Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3203/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÃO INEXACTA
Data do Acordão: 11/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 429.º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: 1. Devendo o tomador do seguro declarar facto ou circunstância por si conhecidas que possam influir sobre a existência ou condições do contrato, sobre a seguradora impende o dever de sindicar as respostas que o tomador deu ao questionário ou o seu não preenchimento, não podendo arguir a omissão se não reagir à entrega de um questionário não preenchido ou incompleto.
2. A seguradora é, pois, igualmente responsável pelo não exercício dos seus poderes de informação e controlo fiscalizador sobre se as perguntas foram ou não preenchidas pelo tomador.

3. Sobre a seguradora recai o ónus de alegar e provar que o facto ou circunstância conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, é susceptível de aumentar o risco ou o prémio aplicável.

4. A declaração inexacta ou reticente tem como efeito a anulabilidade do contrato de seguro.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


A... e B... intentaram, no Tribunal de Vagos, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, com vista à efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, contra a seguradora C..., alegando, em resumo, que o seu filho D... foi vítima de um acidente de viação, quando era transportado gratuitamente num veículo automóvel, ao lado do condutor. Aquele veículo automóvel, devido a culpa exclusiva do condutor que conduzia a uma velocidade superior 100 Km/h, e desatento, despistou-se, embatendo violentamente contra uma árvore, tendo resultado, como consequência necessária, a morte do seu filho. A responsabilidade civil por danos causados a terceiro na condução do o veículo automóvel estava transferida para a Ré.
Pediram a condenação da Ré ao pagamento duma indemnização global no montante de € 100.000, sendo € 50.000 a título de indemnização pelo dano morte, € 25.000 a título de danos não patrimoniais próprios da vítima e € 25.000 a título de danos não patrimoniais próprios dos AA.

Citada, a Ré contestou, excepcionando a nulidade do contrato de seguro, impugnando a dinâmica do acidente e o montante da indemnização pedida. Concluiu pela improcedência da acção e absolvição do pedido.

Os AA. replicaram, concluindo como na petição, e requereram a intervenção principal do Fundo de Garantia Automóvel, bem como de E... (condutor do veículo) e de F... (dono do veículo).

Foi admitida a requerida intervenção principal, tendo o FGA contestado por excepção (prescrição do direito) e impugnação, concluindo pela absolvição do pedido. Os demais intervenientes contestaram por forma a alijar a sua responsabilidade, sempre afirmando a validade do contrato de seguro, invocando o Alexandre, também, a prescrição do direito e negando ser o condutor de veículo automóvel.
Os AA. replicaram à matéria de excepção deduzida pelos intervenientes, concluindo pela sua improcedência.

O Instituto de Solidariedade e Segurança Social interveio na acção, pedindo a condenação da Ré seguradora a reembolsar as despesas de funeral no montante de € 615,37, tendo a Ré contestado a declinar a sua responsabilidade.

Prosseguindo os autos os seus regulares termos, com prolação do despacho saneador a relegar para final o conhecimento das excepções da nulidade do contrato de seguro e prescrição do direito, selecção da factualidade relevante, instrução e audiência de julgamento, foi, por fim, proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e provada, sendo a Ré seguradora condenada a pagar aos AA. uma indemnização no montante global de € 55.000, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da data da sentença, a pagar ao ISSS a quantia de € 615, 37, acrescida de juros de mora, e absolvidos do pedido os intervenientes principais.

