Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
164/22.2T8FVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ACORDO PARA CELEBRAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA SEBSEQUENTE A CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA.
OBRIGAÇÃO CUM POTUERIT
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 298.º, 1; 306.º, 1; 309.º; 689.º; 690.º; 778.º, 1 E 830.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Tendo sido acordado que a escritura pública, subsequente ao contrato promessa de compra e venda de imóvel, seria feita quando estivesse paga a dívida contraída junto da entidade bancária a favor de quem tinha sido constituída hipoteca sobre o imóvel, esta obrigação não é qualificável como obrigação cum potuerit.

II – O prazo de prescrição de 20 anos estabelecido no artigo 309.º do Código Civil aplica-se ao direito à execução específica do contrato previsto no n.º 1 do artigo 830.º do mesmo código e o seu início não depende do conhecimento da existência do direito por parte do credor.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,

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Juiz relator…………....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto………José Vítor dos Santos Amaral

2.º Juiz adjunto……….Luís Filipe Dias Cravo


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(…)

 


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Recorrente …………………..AA, viúva,

………………………………….BB e esposa CC.

………………………………….DD e marido, EE.

Recorrido……………………FF.


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I. Relatório

a) O presente recurso insere-se numa ação declarativa constitutiva, com processo comum, e vem interposto da sentença cujo dispositivo é o seguinte:

«1. Julgar procedente, por provada, a excepção peremptória de prescrição invocada pelo Réu, declarando prescrito o direito dos Autores à execução específica das promessas unilaterais de compra e venda constantes dos documentos de fls.14 e 15, e, em consequência,

2. Julgo totalmente improcedente a presente acção, absolvendo o Réu FF do pedido.

3. Condenar os Autores no pagamento das custas processuais por inteiro.»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte dos Autores, cujas conclusões são as seguintes:

«A. O tribunal a quo não procedeu a uma análise critica das provas que perante si foram produzidas, nem extraiu dos factos apurados as presunções impostas por lei e pelas regras da experiência, em flagrante violação do disposto no artigo 607.º, n.º 4 do CPC.

B. Os depoimentos da autora AA e da testemunha GG, conjugados com o regime do artigo 342.º do CC, impunham, forçosamente, que tivesse ficado provada a matéria de facto da al. B) dos factos não provados.

C. Os autores fizeram, como lhes competia, a prova dos factos constitutivos do seu direito (vide, a este respeito, a matéria de facto plasmada nas alíneas 5), 6), 7) e 8) dos factos provados).

D. A prescrição é incontestavelmente um facto extintivo do direito invocado pelos autores, pelo que, competia ao réu demonstrar que os falecidos HH e esposa, II informaram a 1.ª autora ou o seu falecido marido JJ de que já haviam liquidado o crédito bancário contraído junto da Caixa Geral de Depósitos e que estavam aptos para outorgar a escritura pública de compra e venda devida.

E. As partes, quando celebraram os contratos aqui em apreço, previram expressamente que a(s) escritura(s) pública(s) devida(s) só poderia(m) ter lugar quando os promitentes vendedores resolvessem amortizar o empréstimo.

F. Estamos, portanto, no caso dos autos, perante uma obrigação cum potuerit ou cum voluerit.

G. Não se verifica o decurso do prazo de prescrição previsto no artigo 309.º do Código Civil.

H. Como consta dos autos, o promitente vendedor, HH, faleceu no dia .../.../2021, pelo que, o prazo ordinário de prescrição só começou a correr depois de 04.08.2021.

I. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 306.º, n.º 3; 309.º; 342.º, n.º s 1 e 2 e 778.º do CC e 607.º, n.º 4 do CPC.

Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, destarte, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que julgue a ação procedente, por provada, com o que será feita, como é timbre deste Venerando Tribunal, a já costumada JUSTIÇA!»

c) O Réu contra-alegou e concluiu deste modo:

«1 As alegações de recurso, aliás, doutas, questionam, do ponto de vista do Recorrido, não a discrepância entre a verdade material que emana dos depoimentos prestados pelas testemunhas transcritos na sua peça processual, com relação à matéria que o tribunal a quo entendeu como não provada, mas sim o entendimento que os Recorrentes fazem acerca da convicção do Juiz relativamente à prova global produzida e que resulta da análise crítica e ponderada, à luz das regras da experiência comum, da normalidade da vida e da lógica.

2 Como dizia o professor Antunes Varela: a prova tem de contentar-se com certo grau de probabilidade de facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas da espécie para convencer o julgador (que conhece as realidades do Mundo e as regras da experiência que nele se colhem), da verificação ou da realidade do facto.

3 O Recorrido, impugna assim, o sentido e alcance das transcrições que os Recorrentes efectuaram no presente recurso, designadamente as ilacções que são tiradas dos depoimentos prestados em audiência por que versam sobre a validade dos documentos intitulados como “contratos promessa “

4 Como já alegado nos pontos 3 e 4 do presente recurso, as declarações de parte da Autora AA e da testemunha GG não são esclarecedoras quanto ao facto de não ter sido realizada a escritura, sendo prova que incubia aos AA e não o tendo logrado, deverá manter-se o facto da alínea B como não provado.

5 Tendo sido estipulado prazo para a realização da escritura, o prazo de prescrição começa a correr desde o momento em que o direito pode ser exercido ( cancelamento da hipoteca em 05/03/1991 )

6 O direito à execução especifica encontra-se prescrito atento que decorreram mais de 31 anos entre a data que o direito podia ser exercido/ 05/03/1991) e a data em que ocorreu a interrupção da prescrição por via da interpelação levada a cabo pelos Autores – 22/01/2022.

Termos em que, e nos demais de direito, se vem pugnar pela improcedência do recurso apresentado pelos Autores, devendo manter-se, nos seus precisos termos, a douta sentença proferida, modelo de simplicidade e de concisão e de inteligente aplicação do direito substantivo, com expurgação do acessório na análise crítica da prova.»

II. Objeto do recurso.

As questões colocadas pelo recurso são as seguintes:

1 – A primeira respeita à impugnação da matéria de facto.

Os recorrentes pretendem que dos depoimentos da autora AA e da testemunha GG (neta desta autora), conjugados com o regime do ónus da prova previsto no artigo 342.º do Código Civil, se conclua no sentido de ser declarada provada a matéria da al. B) dos factos não provados, ou seja, que «B) Os falecidos HH e esposa, II nunca informaram a 1.ª Autora ou o seu falecido marido JJ se haviam liquidado o crédito bancário contraído junto da Caixa Geral de Depósitos, nem nunca os interpelaram para a marcação da escritura pública de compra e venda.»

2 – Em segundo lugar, coloca-se a questão de saber se decorreu o prazo de 20 anos relativo à prescrição, previsto no artigo 309.º do Código Civil, sustentando os recorrentes posição negativa porque o promitente vendedor HH faleceu no dia .../.../2021 e o prazo da prescrição só começou a correr depois desta data porque estamos perante uma obrigação cum potuerit.

O Réu discorda sustentando que tendo sido estipulado prazo para a realização da escritura, o prazo de prescrição começou a correr desde o momento em que o direito podia ter sido exercido, ou seja, desde o cancelamento da hipoteca que onerava o imóvel, ou seja, desde 5 de março de 1991.

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto

1 – Como se disse, os recorrentes pretendem que com base nos depoimentos da autora AA e da testemunha GG e regras do ónus da prova, seja declarada provada a seguinte matéria: «B) Os falecidos HH e esposa, II nunca informaram a 1.ª Autora ou o seu falecido marido JJ se haviam liquidado o crédito bancário contraído junto da Caixa Geral de Depósitos, nem nunca os interpelaram para a marcação da escritura pública de compra e venda.»

