Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
695/13.5TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA
DEVER DE INFORMAÇÃO DO INSOLVENTE
CÁLCULO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE MONTEMOR O VELHO - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 239º E 243º DO CIRE.
Sumário: 1. Para que o incumprimento doloso ou com culpa grave do dever de informação sobre os seus rendimentos venha a implicar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, necessário se torna que tal omissão prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

2. Para o cálculo do que seja o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, para efeito de o excluir dos rendimentos a ceder, haverá que ter-se em consideração o valor dos rendimentos líquidos.

3. Para tal efeito, ao rendimento bruto recebido pelo devedor/trabalhador independente haverá que deduzir não só os custos e encargos com a atividade, se os houver, mas ainda as contribuições obrigatórias, quer as fiscais quer as devidas à Segurança Social.

4. Caso o apuramento da quantia a ceder mensalmente pelo insolvente se afigure uma operação complexa, incumbirá ao Administrador de Insolvência acordar com aquele um valor mensal a entregar por conta do valor que se vier a apurar a final relativamente a cada ano fiscal.

Decisão Texto Integral:












Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

Declarada a insolvência de L..., foi, por despacho de 13 de novembro de 2013, admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando que o rendimento disponível que o insolvente viesse a auferir, no montante correspondente a um salário mínimo e meio, se considerava concedido ao fiduciário.

Por despacho de 30 de janeiro de 2017 e realizado o rateio final, foi decretado o encerramento do processo de insolvência nos termos do artigo 230º, nº1, al. a), do CIRE, dando início ao período de cinco anos da cessão.

Decorrido o primeiro ano do período de cessão, a Sra. Fiduciária informou que, naquele ano, não houvera lugar a quaisquer entregas e que o devedor não prestara quaisquer informações sobre a sua situação de empregabilidade e rendimentos auferidos.

Findo o segundo ano do período de cessão, a Sra. Fiduciária prestou idêntica informação, dando conta de que o devedor não procedera a quaisquer entregas e não prestara informações sobre a sua situação de empregabilidade e rendimentos auferidos. Acrescentou apenas lhe ser possível deduzir que o devedor estará empregado porque, contactado para prestar informações, se comprometeu a entregar os seus recibos de vencimento, o que não fez.

Perante este relatório, o credor Banco S..., S.A. veio requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração, atenta a violação dos deveres a que o devedor se encontra adstrito, conforme art. 239.º, n.º 4, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Determinada a notificação do devedor, dos credores e da fiduciária, a fim de se pronunciarem sobre a requerida cessação, a fiduciária considerou que deveria ser dada previamente a oportunidade ao devedor de juntar os documentos pertinentes sobre os rendimentos mensais, situação familiar e de empregabilidade dos últimos três anos, ou justificar a impossibilidade da sua apresentação, apenas depois se podendo decidir sobre a existência dos requisitos necessários para a cessação do incidente.

O devedor juntou cópias das declarações de IRS dos ambos de 2017 e 2018 e esclareceu que não forneceu anteriormente tais dados em virtude de ter alterado os seus contactos telefónicos, o que não lhe permitiu ser contactado anteriormente pelo seu patrono.

O Banco S..., S.A. reiterou o seu pedido de cessação antecipada do procedimento, considerando, nomeadamente, que da declaração de rendimentos de 2018 resulta que este obteve rendimentos de cerca de €18.163,36, o que representa um rendimento mensal muito superior ao rendimento indisponível fixado.

Notificado expressamente o devedor para esclarecer por que motivo, tendo auferido no ano de 2018 rendimentos no valor de €18.163,36, não cedeu qualquer valor à Sra. Fiduciária, nada disse.

Por Despacho de 11 de novembro de 2019 foi recusada a exoneração do passivo restante, declarando a cessação antecipada do procedimento de exoneração.

Inconformado com tal decisão, o Insolvente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1 – O presente tem por objeto o despacho de recusa da exoneração do passivo restante do insolvente e de declaração de cessação antecipada do respetivo procedimento.

2 – A discordância do recorrente prende-se com o facto de no despacho recorrido ter sido considerado que o recorrente agiu com grave negligência e que tal facto prejudicou os créditos sobre a insolvência.

3 - No que concerne à negligência, verifica-se, de facto, que o recorrente não cumpriu alguns dos seus deveres. Mas tal facto, por si só, não implica um elevado grau de negligência nem configura uma situação insanável.

