Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3170/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: EXERCÍCIO DA ACÇÃO PENAL
NECESSIDADE DA QUEIXA
ALTERAÇÃO LEGAL DA NATUREZA DO CRIME
Data do Acordão: 11/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 48, N.º 1, 49º, N.º 1 E 262º, DO C. P. PENAL
Sumário: Estando o procedimento criminal validamente em marcha, a alteração legislativa da natureza do crime e, consequentemente da legitimidade do M.º P.º para o procedimento criminal, apenas releva para a sua eventual cessação e não quanto àquela legitimidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal deste Tribunal da Relação.
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I – Relatório.
1.1. No âmbito dos autos em causa, a 4 de Abril de 1995, o Ministério Público deduziu acusação contra A... e B... imputando-lhes a prática, em co-autoria e em concurso efectivo, de um crime de concorrência desleal, previsto e punido pelos artigos 212.°, n.º 7 e 213.°, e de um crime de uso de marca imitada, previsto e punido no artigo 217.°, n.º 6, todos do Código de Propriedade Industrial [CPI] -cfr. fls. 97/99-.
Por despacho datado de 30 de Abril de 1996 foi recebida tal acusação.
Através de despacho datado de 15 de Setembro de 1997, o arguido B... foi declarado contumaz -fls. 163-.
Por despacho datado de 13 de Janeiro de 2005 foi declarada cessada essa contumácia do arguido B... e, ainda, designado dia para realização da audiência de discussão e julgamento -fls. 205-.
Entretanto, o Ministério Público promoveu que se declarasse extinto o procedimento criminal assim em curso contra o arguido e, consequentemente, fosse considerado sem efeito o julgamento agendado.
Fundamento da promoção seria o entendimento de que, em virtude da entrada em vigor do novo CPI (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de Março) os crimes que eram imputados ao arguido passaram a ter natureza semi-pública. Ora, sucedendo que os titulares dos interesses em causa não apresentaram no prazo legal (seis meses a contar da data da entrada em vigor do novo CPI) a respectiva queixa, o Ministério Público careceria, então, de legitimidade para a prossecução da acção penal.
Sobre esta promoção incidiu despacho judicial – de fls.238/244 – que denegou a suscitada pretensão relativamente ao crime de uso de marca imitada, no entendimento de que o Ministério Público mantinha legitimidade para prosseguimento da acção penal. Já no que concerne ao apontado crime de concorrência desleal se deferiu ao requerido, considerando-se extinto o respectivo procedimento (devido à introduzida despenalização).
1.2. Discordando do decidido relativamente ao imputado crime de uso de marca imitada, apresentou recurso o Ministério Público, oferecendo, após motivação do requerimento respectivo, as conclusões seguintes, tendentes à revogação do despacho recorrido:
1.2.1. À data dos factos em causa o crime indiciado assumia natureza pública, não sendo necessária a apresentação de queixa por parte dos ofendidos, no caso os titulares das marcas referidas na acusação, ou de outras pessoas com legitimidade para o fazer, para conferir legitimidade à acção do Ministério Público.
1.2.2. Sucede que a 1 de Julho de 2003 entrou em vigor o novo CPI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de Março, alterando a natureza do crime supra referido para semi-púb1ico, o que obriga à dedução de queixa por forma a assegurar a legitimidade da intervenção do Ministério Público.
1.2.3. Nesses termos, deveriam tais ofendidos ter manifestado desejo de procedimento criminal, designadamente através da apresentação de queixa, a efectuar no prazo de seis meses a contar da entrada em vigor do supra citado diploma legal.
1.2.4. Ora, não o tendo feito fica, assim, prejudicada a legitimidade do Ministério Público na prossecução da acção penal, à sua revelia e, porventura, contra a sua vontade.
1.2.5. Com efeito, as normas que se reportam à queixa têm natureza material ou substantiva e não apenas formal.
1.2.6. Pelo que, de harmonia com o disposto no artigo 29.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa [CRP] e artigo 4.º, n.º 2 do Código Penal [CP], em caso de sucessão da lei penal é de aplicar retroactivamente a lei ou regime mais favorável ao arguido, que é justamente o que decorre do novo CPI.
1.2.7. Mas ainda que assim se não entenda, deve, então, o tribunal notificar os ofendidos para, em prazo a fixar, virem aos autos manifestar o desejo de procedimento criminal, o que o tribunal a quo não fez no despacho recorrido, tendo em vista assegurar a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.
1.2.8. Donde, não tendo o tribunal no despacho recorrido e nessa parte decidido num ou noutro dos sentidos ora defendidos e mantendo a legitimidade do Ministério Publico por um crime que tem natureza semi-pública sem que haja queixa válida dos titulares dos interesses que a lei protege com a incriminação, se mostrem violadas as disposições constantes nos artigos 29.º, n.º4 da CRP; 2.º, n.º 4 e 113.º, n.º1, ambos do CP; 48.°; 49.° e 262.º, n.º 2, estes do Código de Processo Penal [CPP].
1.3. Esta impugnação foi admitida com subida deferida.
Na subsequente tramitação processual, realizou-se oportuna audiência de julgamento, finda a qual se proferiu sentença condenatória do arguido B... pela autoria do indicado crime de uso de marca indevida, p.p.p. artigo 217.º, n.º 6 do Decreto n.º 30679, de 24 de Agosto de 1940, no pagamento de € 25,00 de multa.
