Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2471/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: ACTO DE GESTÃO PÚBLICA
TRIBUNAL COMPETENTE
EM RAZÃO DE MATÉRIA
Data do Acordão: 10/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MANGUALDE - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 51º, Nº 1, AL. H), DO ETAF ; 77º, Nº 1, AL. A), DA LOFT; E 101º DO CPC .
Sumário: I – Para efeito da apreciação da questão da competência material dos Tribunais há que atender ao pedido e especialmente à causa de pedir, tal como o autor os formula, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante ou o “modo de ser do processo” .
II – Pretendendo o autor ser indemnizado por um município em virtude de ter sofrido um acidente de viação derivado de falta de sinalização da via, o facto jurídico donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer radica nessa falta de sinalização da via por parte da Ré, o que se traduz na omissão de um acto de gestão pública, sendo entendimento pacífico na jurisprudência que as actividades de concepção, construção, conservação e sinalização de vias são actos de gestão pública .

III – Assim sendo, é da competência dos Tribunais Administrativos o conhecimento das acções sobre a responsabilidade civil dos municípios decorrentes de prejuízos resultantes da omissão ou violação desse tipo de actos de gestão pública .

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A..., residente na Rua Dr. Sebastião Alcântara, 4, 1º Esq., Mangualde, propõe contra a B..., a presente acção de condenação com processo sumário, pedindo que se condene a R. a pagar-lhe a quantia de 3.313,84 euros acrescida de juros legais até efectivo e integral pagamento.
Fundamenta o pedido, em síntese, no facto de, no dia 6-1-2003, ter sofrido um acidente de viação com o seu veículo, na cidade de Mangualde, em razão de ter sido surpreendido por um enorme buraco existente na via sem que o mesmo tivesse sido devidamente sinalizado. Caiu nessa “cratera”, perdeu a direcção da viatura, indo tocar ainda na parte traseira de uma outra viatura. Competia à R., B..., proceder à sinalização da via em cumprimento da própria gestão da rede viária de âmbito municipal. Teve os prejuízos que indica de que se quer ver ressarcido.
1-2- A R. contestou, para além do mais, excepcionando a incompetência em razão da matéria, do tribunal para conhecer do pleito, já que a respectiva competência cabe aos Tribunais Administrativos.
Termina pedindo se declare a incompetência absoluta do tribunal.
1-3- Conhecendo da excepção no saneador, o Mº Juiz considerou improcedente a excepção de incompetência absoluta invocada pela R., determinando ser competente para conhecer do litígio, o Tribunal Judicial onde a acção foi proposta.
1-4- Não se conformando com esta decisão, dela veio recorrer a R., recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo.
1-5- A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- Os factos imputados pelo A. à recorrente na p.i., em que funda a sua pretensão, traduzem-se em actos de gestão pública.
2ª- Tratando-se de actos de gestão pública, o art. 51º nº 1 al. h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo D.L. 129/84 de 27/4, ao tempo em vigor, fixava especialmente a competência para julgar a presente acção aos tribunais administrativos.
3ª- Ao decidir pela improcedência da excepção da incompetência invocada, a decisão recorrida, violou não só o referido art. 51º nº 1 al. h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, como também o art. 77º nº 1 al. a) da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
4ª- A competência para julgar o objecto dos presentes autos, não se altera pelo facto de intervir, no lado passivo da acção, uma seguradora provada para a qual foi, efectivamente, transferida a responsabilidade que o A. pretende assacar à recorrente.
5ª- Ao considerar-se competente para julgar o objecto dos autos, o despacho recorrido fez uma correcta interpretação dos arts. 101º e 288º nº 1 al. a) do C.P.Civil, violando-os.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, considerando-se o tribunal a quo absolutamente competente para julgar o objecto do processo.
1-6- A parte contrária não respondeu a estas alegações.
1-7- O Mº Juiz sustentou a sua decisão.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- É do seguinte teor ( para o que aqui importa ) o despacho recorrido:
Efectivamente a fls. 26 a 33 encontra-se junta aos autos a apólice ... da Companhia de Seguros Global, na qual em nota anexa à mesma constante de fls. 28, se refere que ... a Seguradora garante a responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil seja imputada ao segurado derivado unicamente de sinistros ocorridos em consequência de : Actos, omissões ou negligências dos autarcas, funcionários e empregados, no exercício das suas funções. Assim sendo, verificamos que nesta cláusula se estipula que a responsabilidade civil extracontratual, que ao abrigo da lei civil seja imputada à ré derivada unicamente de sinistros ocorridos em consequência de actos, omissões ou negligências dos autarcas, funcionários e empregados, no exercício das suas funções, é assegurada pela Companhia de Seguros Global, pelo que estando em apreço nos autos um sinistro que o autor alega ter sido provocado pela falta de sinalização indicativa de perigo existente na via pública, entendemos que compete a este Tribunal o conhecimento de tal responsabilidade e não ao Tribunal Administrativo”. Por isso, considerou improcedente a excepção da incompetência absoluta invocada pela R..