4 – Até porque o recorrente, notificado para tal pelo tribunal, apresentou as suas declarações de rendimentos dos anos de 2017 e 2018, predispondo-se a entregar os seus rendimentos objeto de cessão, de acordo com as deduções de despesas devidamente comprovadas arcadas no âmbito do exercício da sua atividade.

5 – Por outro lado, a atuação do recorrente não prejudicou a satisfação dos créditos da insolvência.

6 – Pois, repita-se, o recorrente apresentou voluntariamente as suas declarações de rendimentos, podendo a parcela dos mesmos que cabe entregar aos credores sê-lo a qualquer momento, pelo que inexiste qualquer prejuízo destes, prejuízo esse que apenas se constataria se se verificasse que o recorrente, notificado para tal, se recusasse a fazer as entregas.

7 – Perante todo o exposto, errou o tribunal a quo na interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, ao considerar que o ora recorrente atuou com grave negligência e que tal comportamento prejudicou a satisfação dos créditos da insolvência.

8 – Deveria tal norma ter sido interpretada no sentido de se considerar que o recorrente agiu apenas com mera negligência, mas que tal comportamento não prejudicou a satisfação dos créditos sobre a insolvência, apenas atrasando o seu cumprimento.

9 - Razão pela qual deverá ser revogado o despacho recorrido e remetidos os autos ao tribunal a quo, devendo aí o recorrente prestar as suas contas perante o tribunal e o fiduciário e manter-se o procedimento de exoneração.

Termos em que deverá ser dada procedência ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o despacho de recusa da exoneração do passivo restante do insolvente e de declaração de cessação antecipada do respetivo procedimento, mantendo-se o procedimento de exoneração