Persistindo na discordância do decidido, interpôs recurso o Ministério Público motivando o requerimento de interposição e formulando, ademais às conclusões idênticas às já mencionadas, as seguintes:
1.3.1. A sentença ora proferida está inquinada, pois que, de harmonia com o disposto no artigo 119.º, alínea b) do CPP, constitui nulidade insanável a falta de promoção do processo por parte do Ministério Público, nos termos dos artigos 48.° e 49.° do CPP e 113.° do CP.
1.3.2. Assim, tendo o tribunal realizado a audiência de discussão e julgamento e, bem assim, condenado o arguido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento -cfr. artigo 379.º, n.º1, alínea c), in fine, do CPP-, tornou-a nula. Nulidade que se invoca para todos os efeitos legais.
1.3.3. Agindo como o fez, a sentença recorrida violou as disposições constantes dos artigos 219.º, n.º 1 da CRP; 113.º, n.º 1 do CP; 48.°; 49.°; 119.º, alínea b); 122.º e 262.º, n.º 2, todos do CPP.
Terminou pedindo que na procedência das impugnações oferecidas se determine a anulação do processado posterior ao recurso mencionado já em 1.2., e, bem assim, do julgamento e da sentença recorrida, por padecer de nulidade insanável como dito.
1.4. Admitido o recurso, nenhuma resposta apresentou o arguido.
Remetidos os autos a este Tribuna, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido em que os recursos não merecem provimento.
Colhidos os vistos dos M.mos Adjuntos, realizou-se conferência.
Cabe agora apreciar.
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II – Fundamentação.
2.1. Como decorre, consabidamente, do disposto no artigo 412.º, n.º 1 do CPP, o âmbito dos recursos penais é definido através das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação respectiva.
Ora, in casu, tal vale por dizer que a questão decidenda se traduz em apurarmos se deve anular-se o processado subsequente a fls. 244 e segs, por não haver, desde então, apresentação de queixa por parte dos pretensos lesados e, consequentemente, atenta a novel natureza de crime semi-público do ilícito apontado ao arguido, falecer legitimidade ao recorrente (no interesse deste, naturalmente) para o prosseguimento dos autos.
Prescreve o artigo 48.º, n.º 1 do CPP que «O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos art.ºs 49.º a 52.º».
Por outro lado, preceitua o subsequente artigo 49.º que «1. Quando o procedimento depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2. Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.» (sublinhados nossos)
No caso concreto temos que à data dos factos e à data da instauração do procedimento criminal pelo crime de uso de marca imitada, p.p.p. artigo 217.°, n.º 6 do Decreto n.º 30679, de 24 de Agosto de 1940, na medida em que o crime era público, o procedimento criminal iniciou-se por denúncia obrigatória da G.N.R. de Anadia, nos termos dos artigos 242.°, n.º 1, alínea a) e 243.°, ambos do CPP, em 22/09/1994, com a elaboração do Auto de Notícia n.º 387/94 (fls. 2 e segs.) e sua remessa aos Serviços do Ministério Público da Comarca de Anadia no dia seguinte (fls. 1), onde viria a ser autuado como Inquérito n.º 1137/94, estando pois desta forma adquirida a notícia do crime nos termos dos artigos 241.° e 247.° do mesmo diploma.
Daí a decorrência de, oficiosa e obrigatoriamente, se haver procedido a inquérito, nos termos e com o alcance do artigo 262.° do mesmo CPP, isto é, colocando-se, como anota o Exmo. PGA, “em marcha o procedimento criminal pelo crime em causa.”
Estando o procedimento criminal, validamente, em marcha, a questão que pode emergir, de novo, pode ser, como o é, a do modo de, também validamente, o poder fazer cessar (por desistência do procedimento criminal na hipótese, também a dos autos, de passar de público a semi-público; amnistia; despenalização – o ocorrido relativamente ao ilícito de concorrência desleal -, etc.). O que não se traduz, como pretende o recorrente, em nova activação, pois que ele já se mostrava em movimento.
Isto independentemente de, por iniciativa do Tribunal ou do próprio arguido, o(s) ofendido(s) o ter(em) oportunamente confirmado, ou, expressamente, vir(em) referir que não queria(m) procedimento criminal contra o arguido, o que desencadearia agora sim falta de legitimidade do Ministério Público, mas por força do disposto no artigo 51.º do CPP. Hipótese distinta da ora colocada.
Ainda com o Exmo. PGA diremos que sendo certo em situações similares “…possa ser desejável que em tempo oportuno, se possa efectuar tal consulta ao titular do direito de queixa, no sentido de esclarecer se quer ou não que se mantenha activo o procedimento criminal, mas não o tendo sido feito…”, o que decorre do exposto é que se mantém, pese embora a alteração legislativa operada, a legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal contra o arguido, já que ele validamente teve de facto a sua necessária propulsão, estando tão só ora em causa, com aquela alteração da natureza do crime, a sua eventual cessação.
O que tudo significa, então, que se mantém como validamente exercitado o imprescindível direito de queixa e também que tem o Ministério Público legitimidade para o prosseguimento dos autos.
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III – São termos em que, sem mais considerações, se nega provimento aos recursos interpostos pelo recorrente.
Sem custas, atenta a respectiva isenção subjectiva de que goza o mesmo.
Notifique.
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Coimbra, 16 de Novembro de 2005