Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
955/14.8TBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
DOAÇÃO
MÁ FÉ
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/08/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 963 E Nº 1 DO ART.º 612 DO C. CIVIL
Sumário: 1. As doações com cláusula modal a que se refere o art.º 963 do C. Civil – aquelas em que são impostos encargos ao donatário – não deixam de ser negócios gratuitos.
2. Assim sendo, nos termos do nº 1 do art.º 612 do C. Civil, na impugnação pauliana que deduza contra uma doação desse tipo não carece o credor impugnante de provar ou alegar a má fé de qualquer dos intervenientes no negócio.
Decisão Texto Integral:





Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e mulher B... instauraram no J1 da Secção Cível da Instância Central de Leiria, Comarca de Leiria, uma acção declarativa sob a forma de processo comum contra C... e ASSOCIAÇÃO D.... pedindo que se declare a ineficácia da doação com reserva de usufruto do imóvel identificado na p.i., na qual foram outorgantes a 1ª Ré, como doadora, e a 2ª Ré, como donatária; e, bem assim, que os AA. têm o direito de executar o imóvel doado no património da 2ª Ré e de praticar todos os actos de conservação da garantia patrimonial destinada à integral satisfação do seu crédito.

Para tanto, alegam que são credores da 1ª Ré da quantia de € 74.234,44; que esta Ré se obrigou a transmitir-lhes a propriedade da fracção autónoma melhor id. na p.i. ou a vendê-la a terceiros por forma a reembolsá-los da aludida quantia; apesar disso, reservando para si o usufruto vitalício, veio a 1ª Ré a doar à 2ª Ré a dita fracção por escritura pública de 30.12.2010, impondo à donatária o encargo de cuidar da doadora até ao fim da sua vida mediante os termos ali definidos; ao outorgarem a referida escritura, ambas as Rés não só sabiam que impossibilitavam, como efectivamente impossibilitaram, o pagamento pela 1ª Ré aos AA. da quantia em dívida, como agiram com o intuito de evitar que tal acontecesse.

Contestaram as Rés, defendendo-se por impugnação e terminando com a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.

Os AA. responderam concluindo como na petição inicial.

A final foi a acção julgada improcedente por não provada e as Rés absolvidas dos pedidos.

Irresignados, deste veredicto recorreram os AA., recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

                                                                                  *

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância sem qualquer espécie de impugnação:

1) Escritura intitulada de “Doação”, de 30/12/2010, de fls. 73-77, sobre: - fracção autónoma designada pela letra A, descrita na Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha com o n.º 2 (...) /19980218-A, pela qual C... declarou doar, reservando para si o usufruto vitalício, à Associação D... , a referida fracção autónoma, e esta, declarou aceitar a doação, com o encargo de receber C... “e cuidar da mesma até ao fim da sua vida. Sendo que bastará a doadora notificar por carta registada com aviso de recepção com a antecedência de quinze dias a sua pretensão de dar entrada no Lar E... , pertencente à donatária. Após a entrada no lar a doadora fará entrega a título de remuneração, de oitenta por cento da sua pensão de reforma ou invalidez. Os frutos resultantes do usufruto da fracção autónoma ora doada, após a sua entrada no referido lar, serão destinados em cinquenta por cento para a doadora e cinquenta por cento para a donatária (…)” (facto assente A).

2) Processo 2011/08.9TBCLD (facto assente B).

3) Em 2009, os Autores e C... acordaram: - que os Autores entregariam 74.234,44 euros, para pagamento da quantia devida por C... na execução 2011/08.9TBCLD, - C... alienaria a fracção referida em 1) aos Autores, livre de ónus e encargos, ou venderia a mesma a terceiros, de forma a restituir aos Autores a quantia de 74.234,44 euros (resposta ao art. 1.º da base instrutória).

4) Atento o referido em 3, em 30/11/2009 os Autores entregaram 74.234,44 euros à ordem do SE na execução 2011/08.9TBCLD (resposta ao art. 2.º da base instrutória).

5) C... não restituiu aos Autores a quantia de 74.234,44 euros (resposta ao art. 3.º da base instrutória).

