Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3103/06.4TALR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: CRIME DE DANO
ACÇÃO DIRECTA
CAUSA DE EXCLUSÃO DE ILICITUDE
ERRO SOBRE A ILICITUDE
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 336.º DO C.C. E 31.º, N.º 1 E 2, ALÍNEA B) E 17.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. – O exercício legítimo de acção directa pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos (ainda que o agente suponha erroneamente a existência dos referidos requisitos e essa suposição seja desculpável): a) A existência de um direito privado próprio; b) Impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais (judiciais ou policiais); c) A não existência de outro meio de impedir a perda do direito; d) Não exceder o agente o que for necessário para evitar o prejuízo; e) Não importar a acção directa o sacrifício de interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.
II. - O erro sobre a ilicitude verifica-se quando o agente não conhece a norma de proibição que respeita ao facto, ou, conhecendo-a, tem-na por não válida, ou, em consequência de uma interpretação incorrecta, representa defeituosamente o seu âmbito de validade, considerando, em consequência disso, o seu comportamento como juridicamente admissível.
III. – O erro abrange duas realidades ou situações distintas: a uma primeira situação, a qual é usual denominar de erro directo ou sobre a norma punitiva, o agente não conhece – ou, conhecendo-a, considera-a revogada ou interpreta-a erradamente – a norma proibitiva que concerne directamente ao facto, tomando o seu comportamento como permitido e aprovado pelo Direito; b) uma segunda situação, a qual é comum designar-se de erro indirecto ou erro de permissão, o agente, conhecendo embora o desvalor jurídico que implica o preenchimento do tipo, erra sobre a intervenção de uma norma permissiva.
IV. - É de considerar como censurável a conduta do agente que representa um facto que constitui violação da ordem moral e ética e a leva a cabo, sem antes se ter assegurado de forma inequívoca sobre a sua licitude.
Decisão Texto Integral: O Digno Magistrado do Ministério Público acusou o arguido

, casado, empresário, filho de … e de …, natural da freguesia e concelho de Marinha Grande, residente na Estrada de Tomar, Marinela, Arrabal, Leiria, pela prática dos factos descritos na acusação deduzida a fls. 61 a 62, que aqui se dá por integralmente reproduzida, como autor moral, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1 do CP.

, a fls. 38 a 40, veio deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido …, sustentando, em resumo, que em virtude da conduta assumida pelo arguido, sofreu danos patrimoniais no valor de € 1.481,00 e danos não patrimoniais no valor de € 2.500,00, para os quais pede a condenação numa indemnização correspondente a tais valores.

O arguido apresentou contestação crime oferecendo o merecimento dos autos, bem como apresentou contestação ao pedido cível sustentando em síntese que o mesmo se mostra infundado, incompreensível e com valores aleatórios e exageradíssimos conforme teor de fls. 199 a 202 que aqui se tem por reproduzido, e finalmente arrolou testemunhas.
Efectuado o julgamento foi proferida a sentença de fls.314 na qual se condenou o arguido 

a), pela prática, em 02.10.2006, como autor moral, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1 do CP, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à razão diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), no montante global de € 455,00 (quatrocentos e cinquenta e cinco euros).

d) a entregar ao demandante, …, a quantia de € 201,00 (duzentos e um euro), a título de danos patrimoniais, e a quantia de € 100,00 (cem euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, contados desde o trânsito em julgado da presente sentença, até integral e efectivo pagamento, computados à taxa legal de 4 % ao ano;

Inconformado, recorreu o arguido, concluindo a sua motivação do seguinte modo:

Impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando incorrectamente julgados os pontos 4,5,6,7,8 e 9 da matéria de facto.

Impondo decisão diversa da recorrida as declarações do arguido que se encontram gravadas na cassete 1, lado A, do nº 0348 ao nº 1630 e lado B, do nº 0000 ao nº1630 e cassete 2, lao A, do nº 0000 ao nº 0661, da testemunha AM..., cujo depoimento se encontra gravado na cassete 4, lado A, do nº 0264 ao nº 1117; da testemunha JC... cujo depoimento se encontra gravado na cassete 4,lado A, do nº 1117 ao nº 1636 e lado B, do nº 0000 ao nº 0041, da testemunha … cujo depoimento se encontra gravado na cassete 4,lado B, do nº 0041 ao nº 0757; da testemunha …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete 4, lado B, do nº 0757 ao nº 1476, certidão da acção especial de demarcação nº 84/82 que correu termos pela 1ª secção do 3º Juízo de Leiria; planta junta pelo arguido em audiência de julgamento sob o documento nº 2 e certidões emitidas pelo serviço de Finanças de Leiria juntas com o requerimento apresentado pelo arguido em 14 de Abril de 2008.

