Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
649/08.3TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: QUOTA SOCIAL
DELIBERAÇÃO SOCIAL
DIVÓRCIO
Data do Acordão: 10/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1732º, 1733º Nº 1 DO CC E 8º Nº 2 E 250º Nº 1 DO CSC
Sumário: 1. A quota social, nos regimes de bens de casamento, só é comunicável quanto ao seu valor económico. Na verdade, a comunicabilidade de uma quota social apenas se opera quanto ao conteúdo patrimonial desse “direito complexo” e não quanto ao seu conteúdo pessoal, como seja quanto ao direito de voto em assembleia geral.

2. Enquanto no plano patrimonial, próprio da relação jurídico-familiar, o divórcio implica a partilha do património comum do casal, património esse em que se incluirá o valor das quotas sociais enquanto suas componentes económicas; no plano da relação jurídico-societária, situa-se o direito de voto a exercer na assembleia geral dos sócios da sociedade comercial, assembleia na qual cada dispõe de tantos votos quantos os cêntimos do valor nominal da sua quota.

3. Assim, embora cada um dos dois sócios (cônjuges que entretanto se divorciaram um do outro) seja titular da quota ideal de 50% do capital social, o sócio ex-cônjuge marido ao votar favoravelmente a proposta de nomeação do filho de ambos para gerente mediante a sua renúncia à gerência e com invocação da sua quota de 75% do capital social não agiu em abuso de direito.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

I- Relatório:

Aos 10-4-2008, A... , requereu a providência cautelar de suspensão de deliberação social contra “B...

Pretende que se «ordene a suspensão da deliberação social por via da qual não foi aceite a renúncia às funções de gerente do sócio C... (ex-marido da requerente) nem se concorda com a nomeação de D... para gerente da sociedade».

Alega em resumo o seguinte:

É sócia da R., com 25% do capital social, sendo o seu ex-marido titular dos restantes 75%. No entanto, e como as quotas sociais integram o património comum do dissolvido casal e não foram ainda partilhadas, a comunhão conjugal dissolveu-se, sendo cada um dos sócios titular de um quota ideal de 50% na sociedade R.

Apesar deste facto, em 31 de Março de 2008, por deliberação da Assembleia Geral da sociedade R., votada favoravelmente apenas pelo sócio C... e com o voto contra da requerente, foi nomeado gerente D..., que é filho da requerente e daquele sócio.

Está em litígio com o referido D..., que no divórcio entre a requerente e C... tomou partido pelo pai, e o referido C... serviu-se do filho (ora nomeado gerente) para transferir dinheiro da sociedade para a conta pessoal deste, com intenção de o ocultar da requerente.

A deliberação não foi determinada pelo interesse objectivo da sociedade, mas por razões a ela estranhas e por interesse exclusivo do sócio C....

Invoca diversas vicissitudes relativas ao matrimónio e ao processo de divórcio.

Conclui que se verificaria por parte do sócio C... o exercício abusivo do direito e a violação de normas substantivas; e que da execução da deliberação resultará dano apreciável para a sociedade e para a requerente.

Foi junta a acta social constante de fls. 9 e 10.

A sociedade requerida contestou, alegando em síntese que o requerimento é extemporâneo e que a decisão de nomear como gerente D... está justificada pelo facto de o gerente C... ter apresentado a sua demissão e pelo facto de o gerente nomeado ser titular de certificação emitida pelo ISP para exercer a actividade de mediação de seguros, não tendo a requerente apresentado qualquer outra proposta alternativa para a gerência. Acrescenta que a requerente não concretizou qual o dano apreciável causado pela decisão.

Foi junta a convocatória constante de fl. 30, que refere como ponto único «substituição de gerência».

Após audiência, foi proferida a decisão de 03-06-2008 que, além de decidir que o requerimento inicial é tempestivo, julgou o procedimento cautelar improcedente.

Desta decisão de improcedência recorre a requerente, apresentando a alegação do recurso as conclusões de fls. 92-vº a 94, que aqui se reproduzem ipsis verbis:

1ª- Da Ordem de Trabalhos consta que se pretende nomear como gerente o filho da Recorrente com quem esta não tem relações e que este tomasse posse da gerência logo em 1/04/2008.