Vejamos o que foi referido pela autora AA.

Disse que o seu marido e o irmão, seu cunhado, decidiram comprar a casa porque o seu cunhado pediu ao seu marido que o ajudasse a comprá-la porque ele não tinha dinheiro; quem a comprou foi o seu cunhado, mas o seu marido é que a pagou – minuto 09:08 –, tendo referido que fizeram uma promessa de compra e venda a favor do seu marido – minuto 09:47 – e foram ao cartório fazer o respetivo documento.

E que – minuto 12:36 –, em seu entender, o documento foi feito para segurar o dinheiro que tinham dado, tendo ficado combinado – minuto 13:22 – que um dia o prédio seria seu e do seu marido porque o seu cunhado não tinha filhos.

Mais referiu – minuto 14:38/15:00 – que ficaram «esquecidos daquilo, nunca mais falamos, a vida era madrasta, até nos esquecíamos.»

À pergunta sobre se – minuto 16:06/52 – alguma vez o seu cunhado lhes disse que podiam fazer a escritura, a autora não respondeu de imediato, de modo direto e claro e só ao minuto 18:06 disse «não», acrescentando que o seu cunhado nunca lhes devolveu o dinheiro – minuto 18:12 –, mas ao minuto 20:53 referiu que o seu cunhado nunca lhes disse para irem fazer a escritura e que às vezes – minuto 25:36 – o seu cunhado dizia para os filhos da autora, referindo-se à casa, que «isto é tudo vosso».

Disse ainda que no contrato promessa (falou apenas de um contrato) – minuto 20:05 – não se aludia a qualquer empréstimo feito pelo seu cunhado junto da CDG, acrescentando, como justificação, que o seu marido «tinha aquele dinheiro», isto é, o dinheiro necessário para a compra.

Quanto à testemunha GG (neta da autora AA).

Referiu que sabia dos negócios, por ser neta dos promitentes compradores e ter sido informada pelo seu falecido avô desses negócios, mas numa altura em que era jovem (minuto 14:21) e por ser apenas neta entendia que não tinha qualquer tipo de responsabilidade a assumir. Disse – minuto 02.15 – que tinha sido criada com os avós e sempre ouviu dizer que a casa que os seus tios habitavam era do seu avô e que se lembrava – minuto 05:57 – de ter visto os papéis (referindo-se aos contratos-promessa), e que o seu avô lhe tinha dito – minuto 06:14 – que os papéis tinham sido feitos em cartório, mas que ainda seria necessário fazer uma escritura.

Acrescentou – minuto 06:40 – que existia a intenção de se fazer a dita escritura, mas que a sua tia era uma pessoa muito doente, desde a morte do filho (estava sempre na cama – minuto 07:02), e como era uma família muito unida, por causa desta situação de doença deixou de fazer sentido falar da realização da escritura, até pela condição de saúde que a minha tia apresentava.

Referiu que o seu avô – minuto 14.16 – não lhe disse quando a escritura iria ser feita; que, mais tarde – minuto 10:27 –, o seu tio (promitente vendedor) foi para um lar e verbalizou que o tio FF estava a tomar conta das coisas.

Vejamos então.

Destes depoimentos retira-se que os falecidos HH e esposa II nunca informaram a autora AA ou o seu falecido marido de terem liquidado o empréstimo e que pretendiam fazer a escritura ou que tenham convocado os promitentes compradores para a respetiva realização.

A Autora AA foi suficientemente clara a esse respeito.

No entanto, as regras da experiência também nos indicam que essa informação nunca foi prestada aos Autores.

Antes de prosseguir cumpre ter em consideração que estamos perante um facto negativo a respeito do qual as exigências probatórias têm de ser menores, pois como é sabido, a prova de factos negativos, eliminando toda a dúvida razoável é, em regra, impossível.