6) Ao proceder como referido em 1, C... quis impossibilitar, como impossibilitou, o pagamento coercivo das quantias referidas em 3 a 5, sabendo que não tinha mais bens susceptíveis delas ressarcir coercivamente [os AA.], no intuito de evitar a sua cobrança coerciva (resposta aos arts. 4.º a 6.º da base instrutória).

7) Ao proceder como referido em 1, a Associação D... , sabia que C... tinha dificuldades financeiras.

8) Pretendendo cumprir com o referido em 1, a Associação D... tem despendido dinheiro, com o IMI da fracção autónoma aí referida, e com serviços prestados à Ré C... .

    

                                                                          *

A apelação.

Nas conclusões com as quais encerram a respectiva alegação, os Autores levantam as questões de saber:

Se a doação efectuada pela 1ª Ré em 30.12.2010 é uma acto gratuito, implicando que para a impugnação pauliana desse acto não deva ser exigida a má fé do devedor e do terceiro;

Assim sendo, se a impugnação deduzida deve ser julgada totalmente procedente.

Sobre a natureza do doação constante da escritura pública de 30.12.2010.

Em causa nos presentes está a impugnação pauliana que os AA. deduzem contra as Rés pelo facto de com a doação do imóvel que lhe pertencia, m. id. nos autos – fracção autónoma designada pela letra A, descrita com o nº 2 (...) /19980218-A – as Rés terem provocado a impossibilidade de satisfação do seu crédito de € 72.234,44.

A sentença recorrida, embora qualificando aquele negócio como uma doação com encargo modal, entendeu sem deixar de observar não ser essa a orientação dominante na jurisprudência – que ele tinha carácter oneroso uma vez que o encargo imposto se deveria configurar como uma verdadeira prestação (contra-prestação ou correspectivo da doação); e que – por desse modo se ter de qualificar o negócio objecto de impugnação – não estavam os AA. dispensados de provar a dos intervenientes – a 1ª Ré, devedora e doadora, e a 2ª Ré como donatária – tal como é estatuído pelo art.º 612, nº 1, do CC.

Daí que, perante o insucesso dos Autores na prova desse essencial requisito – como parte com ela onerada – nada pudesse salvar a pretensão impugnatória.

Não obstante o notável esforço argumentativo que a decisão recorrida desenvolve na demonstração da natureza onerosa do negócio impugnado, afigura-se-nos não ser essa a melhor doutrina.

Se não vejamos.

Está consignado no acervo fáctico indiscutido no recurso que:

Por escritura pública de 30/12/2010, junta a fls. 73-77, a Ré C... declarou doar o imóvel (fracção autónoma) aí melhor identificado, reservando para si o usufruto vitalício, à Ré Associação D... – que declarou aceitar a doação – com o encargo de receber aquela doadora “e cuidar da mesma até ao fim da sua vida. Sendo que bastará a doadora notificar por carta registada com aviso de recepção com a antecedência de quinze dias a sua pretensão de dar entrada no Lar E... , pertencente à donatária. Após a entrada no lar a doadora fará entrega a título de remuneração, de oitenta por cento da sua pensão de reforma ou invalidez. Os frutos resultantes do usufruto da fracção autónoma ora doada, após a sua entrada no referido lar, serão destinados em cinquenta por cento para a doadora e cinquenta por cento para a donatária (…)”.

Qualificou a sentença esta doação como doação modal, qualificação que merece a nossa inteira concordância.

Com efeito, a adstrição de encargos às doações está expressamente contemplada no art.º 963 do C. Civil sob a epígrafe “Cláusulas modais”.

A imposição de um encargo a uma liberalidade não se confunde com a estipulação das chamadas condições impróprias. Tal como a condição, o encargo é uma cláusula acessória típica e integra a chamada cláusula modal, pois modera, isto é, limita, a liberalidade pura[1].

Nos termos do disposto nos art.ºs 963, nº 1, e 966 do CC, sendo as doações oneradas com encargos, admite-se a sua resolução pelo doador "fundada no não cumprimento desses encargos, quando esse direito lhe seja contratualmente conferido".