Inconformados com tal decisão, apelaram os AA. e Ré.
Os AA. manifestando a sua discordância apenas quanto ao montante indemnizatório, pugnando pelos montantes vertidos na petição inicial, concluíram, deste jeito, a sua alegação:
1ª- Considerando que entre danos não patrimoniais há a distinguir os sofridos pela vítima antes da morte, os sofridos pelos seus progenitores e o dano especificamente constituído pela perda do direito à vida;
2ª-Mais considerando da falibilidade da difícil ponderação do “telos” indemnizatório a título de danos não patrimoniais, por ser impossível quantificar o sofrimento ou imputar um preço, eminentemente, merceeiro á vida (inviolável e irrepetível);
3ª-Acompanhaando a melhor jurisprudência, no sentido em que “pecuniando” sobre estes valores, eles não se podem bastar por critérios miserabilistas e meramente simbólicos;
4ª-A compensação dos sofrimentos e desgostos deve ser conformada por critérios actualistas (atendendo, nomeadamente, ao nível dos preços praticados na hodierna sociedade);
5ª-Assim, sopesando o critério orientador da equidade com a própria idiossincrática situação da vítima deve a sentença da 1ª instância ser reformada condenando a Ré ao pagamento de € 50.000 pelo dano especificamente constituído pela perda do direito à vida;
6ª-Deve, ainda, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais dos Apelantes pela morte do seu filho varão ser fixada em € 25.000, atendendo particularmente às epónimas circunstâncias em que ocorreu o acidente, o grande sofrimento e efectiva perda que padeceram;
7ª-Dando como provado que a vítima teve a percepção de que ia morrer, antevendo o seu fim, tendo padecido de sofrimento, angústia e dor até esse desenlace, como deve decorrer de toda a prova factual vertida nos autos;
8ª-Ao abrigo do comando legislativo densificado no n.º1 do a rt. 496º do CC, reformando a decisão do Tribunal “a quo”, ao pagamento de € 25.000 a título de indemnização por danos não patrimoniais da própria vítima, suportada até à fatalidade da sua morte;
9ª- A decisão em apreço violou, assim, por erro de aplicação e interpretação, as disposições dos arts. 483º, n.º1, 495º, n.º3 e 496º, n.º1, todos do CC.

Por seu turno, a Ré, insistindo na procedência da excepção peremptória da nulidade do contrato de seguro, concluiu, assim, a sua alegação, e resumo:
1ª- A matéria de facto provada sob os n.ºs 4, 5, 33, 34, 35, 36 e 37, preenche, de forma irrepreensível, todos os requisitos exigidos pela disposição do art. 429º do Código Comercial;
2ª- A declaração inexacta decorre dos n.ºs 5, 34 e 35, as circunstâncias conhecidas do segurado decorrem dos n.ºs 5, 33, 34 e 35, e a possibilidade de influência sobre a existência ou condições do contrato decorre do n.º 37;
3ª- A seguradora aceitou a transferência de seguro, partindo do princípio de que o contrato de seguro apenas era alterado quanto às características do objecto, mantendo-se inalteradas todas as outras informações e elementos constitutivos do contrato;
4ª- Veio a verificar-se que o novo veículo para o qual a segurada pretendia transferir o seguro não era, afinal, de sua propriedade;
5ª-Veio a verificar-se que a seguradora, se tivesse tomado conhecimento dessa alteração de titularidade do objecto do seguro não teria aceite a transferência sem qualquer alteração;
6ª- O contrato de seguro é nulo, tendo a decisão impugnada violado, entre outros, os arts. 429º do Código Comercial, 664º, 2ª parte, e 493º do CPC e arts. 8º e 9º, ambos do CC.