Num caso como o dos autos é sempre possível conjeturar que tal informação pode ter sido prestada e que a autora já não se recorda, ou que foi apenas prestada ao marido da autora, etc.

É sempre viável, dizia-se, conjeturar uma qualquer hipótese possível e com isso impedir a formação da convicção no sentido desse facto negativo ter existido.

Porém, dada a menor exigência da prova nestes casos, cumpre referir que caso o casal HH e esposa II tivessem informado a Autora KK e marido que os primeiros já tinham pago o empréstimo, ou apenas que a escritura já podia ser celebrada, tal informação só podia ter, no contexto, uma finalidade, ou seja, marcar data para a realização da escritura prometida.

Ora, não se vislumbra qualquer razão para a Autora e o seu falecido marido terem declinado a celebração da escritura, tanto mais que com a escritura recuperavam o dinheiro facultado ao casal HH e esposa II.

Ou seja, se essa informação sobre a liquidação do empréstimo ou sobre a vontade de celebrar a escritura tivesse sido dada, ter-se-ia falado em família, nesse momento temporal, acerca da realização da escritura.

Mas é altamente improvável que tenha chegado a existir algum contato ou acerto entre todos com vista à realização da escritura em certa data ou datas, pois se esse contato ou até acordo tivesse ocorrido certamente era do conhecimento de alguns dos familiares e teria existido alguma razão para que essa intenção conjunta de realização da escritura não se tivesse concretizado, isto é, teria existido algum facto com capacidade suficientemente para impedir a realização da escritura e se tal facto tivesse existido não teria passado despercebido às testemunhas que vieram depor nos autos.

Como nada foi dito acerca desta matéria, isso leva a formar a convicção de que na realidade nunca houve qualquer contato ou acerto no sentido de celebrar a escritura.

Por conseguinte, o facto impugnado passará para os factos provados, com o n.º 19.

b) 1. Matéria de facto – Factos provados

1) Os Autores AA, BB e DD são os únicos e universais herdeiros de JJ, falecido em .../.../2018.

2) O Réu FF é o único e universal herdeiro de HH, falecido em .../.../2021, no estado de viúvo de II.

3) O falecido HH era o único e universal herdeiro de sua esposa pré-falecida, II.

4) Os falecidos HH e JJ eram irmãos.

5) Em .../.../1978, os falecidos HH e esposa, II, outorgaram documento escrito intitulado «Contrato Promessa de Compra e Venda», com reconhecimento presencial de assinaturas, através do qual declararam prometer vender a JJ, metade da fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., distrito ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...17 do livro ...7 e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo ...97.

6) O preço fixado para metade da fração autónoma foi de ESC.: 300.000$00 (trezentos mil escudos), o qual foi pago na totalidade por JJ e pela 1.ª Autora AA aos falecidos HH e esposa, II.

7) Em .../.../1987, os falecidos HH e esposa, II outorgaram documento escrito escrito intitulado «Contrato Promessa de Compra e Venda» com reconhecimento presencial de assinaturas onde prometem vender, a JJ, metade da mesma fração autónoma identificada em 4).

8) O preço fixado para a metade da fração autónoma foi de ESC.: 2.000.000$00 (dois milhões de escudos), tendo o falecido JJ, pago a totalidade do valor aos falecidos HH e esposa, II.

9) Em ambos os documentos escritos referidos em 5) e 7) foi declarado por HH e esposa, II que foi por eles efetuado «um empréstimo à Caixa Geral de Depósitos que estão a pagar a prestações.

Em face de tal empréstimo, não é acertado nem pode ter lugar a feitura da respetiva escritura pública, para nome do seu referido irmão e cunhado JJ, o que farão, tanto para ele como para quem legalmente o representar, logo que isso possa ser, designadamente, logo que resolvam antecipar a amortização do empréstimo».