2ª- De tal Ordem de Trabalhos não consta, porém, que o sócio C... se demitia das suas obrigações de gerente, renunciando a eles em favor do filho D....

3ª- Este, testemunhara, na acção de divórcio em que C... decaíra, contra sua mãe.

4ª - Por outro lado, na referida Ordem de Trabalhos também se não refere que a razão dessa renúncia é o cansaço do gerente e ex-marido da Recorrente.

5ª- Facto de que também se não faz prova.

6ª - O sócio C..., para levar avante não só a sua renúncia como o gerente que indigitou, invocou o valor da sua quota de 75% do capttal social.

7ª- Opôs-se a Recorrente dizendo que, após o divórcio, não poderia considerar-se mais que tal votação se apoiasse no valor das quotas subscritas porque deveria considerar-se que ambos os sócios, ex- cônjuges, deviam considerar-se donos do património em partes iguais.

8ª- Levando em consideração que ambos são os únicos sócios da sociedade.

9ª- E invocou-se, para sustento da tese, a opinião de Pires de Lima, in Comentários aos artigos 1403º, 1404º, 1405° e 1408° do CC.

10ª- Estriba-se a douta decisão ora sob censura em que se não provou qualquer prejuízo sério (quando a lei parece bastar-se com a mera possibilidade de isso ocorrer) e no facto de os direitos dos sócios serem constituídos por direitos de natureza extra-patrimonial e patrimonial e, no caso presente, o direito de voto ser, obviamente, um direito intuitu personae.

11ª - Mas a Recorrente não pretendeu pôr em crise o direito de voto do seu ex-marido mas sim que ele se servisse, abusando, desse direito; que o que ela tentou foi reduzir quantitativamente, o direito do seu sócio às proporções de 50% de capital para cada lado.

I2ª- Tal direito (à quota) não é pessoal, nem intransmissível, contrariamente ao que acontece com o usufruto, o uso e habitação e outros direitos pessoais.

13ª - Aguardar pela partilha efectiva do património comum era permitir ao sócio que subscreve quotas maioritárias todo o tipo de abusos e prepotências, em detrimento dos interesses do outro sócio e da estabilidade da sociedade.

14ª - Nem se diga que a “equiparaçâo” das quotas entravaria a normal actividade da sociedade pois que a lei não curou de proibir a constituição de sociedades em que cada um dos dois únicos sócios seja titular de 50% do capital social.

15ª - Toda a argumentação do Mmo. Juiz do Tribunal a quo se reporta a doutrina e jurisprudência em que apenas um dos cônjuges é sócio de uma sociedade, não podendo o outro, apesar do regime de bens do seu casamento poder ser o da comunhão, ser considerado sócio.

16ª - Mesmo que se entendesse que o Recorrido usara de um direito próprio, ele abusou manifestamente desse direito ao demitir-se, como Pilatos, da sua obrigação de gerente sem ter previamente referido para esse efeito na comunicação à sua sócia, ao invocar um mal de que obviamente não padece e ao indigitar um novo e exclusivo gerente para a firma, ostensivamente contrário aos interesses sociais e aos da sócia Recorrente.

17ª - Violou o douto despacho o disposto nos art°s 1403º, 1404°, 1408.° do Código Civil, 334° do mesmo Código e fez má interpretação do art° 8° nºs 2 e 3 do C. Sociedades Comerciais e do art.° 1733º, n.° 1, al. c) do CC.

Não foi apresentada contra-alegação.

Correram os vistos legais e nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

II-Fundamentos:

De facto:

A 1ª instância julgou indiciariamente provados os seguintes factos:

1. A requerente detém uma quota de 25% na sociedade requerida, sendo os outros 75% detidos por C.....

2. A requerente e C.... foram casados, tendo o seu casamento sido dissolvido por decisão proferida nos autos de divórcio litigioso que correram termos sob o n.º X....TBPMS, no 1º Juízo deste Tribunal.

3. O património comum do dissolvido casal ainda não se encontra partilhado.

4. No dia 31 de Março de 2008, foi apresentado à assembleia-geral extraordinária convocada um documento escrito onde o sócio C... declarou renunciar à gerência da sociedade requerida, por motivos de cansaço.