Os AA. e o FGA responderam à alegação da Ré seguradora, preconizando a validade do contrato de seguro, tendo a Ré respondido à alegação dos AA. em defesa dos montantes indemnizatórios arbitrados.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II)- OS FACTOS
Na sentença sob exame foi dada por assente a seguinte factualidade:
1-Os autores são pais de D..., nascido em 13 de Junho de 1977, e falecido no estado de solteiro no dia 20.04.1997, como consequência directa e necessária de acidente de viação.
2-Com base no falecimento de D... foram requeridas no Centro Nacional de Pensões, por Maria Ascensão Crespo Oliveira, as respectivas prestações por morte, as quais foram deferidas.
3-Em consequência, o ISSS/CNP pagou a Maria Ascensão Crespo Oliveira, a título de despesas de funeral, o montante de € 615,37.
4-Por escrito consubstanciado na apólice nº AU20.308.624, a ré C... havia assumido a responsabilidade civil por prejuízos causadas a terceiros pelo veículo de matrícula QC-48-65.
5-O veículo QC-48-65 pertencia a F....
6-O acidente ocorreu no dia 20.04.1997, pelas 22 horas e 15 minutos, na E.N. nº 109, ao Km 73,5, em Santo André, Vagos.
7-Nessas circunstâncias, a viatura ligeira de passageiros QC-48-65 era conduzida por E....
8-O veículo QC havia sido emprestado ao Alexandre Jorge pelo seu dono.
9-No veículo QC seguia também o filho dos autores, que ocupava o banco da frente, ao lado e à direita do condutor.
10-O veículo circulava na sobredita estrada e no sentido Calvão/Vagos.
11-O veículo circulava a velocidade superior a 100 Km/hora.
12-O seu condutor, por não conseguir controlar o carro na sua mão e respectiva faixa de rodagem, foi invadir a hemi-faixa contrária, atento o sentido que trazia.
13-Indo embater contra uma árvore implantada na rampa da estrada do lado esquerdo, tendo em conta o sentido Calvão/Vagos.
14-O carro deixou no asfalto um rasto transversal da travagem, numa extensão de 100 m, com início a 1,50m da berma, atento o sentido Calvão/Vagos.
15-Tendo-se imobilizado contra a árvore na qual embateu.
16-Ficando o carro “dobrado” e “abraçado” a esta árvore.
17-Completamente amassado, com as chapas retorcidas e irrecuperável.
18-Havendo necessidade de proceder ao desencarceramento do filho dos autores, que ficou com os pés presos na amálgama de ferros e chapa.
19-A viatura ficou encostada à arvore, virada para o sentido contrário àquele que trazia.
20-O local onde se deu acidente é uma recta com boa visibilidade, com o piso em bom estado.
21-As condições climatéricas eram boas.
22-A estrada, alcatroada, tinha 7,40 metros de largura e atravessava uma povoação (Stº André).
23-D... tinha imensa alegria e vontade de viver.
24-Era uma pessoa feliz, descomplexada, com muitos amigos e com grandes projectos para o futuro.
25-Tinha um grande amor pelos pais e estes por ele, dado existir entre todos um estreito entendimento.
26-O seu filho era para os autores a alegria e razão de ser de grande parte das suas vidas.
27-Os autores reviam-se nele e nele depositavam as maiores esperanças quanto a um futuro risonho e feliz.
28-Sabendo que com ele poderiam contar, a nível patrimonial, como afectivo, quando chegasse a sua velhice.
29-Era o seu confidente e dele esperavam a continuação do futuro da preservação da família.
30-Os autores nunca mais recuperaram do enorme traumatismo que sofreram com a notícia do desaparecimento e morte do seu filho.
31-Sempre esperaram e desejaram ter um filho varão.
32-Ainda hoje sonham com ele e têm pesadelos, revivendo os momentos que se seguiram à notícia do seu falecimento.
33-O contrato de seguro titulado pela apólice n.º AU20.308.624 foi celebrado entre a ré e Maria Clotilde Santos Gadelho em 29.09.1993 para cobertura dos riscos de circulação de um veículo automóvel de matrícula FD-88-32, de que aquela proponente era proprietária à data.
34-Por iniciativa desta, aquele contrato de seguro foi transferido para o veículo QC-48-65 em 15.05.1996.
35-Maria Clotilde Gadelho não informou a ré que o veículo pertencia ao seu filho, F.... (sendo daqui retirada a inserção «e que este se não encontrava habilitado para conduzir», cuja menção se manteve por mero e manifesto lapso, face ao que se mostra provado em 38. e ao teor do doc. de fls. 286).
36-A ré aceitou a alteração, sem qualquer outra modificação nos termos da apólice, na suposição de que este veículo pertencia a Maria Clotilde Gadelho.
37-Se a ré tivesse tomado conhecimento da titularidade e identificação do dono do QC não teria aceite a transferência do contrato de seguro, sem qualquer alteração.
38-F... já era então titular de carta de condução.
39-Os mediadores João dos Santos Rico e mulher Maria da Conceição de Jesus Estrela Rico que fizeram a alteração do contrato de seguro que se discute nos presentes autos têm poderes para emitir certificados provisórios de seguro relativos ao seguro automóvel obrigatório.

A decisão de facto não foi impugnada, sendo a mesma aceite sem qualquer alteração.



III)- O DIREITO

Como é sabido, as conclusões da alegação delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 690º, n.º1, 684º, n.º 3 e 660º, n.º2, parte final, todos do CPC).
Ponderando tal regime processual, verifica-se que os AA. submetem a julgamento deste Tribunal apenas a definição do montante indemnizatório, limitando a Ré a sua discordância ao problema da arguida nulidade do contrato de seguro.
Porque a eventual procedência do recurso da Ré seguradora prejudica o conhecimento do recurso dos AA., abordaremos em primeiro lugar aquele recurso.

