Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3722/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ARRESTO
REQUERIMENTO INICIAL MANIFESTAMENTE INFUNDADO
INDEFERIMENTO LIMINAR DA PROVIDÊNCIA
Data do Acordão: 01/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 234º-A, Nº 1, E 406º, Nº 1, AMBOS DO CPC .
Sumário: I – Para a alegação e comprovação do justo receio da perda de garantia patrimonial tem-se entendido, tanto no campo jurisprudencial como na doutrina, que não basta um receio subjectivo do credor, baseado em meras conjecturas, mas há-se esse receio assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação .
II – Para o preenchimento da cláusula geral do justificado receio de perda de garantia patrimonial relevam a forma da actividade do devedor, a sua situação económica e financeira, a maior ou menor solvabilidade, a natureza do património, a dissipação ou extravio de bens, a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir, o montante do crédito, a própria relação negocial estabelecida entre as partes .
III – Uma deficiente alegação dos factos tendentes a comprovarem o justo receio de perda de garantia patrimonial não justifica o indeferimento liminar da providência, antes reclama o convite ao aperfeiçoamento da petição .
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

A requerente – A..., com sede no Parque Industrial Quinta do Chacão, Casais Novos, Alenquer - instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Tomar, procedimento cautelar de arresto contra a requerida – B..., com sede em Carregueiros, Tomar.
Alegou, em resumo:
A requerente tem um crédito sobre a requerida de € 7.892,70, respeitante a capital e juros, referente à venda de determinados produtos que esta não pagou.
Justificou o fundado receio no facto do legal representante da requeria ter emitido dois cheques para pagamento, os quais vieram devolvidos por falta de provisão, cujo propósito foi induzir a requerente em erro por mais algum tempo, na recusa reiterada em pagar a dívida, apesar de várias vezes interpelada, evitando qualquer contacto, o negócio da requerida se encontrar fechado, tendo uma situação económica muito débil.
Pediu o arresto do estabelecimento comercial da requerida, sito na Rua 25 de Abril, nº9, Carregueiros, incluindo todos os móveis, nomeadamente, materiais, máquinas, produtos e quaisquer outros que ali se encontrem.
Por despacho judicial foi indeferida liminarmente a providência, por ser manifestamente infundada, nos termos do art.234 A nº1 do CPC.

Inconformada, a requerente agravou, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
1º) - A agravante viu ilegítima e ilegalmente reduzidos os seus direitos processuais.
2º) - Os factos alegados indicam com grande probabilidade a existência de um crédito e fundado receio de perda de garantia patrimonial.
3º) - O despacho impugnado considerou o requerimento do arresto manifestamente infundado, mas a maioria da jurisprudência defende que só deve ter lugar quando a incoerência do requerimento seja patente, o que não é o caso.
4º) - Para mais, o recurso a este procedimento cautelar foi ocasionado única e exclusivamente por uma situação de incumprimento da parte da agravada, que por poder tornar-se permanente revestia de carácter de extrema urgência.
5º) - O indeferimento liminar pode a vir a ser particularmente gravoso para a agravante, já que pôs em causa o efeito útil, quer do procedimento cautelar, quer da acção principal.
A agravada não contra-alegou e o M.mo Juiz manteve o despacho impugnado.
II – FUNDAMENTAÇÃO

Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões, a única questão que importa decidir consiste em saber se o requerimento inicial do procedimento cautelar de arresto é manifestamente infundado, quanto ao requisito legal do justo receio da perda de garantia patrimonial, de forma a justificar o indeferimento liminar, nos termos do art.234-A nº1 do CPC.
No despacho impugnado considerou-se que, não obstante se evidenciar o crédito da requerente e eventual ruptura financeira da requerida, não foram alegados factos concretos quanto ao receio fundado da perda de garantia patrimonial, limitando-se a requerente a afirmações genéricas, sem concretização factual.
A manifesta improcedência do pedido que legitima o indeferimento liminar, aferida casuisticamente, corresponde no direito anterior à “ evidente improcedência da pretensão do autor “ ( art.474 nº1 c) do CPC ), o que contende com o próprio mérito da acção ( questão de fundo ) e já não de forma ( por ex., falta de pressupostos processuais ), como se extrai do argumento histórico, por o legislador haver substituído a “evidente inviabilidade” pela “evidente improcedência”.
Ou seja, perante a exposição dos factos e razões de direito expostas ( art.467 nº1 d) do CPC ), incide, desde logo, uma pronúncia valorativa antecipatória sobre o mérito, quanto a saber se a pretensão formulada contem uma razoável probabilidade de êxito ou se está irremediavelmente condenada ao insucesso, embora no contexto da natureza e finalidade acção cautelar, com as características gerais da provisoriedade, instrumentalidade, “ sumário cognitio “, carácter urgente e estrutura simplificada.
Como estatui o art.406 nº1 do CPC, o procedimento cautelar de arresto depende da verificação cumulativa de dois requisitos: (1) a probabilidade da existência do crédito e (2) o justo receio da perda da garantia patrimonial
Para a alegação e comprovação do justo receio da perda de garantia patrimonial, tem-se entendido, tanto no plano jurisprudencial, como doutrinário, não bastar o receio subjectivo do credor, baseado em meras conjecturas, pois para ser justificado há-de assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação ( cf., Ac do STJ de 3/3/98, C.J. ano VI, tomo I, pág.116 ).
No mesmo sentido, escreve ANTÓNIO GERALDES ( Temas da Reforma de Processo Civil, vol.4º, 2ª ed., pág.186 ), “ O justo receio da perda de garantia patrimonial está previsto no art. 406 nº1 do CPC, e no art. 619 do Código Civil pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito “.
Deste modo, para o preenchimento da cláusula geral do “ justificado receio de perda de garantia patrimonial”, relevam, designadamente, a forma da actividade do devedor, a sua situação económica e financeira, a maior ou menor solvabilidade, a natureza do património, a dissipação ou extravio de bens, a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir, o montante do crédito, a própria relação negocial estabelecida entre as partes.
Como já anotou no relatório, o requerente alegou na petição inicial um conjunto de elementos atinentes ao “ justo receio “, designadamente, o facto do legal representante da requeria ter emitido os dois cheques para pagamento, os quais vieram devolvidos por falta de provisão, cujo propósito foi induzir a requerente em erro por mais algum tempo, na recusa reiterada em pagar a dívida, apesar de várias vezes interpelada e de lhe ser proposto o pagamento em prestações, o evitar qualquer contacto, a circunstância do negócio da requerida se encontrar fechado, tendo uma situação económica muito débil, e de ser conhecido nas redondezas do seu estabelecimento que a requerida deve tanto dinheiro que lhe será muito difícil pagar as suas dívidas para com os fornecedores.
É certo que, como bem se salientou no despacho recorrido, a requerente não desenvolveu factualmente cada um destes tópicos indiciadores, ficando-se por uma consideração genérica, carecendo de uma maior e consistente concretização, de forma a que, num juízo de valoração global, se possa afirmar, com relativa segurança, que uma pessoa normal colocada na posição do credor recearia objectivamente pela perda de garantia patrimonial do seu crédito.
Mas em todo o caso, e salvo o devido respeito, tal situação não justifica, desde logo, o indeferimento liminar com fundamento na “evidente improcedência da pretensão”, antes reclama, por imposição dos princípios da economia processual, do inquisitório e cooperação ( arts.136, 137, 265 e 266 e 508 nº1 b) do CPC ) o convite ao aperfeiçoamento, visto tratar-se de uma petição deficiente.
Por vezes é difícil definir com precisão os limites entre a “ inviabilidade “ e a deficiência, como já então sublinhava o Prof. CASTRO MENDES, sustentando ser de lançar mão do despacho de aperfeiçoamento quando a causa de pedir, embora inteligível, não é suficientemente concretizada como facto ( Direito Processual Civil III, pág.67 a 69 ).
Também para efeitos do despacho de aperfeiçoamento no âmbito do art.508 nº1 b) e nº3 do CPC, o articulado é deficiente quando contenha insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto, ou seja, quando nele não se encontrem todos os factos principais ou a sua alegação seja ambígua ou obscura, designadamente por o autor ter feito apelo a conceitos excessivamente vagos.
Ora, ainda que não expressamente previsto no art.234-A do CPC, o despacho de aperfeiçoamento da petição de procedimento cautelar decorre não só dos princípios da economia processual, inquisitório e cooperação, já referenciados, como do princípio geral da correcção, postulado no art.508 nº1 b), 2 e 3 do CPC, pois não obstante inserir-se na fase da condensação, tem como pressuposto que antes dela não haja qualquer intervenção do juiz, mas havendo-a, nada impede que essa correcção se faça numa fase anterior ( cf. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág.275 ).
A este respeito, LOPES DO REGO ( Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, pág.178 ) sem rejeitar a possibilidade de antecipação do despacho de aperfeiçoamento, é,, no entanto, menos categórico, ao defender o seu uso com alguma parcimónia, face ao princípio da concentração, apenas naqueles casos em que os vícios são susceptíveis de se repercutirem com gravidade nos demais articulados, não sendo previsível que possam ser sanados pela normal dialéctica das partes.
Sucede, porém, estarmos no âmbito de um procedimento cautelar de arresto, que pode ser decidido sem audição prévia da requerida, em que o contraditório é exercido posteriormente ( art.388 do CPC ), não colhendo aqui o argumento da concentração, e sobretudo o princípio da economia processual justifica o convite ao aperfeiçoamento logo no despacho liminar, verificados que estejam os respectivos pressupostos.
Em resumo, procede o agravo, impondo-se revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro a convidar a requerente a aperfeiçoar a petição inicial, em conformidade com o exposto.
III – DECISÃO
1)
Julgam procedente o agravo e revogam o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro a convidar a requerente a aperfeiçoar a petição inicial, em conformidade com o exposto.
2)
Sem custas.
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COIMBRA, 25 de Janeiro de 2005.