Com efeito, aqueles elementos de prova não permitem ao Tribunal concluir que o muro implantado e os produtos agrícolas plantados no artigo rústico nº 5174 da freguesia de Caranguejeira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o número 5611.

Aqueles elementos de prova permitem antes concluir, quanto a nós que o muro e os produtos agrícolas se encontravam em terreno que é propriedade do arguido e que tem o nº 3100 de matriz.

O tribunal claramente não quis pronunciar-se sobre a questão da propriedade do prédio em causa, daí que tenha remetido os pontos 1,2,3 da matéria de facto para o que conta das certidões.

O que se compreende, já que não é seguramente o processo penal, a sede própria para discutir a propriedade.

Contudo ao considerar que o muro e os produtos agrícolas se encontravam no prédio inscrito na matriz sob o artigo 5174, acaba por considerar que aquela artigo se situa no prédio reivindicado pelo arguido, ou seja, o artigo 3100.

O que nunca se poderá concluir em face dos elementos de prova que se especificaram.

Que o artº 5174 se encontra registado a favor do assistente não resta dúvida, em face do que consta da certidão da Conservatória.

Que o muro e os produtos agrícolas se encontrassem naquele artigo é que já é, pelo menos, duvidoso.

Apontando quanto a nós, os elementos de prova supra-referidas, para concluir que o muro e os produtos agrícolas se encontravam no prédio propriedade do arguido com o nº 3100.

E foi nessa convicção legítima que o arguido destruiu parcialmente o muro e os produtos agrícolas.

Ou seja, o arguido agiu sem consciência da ilicitude do facto agindo por isso sem culpa.

O Mº Pº na comarca respondeu pugnando pela improcedência do recurso para tal concluindo:

O Mª Juiz apreciou a prova produzida em audiência, tendo em atenção o preceituado no art.º 127º do CPP e que a audiência de julgamento obedece também ao princípio da imediação que determina que o juiz deverá tomar contacto imediato com os elementos de prova, ou seja, através de uma percepção directa e pessoal e encontra-se estritamente ligado ao princípio da oralidade, permitindo ao tribunal a avaliação da credibilidade dos depoimentos e das declarações, bem como ter acesso à personalidade do arguido, cuja consideração é imposta pelo Código Penal.

Atentos os conceitos aqui mencionados e a factualidade do caso vertente, cremos poder afirmar que o Mº Juiz ao tomar conhecimento dos diversos depoimentos, limitou-se a avaliar a sua credibilidade de acordo com as regras da experiência, tendo feito um exame crítico dos mesmos, e considerando irrelevante os depoimentos das testemunhas cuja credibilização da versão apresentada era para sai duvidosa, tendo ainda em atenção a prova documental.

Termos que se entende que não foram violados quaisquer princípios ou preceitos legais e o apontado vício de erro na apreciação da prova não encontrou aqui abrigo.

O recorrido … respondeu defendendo a improcedência do recurso.

Nesta Relação a Exma. Procuradora – Geral Adjunta secundou a resposta do Mº Pº na comarca.

Parecer que notificado mereceu resposta na qual se defende que a simples dúvida sobre a propriedade do prédio importaria a absolvição do arguido sob pena da grave violação do princípio “in dubio pro reo”.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência há que decidir:

O âmbito dos recursos afere-se e delimita-se através das conclusões formuladas na respectiva motivação conforme jurisprudência constante e pacífica desta Relação, bem como dos demais tribunais superiores, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As questões a resolver são as seguintes:

Apreciação da prova

Da acção directa prevista no art.º 336º do Código Civil como causa de exclusão da ilicitude do art.º 31º,nº 1,2 b) do CP.

Do erro sobre a ilicitude previsto no art.º 17º do CP.

Factos dados como provados:

– Sob o artigo 0000.º, encontra-se inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Caranguejeira, e descrito na ficha nº 5611/19970711, sob a cota G e apresentação 12 de 14-09-2006 a aquisição a favor de …, casado com …, por partilha de herança, sob os seguintes dizeres: “Terra de mato com oliveiras, com a área de mil e quinhentos metros quadrados (1500 m2), no sítio da Freiria, a confrontar do norte com caminho, Sul com Á…, Nascente com M… e outros e Poente com Rua São Luís de Gonzaga».