5. Nessa data, o sócio C... apresentou à assembleia-geral extraordinária convocada a seguinte proposta:

«1. Que seja nomeado gerente da firma B... o senhor D..., possuidor de habilitação própria junto do ISP…

«2. Que de imediato tome posse.

«3. Que inicie as funções de gerente no próximo dia 01 de Abril de 2008».

6. A proposta referida em 4 foi aprovada com o voto favorável de

C... e o voto contra da requerente.

7. A requerente está em litígio com o sócio C... e com o filho de ambos, D..., [litígio] que se mantém mesmo após o divórcio.

8. Na assembleia-geral referida em 4, a requerida não apresentou qualquer proposta para o exercício da gerência.

Nos termos do artigo 712º nº 1 al. a) do CPC, aditamos o seguinte facto cuja prova resulta dos documentos juntos pela ré a fls. 29 a 31 e não impugnados:

9. A sociedade enviou à ora requerente a convocatória para a referida deliberação de 31-3-2008, contendo como ponto único a «substituição de gerência».

De direito:

As conclusões da alegação demarcam o âmbito do recurso, circunscrevendo as questões a conhecer (art. 684º nº 3 e 690º do CPC), sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

A questão essencial consiste em saber se cada um dos dois sócios (cônjuges que entretanto se divorciaram um do outro) é titular da quota ideal de 50% do capital social e se, tendo o sócio ex-cônjuge marido votado favoravelmente a proposta de nomeação do filho de ambos para gerente mediante a sua renúncia à gerência e com invocação da sua quota de 75% do capital social, o mesmo ex-cônjuge agiu ou não em abuso de direito.

A questão parte da consideração de qual a quota de cada sócio no capital social para o efeito da votação da proposta de deliberação social aprovada pelos votos de C....

 Este, ao votar, detinha para o efeito 75% ou 50%?

Segundo a recorrente, o sócio C... detinha 50%, como quota ideal, porque os dois sócios eram casados entre si e o património comum do dissolvido casal ainda não se encontra partilhado. Ou, noutros termos: a requerente do cautelar fundou a ilegalidade da deliberação no facto de, após o divórcio, se dever entender que cada um dos ex-cônjuges sócios tem uma quota ideal de 50% no capital social, pelo que o gerente não podia ter sido nomeado com o voto contrário da requerente.

No nosso entender, a recorrente confunde dois planos distintos: o plano patrimonial próprio da relação jurídico-familiar e o plano da relação jurídico-societária. Naquele, o divórcio implica a partilha do património comum do casal, património esse em que se incluirá o valor das quotas sociais enquanto suas componentes económicas. Neste (plano da relação jurídico-societária), situa-se o direito de voto a exercer na assembleia geral dos sócios da sociedade comercial, assembleia na qual cada sócio – de acordo com o artigo 250º nº 1 do CSC – dispõe de tantos votos quantos os cêntimos do valor nominal da sua quota. E este preceito é insuprimível ([1]), não sofrendo excepções.

Além disso, nas sociedades por quotas, e salvo disposição da lei ou do contrato em sentido diverso, a deliberação é aprovada «por maioria dos votos emitidos», conforme artigo 250º nº 3 do CSC. Porque o sócio C... detém uma quota de 75% do capital social – é isso que está provado, sublinhe-se – os seus votos no sentido de aprovação da proposta fazem com que a proposta passe.

Por outro lado, a quota social é uma fracção do capital social, não uma fracção do património que seja comum a determinados sócios casados entre si ([2]).

Para o efeito de votação da deliberação social é indiferente que os dois únicos sócios da sociedade sejam ou não cônjuges ou ex-cônjuges. Do que se trata é de votação duma proposta de deliberação e não de partilha de património.

Como entendeu o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 20-03-97 (Pº 97A791— relator: Garcia Marques), a quota social, nos regimes de bens de casamento, só é comunicável quanto ao seu valor económico (ver nºs 5 e 6 do seu texto). A lei exceptua da comunhão prevista no artigo 1732º do CC o complexo de vinculações de natureza estritamente pessoal relativo à quota – conforme resulta do artigo 1733º nº 1 do CC e do artigo 8º nº 2 do CSC (ib. nº 5).