III-1)- APELAÇÃO DA RÉ
Na sua contestação, a Ré arguiu a excepção peremptória da nulidade do contrato de seguro, alegando o seguinte:
-Foi tal contrato outorgado com Maria Clotilde Loureiro Santos Gadelho, em 29.09.93, cobrindo os riscos de circulação de um veículo automóvel com a matrícula FD-88-32;
-Posteriormente, em 15.05.96, foi objecto de alteração por iniciativa da tomadora, passando a cobrir os riscos da circulação do veículo automóvel de matrícula QC-48-65, interveniente no acidente a que alude os autos;
- Apenas foi pedida a alteração do veículo seguro, aceitando a Ré tal alteração na suposição de que o veículo QC pertencia à tomadora, quando, na verdade, pertencia ao filho da tomadora;
-Se a Ré tivesse tomado conhecimento da titularidade do veículo, não aceitaria a transferência do contrato de seguro sem qualquer alteração.

Incumbindo à Ré a prova dos requisitos da arguida nulidade do contrato, resultou provado, a esse respeito, o que consta dos n.º s
4, 5, 33, 34, 35, 36 e 37 da factualidade dada por assente, e acima transcrita.
A este respeito, determina o art. 429º do Código Comercial que “toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo. Tratando-se, no caso, de um seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, no mesmo sentido está redigido o art. 11º da Apólice Uniforme relativa a tal seguro.
Argumenta a Ré que a matéria de facto apurada preenche cabalmente a previsão de tal norma.
Será assim?
Provou-se, efectivamente, que a tomadora Maria Clotilde, que tomou a iniciativa de pedir a alteração do contrato, não informou a Ré que o veículo de matrícula QC- 48-65 pertencia ao seu filho. E a Ré seguradora aceitou a alteração quanto ao veículo seguro, convencida que o veículo QC pertencia à tomadora. Se a Ré tivesse tomado conhecimento da titularidade e identificação do dono do veículo QC não teria aceite a transferência do contrato, sem qualquer alteração.

O contrato de seguro, como flui do art. 426º do Código Comercial, deve ser reduzido a escrito num instrumento, que constituirá a apólice de seguro. Tal forma escrita constitui uma formalidade ad substantiam Cfr. acórdãos do STJ publicados no BMJ n.º 449, p.384, BMJ n.º 302, p. 273, BMJ n.º 488, p.381, na CJ 2001, 2º, p. 60 e na CJ 1993, 3º, p. 74 . E as alterações que se registem ao longo da duração do contrato, relativamente ao risco, ao objecto do seguro ou às partes contratantes devem ser tituladas por documento, constituindo esta a acta adicional.
Na hipótese ajuizada, a Ré juntou com a contestação, os documentos de fls. 22 a 26, comprovativos da outorga do contrato e sua posterior alteração. No documento relativo à alteração do contrato, aparece identificado o veículo QC, mas sem qualquer quadro onde possa o tomador proponente inserir a titularidade de tal veículo. Apenas surge nesse documento um quadro final destinado a certificação a preencher pelos serviços da Ré, como aí vem impresso, impondo, além do mais, a verificação do título de registo de propriedade da viatura ou que a declaração de compra e venda se encontra em nome do proponente, bem como a junção de fotocópias do registo de propriedade ou do documento de compra e venda. Porém, tal quadro a ser preenchido pelos serviços da Ré, visando a certificação, está completamente em branco. Não se certificando nesse local a fotocópia da ficha de inspecção obrigatória do veículo, noutro quadro mais acima, já se certifica que foi inspeccionado, tendo sido aprovado.
Ora, ficou assente que a tomadora Clotilde, pretendendo alterar o contrato no tocante ao objecto seguro, não informou a Ré que o veículo QC pertencia ao seu filho, o interveniente F..., ocorrendo, pois, uma reticência ou omissão na declaração. Também nesse impresso preparado e apresentado pela Ré, através de mediadores, à proponente tomadora, não se inclui, como já se referiu, qualquer quadro onde aquela possa declarar se é ou não proprietária do novo veículo que pretende segurar, sabido que normalmente o proponente limita-se a declarações verbais e a assinar a proposta, porque o preenchimento é feito pelos funcionários das seguradoras ou mediadores. Consequentemente, a falta de indicação nesse documento da titularidade do veículo QC pode advir da falta de um quadro onde o proponente pudesse declarar tal titularidade, a que se alia a negligência dos serviços da Ré em verificar o título de registo de propriedade do veículo ou a declaração de compra e venda. E é sabido que as seguradoras, normalmente, não dispensam a apresentação dos documentos do veículo visando a celebração do contrato de seguro, podendo assim facilmente e com segurança comprovar a propriedade e estimar o risco do veículo.
Tratando-se, pois, de um documento impresso, preparado de antemão pela Ré e apresentado à proponente Clotilde para preenchimento, será contrário às regras da boa fé, invocar a Ré a nulidade Em bom rigor, tratar-se-á antes de uma anulabilidade, como vem defendido nos acórdãos do STJ publicados na CJ 1993, 3º, p. 74, na CJ 2001, 2º, p. 61, CJ 1998, 1º, p. 103 e no BMJ n.º 485, p. 427 do contrato de seguro.