– Em 30.09.2006, por escritura de compra e venda, … e marido … declararam vender a “…, Lda.” que, representada pelo seu sócio gerente …, declarou comprar «o prédio rústico composto de terra com duas oliveiras e pousio incultivável, sito em Fornos da Cal, freguesia da Caranguejeira, concelho de Leiria, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Leiria, sob o número 9.165, da freguesia da Caranguejeira, onde se mostra registado a favor dos primeiros outorgantes, pela inscrição G- apresentação vinte e nove, de onze de Maio de dois mil e seis, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3.100».

– Sob o artigo XXXX.º, encontra-se inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Caranguejeira, e descrito na ficha n.º 9165/20060511, sob a cota G- Ap. 26 de 06/10/2006 a aquisição por compra a favor de …, Lda., com os seguintes dizeres: “terra com duas oliveiras e pousio incultivável, com a área de quatro mil e duzentos metros quadrados (4200 m2), no sítio de Fornos da Cal, a confrontar do norte com M…, Sul com A…, Nascente com Rua São Luís de Gonzaga e Poente com regueira, atravessado por caminho».

– No terreno referido em 1), em 30/09/2006, … plantou uma horta constituída por couves, alfaces e nabiças e construiu um muro de pedra rústica solta, a demarcar a confrontação de poente com a Rua São Luís de Gonzaga e a confrontação de sul com Á….

– No dia 02.10.2006, entre as 9h e as 10 h, sem autorização e contra a vontade de …, outrem a mando e obedecendo a ordens expressas do arguido, que também se encontrava no local, invadiu aquele terreno referido em 1) com uma máquina munida de uma pá carregadora e passando por cima do muro a máquina entrou no terreno em causa e destruiu o muro numa extensão de pelo menos 4 metros de largura por 10 metros de profundidade, alagando-o.

– Bem como também destruiu os diversos produtos agrícolas que se encontravam plantados no aludido terreno removendo e revirando a terra nos locais semeados.

– As pedras do aludido muro ficaram caídas no chão, por cima da sementeira que ficou toda estragada.

– O arguido agiu consciente, livre e deliberadamente, mandando invadir o terreno mencionado em 1), contra a vontade como bem sabia de M…., e com o propósito de destruir o muro e os produtos hortícolas que ali se encontravam, conforme aludido em 4), que sabia não lhe pertencerem.

– Sabia, o arguido, que a sua conduta era proibida por lei.

Da determinação da sanção:

10 – O arguido não tem antecedentes criminais.

11 – O arguido está actualmente reformado, auferindo mensalmente a quantia de € 500,00 a título de reforma.

12 – O arguido continua a colaborar com a sociedade …, Lda., e em troca dos serviços prestados abastece gasóleo à conta da referida sociedade e tem os almoços suportados por esta.

13 – O arguido vive com a esposa, funcionária administrativa que aufere a quantia mensal de cerca de € 1.500,00.

14 – Vivem em casa própria, não tendo ninguém a seu cargo.

Do pedido de indemnização cível:

– Na sequência da destruição dos referidos muro e horta, … sentiu tristeza e frustração.

– … havia providenciado pelo depósito de terras no local onde o muro e a horta foram destruídos.

– … contratou uma máquina retro escavadora a uma empresa de desaterros, com o que despendeu a quantia de € 181,00, que pagou.  

2.2. Factos Não Provados:

Que a Junta de Freguesia da Caranguejeira tenha autorizado o assistente na construção do muro referido em 4).

Que o arguido tenha actuado da forma descrita em 5) e 6) aproveitando a ausência do local de ….

Que com a sua actuação, o arguido causou ao dono do prédio referido em 1) um prejuízo no valor total de € 1.481,00.

Que a construção do muro referido em 4) tenha importado 5 dias de trabalho, correspondendo cada hora de trabalho ao valor de € 7,50.

Que os serviços prestados pela máquina retro escavadora referidos em 17) tenham sido prestados no terreno onde o muro e a horta foram destruídos e em data anterior a 02.10.2006.  

Que … tenha comprado terra no valor de € 500,00, ao preço de € 125,00 cada camião e que para o arranjo do terreno onde plantou a horta e construiu o muro tenham sido necessários 4 camiões de terra.