Norma Jurídica violada: artigo 243.º, n.º 1, a) do CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se é de alterar a decisão recorrida que declarou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Não tendo a decisão recorrida fixado separadamente quais os factos a atender para a apreciação da questão em apreço, seleciona este tribunal os seguintes factos, dentro dos elementos disponíveis nos autos:
1) A insolvência do Apelante foi declarada por sentença de 13 de novembro de 2013;
2) À data da sua declaração de insolvência, o Apelante encontrava-se desempregado auferindo um subsídio de desemprego;
3) Em tal data, o insolvente encontrava-se divorciado da sua mulher, da qual tem dois filhos;
4) Correu termos igual processo de insolvência relativamente ao ex-cônjuge do devedor aqui insolvente;
5) No ano de 2017 auferiu, enquanto trabalhador por conta de outrem, o rendimento ilíquido global de 1.115,71 €;
6) No ano de 2018 apresentou um rendimento bruto – rendimentos profissionais, comerciais e industriais (rendimentos categoria B, sem contabilidade organizada) – de 18.153,36 €, sendo 2.069,88 € de vendas e 16.083, 48 €, a título de prestação de serviços efetuados a pessoas singulares sem atividade empresarial;
7) Foram relacionados créditos no valor global 149.977,40 € (e verificados 126.480,42 €);
8) No âmbito da insolvência foi apreendido para a massa e vendido um imóvel que constituíra a casa de morada de família do ex-casal, pelo valor de 23.100 €;
9) O processo de insolvência foi declarado encerrado a 30 de janeiro de 2017, após rateio final;
9) Admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, foi fixado ao insolvente um rendimento disponível equivalente a 1,5 salário mínimo;
10) Só por requerimento de 04-10-2019, e após notificação pelo tribunal, o Insolvente veio juntar aos autos declarações de IRS relativas a 2017 e a 2018.
11) O insolvente não entregou qualquer quantia ao fiduciário relativamente aos anos de 2017 e 2018.
O artigo 235º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas)[1] atribui ao devedor que seja uma pessoa singular a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Ou seja, em linguagem comum, como afirma Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente[2]”.
Trata-se, assim, de uma “versão bastante mitigada”[3] do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago.
Como consta do Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o Código da Insolvência[4], “A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o credor permaneça, durante um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume entre várias outras obrigações a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, e tendo o devedor adoptado um comportamento liso para com os credores, cumprindo todos os deveres que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento”.
Tratando-se de um benefício concedido pelo legislador, o devedor terá de se esforçar por merecer a concessão do mesmo – perdão total das dívidas não integralmente satisfeitas – e aquela dependerá da efetiva cedência do “rendimento disponível”, tal como se acha definido no nº 3 do art. 239º do CIRE, durante o período de cinco anos posterior ao encerramento do processo de insolvência.
A concessão de tal benefício surge como a contrapartida do sacrifício do devedor que, durante o período de cessão se encontra sujeito, entre outras, à obrigação de “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado” e à obrigação de “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão” – als. b) e c) do nº 4 do art. 239º.
Expostos os motivos e objetivos que subjazem à consagração de tal instituto, passemos à análise da concreta questão objeto do presente recurso, respeitante à determinação sobre se o comportamento da insolvente, ao longo do tempo recorrido desde o início do período da cessão, justifica a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Dispõe o nº 1 do artigo 243º do CIRE, sobre a “Cessação antecipada do procedimento de exoneração”, que, antes de terminado o período da cessão, o juiz deve recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência ou do fiduciário, caso se verifique alguma das circunstâncias previstas numa das alíneas a) a c) de tal norma.
A cessação antecipada do procedimento foi requerida nos presentes autos pelo credor S..., S.A, alegando, em síntese:
o despacho inicial de exoneração do passivo restante foi proferido em novembro de 2013, tendo-se passado quase 6 anos;
não é claro nos autos se o insolvente apenas não prestou esclarecimentos sobre os últimos três anos de rendimentos ou se já desde o 2º ano que não presta informações, sendo que apenas junta agora as declarações de rendimentos dos anos 2017 e 2018, continuando a omitir os rendimentos do corrente ano de 2019;
sendo certo que no ano de 2018 resulta que obteve rendimentos de cerca de 18.163,36€, pelo que divido tal rendimento por 12 meses resulta um rendimento mensal de 1.514€, valor muito superior ao correspondente a 1 SMN e meio fixado como rendimento disponível;
tendo o insolvente a obrigação de comunicar aos autos todas as alterações de domicílio bem como as relacionadas com a sua situação profissional, não defensável que o insolvente não tenha atuado com dolo ou negligência grave, pois bem sabia que era sua obrigação entregar mensalmente o valor que excedesse o rendimento indisponível fixado, o que não veio a acontecer.
Alegando ter-se já completado o período de 5 anos, pede a cessação antecipada da exoneração da exoneração do passivo restante.
O despacho recorrido veio a decretar a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, com a seguinte fundamentação:
“No caso, verifica-se que o devedor violou reiteradamente o dever de colaboração previsto no art. 239.º, n.º 4, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na medida em que não prestou quaisquer informações à fiduciária sobre a sua situação de empregabilidade e sobre os rendimentos auferidos ao longo do 1.º e do 2.º anos do período de cessão, impedindo, por essa forma, que esta pudesse apurar a parcela disponível do rendimento auferido, e que deveria ter sido objeto de cessão.
Para justificar este incumprimento, o devedor invocou que mudou o seu contacto telefónico, e que, por isso, não pôde ser atempadamente contactado pelo seu patrono.
