Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
146/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 09/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1305.º; 1544.º; 1569.º, 2 E 3, DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGOS 523.º; 524; DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – A lei admite que os documentos supervenientes possam ser juntos com as alegações de recurso, depois do encerramento da discussão em 1ª instância, apenas, nos casos excepcionais, em que a sua apresentação não tenha sido possível, até ao aludido encerramento da discussão em 1ª instância.
II - Confrontando a situação do prédio serviente e dos prejuízos que para este e para os autores advêm da manutenção da servidão, com o facto de se não provar que o caminho onde esta se situa seja mais cómodo ou benéfico que o alternativo, importa considerar extinta a servidão, por desnecessidade, por não apresentar quaisquer vantagens significativas para os réus a sua continuação.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A... e mulher, B.. residentes na Rua da Casadinha, nº 5, Pedrulha, em Coimbra, propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra C... e mulher D..., residentes na Rua do Carvalheiro, São João do Campo, em Coimbra, pedindo que, na sua procedência, seja declarado que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio infra-identificado, condenando-se os réus a tal reconhecer, mais se declarando extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem que onera o prédio dos autores, a favor do prédio infra-descrito, sendo os réus condenados a tal reconhecer, abstendo-se, em consequência, de passar por esse prédio dos autores, alegando, para tanto, e, em síntese, que são donos e legítimos possuidores do prédio urbano inscrito na respectiva matriz da freguesia de S. João do Campo, sob o artigo 1098º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, sob o nº1023/19980721, e, por sua vez, que os réus são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, sito no mesmo lugar e freguesia, inscrito na matriz sob o artigo 800º, tendo estes sido condenados a reconhecer a propriedade do prédio dos autores, na acção ordinária que, sob o nº2915/04.8TJCBR, correu termos na 2ª Secção da Vara Mista de Coimbra.
Por outro lado, continuam, porque nesta acção os autores foram condenados a reconhecer que os réus possuem “…direito de passagem de pé e automóvel sobre aquele prédio para o seu prédio (…) através de um caminho, junto à extrema sul de ambos, com 3,5 metros de largura e 67 metros de comprimento, e a absterem-se de perturbar o exercício desse direito”, mas, também, porque o prédio dos ora réus possui um outro acesso, no seu extremo nascente, acesso esse que consiste numa via calcetada, com a largura de cerca de 3 metros e o comprimento de perto de 2 metros, e que foi aberto, no decurso do ano de 2004, o prédio não se encontra encravado, tornando-se, supervenientemente, desnecessária a oneração do prédio dos autores.
Na contestação, os réus suscitam a excepção do caso julgado, face à anterior decisão da acção ordinária nº 2915/04.8, impugnam a existência de um outro acesso ao seu prédio, pois que apenas têm uma autorização precária para passar pelo caminho aí existente, além de que constitui uma passagem muito mais perigosa e que não dá acesso à garagem onde guardam o carro, a que acresce que os autores continuam a perturbar o exercício do direito de passagem que lhes está reconhecido, pelo que, com base em tal, e na ansiedade que este facto tem causado aos réus, que, particularmente, quanto à ré mulher, tem provocado doença e despesas com o seu tratamento, deduzem pedido reconvencional contra os autores, para que estes sejam condenados a reconhecer e respeitar o pleno direito dos réus aquela passagem, abstendo-se de a perturbar ou dificultar, bem como a pagar à ré a quantia total de €2.655,26.
Na réplica, os autores defendem a improcedência das excepções invocadas e bem assim como do pedido reconvencional formulado pelos réus.
No despacho saneador, não foi admitida a reconvenção, no que respeita ao pedido indemnizatório deduzido pela ré mulher, julgando-se, outrossim, improcedente a excepção do caso julgado.
