Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380-B/1999.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SILVIA MARIA PIRES
Descritores: INVENTÁRIO
DIVÓRCIO
RELAÇÃO DE BENS
NÃO RELACIONAÇÃO DOS BENS SITUADOS NO ESTRANGEIRO
Data do Acordão: 05/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ - 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 1345º, 1346º E 1404º, Nº 3, CPC
Sumário: I – No processo especial de inventário requerido em consequên­cia da dissolução do casamento, os bens que integram a comunhão são relaciona­dos pelo cabeça-de-casal, o qual indicará o valor que lhes atribui – art.º 1345º e 1346º, ambos do C. P. Civil.

II - O inventário é caracterizado pelo princípio da universalidade, sendo o seu objectivo a partilha de todos os bens e direitos que integram essa comunhão, seja hereditária ou conjugal, uma só vez, visando-se, desse modo, uma partilha igualitá­ria. Com este processo pretende-se colocar termo a uma comunhão que engloba todos os bens que dela fazem parte, independentemente do local onde se situem.

III - Com fundamento no princípio da universalidade dir-se-ia que todos os bens a partilhar, independentemente do local onde se encontrem, deveriam ser relacionados e objecto de partilha, mesmo aqueles situados no estrangeiro.

IV - No entanto, tendo presente que o processo de inventário admite desvios àquele princípio, nomeadamente com a realização de partilhas adicionais ou a remessa dos interessados para os meios comuns, com vista ao apuramento da exis­tência dos bens e/ou da sua titularidade, parece-nos que, quanto aos bens situados no estrangeiro, também aquele princípio terá que ser postergado, quando não esteja assegurada, por convenção ou tratado, a eficácia da partilha efectuada pelo Tribunal Português de bens situados em país estrangeiro.

V - Assim, não existindo qualquer convenção ou tratado do qual Portugal e os E.U.A. sejam subscritores, que assegure a eficácia da sentença de partilha que venha a ser proferida em processo a correr termos nos tribunais nacionais, não deve ser aqui efectuada a partilha dos bens situados nos E. U. A..

Decisão Texto Integral:                                               *

Requerente:A...
Requerida:B...
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Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Na sequência da apresentação da relação de bens, pelo cabeça-de-casal, no processo de inventário para partilha de bens comuns na sequência de divórcio do casal composto por A... e B..., veio esta reclamar da mesma, acusando a falta de relacionação de um prédio urbano destinado à habitação, sito em 95 Mill Road, New Bedford, Massa­chusetts, Estados Unidos da América, e de um veículo automóvel marca Mercedes Benz, de matrícula 50-10-KE, alegando terem sido adquiridos por ambos na constância do casamento.

O cabeça-de-casal respondeu, alegando, em síntese:
Ø Os bens que a Requerida pretende ver relacionados encontram-se nos Estados Unidos da América, país onde ambos residem.
Ø O automóvel já não está em condições de circular.
Ø O prédio foi por si adquirido já depois de ter sido decretado em 1986, nos Estados Unidos, o divórcio entre ambos.
Concluiu pela incompetência internacional do tribunal para a partilha dos bens sitos nos Estados Unidos.

Proferida a prova oferecida veio a ser proferida decisão que julgou o tribunal absolutamente competente para partilhar os bens em causa e ordenou a inclu­são dos mesmos na relação de bens.

Desta decisão recorreu o cabeça-de-casal, com os seguintes fundamentos:

1 - O despacho recorrido determinou a relacionação de bens sitos no estrangeiro.
2 – Segundo as regras que definem a competência internacional dos Tribunais Portugueses, a relação de bens em inventário instaurado em Portugal apenas deve compreender os bens sitos em território nacional.
3 – O Tribunal a quo não tem competência internacional para partilhar bens em inventário situados no estrangeiro.
4 – O douto despacho recorrido ao ordenar a relacionação de bens situados nos EUA violou o disposto nos art.º 65º e 77º do C. P. Civil.
Conclui pela revogação da decisão recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foi proferido despacho de sustentação da decisão recorrida.