Salvo o devido respeito, tal justificação não colhe: desde logo, porque incumbia ao devedor, que em tempo declarou dispor-se a observar as condições de que depende a exoneração (art. 236.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), o dever entrar em contacto com a Sra. Fiduciária para lhe prestar as informações necessárias para a elaboração dos relatórios; contactos que, aliás, manteve antes do início do período de cessão, como resulta do 1.º relatório, onde consta que em maio de 2014 o devedor informou a Sra. Fiduciária do seu posto de trabalho e do seu vencimento; por outro, porque se verifica que a Sra. Fiduciária solicitou tais informações ao próprio devedor, conforme referido no 2.º relatório, do qual consta que, contactado para prestar as informações necessárias para a elaboração do relatório, o devedor se comprometeu a entregar os seus recibos de vencimento, o que não fez.
Considera-se, por isso, que o incumprimento do dever de informar a fiduciária sobre os seus rendimentos, no prazo concedido, demonstra um profundo alheamento pelo cumprimento das obrigações a que o devedor, ao requerer a exoneração do passivo restante, se vinculou, traduzindo uma violação das mais elementares regras de conduta.
Conclusão que se mostra reforçada pelo facto de o devedor, quando confrontado com o facto de ter auferido rendimentos disponíveis no ano de 2018, e não ter cedido qualquer quantia à fiduciária, não ter apresentado qualquer explicação, nem se ter proposto a regularizar a situação.
Assim, e atendendo a que o incumprimento determinou um prejuízo para os créditos da insolvência correspondente à falta de entrega dos rendimentos objeto de cessão, haverá que concluir o devedor incumpriu, pelo menos com negligência grosseira, os deveres de informar a fiduciária sobre os rendimentos auferidos e de ceder a parte disponível dos seus rendimentos, e que com tal incumprimento causou um prejuízo aos credores, justificativo da cessação antecipada do incidente, nos termos dos arts. 239.º, n.º 4, e 243.º, n.º 1, als. a) e c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
No caso em apreço, e embora o Credor S... não tenha alegado ao abrigo de que norma requereu a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante – baralhando por completo a figura da cessação antecipada com o despacho final de exoneração do passivo restante, no convencimento de que já teria decorrido o prazo de cinco anos previsto para tal procedimento –, o circunstancialismo por si alegado seria suscetível de integração na violação das obrigações previstas nas alíneas a) e c) do nº 4 do artigo 239º CIRE:
Segundo as disposições conjugadas dos artigos 243º, nº 1, al. a), e 239º, nº 4, alíneas a) e c), CIRE, antes de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência ou do fiduciário, quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligencia violado algumas das obrigações impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência, entre as quais se destacam as seguintes obrigações:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isto lhe seja requisitado;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objetos da cessão.
A cessão veio a ser decretada, com base no incumprimento, quer: i) do dever de informar sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo que lhe seja requisitado, quer de ii) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos rendimentos objeto da cessão, fundamentos que passamos a analisar.
Encerrado o processo de insolvência por despacho de 30 de janeiro de 2017, iniciou-se o período da cessão, obrigando-se o insolvente a:
- comunicar os seus rendimentos;
- entregar ao Fiduciário, todo o rendimento disponível que viesse a auferir mensalmente em montante superior ao equivalente a 1,5 salários mínimos,
Relativamente à violação da obrigação de informação dos seus rendimentos, temos unicamente os seguintes factos que nos são trazidos pelo AI:
- no Relatório apresentado pelo Administrador de Insolvência (AI) relativamente ao 1º ano da cessão, alega que, em 2014, o Insolvente o informou que se encontrava a trabalhar para a sociedade Q..., Lda., onde auferia 700 € líquidos, e que “desde então o devedor não prestou qualquer informação acerca da empregabilidade e rendimentos auferidos;
- no Relatório relativo a 2018 alega que “no 2º ano o devedor continuou sem prestar qualquer informação acerca da sua situação de empregabilidade e rendimentos auferidos; à fiduciária apenas é possível deduzir que o devedor está empregado; isto porque, contactado para prestar as informações necessárias à elaboração do presente relatório, o devedor comprometeu-se a entregar os seus recibos de vencimento. No entanto, até ao momento não o fez”;
- só com a notificação do tribunal para o efeito, o insolvente veio, por requerimento de 04 de outubro de 2019, juntar as declarações de IRS relativas aos anos de 2017 e de 2018.
Face a tais factos, poderemos afirmar que o insolvente incumpriu a sua obrigação que sobre si impendia de informar o fiduciário dos rendimentos por si auferidos, se não com dolo, pelo menos com negligência grave. E concordamos com a sentença recorrida na parte em que considera que o facto de o insolvente ter mudado o seu contacto telefónico, e que por isso não foi atempadamente contactado pelo seu patrono, não constitui circunstância justificativa, pois que lhe incumbia o dever de encontrar em contacto com o fiduciário para lhe prestar as informações necessárias à elaboração do relatório anual nos termos do art. 236º, nº 3 do CIRE).
Contudo, há ainda um outro requisito necessário, e que a omissão de cumprimento de tal dever tem de satisfazer, para constituir fundamento necessário e bastante para a declaração de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante: que o incumprimento de tal obrigação venha a prejudicar a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
É aqui que nos afastamos da decisão recorrida – quando a mesma dá por assente que o insolvente terá “auferido rendimentos disponíveis no ano de 2018 e não ter cedido qualquer quantia à fiduciária”, daí retirando a ilação de que o incumprimento de tal obrigação “determinou um prejuízo para os créditos da insolvência correspondente à falta de entrega dos rendimentos objeto da cessão”.
Com efeito, se é indiscutível que durante o ano de 2017 não haveria qualquer rendimento a ceder – auferiu, enquanto trabalhador por conta de outrem, um rendimento anual bruto de 1.115,71€ –, da análise dos únicos elementos disponíveis nos autos não nos é possível concluir que, no ano de 2018 os rendimentos auferidos pelo insolvente tenham ultrapassado o valor definido nos autos e a partir do qual ele era obrigado a ceder ao fiduciário.