A sentença julgou a acção, improcedente por não provada, e, em consequência, absolveu os réus do pedido de extinção, por desnecessidade, do direito de passagem de que o prédio urbano destes, com a inscrição matricial sob o artigo 800º, beneficia, sobre o prédio urbano dos autores, com a inscrição matricial sob o artigo 1098º, ambos da freguesia de S. João do Campo, e a reconvenção, na parte em que, processualmente, foi admitida, procedente por provada, e, em consequência, condenou os autores a reconhecer e respeitar esse direito de servidão de passagem dos réus, em que aqueles foram condenados, na acção ordinária nº 2915/04.8TJCBR, devendo os autores, em definitivo, abster-se de, por qualquer meio, perturbar, obstruir ou dificultar o normal exercício do direito de servidão do referido prédio, por parte dos réus.
Desta sentença, os autores interpuseram recurso de apelação, onde sustentam a sua revogação, com a consequente declaração de extinção da servidão que onera o seu prédio, a favor do prédio dos réus, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª – A decisão recorrida estriba o argumento de que se não provou a desnecessidade da serventia em causa nos presentes autos, essencialmente, na resposta dada a três pontos da matéria de facto, a saber: que os réus possuem direito de passagem de pé e automóvel sobre o prédio dos autores para o seu prédio; que o acesso alternativo à serventia e directamente confinante com a estrada se situa a cerca de 20/30 m de uma curva que não permite ver a aproximação de uma viatura; que tal entrada não dá acesso à garagem onde os réus guardam o carro.
2ª - Não se conformam, antes de mais, os recorrentes, com a resposta dada aos quesitos 13° e 14° da base instrutória.
3ª - Efectivamente, no que diz respeito à invocada falta de visibilidade do acesso alternativo à serventia (quesito 13°), é o documento ora junto sob doc. n° 1, ao abrigo do disposto no art. 706°, n° 1 e 524°, n° 2 do CPC, que vem impor decisão de facto diferente da vertida na douta sentença, porquanto, desde o passado dia 17 de Janeiro de 2007, já em momento posterior ao encerramento da discussão sobre a matéria de facto, a via em causa passou a ser via de sentido único Nascente/Poente.
4ª - Em resultado da superveniência de tal facto, a resposta ao quesito 13° da base instrutória sempre terá que ser "não provado", uma vez que deixaram de circular na via em questão quaisquer veículos que eventualmente os réus pudessem ter dificuldade em visualizar desde o seu acesso nascente.
5ª - Já no que concerne ao facto, dado como provado, de que a entrada pelo acesso situado a nascente do prédio não permite a utilização da garagem, mal andou o Mmo Juiz a quo, em face da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, em se limitar a dar o quesito 14° da base instrutória como provado, sem cuidar de especificar que, além da que confina directamente com a serventia, existe outra garagem no terreno dominante, a qual é susceptível de acesso através do portão situado a nascente do prédio e onde são guardados veículos automóveis, como resultou do depoimento conjugado das testemunhas Alfredo Duarte Cotrim Sá e Diogo Ferreira Pratas, respectivamente genro e filho dos réus, e da própria inspecção ao local.
6ª - Em consequência da relevância que na sentença recorrida foi atribuída à
possibilidade de utilização pelos réus de uma das suas garagens, efectuaram os autores requerimento à Câmara Municipal de Coimbra no sentido de apurar da legalidade das operações urbanísticas operadas pelos réus no seu prédio, tendo apurado que os anexos existentes no prédio dos réus não só não se encontram licenciados como foram mesmo objecto de processo de contra-ordenação e embargo camarário, situação que se mantém por regularizar até à presente data (cfr. doc. n° 1, já junto).
7ª - Nos termos do disposto no art. 1569°, n° 2 do Código Civil, é facultada ao proprietário do prédio serviente a faculdade de requerer a extinção da servidão desde que esta se mostre desnecessária ao prédio dominante.
8ª - Tal desnecessidade deverá ser aferida objectivamente, por referência ao prédio dominante, e não aos interesses subjectivos dos seus proprietários, nunca perdendo de vista o necessário juízo de proporcionalidade entre os interesses a restringir.