A agravante considera que a excepção deveria ter sido julgada procedente, visto que, no seu entender, são competentes para conhecer do pleito, os tribunais administrativos, porque os factos em que a A. funda a sua pretensão, traduzem-se em actos de gestão pública. Tratando-se de actos de gestão pública, o art. 51º nº 1 al. h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo D.L. 129/84 de 27/4, ao tempo em vigor, fixava a competência para julgar a presente acção aos tribunais administrativos. A competência para julgar o objecto dos presentes autos, não se altera pelo facto de intervir, no lado passivo da acção, uma seguradora para a qual foi, efectivamente, transferida a responsabilidade que o A. pretende assacar à recorrente.
Vejamos:
A questão que nos é fornecida para apreciação, é a de saber qual dos tribunais é o competente, em razão da matéria, para apreciação do pleito. Se é o tribunal judicial ou se é o tribunal administrativo.
Para o efeito de apreciação da questão, haverá a atender ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo A., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou nas doutas palavras do Prof. Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser do processo” ( in Com. 1º, 110). Quer dizer que, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.
Como se vê, o A. pretende ser indemnizado pela R., em virtude de ter sofrido um acidente de viação derivado de falta de sinalização da via, sendo que competia à demandada, B..., proceder à sinalização em cumprimento da própria gestão da rede viária de âmbito municipal. A causa de pedir, isto é, o facto jurídico donde emerge o direito que o A. invoca e pretende fazer valer, radica precisamente na falta de sinalização da via por parte da R., obrigação que lhe incumbia e que não cumpriu.
E neste contexto, terão os tribunais judiciais comuns competência para a apreciação do pleito? Ou essa competência deve ser atribuída aos tribunais administrativos?
Como se sabe, decorre dos arts. 209º, 211º e 212º da CRP, existirem duas ordens de tribunais, uma delas encabeçada pelo Supremo Tribunal de Justiça e com jurisdição em todas as áreas não atribuídas às outras e a outra que tem como cúpula o Supremo Tribunal Administrativo, com competência para o julgamento das acções e recursos emergentes e que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas e administrativas.
Nos termos do art. 18º da LOFTJ ( Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ) estabelece-se que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais. É que os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não descriminada, gozando os demais, ou seja, os tribunais especiais, competência em relação às matérias que lhes são especialmente cometidas. A competência dos tribunais judiciais determina-se, pois, um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiveram conferidas aos tribunais especiais.
Haverá agora de determinar se existe qualquer norma, designadamente do ETAF ( Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Dec-Lei 129/84 de 27/4 -, em vigor na propositura da acção ) que atribua competência aos tribunais administrativos para a presente acção.
De harmonia com o art. 51º nº 1 al. h) do ETAF ( Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Dec-Lei 129/84 de 27/4, hoje já revogado mas aplicável ao caso vertente, dada a data da propositura da acção ) compete aos tribunais administrativos conhecer “das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo de acções de regresso”. Isto é, para apreciação de responsabilidade civil do Estado ( e demais entes públicos e titulares dos seus órgãos e agentes ) por prejuízos proveniente de actos de gestão pública, são competentes os tribunais administrativos. Não se levantando dúvida apreciável em relação ao facto de a demandada ser um ente público ( como melhor iremos ver à frente), haverá, assim, que apurar se o facto gerador da responsabilidade em que fundamenta o demandante o seu pedido, reveste ou não um acto de gestão pública.
À falta de definição legal relativamente a actos de gestão pública, teremos que nos socorrer sobre o que se tem entendido sobre isso, doutrinal e jurisprudencialmente.
Gestão pública, nas palavras do Prof. Marcelo Caetano “é a actividade da administração regulada pelo direito público ( Manual, 10ª edição, 2º vol. pág. 1222), ou como refere Vaz Serra ( RLJ 110º, 315 ), actos de gestão pública “são os praticados no exercício de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva, isto é, o regido pelo direito público e, consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade”. Ainda conforme se refere no Ac. do Tribunal de Conflitos de 5-11-81 ( BMJ 311º, 195 ) “actos de gestão pública são os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos, a realização de uma função pública de pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente ainda, das regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observados”. Poder-se-á portanto dizer que, quando a Administração Pública pratica um acto no exercício de um poder público, munida de uma posição de superioridade e no prosseguimento do interesse público, pratica um acto de gestão pública. Autoridade e satisfação de um interesse público, são pois os elementos caracterizadores dos actos de gestão pública.
Aos invés, actos de gestão privada serão aqueles em que a entidade colectiva, despida de poder público, actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado ( neste sentido Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 4-3-2004 in www.dgsi.pt, Acs. do STA ), ou como diz Marcelo Caetano actos de gestão privada “são os que são exercidos pela administração pública despida do seu poder de autoridade, numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, logo com submissão às normas de direito privado” ( in Manual de Direito Administrativo, Tomo I, pág. 44 - 10ª edição ).