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1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, cumpre apreciar a seguinte questão:
Em processo de inventário na sequência de divórcio não devem ser relacionados os bens situados no estrangeiro?

2. Os factos

Com interesse para a decisão do presente recurso considerar-se-ão os seguintes factos:
I – Requerente e Requerida casaram no dia 16 de Julho de 1967, na Igreja Paroquial de Vila Verde, Figueira da Foz, sem convenção ante nupcial.
II – Por sentença transitada em julgado, proferida em 31 de Maio de 1999 nos autos de divórcio aos quais os presentes se encontram apensos, foi decretado o divórcio de Requerente e Requerida.
III – Encontra-se registada desde 06 de Setembro de 1995, nos respectivos serviços, em nome do Requerente, A..., a proprie­dade do prédio urbano destinado a habitação, sito em 95 Mill Road, New Bedford, Estado de Massachusetts, EUA.
IV – Em 10.12.1997, foi registado em nome do Requerente, A..., a propriedade do veículo automóvel marca Mercedes Benz, com a matrícula 50-10-KE.


3. O Direito

Importa determinar se os bens situados no estrangeiro devem ser relacionados em processo de inventário instaurado em Portugal.
Neste processo estamos perante um inventário requerido em consequência da dissolução do casamento entre Requerente e Requerida por divórcio, processo esse que, nos termos do art.º 1404º, n.º 3, do C. P. Civil, corre por apenso ao processo de divórcio e segue os termos prescritos para o inventário destinado a pôr termo à comunhão hereditária.
Neste processo especial, os bens que integram a comunhão são relacionados pelo cabeça-de-casal, o qual indicará o valor que lhes atribui – art.º 1345º e 1346º, ambos do C. P. Civil.
Inexistem dúvidas quanto à obrigatoriedade de relacionação de todos os bens que integrem o património a partilhar situados no território nacional, o que já não acontece relativamente àqueles que se situam no estrangeiro face à eventual impossibilidade de executar tal partilha.
O inventário é caracterizado pelo princípio da universalidade, sendo o seu objectivo a partilha de todos os bens e direitos que integram essa comunhão, seja hereditária ou conjugal, uma só vez, visando-se, desse modo uma partilha igualitá­ria. Com este processo pretende-se colocar termo a uma comunhão que engloba todos os bens que dela fazem parte, independentemente do local onde se situem.
Tem sido, contudo, debatida na jurisprudência e na doutrina a questão de saber se em processo de inventário instaurado em tribunal português, deverão ser relacionados e partilhados os bens situados em país estrangeiro relativamente ao qual não exista convenção ou tratado que assegure a eficácia das decisões judiciais portuguesas nesta matéria.
 A jurisprudência tem vindo a manifestar uma tendência para admitir que o valor dos bens situados no estrangeiro seja tido em conta, somente para o cálculo da quota disponível e correlativamente da legítima, embora esses bens não sejam partilhados [1].
De acordo com alguns autores [2] os tribunais portugueses são competentes para a partilha de bens situados no estrangeiro, independentemente da eficácia que seja reconhecida à decisão no Estado da situação dos bens, entendendo que nenhuma disposição processual exclui a competência dos tribunais portugueses para a partilha de bens situados no estrangeiro.
Outros, defendem a sua não inclusão no inventário com vista à partilha, mas tão só para apurar do valor da quota disponível, devendo posteriormente os interessados proceder, no tribunal da situação dos bens à partilha dos mesmos [3], visando-se com essa inclusão uma partilha igualitária.
De acordo com o preceituado no art.º 65º, do C. P. Civil, a competência internacional dos tribunais portugueses é atribuída por força de convenções internacionais ou, no caso de estas não existirem ou não se aplicarem, será dependente da verificação de alguma das circunstâncias enumeradas nas alíneas daquele preceito.
Nos termos do art. 65º, n.º 1, al. b), os tribunais portugueses poderão ser competentes se a acção dever ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.
 De acordo com o art. 75º, do C. P. Civil, tendo presente que estamos num processo que visa a partilha dos bens que integram a comunhão conjugal:
Para as acções de divórcio e de separação de pessoas e bens é competente o tribunal do domicílio ou da residência do Autor.
No entanto, considerando que à competência por conexão a que se refere o art.º 1404º, n.º3, do C.P. Civil, estão subjacentes, entre outros, os princípios da economia processual e da uniformidade de decisões que justificam plenamente a subalternização das regras de competência territorial, o tribunal territorialmente competente para o presente inventário é aquele onde correu termos a acção de divórcio.
Com fundamento no princípio da universalidade dir-se-ia que todos os bens a partilhar, independentemente do local onde se encontrem, deveriam ser relacionados e objecto de partilha, mesmo aqueles situados no estrangeiro.
No entanto, tendo presente que o processo de inventário admite desvios àquele princípio, nomeadamente com a realização de partilhas adicionais ou a remessa dos interessados para os meios comuns com vista ao apuramento da exis­tência dos bens e/ou da sua titularidade, parece-nos que, quanto aos bens situados no estrangeiro, também aquele princípio terá que ser postergado, quando não esteja assegurada, por convenção ou tratado, a eficácia da partilha efectuada pelo tribunal Português de bens situados em país estrangeiro.
Na verdade, violaria o princípio igualitário que preside a uma partilha, se relativamente a alguns bens a mesma não tivesse valor efectivo. Ao equilíbrio formal da repartição de bens efectuada não corresponderia um equilíbrio material, uma vez que a atribuição de alguns dos bens (os situados no estrangeiro) aos interes­sados não era exequí­vel.
Assim, não existindo qualquer convenção ou tratado do qual Portugal e os E.U.A. sejam subscritores, que assegure a eficácia da sentença de partilha que venha a ser proferida neste processo não deve ser aqui efectuada a partilha dos bens situados nos E. U. A..
E neste processo em particular nem sequer faz sentido falar da necessi­dade de relacionação para efeitos de cálculo da legítima, uma vez que não estamos perante um inventário aberto por óbito de alguém, mas sim para partilha de bens que integram uma comunhão conjugal.
Relativamente aos dois bens cuja falta foi objecto de reclamação apenas se provou que o imóvel se situa nos E.U.A., não se tendo apurado a localização do veículo automóvel em país estrangeiro.
Assim não deve ser reconhecida ao tribunal Português competência para proceder à partilha do imóvel objecto do incidente de reclamação, por se situar nos E.U.A.. devendo, por isso, o recurso ser julgado parcialmente procedente, revo­gando-se a decisão recorrida na parte em que reporta ao imóvel,  indeferindo-se, quanto a este bem, o incidente de falta de relacionação de bens deduzido por B....