Consequentemente, o sócio C... actuou dentro dos limites do seu direito de voto, direito consagrado e regulado nos artigos 21º nº 1 al. b) e 250º do CSC, e a deliberação foi aprovada dentro dos limites legais com os votos de 75% do capital social emitidos por aquele sócio, não se verificando nesses aspectos o invocado abuso de direito. É sim ilegal a pretensão da recorrente de «reduzir quantitativamente o direito do sócio (Joaquim) à proporção de 50 %», como consta da conclusão 11ª.

Também nos outros aspectos apontados pela recorrente se não verifica o abuso de direito.

Quanto à renúncia do sócio C... à gerência por invocado cansaço, cumpre dizer que se trata de acto que, embora recipiendo, se torna eficaz independentemente de aceitação. É, por natureza, acto unilateral.

E a renúncia opera ex nunc e efectiva-se em prazo que a lei considerou suficiente para a sociedade prover à substituição do gerente renunciante. Tendo a deliberação consistido na substituição da gerência e tendo a proposta sido aprovada, o fim legal foi alcançado.

Para a proposta de substituição ser validamente aprovada na assembleia e a deliberação de nomeação de novo gerente ser legal, a lei não exige que se prove a veracidade do fundamento invocado para a renúncia que motivou a substituição. A questão da justa causa apenas interessaria para efeito de indemnização, que aqui não está em causa, mas mesmo nesse âmbito caberia ao impetrante de indemnização a alegação e prova da falta de justa causa (como elemento constitutivo da responsabilidade). Portanto, é irrelevante que no caso se não tenha provado o cansaço como motivo justificativo da renúncia (vd. conclusões 5ª e 16ª).

Quanto à imputação de que a indigitação do novo gerente seria contrária aos interesses sociais e da sócia recorrente, a mesma é improcedente, pois que nada vem provado nesse sentido. Designadamente não se provou que o sócio C... tenha transferido dinheiro de contas da sociedade para contas pessoais de D..., ou que estes tenham acobertado lucros da sociedade, por qualquer forma.

Em conclusão, não pode concluir-se pelo invocado abuso de direito, como vem na conclusão 16ª.

A apreciação das questões relativas ao conteúdo da «ordem de trabalhos» (vd. conclusões 2ª e 4ª) só teria interesse se a recorrente tivesse suscitado perante a 1ª instância a questão da ilegalidade da convocatória para a assembleia. Mas não suscitou, pelo que se trata de questão nova que exorbita do recurso.

Não se mostram infringidos os preceitos legais invocados pela recorrente.

A 1ª instância ajuizou correctamente que «a comunicabilidade de uma quota social apenas se opera quanto ao conteúdo patrimonial desse “direito complexo” e não quanto ao seu conteúdo pessoal, como seja quanto ao direito de voto em assembleia geral» ([3]). E a decisão do cautelar foi correcta, ao considerar não preenchidos os requisitos do artigo 396º nº 1 do CPC.

III - Decisão:

Pelo exposto, julgamos a apelação improcedente, confirmando-se a decisão impugnada.

Custas pela recorrente.


[1] Neste sentido, vd. Pinto Furtado, Deliberações dos Sócios, Almedina, 2003, p. 106 e Raúl Ventura, Sociedades por Quotas – Comentário…, 1989, II, p. 224.

[2] A participação social é “um direito de conteúdo complexo, que tanto abrange direitos de natureza patrimonial, como direitos, poderes ou faculdades de ordem pessoal” – cf. Raúl Ventura, "Cessão de Quotas", 1967, pág. 10.

[3] Outrotanto não sucedeu ao afirmar que «com a dissolução do casamento, a comunhão conjugal se dissolve, convertendo-se o que era uma comunhão ideal, sem quotas definidas, numa compropriedade, em que cada um dos cônjuges comunga em metade». Tal frase encerra vários errros de direito. É que a comunhão conjugal não é uma comunhão ideal e, com o divórcio, a comunhão conjugal não se transforma em compropriedade.