Que com a destruição da horta referida em 4) … tenha tido um prejuízo não inferior a € 500,00.

Que o Assistente ainda hoje sinta angústia e frustração na sequência do descrito em 5) e 6).

Que diariamente o Assistente seja confrontado com perguntas e comentários dos vizinhos, com os quais se sente envergonhado e impotente.

2.3. Motivação da Matéria de Facto.

A convicção do Tribunal para a matéria de facto dada como provada, tendo sempre em atenção o disposto no artigo 127.º, do CPP, isto é, considerando o princípio de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção, resultou quer das declarações do arguido e do assistente quer da prova testemunhal e documental constante dos autos.

Com efeito, para prova do descrito em 1), o Tribunal atendeu ao teor de fls. 7 e 7-verso (documento da Conservatória do Registo Predial de Leiria quanto ao prédio rústico aí descrito sob n.º 5611 e inscrito na matriz sob artigo 5174), 237 a 248 (escritura de partilha dos herdeiros por óbito de …), 267 e 268 (certidão da finanças quanto ao prédio inscrito na matriz sob artigo 5174).

Depois para prova do descrito em 2), atentei ao teor de fls. 229-232 (escritura de compra e venda) e para prova do descrito em 3) atentei ao teor de fls. 267-270 (certidão finanças quanto ao prédio inscrito na matriz sob artigo 3100) e 291 (certidão registo predial quanto ao prédio inscrito na matriz n.º 3100 e descrito na conservatória sob n.º 9165).

Para prova do descrito em 4) a 7), atentei ao teor de fls. 9 a 13, conjugado com as declarações do arguido … e do Assistente …, designadamente na medida em que o arguido assumiu em síntese o ali referido. Tais depoimentos nesta parte mostraram-se sérios e isentos merecendo a credibilidade do Tribunal, tendo o Assistente relatado os factos de forma desapaixonada.

Já quanto à justificação ou justificações apresentadas pelo arguido vejamos: por um lado, referiu que o terreno que confronta a poente com a Rua São Luís de Gonzaga e a Sul com … lhe pertence por o haver adquirido a … corresponder ao artigo 3.100 e, por outro lado, invocou que se limitou a “estrepalhar a serventia” (sic) que ali existia pois tinha necessidade de por ali aceder para verificar se a vedação com a pedreira estava ou não em condições e mais referindo que a serventia é sua.

Nesta parte das declarações do arguido impõe-se uma reflexão, pois que na verdade é com base na compra feita a … do prédio 3.100 que afirma que o terreno em causa é seu.

Todavia, e no que à propriedade do terreno concerne, há que atender aos elementos documentais constantes dos autos e juntos pelas partes, designadamente descrição matricial e predial dos artigos 3.100 e 5.174, bem como escritura compra e venda celebrada entre arguido, na qualidade de legal representante da …, Lda, e …, de onde resulta que o titular inscrito quanto ao prédio 3.100 é a sociedade … e quanto ao prédio 5.174 é o Assistente. Ora depois há que ter em conta a escritura de compra e venda nos termos da qual o arguido, enquanto legal representante da …, Lda, declarou comprar a … e marido, que declararam vender àquela sociedade o artigo 3.100 com as confrontações a norte com M…, Sul com A…, Nascente com Rua São Luís de Gonzaga e Poente com regueira, atravessado por caminho e a qual foi celebrada no ano de 2006.

Na verdade, não se mostra verosímil sequer que o arguido venha agora dizer, como o fez em sede de audiência, que o prédio 3.100 tem como confrontações “Norte é comigo, Sul é também comigo, a este/nascente é também comigo e a poente é com Mário” (sic). E isto porque, por um lado, à data em que adquiriu o 3.100 em nome da sociedade …, Lda, este tinha como confrontações, designadamente a nascente, com a Rua São Luís de Gonzanga; e, por outro lado, não se mostra verosímil sequer que o arguido não tivesse inteiro conhecimento do que estava a comprar, pois que possuía no local outros prédios, tendo também conhecimento da existência da referida Rua São Luís de Gonzaga e sua localização e bem como, enquanto empresário, habituado a celebrar vários negócios, não se compagina com o senso comum que não soubesse o que efectivamente estava a comprar. Sendo certo que não invocou o arguido sequer qualquer causa de invalidade do negócio celebrado com … e marido.