10) Declararam ainda os outorgantes HH e esposa, II nos documentos escritos referidos em 5) e 7) que:

De qualquer maneira, obrigam-se além deste documento, a fazer tudo quanto for permitido e legal, para assegurar a importância recebida de dois milhões de escudos de que dão quitação, obrigando-se a restituir a mesma em dobro, quando se recusem a dar satisfação a qualquer exigência feita pelo promitente comprador ou por quem legalmente o represente e a responderem nos termos da lei ao caso aplicável, exigências que têm que ser feitas de harmonia com a lei e que os promitentes vendedores possam cumprir».

11) Com a outorga dos documentos referidos em 5) e 7), pretendiam os seus intervenientes que viesse a ser celebrada escritura pública de compra e venda que efetivasse a transmissão de propriedade da fração identificada em 5) para o falecido JJ, que tinha a pretensão de a adquirir, tendo estipulado como preço para esses negócios os valores indicados nesses documentos.

12) Sobre o imóvel descrito em 5) foi constituída hipoteca voluntária a favor da Caixa Geral de Depósitos, a qual foi registada sob a apresentação 09 de 06/02/1978, provisória por natureza e por dúvidas, para garantia de empréstimo do valor de 350.000$00, taxa de juro anual até 18,75%, despesas extrajudiciais de 14.000$00, com o montante máximo de 560.675$00, a qual foi convertida em definitiva pela apresentação 06 de 28/07/1978.

13) A hipoteca voluntária referida em 12) foi cancelada através da apresentação 05 de 05/03/1991.

14) A propriedade da fração identificada em 5) encontra-se atualmente registada a favor do Réu FF através da apresentação 1971 de 2021/08/25, tendo como causa «Sucessão Testamentária».

15) Pelo menos em 16/09/2021, os Autores tomaram conhecimento, através da consulta do registo predial, de que o crédito bancário contraído pelos falecidos HH e esposa, II foi integralmente amortizado junto da Caixa Geral de Depósitos, uma vez que se encontrava a respetiva hipoteca cancelada.

16) Em 17 de Janeiro de 2022, os Autores requereram a notificação judicial avulsa do Réu para marcar a escritura pública de compra e venda «(…) dentro do prazo, que se reputa razoável, de 15 dias contados da data da efetivação da presente notificação e notificando os requerentes da data e local para a realização da mesma, com a antecedência mínima de 5 dias, a fim de ser outorgada a escritura pública de compra e venda relativa à fração autónoma identificada supra, sob pena de, não o fazendo, os requerentes considerarem o contrato definitivamente não cumprido por culpa exclusiva do requerido».

17) A notificação judicial avulsa do Réu foi concretizada em 2 de fevereiro de 2022.

18) Nunca chegou a ser realizada a escritura pública de compra e venda da fração identificada em 4), mencionada nos documentos intitulados por «contrato promessa de compra e venda», nem com o falecido JJ ou com os seus herdeiros, aqui Autores, mesmo depois da interpelação referida em 16) e 17).

19 ) Os falecidos HH e esposa, II nunca informaram a 1.ª Autora ou o seu falecido marido JJ que haviam liquidado o crédito bancário contraído junto da Caixa Geral de Depósitos, nem nunca os interpelaram para a marcação da escritura pública de compra e venda.

2. Matéria de facto – Factos não provados

A) Que os escritos referidos em 5) e 7) dos factos provados foram celebrados entre os falecidos HH e esposa, II, e JJ e a 1.ª Autora.

B) [Passou para o facto provado 19].

C) Os falecidos HH e esposa, II deram conhecimento à 1.ª Autora e ao seu falecido marido JJ que haviam cancelado a hipoteca constituída a favor da Caixa Geral de Depósitos sobre o imóvel identificado em 5).

D) HH, quando interrogado pelo Réu sobre se havia alguma divida ou outro ónus no seu património, informou-lhe que tinha recebido dinheiro do seu irmão pela compra do imóvel identificado em 5), mas que o negócio nunca se chegou a realizar.