Como escreve José Vasques, em “Contrato de Seguro”, 1999, p. 221, “é importante referir que o encargo pendente sobre o tomador do seguro de declarar o risco sem omissões, reticências ou inexactidões, não deixa de envolver também a seguradora, que não pode abandonar-se totalmente às declarações do proponente com o fundamento de que a sanção legal a protegerá das declarações erróneas, devendo entender-se que sobre ela impende, no mínimo, o dever de sindicar as respostas que o tomador deu ao questionário ou o seu não preenchimento, não podendo arguir a omissão se não reagiu à entrega de um questionário não preenchido ou incompleto.” Também, no acórdão da Relação de Lisboa, publicado na CJ 1982, 1º, p. 172, vem exarado que “a seguradora é igualmente responsável pelo não exercício dos seus poderes de informação e controlo fiscalizador sobre se as perguntas formuladas no questionário foram ou não preenchidas pelos segurado”, tese, também, perfilhada no acórdão do STJ publicado na CJ 1993, 3º, p. 72, onde vem afirmado que “as partes devem aceitar a álea que é a própria de este tipo de contratos e, perante qualquer dúvida que seja de pôr, devem agir “ab initio” em conformidade. O que, desde logo, não está correcto por parte das seguradoras, é emitir apólices, não levantar dúvidas, não conferir ou pedir esclarecimentos de qualquer omissão que fosse relevante, não invocar sequer falta de pagamentos de prémios e só esmiuçar tudo e mais alguma coisa, arrastando a causa anos e anos, só depois do sinistro ocorrido”.

Se, como ficou apurado, a Ré aceitou a alteração contratual, convencida que o veículo pertencia à proponente Clotilde, afinal só de si se pode queixar, porque a proposta impressa que apresentou não permitia à proponente declarar a titularidade e os serviços da Ré ou os mediadores não providenciaram, também, como deviam, pela certificação da titularidade face aos documentos cuja apresentação devia ser exigida à proponente. A Ré não pode, pois, desvincular-se do contrato, como defende, e quando lhe é exigida responsabilidade pelo sinistro, porque a reticência ou omissão em apreço é-lhe imputável.

Diga-se, por fim, que a omissão ou reticência só releva, como decorre do art.429º do Código Comercial, quando o facto ou circunstância omitida teria podido influir sobre a existência ou condições do contrato, ou seja, se for susceptível de aumentar o risco ou o prémio aplicável Cfr. acórdão do STJ publicado na CJ 1998, 1º, p. 103, incumbindo à seguradora a prova de tal circunstância. A Ré não alegou sequer que a alteração contratual não se faria, apesar da omissão da titularidade do veículo, apenas alegando e provando que haveria alteração do contrato se a Ré tivesse conhecimento que o veículo não pertencia à tomadora. Importaria antes provar que o conhecimento desse facto implicaria um agravamento do prémio por correspondência com um maior risco do veículo e não uma simples alteração contratual não concretizada.
Em suma, a tese da Ré seguradora, salvo o devido respeito, não merece acolhimento, sendo de manter a decisão impugnada que julgou improcedente a excepção peremptória de nulidade do contrato de seguro.