Como advertem Pires de Lima e Antunes Varela[2] " (...) os encargos modais, estruturalmente, não diferem de qualquer outro vínculo obrigacional (...). A obrigação ou dever imposto ao donatário tanto pode ter por objecto a coisa doada ou parte dela, como uma coisa estranha à doação ou um facto positivo ou negativo do onerado, e tanto pode reverter a favor do doador, como de terceiro, como de pessoa indeterminada, como ser ainda estabelecido no próprio interesse do donatário".

Desta configuração do encargo que onera o donatário na doação modal resulta que ele não apresenta qualquer equivalência com o conceito técnico da prestação no cumprimento da obrigação (ou contraprestação) a que se reporta o art.º 762, nº 1, do C. Civil, visto que ele até pode servir um interesse económico do próprio donatário, sem embargo de, nessa hipótese, também se poder falar de um mero interesse moral do doador na concretização do encargo.

Trata-se de uma limitação ou restrição da própria liberalidade.

Daí que o art.º 966 do CC preveja a possibilidade da doação ser resolvida pelo doador ou seus herdeiros com base no não cumprimento dos encargos. Ou seja, a lei deixa ao arbítrio do doador ou dos seus herdeiros a manutenção da liberalidade na situação de incumprimento dos encargos.

O encargo não confere ao doador um autónomo direito de crédito sobre o doador: ele integra-se – é acessório da liberalidade, e só nessa medida pode ser exigido ao donatário – art.º 965 do C.C.. 

Como se escreveu no Ac. desta Relação de 24.04.2012, relatado pelo Desembargador aqui 2º Adjunto, disponível em www.dgsi.pt.[3] a prestação do donatário em que o encargo se reconduz é uma “atribuição meramente consumptiva ou a latere do donatário”, não sendo “suficiente para excluir a natureza gratuita deste tipo de doação”.

Vale isto por dizer que restrição à liberalidade em que o encargo praticamente se traduz, não obstante subtrair valor à disposição, não chega a descaracterizá-la como acto fundamentalmente gratuito.

É a graciosidade do acto do disponente que justifica e explica que através do valor do encargo, o suposto beneficiário possa aceitar sacrificar-se em mais do que o valor da coisa ou direito transmitidos, mas não que a isso fique vinculado. Por essa razão é que o nº 2 do art.º 963 admite a recusa do donatário em cumprir o encargo quando ele fique onerado em mais do que o valor da coisa ou direito.

Admite a recusa do cumprimento: não afasta a possibilidade do cumprimento.

Apesar de tudo, se quiser cumprir o encargo, o donatário pode fazê-lo. Não é, por conseguinte, o desequilíbrio do encargo que apaga a graciosidade do acto, transformando-o em acto oneroso.

É exactamente porque nesta hipótese a lei considera não haver um negócio oneroso que se compreende que ela continue a tratar como doação a disposição de uma coisa em que o encargo do donatário pode suplantar o valor dessa mesma disposição.

Substancialmente, o encargo só conforma o conteúdo da liberalidade, reduzindo (ou até anulando) o valor que ela teria se produzida com a completa liberdade do donatário.

Acresce ainda que – e aqui residirá o mais decisivo óbice – a alienação da coisa ocorre sempre e em qualquer caso; já o encargo pode não ser realizável, por faltarem os seus pressupostos.

Com efeito, o cumprimento e vigência do encargo poderá depender – é, aliás, o que mais frequentemente sucede – de circunstâncias perfeitamente aleatórias, não controláveis pelo doador ou pelo donatário, como p. ex. a não sobrevivência do doador para a prestação de certo tipo de assistência pelo donatário.

Nesta eventualidade o negócio mantém-se apenas com a prestação do disponente: o que não seria concebível com o desenho do encargo como uma contraprestação ou correspectivo daquela.

Enfim, tudo se alinha para a conclusão de que a doação com encargos é um negócio intrinsecamente gratuito, independentemente do desequilíbrio ou desproporção que possa existir entre o valor da disposição e o valor do encargo.

De sorte, que procede esta questão recursiva.

Da verificação dos requisitos da impugnação pauliana.

Adquirido que o acto concretamente impugnado constitui um negócio oneroso, importa então, em obediência à regra da substituição do tribunal recorrido no caso de procedência da apelação que remove o prejuízo da questão apreciada (art.º 665, nº 2, do CPC), atentar nos requisitos que a lei enuncia para a procedência deste meio de conservação da garantia patrimonial ao alcance dos credores.

