoal e profissional;
- Dano estético de grau 2 numa escala de7 de gravidade crescente;
- Susto com a perspectiva de morte.
Este conjunto de afectações da A. não é susceptível de ser significativamente compensado senão com uma importância que possa trazer – temporariamente - uma sensível melhoria do padrão de vida da A., proporcionando-lhe algum bem-estar suplementar. Só desse modo poderá de algum modo apagar-se da memória da A. o sofrimento e desgosto que lhe ficaram associados. Crê-se que, no contexto do estatuto económico da A. é bem necessária a indemnização de € 6.000, para o justo ressarcimento de tais vicissitudes.
Por outro lado, o facto da A. e apelante ter deixado de fazer as viagens de férias que tinha programado e ficado impossibilitada de fruir estas durante 25 dias, requer uma reparação própria, que não foi supesada em 1ª instância, e que se entende dever ser ressarcida através de uma compensação de € 1.000.
Procede nesta medida a primeira conclusão.
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2ª Questão.
Reporta-se a apelante à adequada valorização da incapacidade permanente parcial geral de 5% de que ficou a padecer por força do acidente. A sentença qualificou tal incapacidade como um dano não patrimonial, por não impedir a A. de exercer a profissão - e apenas dificultar esse exercício - nem acarretar diminuição da remuneração. Tratar-se-ia de responder a uma situação de maior penosidade ou esforço no desempenho profissional da lesada.
A qualificação do dano é matéria de direito. A natureza patrimonial do dano afere-se com base no critério da situação hipotética, presente e futura, da fortuna do lesado (art.º 562 do CC). Haverá dano desta espécie se puder afirmar-se que o lesado, não fora a lesão, teria ou terá o seu património em maior valia, presentemente ou no futuro. Nesta operação comparativa há que partir do princípio que o lesado empregará os mesmos meios e adoptará o mesmo esforço que naturalmente usaria na gestão dos seus bens e na sua actividade profissional.
Se para alcançar os mesmos proventos que iria auferir tem maior penosidade, não é esta que tem de ser compensada mas a perda de ganho resultante da manutenção do grau de esforço anterior à lesão (neste sentido, claramente, o Ac. do STJ de 4/10/05, processo 05A2167 in www.dgsi.pt/jstj).
É claro que casos há em que, por se tratar de actividade dependente, com remuneração pré-estabelecida – caso do vínculo típico da relação laboral - a incapacidade parcial pode não implicar – e não implicará, por via de regra – perda concreta ou efectiva de ganho. Todavia, é suficiente a mera perda potencial de ganho, isto é, a inadequação do mesmo esforço e dedicação do lesado para atingir o mesmo resultado produtivo, ainda que em concreto esteja assegurada retribuição igual à que já era auferida antes da lesão.
Deve, por isso, optar-se pela reparação do dano patrimonial inerente à diminuição de ganho, efectivo ou potencial, que resulte da percentagem de incapacidade apurada, da sua duração previsível e dos proventos que o lesado deveria arrecadar e que se frustraram.
Com este enquadramento conceptual, divergente do sufragado na sentença, importa precisar o critério a adoptar na determinação do dano concernente à incapacidade da apelante.
Ora, como se sabe, « (…) a determinação dos danos patrimoniais futuros envolve sempre uma profecia (…). Mesmo os critérios de capitalização dependem de factores aleatórios e utilizam coeficientes matemáticos que não garantem cálculos indemnizatórios precisos (…). Por isso se afirma progressivamente a preferência pela avaliação qualitativa» (Ac. do STJ supra identificado; na mesma orientação o Ac. do mesmo Tribunal de 17/11/05, no Processo 05B3167, in www.dgsi.pt/jstj e a jurisprudência concordante referenciada).
Afigura-se mesmo como o único critério defensável para os casos de incapacidade parcial geral, uma vez que os proventos auferidos pelo lesado só podem servir com algum grau de rigor nas situações de incapacidade específica, admitindo a estabilidade dos salários, taxas de juro e fiscalidade.
Emerge dos autos que a A. tinha 54 anos à data do acidente, auferindo Esc. 220.000$00 mensais na sua actividade de chefe administrativa numa escola pública; como funcionária pública teria à sua frente, pelo menos, 11 anos de serviço, sem que tal signifique o fim da sua vida activa; este fim deverá localizar-se em momento nunca anterior aos 70 anos de idade. Outrossim, deverá ter-se em conta o estatuto económico da responsável.
Deste modo, numa ponderada avaliação de tais concretas circunstâncias, nos termos do nº 3 do art.º 566 do CC, afigura-se proporcionada a compensação sugerida pela apelante de € 8.000.
Procede, assim, também, esta conclusão.
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Uma vez que a presente decisão tem carácter actualizador no que respeita à compensação dos danos não patrimoniais e, bem assim, à indemnização do dano da IPP da apelante, só serão devidos juros de mora, relativamente a esses danos, desde esta decisão, nos termos do Ac. Uniformizador do STJ de 9/05/2002.
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Pelo exposto, julgando a apelação parcialmente procedente, revogam em parte a sentença e condenam a Ré a pagar à A., a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente, a quantia global de € 15.121,91, acrescida de juros de mora, às sucessivas e vigentes taxas legais, desde a citação sobre a importância de € 121,91, e desde a sentença sobre € 15.000, até integral pagamento.
Custas da apelação na proporção de 1/9 pela apelante e 8/9 pela apelada.

Coimbra, 08 /03 /2006