III-2)- APELAÇÃO DOS AA.
Como já se sublinhou acima, a divergência dos AA. relaciona-se apenas com os montantes indemnizatórios arbitrados na sentença a título de danos não patrimoniais.
Foi fixada a quantia de € 35.000 relativamente ao dano constituído pela perda do direito à vida e a quantia de € 20.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais próprios dos AA. devido à morte do filho.
Defendem, porém, os AA. que a indemnização pelo dano morte deve ser fixada em € 50.000 a indemnização pelos danos não patrimoniais próprios dos AA. deve ser fixada em € 25.000 e deve ser arbitrada indemnização no montante de € 25.000 pelos danos não patrimoniais próprios da vítima.
Vejamos.
Prescreve o n.º1 do art. 496º do CC que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito e, nos termos do n.º 3, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º e no caso de morte podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.
Não sofre dúvida que os danos alegados são graves à luz desse normativo, configurada a gravidade como um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento caso a caso, de acordo com a realidade fáctica apurada.
A indemnização por danos não patrimoniais reveste uma natureza mista, ou seja, visa compensar, e algum modo, os danos sofridos pelo lesado e simultaneamente reprovar a conduta do agente Cfr. “Das Obrigações em Geral”, vol. 1º, 6 ª edição, p. 578, de Antunes Varela e acórdão do STJ publicados no BMJ n.º 408, p. 538. Não sendo tais danos avaliáveis como são os danos patrimoniais, inexistindo, por isso, qualquer medida rigorosa a esse respeito, dentro do juízo de equidade a que o Julgador terá de recorrer haverá que ter em conta, para além das circunstâncias referidas no art. 494º, os padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência, bem como as flutuações do valor da moeda “cfr. obra citada de Antunes Varela, p, 629, acórdãos do STJ, publicado no BMJ 323º, p. 360, na CJ 1996, 2º, 281 e “Manual dos Acidentes de Viação”, 2ª edição, p. 187, de Dário Martins de Almeida. , sendo certo que a compensação deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico ou miserabilista.

É, pois, incontroversa a ressarcibilidade da perda do direito à vida, porque é a lesão de um bem superior a todos os outros. Embora, numa dada perspectiva, o bem da vida, como valor individual e supremo de todo e qualquer ser humano, deva, em abstracto, ser compensado de uma maneira uniforme, porque a vida seja um bem igual para todos, não pode ignorar-se que há outros valores de natureza vária, específicos de cada caso (idade, saúde, integração e relacionamento familiar e social, papel desempenhado na sociedade, etc.) que justificam, diferentes montantes, como maioritariamente vem sendo entendido na jurisprudência. Daí que a indemnização pelo dano morte deva considerar as especificidades e particularismo de cada caso, não sendo despicienda a diferença entre uma vida que se perde no seu ocaso dos dias e uma vida de uma pessoa saudável e na flor da idade. Ponderando a hipótese sub judice, ficou assente que a vítima, na data do acidente tinha 19 anos, tinha imensa alegria e vontade de viver, era uma pessoa feliz, descomplexada, com muitos amigos e com grandes projectos para o futuro e tinha um grande amor pelos pais. Atentas essas circunstâncias, julga-se adequada uma indemnização no montante de € 45.000 pela perda do direito à vida, em vez da quantia de € 35.000 fixada na 1ª instância.

No tocante à peticionada indemnização pelos danos sofridos pelos AA. devido à morte do seu filho, pugnando os AA. por uma indemnização conjunta no montante de € 25.000, certo é que a vítima era transportada gratuitamente no veículo Como alegam os AA. na petição inicial, o seu filho seguia como “pendura” no veículo, conduzido por E... ( arts. 9º e 12º). . E como determina o n.º3 do art. 504º do CC, no caso de transporte gratuito, a responsabilidade abrange apenas os danos pessoais da pessoa transportada. Consequentemente, não é de acolher a pretensão dos AA. a ver acrescida a indemnização a esse título, sendo, todavia, de manter, porque não impugnado pela Ré o arbitramento de tal indemnização, e proibida a reformatio in pejus (n.º4 do art. 684º do CPC).

Por fim, no que concerne à reclamada indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima, que os AA. defendem dever ser fixada no montante de € 25.000, nada de relevante se provou a esse respeito, ou seja, que tenha intercedido um intervalo de tempo entre o momento do acidente e o momento da morte, e nesse intervalo a vítima se encontrasse num estado de angústia e sofrimento, designadamente com a perspectiva da morte iminente. Não merece, pois, qualquer censura a sentença sob exame que, nesse âmbito, se absteve de fixar indemnização, não sendo de acolher, salvo o devido respeito, a argumentação adrede apresentada pelos AA. na sua alegação.

IV)- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
1-Conceder em parte provimento ao recurso.
2-Em consequência, revoga-se a sentença impugnada no tocante ao montante da indemnização pela perda do direito à vida, que se fixa no montante de € 45.000, mantendo-se a sentença quanto ao mais.
3-As custas, em ambas as instâncias, serão pagas pelos AA. e Ré seguradora, na promoção do vencimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido aos AA.
COIMBRA,
(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj.- Des. Helder Roque)

(2º Adj.- Des. Távora Vítor)