9ª - No caso em apreço, a proceder a pretendida alteração da matéria de facto dada como provada, falecem motivos que sustentem a necessidade de manutenção da servidão, provada que está a existência de um acesso alternativo ao prédio.
10ª - Ainda que assim se não entenda, sempre a decisão a quo se mostra violadora do disposto nos art. 1569°, n°2 do Código Civil e 17° e 18° da Constituição da República Portuguesa, por referência ao art. 62° do mesmo diploma legal, por manifesta desconsideração do princípio da proporcionalidade na restrição do direito de propriedade dos autores e por basear o juízo de necessidade da servidão no interesse subjectivo dos proprietários do prédio dominante ao invés de se estribar no interesse objectivo daquele mesmo prédio.
11ª - Nos termos das normas legais referidas no precedente ponto 10, deveria a douta sentença recorrida ter decidido no sentido de que a existência de um acesso autónomo e em excelentes condições de utilização à via pública no prédio dominante configura no caso em apreço uma situação de desnecessidade objectiva da servidão para o mencionado prédio, sendo que em respeito pelo princípio da proporcionalidade se deverá admitir a restrição do direito dos réus a parquearem o seu veículo e numa das garagens disponíveis e que construíram em desrespeito pelas normas urbanísticas em vigor, em favor do direito dos autores ao gozo pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre o prédio serviente, livre do pesado ónus que uma servidão com a extensão da presente lhe impõe.
Nas suas contra-alegações, os réus entendem que deve ser mantida a sentença recorrida, julgando-se improcedente o recurso.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
II – A questão da extinção da servidão, por desnecessidade.

I. DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Os autores sustentam que a resposta ao ponto nº 13 da base instrutória deve ser de “não provado”, com base no teor de um documento proveniente da Câmara Municipal de Coimbra, que juntaram aos autos, após a prolação da sentença recorrida, mas que retrata uma situação que se modificou no lapso de tempo que mediou entre o encerramento da audiência de discussão e julgamento e a data da publicação da sentença.
A regra geral quanto à oportunidade da junção de documentos posteriores ao encerramento da discussão em 1ª instância deve ser encontrada, através da interpretação conjugada dos artigos 523º e 524º, ambos do CPC, sendo ainda de destacar que este último normativo preceitua que “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento”.
Sendo princípio fundamental o de que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com os articulados em que se aleguem os factos correspondentes, ou, na impossibilidade, até ao encerramento da discussão em 1ª instância, como decorre do disposto no artigo 523º, nºs 1 e 2, a lei admite, igualmente, por força do estipulado pelo artigo 524º, nº 1, citados, que, depois deste último momento [encerramento da discussão em 1ª instância], os documentos supervenientes possam ser juntos com as alegações de recurso, mas, ainda assim, apenas, nos casos excepcionais em que a sua apresentação não tenha sido possível, até ao encerramento da discussão em 1ª instância.
Assim sendo, reportando-se a informação, constante de folhas 191 a 196, emitida pela Câmara Municipal de Coimbra, a 14 de Maio de 2007, que os autores juntaram aos autos, dois dias depois, à alteração verificada das regras de trânsito rodoviário, que se consumaram, no passado dia 17 de Janeiro de 2007, com eventual influência na resposta ao aludido ponto da base instrutória, tendo os autores justificado, razoavelmente, a sua junção, em data posterior, importa declarar a relevância da sua admissão, com vista a obter melhores elementos de prova que coadjuvem na obtenção da resposta em causa.
Com efeito, resulta do teor da citada informação que, em consequência de deliberação da Câmara Municipal de Coimbra, datada de 17 de Julho de 2006, sob proposta da Junta de Freguesia de S. João do Campo, a Rua do Carvalheiro, situada do lado Nascente do prédio dos réus e que o serve, em virtude de o trânsito se efectuar com dificuldade, face à exiguidade da via, passou a ter implantada uma placa de sentido único, Nascente/Poente, desde 17 de Janeiro de 2007.