Em face do que, ao Tribunal, pelos motivos expostos e face à presunção constante do artigo 7.º do Registo Predial, se apresenta como proprietário do terreno referido em 1) e 4) a 8) o titular inscrito na Conservatória do Registo Predial, ou seja ….

Mais assumiu o arguido que sabia que aquele muro e as plantações ali feitas tinham sido levadas a cabo “por … mais o filho no Sábado” (sic), tendo logo na 2ª feira de manhã ido ao local com as máquinas e alagado tudo.

No que à alegada serventia concerne, invoca o arguido que no local onde fez a máquina passar, destruindo o muro nessa extensão e a horta aí plantada havia uma servidão de passagem e que pretendeu abrir a mesma, apresentando como justificação o facto de por ali ter que passar para verificar o estado da vedação em torno da pedreira, com a qual tal terreno confronta, pois que estaria alegadamente obrigado a tal. Todavia, não logrou o arguido convencer o Tribunal da necessidade de ter que passar exclusivamente por aquele local e não mais abaixo, junto ao portão que possui ou que não fosse possível passar no local da alegada servidão mesmo com as construções ali existentes, designadamente a pé, para verificar a vedação. Nem logrou o arguido convencer da necessidade e obrigatoriedade de tal verificação se efectuar naquele dia em concreto e de modo a que não pudesse por outra forma, designadamente recorrendo aos meios civis adequados, obstar à destruição da alegada serventia.

Relativamente à existência de uma servidão naquele local em particular onde a máquina passou alagando o muro e destruindo a horta, atentei ainda ao depoimento das testemunhas …, …, … e … que afirmaram que apenas havia uma serventia um pouco mais abaixo e não naquele local; por outro lado atentei no depoimento das testemunhas …, …, … e … que afirmaram que o local onde o muro foi alagado era uma serventia de passagem para os terrenos que se seguem.

Nesta parte, revelaram-se pois tais depoimentos contraditórios entre si, pois, por um lado, temos as testemunhas da acusação também arroladas pelo Assistente a afirmarem a inexistência de qualquer servidão onde o muro foi alagado e, por outro lado, as testemunhas do arguido a afirmarem a existência ali de uma servidão no local do referido muro alagado. Conhecendo todas as testemunhas o local há mais de 20 anos, alguns há mais de 40 anos.

Todavia, na verdade, independentemente da existência ou não de uma serventia no local onde o muro foi alagado e a horta destruída, temos que a necessidade invocada pelo arguido para aceder por aquele local prendia-se com a verificação do estado da vedação do terreno que se situa a sul e nascente do local em causa. Todavia, bem vistas as coisas, temos que esse mesmo terreno onde se encontra a vedação tem o seu início logo na Rua São Luís de Gonzaga, não tendo conforme acima se expôs o arguido lograr convencer o Tribunal quer quanto à necessidade de por ali ter que passar e não o poder fazer mais abaixo quer quanto ao facto de não poder em tempo útil lançar mão dos meios de tutela civis ao seu dispor.

Pelo exposto, concluímos que o arguido, não obstante considerar e defender a existência de uma servidão de passagem a onerar o prédio referido em 1), sabia que a horta e o muro ali construídos eram do Assistente e que tal prédio se encontra inscrito a favor deste; bem sabendo que com a destruição quer do muro quer da horta actuava contra a vontade do assistente.

No que à extensão do muro destruído diz respeito, e para prova do referido em 5), atentei quer às declarações do arguido quer às declarações das testemunhas …, …, … e …, as quais nesta parte depuseram de forma séria, desinteressada e serena, convencendo-me, tendo no geral referido que a largura do muro destruído correspondia à largura da máquina e que em comprimento, por referência a esta sala fixaram em cerca de 10 metros. Quanto à horta destruída as testemunhas revelaram no essencial que ao passarem ali posteriormente viram os produtos hortícolas a crescer para onde foi a terra atirada com a passagem da máquina, ficando a horta destruída. Mais esclareceram as testemunhas, aqui de forma uníssona que o local se encontra ainda hoje como o apresentado a fls. 9 a 13, após a passagem da máquina.

Para prova do descrito em 8), atentei nas declarações do próprio arguido que reconheceu que mandou invadir aquela parcela de terreno com o propósito de destruir o muro e os produtos hortícolas que ali se encontravam e que sabia terem sido construídos e plantados por … e filho no Sábado anterior (2 dias antes) e fazendo-o sem o consentimento do referido …. Por outro lado, o arguido sabia que com a sua actuação sacrificava coisa alheia (afirmou saber que o muro e a plantação foram levados a cabo pelo assistente e filho), sabendo que tal comportamento é ilícito.