E) Os falecidos HH e esposa, II devolveram aos Autores ou a JJ as quantias entregues com a realização dos documentos escritos referidos em 5) e 7) dos factos provados.

F) Os documentos juntos pelos Autores sob os documentos n.º 3 e 4 com a petição inicial denominados «Contrato promessa de compra e venda» tiveram apenas como função servir de recibo de quitação para JJ, face às quantias por si entregues de 300.000,00 escudos e depois 2.000.000,00 de escudos, não tendo sido vontade das partes realizar qualquer contrato promessa.

G) As quantias entregues por JJ, referidas nos pontos 6) e 8) dos factos provados eram apenas uma parte do preço total acordado para o contrato prometido, constituindo um princípio de pagamento.

H) O documento escrito outorgado em 28/12/1987 teve como objeto a mesma metade, da fração identificada em 4), prometida vender através do documento escrito outorgado em 7/08/1978, sendo a quantia entregue o segundo pagamento face ao total do preço acordado.

I) JJ e esposa, ora 1.ª Autora não sabiam que HH e esposa tinham constituído hipoteca sobre a fração objeto de promessa a favor da Caixa Geral de Depósitos para garantia do empréstimo que haviam contraído, e que esta foi cancelada em 05/03/1991, e acreditaram que estes o avisariam quando tivessem amortizado o crédito.

c) Apreciação da restante questão objeto do recurso

Vejamos se decorreu o prazo de 20 anos, previsto no artigo 309.º do Código Civil relativo à prescrição.

A resposta é afirmativa pelas seguintes razões:

(I) Não estamos perante uma obrigação cum potuerit, prevista no n.º 1 do artigo 778.º (Prazo dependente da possibilidade ou do arbítrio do devedor), com esta redação:

«1. Se tiver sido estipulado que o devedor cumprirá quando puder, a prestação só é exigível tendo este a possibilidade de cumprir; falecendo o devedor, é a prestação exigível dos seus herdeiros, independentemente da prova dessa possibilidade, mas sem prejuízo do disposto no artigo 2071.º.»

Como referiram Pires de Lima/Antunes Varela, a respeito desta cláusula contratual, «O devedor compromete-se a cumprir somente quando as suas condições o permitirem (…). Normalmente, tratar-se-á da possibilidade económica do devedor; condicionada, por ex., à chegada de peças ou produtos importados, à satisfação prévia de encomendas anteriores, ao pagamento integral de uma dívida mais antiga, etc.; mas, tratando-se sobretudo de prestação de facto (escrever um artigo, compor uma obra, pintar um quadro), pode querer aludir-se antes à possibilidade material ou à disponibilidade de tempo» - Código Civil Anotado, 4.ª Edição. Coimbra Editora, 1997, pág. 26.

Ou seja, o devedor cumpre quando puder.

O que ficou acordado não foi que o devedor cumpriria quando pudesse.

Ficou acordada uma data, ou um lapso de tempo, determinável para esse efeito, isto é, a escritura seria feita quando estivesse paga a dívida contraída junto da entidade bancária a favor de quem tinham constituído hipoteca sobre o imóvel objeto da promessa de compra e venda.

É isto que resulta do facto provado 9: «Em ambos os documentos escritos referidos em 5) e 7) foi declarado por HH e esposa, II que foi por eles efetuado ‘um empréstimo à Caixa Geral de Depósitos que estão a pagar a prestações.

Em face de tal empréstimo, não é acertado nem pode ter lugar a feitura da respetiva escritura pública, para nome do seu referido irmão e cunhado JJ, o que farão, tanto para ele como para quem legalmente o representar, logo que isso possa ser, designadamente, logo que resolvam antecipar a amortização do empréstimo’».

Ou seja, a escritura seria feita a partir do momento, não antes, em que o empréstimo fosse pago.

Não estamos aqui perante uma incerteza dependente das possibilidades do devedor, mas sim perante uma certeza: quando estivesse paga a dívida hipotecária.