Como assim, constando da resposta ao ponto nº 13 da base instrutória, que “a via referida na al. D) situa-se a cerca de 20/30 m de uma curva que não permite ver a aproximação de uma viatura”, passará o mesmo a ficar redigido, em consequência do exposto, de forma a que “a via referida na al. D) situa-se a cerca de 20/30 m de uma curva”.
Porém, os autores pretendem ainda a alteração da resposta ao ponto nº14 da base instrutória, defendendo que o mesmo deve ser considerado como “não provado”.
Efectivamente, perguntando-se, no aludido ponto nº 14º, se “[a via calcetada referida em D)] não dá acesso à garagem onde os RR. guardam o carro?”, nenhuma das testemunhas cujo depoimento foi objecto de gravação, ou seja, Eduardo Cardoso, Ângelo Oliveira, Maria do Céu Gandarez, Maria da Conceição Gandarez, Alfredo Sá, Telmo Pratas, António Pistola e Deolinda Ferreira se pronunciou, minimamente que fosse, neste particular, sendo certo, outrossim, que o auto de inspecção judicial é, totalmente, omisso a este respeito.
Nestes termos, importa considerar que a resposta adequada ao mencionado ponto nº 14 da base instrutória é a de “não provado”.
Assim sendo, este Tribunal da Relação entende que se devem considerar como demonstrados os seguintes factos, incluindo dois novos factos resultantes de documentos existentes nos autos:
Os autores são donos do prédio urbano, sito na rua do Carvalheiro, freguesia de São João do Campo, em Coimbra, composto por barracão de r/c amplo, para recolha de alfaias agrícolas, a confrontar de Norte com José Ramiro, de Sul com José Birrante, de Nascente com D... e de Poente com Maria da Conceição Ferreira Gandarez, inscrito na respectiva matriz predial de S. João do Campo, sob o artigo nº 1098º e descrito na CRPredial de Coimbra, sob o nº 1023/19980721 - A).
Os réus são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, sito nos mesmos lugar, freguesia e concelho, composto por casa de habitação de rés do chão e sótão amplo, com a área coberta de 99 m2 e descoberta de 55 m2, a confrontar de Norte com Manuel Ferreira Gandarez Pistola, de Sul com José Ferreira Gandarez Pistola, de Nascente com António Ferreira Pistola e de Poente com os ora autores, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de S. João do Campo, concelho de Coimbra, sob o artigo 800º - B).
Através de sentença, transitada em julgado, proferida na acção de processo ordinário, com o nº 2925/04.8TJCBR, que correu termos pela 2ª Secção da Vara Mista de Coimbra, os ora réus foram condenados a reconhecer a propriedade dos autores sobre o prédio, identificado em A), e os ora autores foram condenados a reconhecer que os aqui réus possuem “direito de passagem de pé e automóvel sobre aquele prédio para o seu prédio…”, “…através de um caminho, junto à extrema sul de ambos, com 3,5 metros de largura e 67 metros de comprimento, e a absterem-se de perturbar o exercício desse direito” - C).
Do lado nascente do prédio dos réus existe uma via calcetada com, pelo menos, 2 metros de largura e 3 metros de comprimento, limitada, lateralmente, por dois muros, onde se encontra inserida a “caixa” da água, bem como um portão automático - D).
O prédio dos réus possui este outro acesso, no seu extremo nascente, em local oposto aquele em que se situa a supra-mencionada servidão, aludida em C) – 1º.
Acesso esse que consiste na referida via calcetada - 2º.
Os muros foram mandados edificar pelos réus - 3º.
Foram os filhos dos réus que edificaram os muros e o portão eléctrico - 4º.
Tal acesso foi aberto pelos réus, no decurso do ano de 2004 - 5º.
O qual possibilita a sua utilização, quer a pé, quer de bicicleta, automóvel ou camioneta - 6º.
O portão encontra-se dentro da propriedade dos réus - 7º.
O prédio dos réus confronta, a Nascente, com a propriedade do Sr. António Ferreira Pistola, e, também, através da via calcetada, aludida em D), com a estrada - 8º.