Para prova do descrito em 9), atentei também às regras de experiência comum concretizadas no concreto comportamento exteriorizado, uma vez que o arguido sabia exactamente quem havia construído o muro e plantado a horta e o arguido ao actuar sobre tais construções sabia que as mesmas não lhe pertenciam e que o fazia contra a vontade do seu dono e na prática de tais actos o ser humano actua conscientemente.

Atentei ainda no certificado de registo criminal de fls. 228 emitido a 04.04.2008, para prova do descrito em 10).

Atentei, por fim, às declarações prestadas pelo arguido quanto às suas condições pessoais, para o descrito de 11) a 14), que nesta parte logrou convencer o Tribunal.

Relativamente ao pedido de indemnização civil, para prova do descrito em 15), a tristeza e frustração sentidas são facto notório face à constatação da destruição do muro por si erigido e horta cultivada, apenas dois dias antes da destruição (artigo 514.º, do CPC).

Já quanto ao descrito em 16) e 17), atentei, quer ao depoimento da testemunha …, que afirmou ter visto uns tempos antes a descarregarem terras naquele local, quer às declarações do Assistente que afirmou que além de ter providenciado pela colocação de terras naquela parte do terreno invadida pelo arguido também contratou os serviços de terraplanagem, que foram por si suportados e ao teor de fls. 41 e fls. 249. Todavia, não logrou o Assistente convencer o Tribunal quanto ao facto de os serviços de terraplanagem terem sido levados a cabo naquele terreno em particular, uma vez que, confrontado quanto aos motivos pelos quais da factura por tais serviços consta uma data de emissão posterior bem como é posterior a data em que aí se refere terem sido prestados os serviços, referiu ter solicitado várias vezes a factura após os serviços terem sido prestados e que quando finalmente a mesma lhe foi entregue procedeu ao seu pagamento e foi-lhe emitido o respectivo recibo. Ora compulsado o teor de fls. 41 e de fls. 249, do qual consta que o recibo foi emitido em 29.10.2006, a tese do Assistente não logrou convencer o Tribunal.

No que respeita aos factos não provados, nem o assistente nem as testemunhas souberam esclarecer o Tribunal relativamente à autorização da Junta de Freguesia ou quanto à utilização da retroescavadora naquele terreno em particular. Por outro lado, também quanto aos valores referidos em c), d) e g) nem o assistente nem as testemunhas lograram convencer o tribunal quanto ao valor quer da horta quer da construção do muro (não esclareceram quantos dias nem qual o custo do mesmo, a testemunha … limitou-se aliás a referir um valor, sem esclarecer qual o fundamento para o mesmo, atendendo a que o muro foi construído com material recolhido no próprio terreno e que não quantificou quantos dias ali se terá dispendido).

O referido na al. f), resultou das próprias declarações do Assistente que referiu que a terra que ali mandou depositar havia sido dada, não tendo pago qualquer quantia para tal. 

O referido nas alíneas h) e i) advieram da total ausência de prova nesse sentido, pois que ninguém se referiu a tais matérias.

Apreciação da prova

O recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando incorrectamente julgados os pontos 4,5,6,7,8 e 9 da matéria de facto.

Vejamos:

Os pontos de facto impugnados prendem-se por um lado com o local, a propriedade do terreno onde estava construído o muro e onde foram plantados os produtos agrícolas danificados, e por outro o elemento subjectivo do crime de dano pelo qual vinha acusado.

Desde já discordamos da afirmação feita pelo recorrente que “a questão é saber onde é que tal muro fora implantado”.

Não é esse o objecto do processo mas sim a propriedade do muro e dos produtos agrícolas danificados.

E quanto a estes o recorrente não põe em causa que os mesmos são ou eram pertença do demandante.

Deste modo tal como a defesa e o presente recurso se encontram configurados, não interessa averiguar da propriedade do terreno, sendo certo aliás que não é este o meio próprio para o fazer.

Quanto aos pontos de facto impugnados no que respeita ao elemento subjectivo do crime, os mesmos surgem por arrastamento em relação á impugnação sobre a propriedade do terreno. Na verdade tal como consta das conclusões 12 a 14 o recorrente defende que perante os elementos de prova referidos conclui-se que o muro e os produtos agrícolas se encontravam num prédio sua propriedade, e foi nessa convicção legítima que destruiu parcialmente o muro e os produtos agrícolas, ou seja agiu sem consciência da ilicitude do facto, agindo por isso sem culpa. Sobre tal iremos debruçarmo-nos de seguida.