Encontram-se esses requisitos plasmados nos art.ºs 610 e 612 do C. Civil e são os seguintes:

A titularidade de um crédito pelo impugnante;

A prática pelo devedor de uma acto que impossibilite a satisfação ou agrave a possibilidade de satisfação desse crédito;

Ser o crédito anterior ao acto impugnado, ou sendo posterior, a intenção de quem o pratica de impedir a futura satisfação do direito;

A natureza gratuita do acto impugnado, ou, sendo ele oneroso, a má fé dos seus intervenientes (devedor e terceiros).

Compulsada a materialidade provada, constata-se que todos estes pressupostos estão presentes, pois que:

O crédito dos AA. sobre a 1ª Ré é de € 72.234,44 e foi constituído em 2009 – factos provados em 3 a 5;

A doação impugnada foi outorgada em 2010 – facto provado em 1.

Ao proceder à doação a 1ª Ré impossibilitou o pagamento do crédito dos Autores de € 72.23,44 – facto provado em 6.

A 1ª Ré sabia que não tinha mais bens susceptíveis de ressarcir os Autores do crédito de € 72.234,44.   

É verdade que o facto dado como provado de que “Ao proceder como referido em 1. C... (…) impossibilitou o pagamento coercivo das quantias referidas em 3 e 5” é sob certa perspectiva conclusivo.

Contudo, a circunstância de igualmente se achar provado que essa Ré “sabia que não tinha mais bens susceptíveis de ressarcir os Autores” já inculca que não haveria outros bens de valor relevante, o que, pelo menos, agravava a perspectiva de satisfação do crédito dos Autores.

Neste contexto, o pedido visando a ineficácia da doação e a execução do imóvel doado no património da 2ª Ré na medida do interesse dos Autores/credores tem de proceder na totalidade.

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam a sentença recorrida, e, em função disso, julgam a acção procedente por provada, em função do que condenam as Rés a ver declarada a ineficácia em relação aos Autores da doação mencionada em 1 dos factos provados, podendo executar o bem doado no património da 2ª Ré na medida do seu crédito e a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

Custas em ambas as instâncias pelas Rés e apeladas.

Sumário:
1. As doações com cláusula modal a que se refere o art.º 963 do C. Civil – aquelas em que são impostos encargos ao donatário – não deixam de ser negócios gratuitos.
2. Assim sendo, nos termos do nº 1 do art.º 612 do C. Civil, na impugnação pauliana que deduza contra uma doação desse tipo não carece o credor impugnante de provar ou alegar a má fé de qualquer dos intervenientes no negócio.

Freitas Neto (Relator)

Adjuntos:

1º - Carlos Barreira

2º - Barateiro Martins

 

 

[1] Num determinado negócio pode ser preciso discernir entre o que é condição e o que é simples cláusula modal. Numa fórmula resumida e mais apreensível, pode dizer-se que a distinção entre o negócio sob condição suspensiva e o negócio sub modo reside em que o primeiro só produz os seus efeitos uma vez verificada a condição, enquanto o segundo os produz de imediato. Por isso se diz que a condição suspende mas não obriga, quando é certo que o modo obriga mas não suspende.

Notar-se-á, porém, que, ao lado das condições casuais, que são aquelas em que o evento condicionante é estranho à vontade das partes, consistindo num acontecimento natural ou num acto de terceiro, acham-se também as chamadas condições potestativas ou impróprias, que são aquelas em que o evento condicionante é um acto de uma das partes, tanto podendo ser do credor (dizendo-se então a parte creditoris) como do devedor (dizendo-se agora a parte debitoris).

No entanto, sempre lembra a doutrina - cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral, 1972, V. II, p.394 – que é ténue a linha que marca a fronteira entre a condição, especialmente a potestativa, e o modo, porquanto “por vezes há dificuldade em distinguir no caso concreto se estamos em face de uma condição ou dum simples modo”, de tal sorte que “a questão há-de resolver-se com as particularidades da espécie e as regras da interpretação.”

Não há para nós qualquer dúvida de que no caso em apreço se está diante da adstrição de uma cláusula acessória de tipo modal.

2 De resto também citado pela sentença recorrida.