A faixa de terreno, referida em D), foi cedida pelo Sr. António Ferreira Pistola aos réus, de forma definitiva - 10º.
Ter colocado a caixa de água naquele local saiu menos dispendioso para os réus - 11º.
A via, referida em D), situa-se a cerca de 20/30 m de uma curva - 13º.
Os autores, pontualmente, têm colocado detritos vários no caminho da servidão - 15º.
A sentença, aludida em C), reconheceu que o direito de passagem dos réus, de pé e automóvel, para o seu prédio, através do prédio dos autores, se constituiu por usucapião, afastando a via da destinação de pai de família, por se ignorar se os sinais visíveis e reveladores existiam à data da separação dos prédios do único dono – Documento de folhas 9 a 16 verso.
Os réus não são detentores do licenciamento de utilização da moradia de habitação, aludida em B), encontrando-se o anexo a ser utilizado como garagem, cozinha e arrumos do andar, edificado sem licença municipal, tendo sido objecto de embargo administrativo, e aqueles sujeitos activos de um processo de contra-ordenação – Documento de folhas 191 a 196.

2. DA EXTINÇÃO DA SERVIDÃO

Dispõe o artigo 1569º, nº 2, do Código Civil (CC), que “as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”, acrescentando o respectivo nº 3 que “o disposto no número anterior é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição;…”.
Efectivamente, constituindo a servidão predial, segundo a noção dada pelo artigo 1543º, do CC, “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente;…”, aumentando ou podendo aumentar o valor do prédio dominante, através do qual são gozadas as utilidades objecto da servidão, em detrimento do valor do prédio serviente, em conformidade com o estatuído pelo artigo 1544º, do mesmo diploma legal, tornando-se desnecessária essa utilização, por razões ligadas à regular utilização do prédio encravado, deve cessar a servidão.
Este encargo representa uma excepção ao princípio geral do conteúdo, tendencialmente, ilimitado do direito de propriedade, consagrado pelo artigo 1305º, do CC, o qual, portanto, enquanto excepção, deve extinguir-se, o mais breve possível, de modo a que o direito de propriedade retome a sua plenitude, de acordo com a sua vocação originária.
De facto, a finalidade do artigo 1569º, nºs 2 e 3, do CC, consiste em libertar os prédios onerados de encargos desnecessários que os desvalorizam, sem que, em contrapartida, valorizem o prédio dominante, sendo certo que onde não há necessidade não se justifica o encargo, que, em princípio, é causa de prejuízos para o prédio serviente .
Efectivamente, a servidão de passagem que os autores, enquanto proprietários do prédio serviente, pretendem ver declarada extinta, constituiu-se por usucapião e não por destinação de pai de família, por falta dos indispensáveis pressupostos essenciais, sem embargo da análise crítica, então, realizada sobre esta questão, com a qual as partes se conformaram, e consequentemente, desde que se demonstre a sua desnecessidade para o prédio dominante, pode o Tribunal, de harmonia com o normativo legal acabado de citar, considerá-la como extinta, em conformidade.
A desnecessidade, como causa ou fundamento da extinção da servidão, tem de ser superveniente , objectiva, típica e exclusiva, caracterizando-se por uma mudança na situação, não do prédio serviente, mas do prédio dominante, por uma perda de utilidade para este, em virtude de determinadas alterações nele sobrevindas, não se confundindo com a desnecessidade subjectiva, que assenta na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito .
Por outro lado, não basta que, para além da passagem objecto da servidão, exista outra via de acesso ao prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que este outro acesso ofereça condições de utilização similares, ou, pelo menos, não, desproporcionalmente, agravadas.
O que a lei pretende é uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao julgador a avaliação, segundo uma prognose de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo, da existência de alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio encravado, permita vir a ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente, garantindo uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente .
Revertendo à hipótese dos autos, no que concerne com a questão essencial a decidir, importa reter que os réus possuem o direito de passagem para o seu prédio, de pé e automóvel, sobre o prédio dos autores, através de um caminho, junto à extrema sul de ambos, com 3,5 metros de largura e 67 metros de comprimento.
Por seu turno, do lado nascente do prédio dos réus, existe uma via calcetada, com, pelo menos, 2 metros de largura e 3 metros de comprimento, limitada, lateralmente, por dois muros, que confronta a Nascente, através desta, com a estrada, e que possibilita a utilização, quer a pé, quer de bicicleta, automóvel ou camioneta, por onde os réus, na sua extrema nascente, têm acesso, situada numa faixa de terreno que lhes foi cedida, a título definitivo, por António Ferreira Pistola, mas distinta e em local oposto aquele em que está implantada a supra-mencionada servidão, junto à extrema sul de ambos os prédios.
Assim, se um prédio pode, facilmente, sem excessivo incómodo ou dispêndio, obter comunicação com a via pública, não se justifica a manutenção da servidão, como já não encontra suporte, neste momento, a sua constituição inicial, com base no estipulado pelo artigo 1550º, do CC, pela simples mas decisiva razão de que tal prédio não pode ser considerado encravado.
Confrontando a situação do prédio serviente e dos prejuízos que para este e para os autores advêm da manutenção da servidão, com o facto de se não provar que o caminho onde esta se situa seja mais cómodo ou benéfico que o alternativo, importa considerar extinta a servidão, por desnecessidade, por não apresentar quaisquer vantagens significativas para os réus.
Porém, pressupondo o conceito de desnecessidade uma mudança na situação do prédio dominante, por força das alterações, entretanto, sobrevindas, poder-se-á dizer que a utilização, sempre possível, do prédio serviente perdeu utilidade para o prédio dominante?
Efectivamente, a sentença recorrida, considerando que se provou que a nova via calcetada não dá cesso à garagem onde os réus guardam o carro e que este novo acesso conflui próximo de uma curva, com pouca visibilidade, existente na respectiva estrada pública em que se situa, declarou não demonstrada a desnecessidade da servidão.
Porém, a alteração que decorre do julgamento da matéria de facto, a que se procedeu neste acórdão, retirou da factualidade consagrada a situação de “curva sem visibilidade” e bem assim que “a via calcetada…não dá acesso à garagem onde os réus guardam o carro”.
Assim sendo, os autores realizaram, como lhes competia, a prova da desnecessidade da servidão, que invocaram como fundamento da acção, com base no disposto pelo artigo 342º, nº 1, enquanto que, ao invés, os réus não efectuaram a demonstração de sinal contrário, correspondente ao pedido reconvencional que deduziram, atento o estipulado pelo artigo 342º, nº 2, do CC, razão pela qual importa concluir pela procedência da acção, com o consequente inêxito da reconvenção.

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CONCLUSÕES:

I – A lei admite que os documentos supervenientes possam ser juntos com as alegações de recurso, depois do encerramento da discussão em 1ª instância, apenas, nos casos excepcionais, em que a sua apresentação não tenha sido possível, até ao aludido encerramento da discussão em 1ª instância.
II - Confrontando a situação do prédio serviente e dos prejuízos que para este e para os autores advêm da manutenção da servidão, com o facto de se não provar que o caminho onde esta se situa seja mais cómodo ou benéfico que o alternativo, importa considerar extinta a servidão, por desnecessidade, por não apresentar quaisquer vantagens significativas para os réus a sua continuação.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, declarando que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio supra-identificado, e condenando os réus a tal reconhecer, mais declarando a extinção, por desnecessidade, da servidão de passagem que onera o prédio dos autores, a favor do prédio dos réus, supra-identificado, sendo estes condenados a tal reconhecer e, em consequência, a abster-se de passar pelo referido prédio dos autores, julgando ainda, reflexamente, improcedente por não provado, o pedido reconvencional formulado pelos réus, na parte em que, processualmente, foi admitido.

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Custas, a cargo dos réus-apelados.