Concluímos deste modo que nenhuma censura merece a factualidade dada como provada.

B- Da acção directa prevista no art.º 336º do CC(Código Civil),como causa de exclusão da ilicitude do art.º 31º,nº 1,2 b) do CP

Embora de uma forma não muito nítida parece resultar da motivação de recurso que o arguido invoca esta causa de exclusão de ilicitude.

Começando por apreciar e averiguar da ocorrência ou não da invocada causa exclusória da ilicitude, dir-se-á que a lei substantiva civil (art.º 336º do CC), ao admitir o recurso à força (acção directa), integra-se no conceito amplo de exercício de um direito.

Atento o concreto factualismo alegado pelo recorrente, dir-se-á que o mesmo é susceptível de eventual subsunção a situação excludente da ilicitude, designadamente á que decorre da prática do facto no exercício de um direito.

Com efeito o recorrente invoca ter actuado em legítima defesa “ da sua propriedade”.

A lei substantiva civil (art.º 336º do Código Civil (CC), ao admitir o recurso á força(acção directa) , integra-se precisamente no conceito amplo de exercício de um direito.

Certo é, no entanto, que a acção directa pressupõe a verificação cumulativa de certos e determinados requisitos a saber:

A existência de um direito privado próprio;

Impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais (judiciais ou policiais);

A não existência de outro meio de impedir a perda do direito;

Não exceder o agente o que for necessário para evitar o prejuízo.

Não importar a acção directa o sacrifício de interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar. ([i])

Todos estes requisitos devem ocorrer para que a acção directa seja legítima, de sorte que, mesmo que o agente suponha erroneamente a existência dos mesmos e essa suposição seja desculpável, a acção directa é ilegítima. É que a pessoa, conta quem se exerce a acção directa, não pode estar sujeita a que esta seja exercida fora das condições legais, embora por erro desculpável do agente, pelo que a acção directa se exerce com falta de algum requisito legal, mesmo que o erro não seja culposo, aquela é ilegítima. ([ii])

Ora, atenta matéria de facto dada como provada em audiência não ficou demonstrado o requisito base referido nas precedentes alíneas, qual seja a existência de um direito privado próprio. Mas tal como ressaltamos supra a propósito da apreciação da prova é secundário.

Debruçando-nos agora sobre o segundo requisito (impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais - judiciais ou policiais) nada ficou demonstrado, sendo certo igualmente que não ficou provado que a acção do arguido fosse indispensável para evitar a utilização prática daquele eventual direito. O arguido não teve a preocupação de se socorrer das forças policiais ou judiciais. É que, convém sempre ressaltar, vivemos num Estado de direito, competindo aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados – art.ºs 2º e 206º da Constituição.

Por regra, a ninguém é lícito o recurso á força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito – art.º 1º do CPC.

Acresce que não está minimamente caracterizada uma situação de perigo actual ou iminente que ameaçasse bens do arguido – exigida pelo art.º 34º do CP (direito de necessidade) - já que o muro e a plantação de produtos agrícolas ,que terão estado na base da conduta do arguido, só por si estão muito longe do perigo actual ou eminente acima referido, antes consubstanciando uma eventual ou virtual situação de perigo, mais ou menos remota.

Destarte, não se verificando in casu os pressupostos legais da acção directa ter-se-á de concluir pela inexistência da causa de justificação da ilicitude constante da alínea b) , do nº 2 do artº 31º do CP.
Do erro sobre a ilicitude previsto no art.º 17º do CP
Vejamos agora se ocorre ou não causa de justificação invocada, isto é se o recorrente actuou sem consciência da ilicitude do facto, devido a erro e, caso afirmativo, se o erro lhe é ou não censurável (artº 9º, nºs 1 e 2 do CP)
Nos termos do art.º 17º,1 do CP “age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude da facto, se o erro lhe não for censurável.”

Como é sabido, o erro sobre a ilicitude verifica-se quando o agente não conhece a norma de proibição que respeita ao facto, ou, conhecendo-a, tem-na por não válida, ou, em consequência de uma interpretação incorrecta, representa defeituosamente o seu âmbito de validade, considerando, em consequência disso, o seu comportamento como juridicamente admissível. ([iii])

Tal erro, como implicitamente decorre do acabado de referir, abrange duas realidades ou situações distintas, muito embora ambas se encontrem submetidas ao mesmo regime.