Com efeito, da declaração de IRS respeitante a 2018 resulta que o insolvente não auferiu qualquer rendimento enquanto trabalhador por conta de outrem: os rendimentos que apresenta são Rendimentos da Categoria B, Regime Simplificado (sem contabilidade organizada, rendimentos profissionais, comerciais e industriais), no montante global anual de 18.153,36 €:
- 2.069,88€ de vendas de mercadorias e de produtos;
- 16.083,48€ de prestação de serviços efetuados a pessoas singulares sem atividade empresarial.
Contudo, ao contrário do que é sustentado pelo credor S(...) e subentendido na decisão recorrida, o valor global declarado de 18.153,36 € é o valor da faturação total respeitante a 2018; é um valor bruto, que não equivale ao valor de que o insolvente possa efetivamente dispor. Com efeito, ainda que o insolvente nada tenha declarado em custos a abater (matérias primas, transportes, etc.), há montantes que terão necessariamente de ser deduzidos a tal “rendimento bruto” e, ainda que o mesmo estivesse dispensado do pagamento de IVA, sempre terá de proceder ao pagamento de IRS, bem como ao pagamento das contribuições para a Segurança Social[5], em valores que se desconhece.
Mas essa não é a única dificuldade à determinação da existência, ou não, de rendimento disponível. O rendimento a ceder é reportado por lei aos montantes auferidos mensalmente pelo devedor e referindo-se ao valor líquido efetivamente recebido. Caso o insolvente seja um trabalhador por conta de outrem e ainda que ocorram variações no valor auferido mensalmente, não se levantam, em princípio, dúvidas na determinação de qual o valor mensal a entregar pelo insolvente ao fiduciário: terá de depositar a totalidade do valor que vier a receber e que excedesse o valor do tal salário e meio que lhe foi fixado como rendimento indisponível, ou seja, tudo o que excedesse em cada mês o valor de 870,00 €[6]. E, como no caso de trabalhadores por conta de outrem, os descontos legais são efetuados pela entidade patronal aquando do processamento do vencimento, o devedor não terá qualquer outra operação de cálculo a efetuar para além de ao valor liquido recebido mensalmente deduzir o montante indisponível, depositando o restante à ordem do Fiduciário.
No caso de trabalhadores por conta própria, a determinação do montante a ceder mensalmente revestirá outra complexidade, uma vez que: i) não se encontra assegurada qualquer regularidade no momento do recebimento do preço pelos bens e serviços que vai prestando – o pagamento dos serviços não é calculado ao mês, sendo contabilizado relativamente a casa um dos serviços prestados; ii) não se encontra assegurada qualquer regularidade nos montantes que recebe – ainda que o volume de trabalho possa ser semelhante de uns meses para os outros, o respetivo pagamento pode ser efetuado meses depois e de uma só vez e, além do mais, iii) os valores são recebidos em bruto, não coincidindo o momento do recebimento com o momento em que se vence a obrigação contributiva correspondente.
Como tal, e ainda que saiba que constituirá rendimento a ceder ao fiduciário tudo o que mensalmente exceder a quantia de 870€ líquidos, não se atinge sequer, de que modo, o insolvente, por si só, sem a ajuda do Fiduciário ou do tribunal, conseguirá determinar qual o montante dos seus “rendimentos líquidos” a considerar para efeitos de determinar se excedem, ou não, o rendimento disponível fixado para cada mês, e, em caso afirmativo, qual o valor a ceder.
Ora, os elementos disponíveis nos autos não nos permitem efetuar tal cálculo – o que explica o facto de, quer o administrador de insolvência quer o juiz a quo, terem omitido qual o valor do rendimento disponível em dívida relativamente a 2018.
Apenas o credor Reclamante, e sem qualquer razão, parte do valor de 18,163,36 € declarado a título de faturação global (resultante da soma do valor das vendas e serviços prestados) e divide-o por 12, concluindo que o insolvente auferiu um valor mensal de 1514€ mensais, valor este que, como já foi referido, é uma mera média aritmética (podendo o insolvente, por ex., num mês nada receber e no outro receber pagamentos de faturas no valor de 4.000,00), não contemplando os pagamentos obrigatórios para a Segurança Social nem o pagamentos a título de IRS.
Ou seja, nestas situações em que o apuramento da quantia a ceder pelo insolvente ao fiduciário se afigura uma operação complexa (em que alguns dos elementos do cálculo só se conseguem obter no final do ano), não se pode prescindir de uma postura ativa do Fiduciário de modo a, conjuntamente com o insolvente, e numa operação de prognose sobre o rendimento médio líquido a auferir pelo insolvente, acordarem no desconto mensal (ou trimestral, por coincidir com a obrigatoriedade de pagamento das contribuições para a Segurança Social, ou outra regularidade que entendam mais adequada), se determinar qual o valor a depositar pelo insolvente, por conta do rendimento disponível, rendimento este cujo montante exato só posteriormente e reportado a cada ano civil, será apurado, sendo que, apenas após este acerto de contas (perante todos os valores das receitas, todos os valores das despesas e das contribuições), se saberá se o insolvente tem ainda algo a entregar à massa ou se é credor da mesma.
Ora, se, no caso em apreço, os elementos constantes dos autos não nos permitem apurar se o rendimento auferido pelo insolvente implica a existência ou não de algum valor a ceder, não podemos concluir, como fez a sentença recorrida, que o incumprimento do dever de informação “determinou um prejuízo para os créditos da insolvência correspondente à falta de entrega dos rendimentos objeto da cessão”.
Concluindo, não constando dos autos qual o valor que o insolvente deveria ter cedido ao fiduciário durante o ano de 2018, ou se havia, sequer, algum montante a ceder, e não dispondo os autos dos elementos necessários ao apuramento de tal valor, não poderemos dar por verificado um dos pressupostos necessários à declaração antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante: que o incumprimento do dever de informação tenha acarretado algum prejuízo para os credores.
Quanto ao alegado incumprimento do dever de entregar a parte dos seus rendimentos objeto da cessão, pelas considerações já expostas, fica claro não se ter por demonstrado, uma vez que não se mostra apurado se o insolvente auferiu rendimentos líquidos que ultrapassem o montante indisponíveis e, em caso afirmativo, quais.
Concluindo, a apelação é de proceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo Credor S(...) .        