Face àquela disposição ( art. 51º nº 1 al. h) do ETAF ) haverá pois que determinar se, face à forma como a acção foi delineada na petição inicial, os prejuízos que os demandantes fazem derivar da obrigação de indemnizar por parte da R., B..., resultaram ou não de uma actividade deste qualificável como de gestão pública, sendo que só nesta circunstância os tribunais administrativos serão os materialmente competentes para conhecer da acção.
Portanto tudo se reduz a saber se o acto violador dos direitos dos AA. pode ser entendido ou não como um acto de gestão pública.
Como se viu, o A. pretende ser indemnizado pelos os prejuízos que sofreu em razão da falta de sinalização rodoviária da via ( Av. Senhora do Castelo, na cidade de Mangualde ) por parte da R. ( obrigação que lhe incumbia e que não cumpriu )
Não existem dúvidas que a Câmara Municipal, sendo como é, o órgão executivo do Município ( sendo este uma das categorias de autarquia local ) é um ente público, como decorre designadamente, dos arts. 235º, 236º nº 1, 250º e 252º da Constituição da República Portuguesa.
Dentre outras atribuições, competem aos órgãos municipais “o planeamento, gestão e a realização de investimentos .. na rede viária de âmbito municipal” ( art. 18º da Lei 159/99 de 14/9 ).
Como tem vindo a ser entendido, pacificamente, pela jurisprudência, as actividades de concepção, construção, conservação e, claro, sinalização de vias, são actos de gestão pública ( neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 4-3-2004 supra mencionado). Na verdade, como se assinala neste acórdão “a construção e manutenção de vias rodoviárias é uma das mais antigas tarefas da função administrativa, tradicionalmente exercida através da administração indirecta do Estado”.
É pois claro que, ao conceber, construir, manter, sinalizar a rede viária municipal, o Município prossegue interesses públicos ( estando, patentemente, munida de uma posição de superioridade, dado que está investido de um poder público ), donde se deve concluir que essa entidade pública, ao empreender obras atinentes à realização dessas tarefas, pratica actos de gestão pública.
Assim, qualquer omissão decorrente do não cumprimento cabal da função de gestão da rede viária de âmbito municipal e de harmonia com a salientada disposição (art. 51º nº 1 al. h) do ETAF ), serão os tribunais administrativos, os competentes para conhecer do pleito.
De salientar que o STA se tem pronunciado, por diversas vezes, no sentido de que os actos e omissões de entes públicos que estejam relacionadas com actividades desenvolvidas no âmbito da persecução de interesses públicos, constituem actos de gestão pública dessas entidades ( entre outros cfr. Acs. de 15-6-93 in Apêndice DR de 19-8-96 e de 25-2-92 in Apêndice DR de 29-12-95 ).
Evidentemente que a conclusão de atribuição de competência para o pleito aos tribunais administrativos, não sofre qualquer limitação em virtude de ser demandada a Seguradora Global, por causa do contrato de seguro que celebrou com a R., contrato efectuado por esta, com vista a transferir a responsabilidade civil que o A. lhe pretende assacar. Com efeito, a responsabilidade da seguradora não é autónoma em relação à R.. A companhia de seguros responde nos mesmos termos da segurada, substituindo a responsável, em virtude do contrato de seguro, no pagamento da indemnização até ao montante monetário coberto por esse contrato. A responsabilidade jurídica pelo evento continua a ser da entidade pública. A este propósito salientaremos o que refere, em sumário, o Acórdão do STA de 16-3-2004 ( in www.dgsi.pt, Acs. do STA):
I- As acções emergentes de responsabilidade civil extracontratual de entidade pública, por acto de gestão pública, podem ser intentadas também contra a pessoa jurídica privada para quem aquela, por contrato de seguro anterior, haja transferido a sua responsabilidade. II- Os tribunais administrativos são competentes em razão da matéria, para conhecer e julgar actos de gestão pública, mas esta conclusão não se altera pelo facto de intervir, no lado passivo da acção uma entidade privada. III- Com efeito, a competência que se discute é em razão da matéria controvertida, ou seja, a natureza dos actos ou factos causadores dos danos cujo ressarcimento se imputa ao ente público. O contrato de seguro apenas faz transferir o «quantum» indemnizatório para a empresa seguradora, não a responsabilidade jurídica do evento”.
Assim se conclui que são competentes para conhecer do pleito os tribunais administrativos, pelo que o agravo merece provimento.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, dá-se provimento ao recurso, declara-se procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal, declarando os tribunais administrativos os competentes para conhecer da acção e, consequentemente, absolve-se a R. da instância.
Custas na acção pelo A. e no agravo pelo recorrido.