Numa primeira situação, a qual é usual denominar de erro directo ou sobre a norma punitiva, o agente não conhece – ou, conhecendo-a, considera-a revogada ou interpreta-a erradamente – a norma proibitiva que concerne directamente ao facto, tomando o seu comportamento como permitido e aprovado pelo Direito.

Numa segunda situação, a qual é comum designar-se de erro indirecto ou erro de permissão, o agente, conhecendo embora o desvalor jurídico que implica o preenchimento do tipo, erra sobre a intervenção de uma norma permissiva. Trata-se, neste caso, de um erro se proibição indirecto, na medida em que o agente não pensa, sem mais, que o facto é lícito. Ele pensa, isso sim, que o facto é lícito em virtude de estar a agir ao abrigo de uma causa de justificação que, no caso, não pode ser reconhecida pela ordem jurídica (erro sobre a existência de uma causa de justificação) ou, sendo-o, a conduta não está abrangida pelos limites da norma permissiva (erro sobre os limites de uma causa de justificação) ([iv]).

Por outro lado, o erro pode ainda verificar-se numa terceira situação. Ela ocorre quando o erro incide sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto. Trata-se aqui do erro de tipo permissivo (art.º 16º,nº 2), o qual se consubstancia num erro sobre os pressupostos objectivos de uma causa de justificação, isto é, quando o agente acredita estar a actuar justificadamente, de acordo com o Direito e não contra o Direito.

Certo é que o erro sobre a ilicitude – seja directo, indirecto ou de tipo permissivo – pode ser evitável ou inevitável. No entanto, só o erro inevitável ou não censurável constitui uma causa de exclusão da culpa. ([v])

Ora do exame e análise do quadro factual apurado em sede de julgamento não decorre que o recorrente haja actuado sem consciência da ilicitude do facto, designadamente devido a erro directo, indirecto ou do tipo permissivo (não censurável).

É de considerar como censurável a conduta do agente que representa um facto que constitui violação da ordem moral e ética e a leva a cabo, sem antes se ter assegurado de forma inequívoca sobre a sua licitude.

Na verdade a “função de apelo” que a representação de um facto eticamente censurável deve trazer ao espírito do agente, o inerente “dever de informação” que decorre dessa representação, não pode deixar da conduzir ao entendimento de que, em tais casos, é censurável (mais ou menos, as circunstâncias do facto e da personalidade do agente o dirão) o erro com o qual o arguido tenha actuado. ([vi]) É que, ainda nas palavras de Teresa Serra, o critério decisivo para se aferir se o erro é ou não de censurar ao agente deve ser o mesmo que se utiliza no facto negligente para se apurar o dever de exame do agente. Não se pode esquecer que o agente que actua com erro sobre a ilicitude conhece os elementos objectivos do tipo – uma vez que actuou dolosamente – e a função de apelo desempenhada pelo dolo típico deveria ser suficiente para o levar a examinar com atenção a ilicitude que é indiciada pelo preenchimento do tipo. E quando o facto, para além de ser uma infracção do Direito, constitui também uma violação da ordem moral e ética, o erro é normalmente evitável já que a valoração normativa pode surgir com um maior ou menor esforço de consciência.

Confrontando o exposto com a prova produzida decorre que o recorrente agiu com consciência da censurabilidade jurídico - penal da sua conduta.
Deste modo, também não se pode falar em erro relevante, designadamente em erro de tipo permissivo.

Nestes termos se decide:


[i] - Cfr. Entre outros, Vaz serra, “ causas justificativas do facto Danoso”, BMJ, 85, 77/78. Ac. T. R. Coimbra, de 9-4-97, Col. Jur. II-56
[ii] - Quanto às implicações estritamente penais da ocorrência de erro desculpável do agente, serão as mesmas abordadas mais adiante aquando da apreciação da causa de justificação da ilicitude ou da culpa de erro não censurável.
[iii]  Cfr. Teresa Serra, Problemática do Erro sobre a Ilicitude (1991), 67
[iv] - Cfr. Teresa Serra, ibidem, 69 e 79
[v] - Ac. desta Relação no recurso 122/97
[vi] -Cfr. Teresa Serra, ibidem, pag. 70 e segs.