Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170-D/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 10/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGO 4º, N.º 3 E 279º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: Considerando a finalidade da acção executiva – a reparação efectiva do direito violado, nos termos do artigo 4º, n.º 3 do Código de Processo Civil – é inadmissível a suspensão da execução ao abrigo do artigo 279º, nº1, 1ª parte do mesmo diploma (pendência de causa prejudicial.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

Na presente execução que o Banco A…… intentou contra B....., C.....e D....., veio o executado E.....requerer, em 3 de Junho de 2003, a suspensão da acção executiva “até ao trânsito em julgado da sentença a proferir na acção declarativa de condenação intentada pelo executado contra a exequente e que sobre o nº 75/2002 corre termos na 2ª secção da 7ª Vara Cível de Lisboa”.

Invoca, para fundamentar a sua pretensão, que o executado instaurou na 2ª secção da 7ª Vara Cível de Lisboa a acção supra identificada, em que pede a condenação da exequente a abster-se de lhe exigir o pagamento da quantia exequenda, pelo que a suspensão da instância “pode obviar a uma incoerência de decisões, uma declarando que aquele que figura no título executivo não é afinal devedor e outra mandando dar cumprimento ao que consta do título supostamente válido”.

“Assim sendo, é indubitavelmente mais económico suspender desde logo a tramitação da acção executiva, do que deixar correr, com a susceptibilidade de as prestações coercivamente realizadas virem a ter de ser restituídas, e o perigo de já não ser possível tal desiderato por extravio ou dissipação entretanto realizada, por quem, afinal, não tinha direito a essas prestações.

Acresce que no presente caso como vimos o executado não deve pagar a quantia exequenda, sob pena de não poder fazer cumprir a seguradora o contrato de seguro sub judice”.

Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho:

“Já foi suscitada nos autos a eventual suspensão da presente instância executiva, invocando-se a previsão normativa do art. 279º do Código de Processo Civil. 

A esse propósito tivemos já o ensejo de nos pronunciar nos moldes que constam do despacho exarado a fls. 188/189 dos autos, pelo que no essencial consideramos aplicarem-se também aqui as mesmas considerações ali recebidas, por fundadas razões de economia processual, indeferindo-se consequentemente ao requerido.

Notifique”.

O despacho em causa, proferido em 15/10/2002, tem o seguinte teor:

“Vieram os executados C.....e D..... requerer a suspensão da presente instância executiva, alegando para tanto a pendência de acção declarativa que, sob o nº 127/2000 corre termos pela 3ª secção da 15ª Vara Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa.

Opõe-se o exequente à pretensão suscitada pelos executados nos moldes que constam de fls. 88-91.

Dado não ter sido ainda apreciada, como seria mister, a questão suscitada passa-se de imediato a fazê-lo.

Como é sabido, toda a acção executiva visa a satisfação efectiva de uma pretensão. Baseia-se num título executivo (art. 45º, nº1 do Código de Processo Civil) cuja apresentação é suficiente para iniciar a acção executiva e justificar a agressão do património do devedor através da penhora. Nela não se procura o acertamento de uma situação jurídica, a decisão sobre um direito controvertido, antes a efectivação de uma prestação que já está documentada e estabilizada no título.

Ora se assim é, se a pretensão exequenda está já estabilizada e definida pelo título, não se vislumbra que a mesma possa ser suspensa com o fundamento alegado pelos executados, pois que a eventual decisão a proferir nos autos invocados por eles é insusceptível de colocar em crise a exequibilidade do título dado à execução. Assim, terá de concluir-se sem mais pela não verificação dos pressupostos a que alude o art. 279º do Código de Processo Civil, pelo que, em consequência se indefere a pretensão suscitada pelos executados a fls. 84/85.

Notifique”.

Não se conformando, o executado E.....recorreu daquela decisão, pedindo a sua revogação e substituição por outra que defira a requerida suspensão da instância. Formula, em síntese, as seguintes conclusões:

1º O prosseguimento da presente execução é susceptível de causar ao agravante danos irreparáveis ou de difícil reparação. (…)

2º O agravante intentou contra o Banco exequente acção de condenação(…).

3º Pelo que naquela acção declarativa se discute questão cuja decisão pode destruir o fundamento ou razão de ser da presente execução.

4º A qual perde todo o sentido se naquela acção declarativa o exequente vier a ser condenado de se abster de pedir o pagamento ao executado da quantia exequenda.

5º O que constituiria fundamento de embargos de executado caso já se verificasse (art.813º-e) do C.P.Civil.

6º Por outro lado terminando o processado na acção executiva com maior celeridade que o da acção declarativa, atendendo à morosidade dos articulados desta, à morosidade do seu julgamento e decisão e à possibilidade dos respectivos recursos,

7º e, havendo oposição de julgados entre o que nelas for decidido e o decidido na acção executiva, é uma evidência a impossibilidade do agravante vir a reocupar o prédio dos autos.