Esta dívida estaria paga ou na data prevista para a sua liquidação total, de acordo como o calendário contratual estipulado entre os réus e a entidade bancária para a sua amortização ou, então, em data anterior a esta, no caso dos Réus anteciparem o seu pagamento, como na realidade ocorreu, pois pagaram a dívida em  1991.

Estava, pois, fixado o prazo para o pagamento o qual não estava dependente de condições mais ou menos favoráveis quanto à pessoa do devedor (dos Réus).

 (II) No caso em análise, o direito prescritível é o direito à execução específica do contrato, direito previsto no n.º 1 do artigo 830.º do mesmo código, onde se dispõe o seguinte:

«Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.»

Nos termos do n.º 1 do artigo 298.º (Prescrição, caducidade e não uso do direito) do Código Civil, «Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.»

O direito à execução específica não está isento por lei de prescrição e não respeita a um direito indisponível, logo este direito está sujeito à prescrição.

 (III) Coloca-se agora a questão de saber desde quando se conta o prazo.

Nos termos do n.º 1 do artigo 306.º (Início do curso da prescrição) do Código Civil, «O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.»

Não se exige nesta norma, para se iniciar o prazo prescricional, que o credor tenha conhecimento do direito que lhe assiste.

Como referiu Vaz Serra, «Parece, realmente, que o princípio deve ser que o início da prescrição não é impedido pela ignorância do titular sobre a existência do direito e sobre a sua titularidade. Embora não haja então negligência do titular, ou possa não a haver, sempre há inércia da sua parte e a parte contrária não deve ficar à mercê da ignorância do titular, a qual, de resto, pode prolongar-se por muito tempo: não pode então dizer-se que a rescrição se funda numa presunção de renúncia ao direito, mas, como se viu, a razão de ser da prescrição não é só essa, intervindo também outras considerações e, entre elas, a da vantagem de segurança jurídica.

Mas isto não significa que a lei deva sempre manter-se neste princípio, e não deva, antes, para os casos em que isso se mostre especialmente razoável (e que são sobretudo casos de prescrição de curto prazo), fixar, para o início da prescrição, o momento em que o titular se acha em situação de facto que lhe permita exercer o seu direito.

É o que ela já hoje faz para as acções de anulação por causa de erro ou coação, pois declara que estas acções prescrevem pelo prazo de um ano, contado desde o dia em que o enganado teve conhecimento do erro (art.º 689.º) ou cessou a coação (art. 690.º)» - Prescrição e Caducidade. Boletim do Ministério da Justiça, n.º 105 (1961), pág. 198.

No mesmo sentido Menezes Cordeiro, quando diz que «Pelo sistema objetivo, o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que, disso, tenha ou possa ter o respectivo credor. Pelo subjectivo, tal início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito. O sistema objectivo é tradicional, sendo compatível com prazos longos; o subjectivo joga com prazos curtos e costuma ser dobrado por uma prescrição mais longa, objectiva (…). O artigo 306.º/1, 1.ª parte, adoptou o esquema objectivo: dispensa qualquer conhecimento, por parte do credor» - Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo IV. Almedina, 2005, pág.166.

Como se disse acima, atendendo às declarações contratuais, as partes acordaram no sentido da escritura ser feita a partir do momento, não antes, em que o empréstimo estivesse pago.

Estando provado – facto provado n.º 13 – «A hipoteca voluntária referida em 12) foi cancelada através da apresentação 05, de 05/03/1991», então cumpre concluir que em 5 de março de 1991 o empréstimo estava pago.

O prazo de prescrição de 20 anos estabelecido no artigo 309.º do Código Civil iniciou-se nesta data e completou-se em 5 de março de 2011, pois não é necessário para o início do prazo que o credor conheça o facto que o desencadeia.

(IV) Face ao exposto, cumpre julgar o recurso improcedente e manter a decisão recorrida.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelos Autores.


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Coimbra, …