                                                      Coimbra, 04 de fevereiro de 2020

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº 7 do CPC.

1. Para que o incumprimento doloso ou com culpa grave do dever de informação sobre os seus rendimentos venha a implicar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, necessário se torna que tal omissão prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

2. Para o cálculo do que seja o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, para efeito de o excluir dos rendimentos a ceder, haverá que ter-se em consideração o valor dos rendimentos líquidos.

3. Para tal efeito, ao rendimento bruto recebido pelo devedor/trabalhador independente haverá que deduzir não só os custos e encargos com a atividade, se os houver, mas ainda as contribuições obrigatórias, quer as fiscais quer as devidas à Segurança Social.

4. Caso o apuramento da quantia a ceder mensalmente pelo insolvente se afigure uma operação complexa, incumbirá ao Administrador de Insolvência acordar com aquele um valor mensal a entregar por conta do valor que se vier a apurar a final relativamente a cada ano fiscal.

 

         


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[1] Código a que pertencerão todas as disposições citadas sem menção de origem.
[2] Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, in THEMIS 2005, Edição especial, “Novo Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 167.
[3] Na expressão de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, “Regular o sobreendividamento”, in “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o Anteprojecto do Código”, Ministério da Justiça – Gabinete da Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 94.
[4] Da autoria de Osório de Castro, e que se mostra publicado in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 233.
[5] Tratando-se de trabalhador não abrangido pelo regime de contabilidade organizada, o rendimento relevante para o cálculo do valor da contribuição é determinado com base nos rendimentos obtidos nos três meses imediatamente anteriores ao mês da Declaração Trimestral, correspondendo a 70 % do valor total de prestação de serviços ou a 20 % dos rendimentos associados à produção e venda de bens. A taxa contributiva a cargo dos trabalhadores independentes é fixada em 21,4%.
[6] Encontrando-se o rendimento mensal garantido fixado para o ano de 2018 em 580 € - Dec. Lei nº 156/2017 de 28-12-2017.