8º Para tanto basta pensar que ou o prédio já então se encontrar arrendado ou o agravante nem sequer pode anular a venda do imóvel de que se discute por o exequente não deixar por certo de invocar o caso julgado.

9º Com prejuízos irreparáveis para o executado ora agravante, dado como se vê no relatório médico de fls. 253 a perda do imóvel não deixar de representar um agravamento da terrível doença que o aflige, a esquizofrenia.

10º Ao que acresce a impossibilidade do agravante constituir a sua residência noutra habitação, própria ou arrendada, por a terrível doença que o aflige não lhe permitir angariar os meios necessários à sua sobrevivência, onerados ainda por tal circunstância, como se pode ver em Declaração do Centro de Reabilitação Torrejano, junto aos autos em 11/12/06.

É assim uma evidência que “in casu” se verificam as condições a que alude a 2ª parte do art. 279º do C.P.Civil, ocorreu outro motivo justificativo. (…)”

O exequente não apresentou contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

Releva para a decisão a seguinte factualidade, que se dá por assente ponderando os documentos juntos aos autos:

1. Em 13/05/2002 o agravante instaurou contra o exequente agravado acção com forma de processo ordinário, que corre termos com o nº 75/2002, na 2ª secção da 7ª Vara Cível de Lisboa, pedindo que o réu seja “condenado em se abster de pedir ao A. as quantias que se mostrarem em dívida relativamente ao contrato de mútuo dos autos, bem assim dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos”, conforme documento junto a fls. 37 a 41 dos autos.

2. Alega, para fundamentar esse pedido, nomeadamente, que:

“1º. Em 23/10/98, o A. celebrou com o R. um contrato de mútuo no montante de 24.500.000$00, formalizado pela escritura pública (…).

3º E, nos termos da cláusula vigésima quinta do documento complementar do referido contrato de mútuo, o ora A. obrigou-se a efectuar Seguro de vida o qual deverá cobrir Morte, Invalidez absoluta e definitiva por Doença e Invalidez total e Permanente por Acidente, sendo o beneficiário o R., BIC.

4º Em cumprimento daquela cláusula vigésima quinta do contrato de mútuo dos autos, foi celebrado o Contrato de Seguro nº 02333369, com o nº 53/517.173381 de apólice.        

5º Através da apólice de seguro nº 57/517.173381, a Companhia de Seguros Tranquilidade SA obrigou-se a pagar o capital em dívida do empréstimo referido em 1º, destinado à construção do imóvel sito em, Vale da Mó, Lagoa do Ferradouro, freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, descrito na conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº 01711 da referida freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3170, no caso de se verificar invalidez absoluta e definitiva do A. (…).

6º Ora durante o mês de Novembro de 1999, àquele E.....insidiosamente se iniciaram os sinais clínicos constituintes do quadro de Esquizofrenia.

7º O qual configura uma doença psiquiátrica de evolução prolongada e de prognóstico reservado, cujos efeitos, no plano comportamental condicionam incapacidade. (…)

15º A situação descrita fundamenta a acção de interdição por anomalia psíquica intentada (…).

16º Onde o ora requerente foi nomeado curador provisório do A. e autorizado a intentar a presente acção (…).

17º E, é do conhecimento quer do R. quer da referida Companhia de Seguros Tranquilidade SA”.

18º Todavia, aquela Companhia de Seguros declinou as suas responsabilidades decorrentes do contrato de seguro in casu, com o falso argumento de que o E.....quando em 24/04/98 se propôs aderir aquele contrato de seguro já padecia da doença que o aflige. (…)

24º É assim uma evidência que desde Novembro de 1999 a responsabilidade pelas obrigações decorrentes do contrato de mútuo referido em 1º e 5º deste articulado pertencem exclusivamente à Companhia de Seguros Tranquilidade –Vida SA.

25º Pelo que é a responsável pelo capital relativo àquele contrato de mútuo que se mostrar em dívida desde Novembro de 1999 data a partir a qual o E…. ficou impossibilitado de gerir a sua pessoa e bens, como se disse. (…)”     

3. Em 17 de Abril de 2003 F....., médico, elaborou o “Relatório Clínico” cuja cópia consta de fls. 35, com o seguinte teor:

“F..... (…) declara por sua honra profissional que seguiu em regime de consulta e internamento o Sr. E.....

As queixas apresentadas correspondem ao quadro clínico denominado esquizofrenia.

Considerando que se trata de doença passível de crises, sendo também uma das suas manifestações o isolamento do convívio com as outras pessoas e possuindo este doente uma casa de habitação numa aldeia denominada Lagos do Furadouro, Ourém, aconselhei-o por intermédio de seus pais a passar a residir habitualmente naquela casa.

Efectivamente, tal casa tem características que permitem minorar os efeitos da doença, nomeadamente usufruir de mais espaço, melhor facilidade de integração social, dado situar-se numa aldeia onde todos se conhecem, para além de maior tranquilidade indispensável à remissão das crises desta doença”.