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Decisão
Pelo exposto concede-se provimento parcial ao agravo interposto e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida na parte em que determinou a inclusão na relação de bens do imóvel sito nos E.U.A..

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Custas do incidente por Requerida e Requerente, na proporção respectivamente de 10% e 90%.
Custas do recurso por Requerente e Requerida, na proporção, respectivamente de 90% e 10%.

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                                                           Coimbra, 13 de Maio de 2008.


[1] Ver, neste sentido os seguintes Acórdãos.
    S. T. J., de 21.3.85, relatado por Belmiro Cerqueira, BMJ 345, pág. 355.
    S. T. J., de 25.6.98, relatado por Almeida e Silva, com sumário acessível em www.dgsi.pt, proc. 98B327;
    T. R. Porto, de 11.4.78, relatado por Costa e Sá, C. J., Ano III, pág. 806.
    T. R. Porto de 25.10.94, relatado por Paz Dias, com sumário acessível em www.dgsi.pt, proc. 9410188.
Em sentido contrário:
    Ac. do T. R. Porto, de 11.9.07, relatado por Henrique Araújo, acessível em www.dgsi.pt, proc. 0722005;

[2] Luís de Lima Pinheiro, in Direito Internacional Privado, Parte Especial, Edição de 1999, Almedina, pág. 281 e segs..
  Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, 4ª Edição, Almedina, Vol. I, pág. 461, e segs..

[3] Antunes Varela, in Anotação ao Acórdão do S. T.J., de 21.3.85, na R. L. J., ano 123º, pág. 122 e segs.