      

4. Em 15/06/2007 elaborou-se o termo de penhora relativo ao imóvel supra descrito em 1., conforme fls. 50.

5. Em 11/11/2003 foi proferido o seguinte despacho:

“Fls. 256: Pelo executado vem requerida a sustação da desocupação da casa de habitação até à venda”, ao que se opões o exequente nos moldes que fazem fls. 264 a 266. Atento o disposto no art. 840º nº4 do Código de Processo Civil, com remissão para o art. 930º- A do mesmo diploma legal e 61º do RAU, pode efectivamente sustar-se a desocupação da casa até à fase da venda executiva, ponderadas que sejam pelo juiz determinadas circunstâncias. (…)

Não se colocando em causa a bondade intrínseca do relatório em apreço, (…) somos a considerar que se mostram minimamente documentadas circunstâncias que determinam o recurso à faculdade legal prevista no art. 840º, nº4 do Código de Processo Civil pelo que e em consequência se determina, como requerido, a sustação da desocupação e tão somente desta até à fase da venda executiva”.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo agravante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., diploma a que aludiremos quando não se fizer menção específica – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo agravante, está em causa apreciar:

- se é aplicável à acção executiva o fundamento de suspensão da instância a que alude a 1ª parte do art. 279º, nº1 (vínculo de prejudicialidade);

- se, no caso concreto, ocorre “outro motivo justificado” para a suspensão da execução (2ª parte do mesmo preceito).

                                             *

Nos termos do art. 279º, nº1, o tribunal pode ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta.

“O nexo de prejudicialidade ou de dependência define-se assim: estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão duma poder afectar o julgamento a proferir na outra. Aquela acção terá o carácter de prejudicial em relação a esta.” [ [i] ]

Considerando a finalidade da acção executiva – a reparação efectiva do direito violado, nos termos do art. 4º, nº3 –, fácil é concluir que, em sede de execução, o legislador se alheia de qualquer actividade jurisdicional prévia tendente à averiguação da existência e titularidade do direito, pressupondo-se resolvida a questão de mérito. [ [ii] ]

Daí que, com uniformidade e na esteira do Assento do STJ de 24/5/1960, publicado no BMJ nº 97 – 173, se venha considerando ser inadmissível a suspensão da acção executiva com fundamento na existência da causa prejudicial.

Refira-se que não encontramos razões para afastar a doutrina fixada nesse Assento – que, hoje, não tem força obrigatória, valendo, no entanto, como entendimento jurisprudencial, na sequência da revogação do artº 2º do Cód. Civil pelo artº 4º nº 2 do DL nº 329-A/95 de 12/12 – atenta a redacção do referido preceito (artº 279, nº 1), perfeitamente similar à do antigo artº 284 da lei processual.

Noutra ordem de considerações, não podemos deixar de salientar a circunstância deste apenso de agravo não fornecer qualquer elemento alusivo à eventual instauração de embargos (oposição à execução) por parte do executado.

Nem naquela acção (com o nº 75/2002), nem nesta execução, o executado questiona o título dado à execução, não estando em causa apreciar da validade desse título. [ [iii] ]

No entanto, o agravante sustenta que o exequente não o pode accionar, uma vez que a entidade responsável pelo pagamento das prestações alusivas à quantia mutuada, incluindo juros, desde Novembro de 1999, é uma entidade seguradora, na sequência do contrato de seguro celebrado e da verificação do evento que está na base da transferência de responsabilidade (alegadamente, a invalidez absoluta e definitiva do executado, por doença).

O que, em bom rigor, o executado pretende é paralisar provisoriamente a execução, por via de um incidente de suspensão e invocando a existência de uma causa prejudicial, o que nunca lograria obter em sede de embargos, a menos que prestasse caução – art. 818º, nº1, na redacção anterior ao Dec. Lei 38/2003, de 8/3, aplicável aos autos atenta a data de instauração da execução (2001) e o disposto no art. 21º do citado diploma. A admitir-se a pretensão formulada pelo executado agravante, estaria encontrado o expediente processual para obviar ao prosseguimento da acção executiva, sem qualquer encargo para o executado (assim liberado da prestação de caução), subvertendo-se, pois, a ratio do preceito aludido.

3. E ocorre outro “motivo justificado” para a suspensão?

Entendemos que o processo não fornece qualquer elemento que permita concluir dessa forma.

Assim, o circunstancialismo alusivo às condições pessoais do executado já foi tido em conta pela 1ª instância, noutra sede, de tal forma que foi proferido o despacho aludido no nº 5, que sustou a desocupação do imóvel penhorado. [ [iv] ]

Por outro lado – e fundamentalmente –, não se vê que o agravante tenha invocado no requerimento em apreço, sobre o qual incidiu o despacho recorrido, qualquer outro “motivo” para além da verificação da invocada “causa prejudicial”. Isto é, o agravante não alegou o circunstancialismo que vem agora aduzir nas alegações de recurso, com referência aos “prejuízos irreparáveis” indicados nos nºs 9 e 10 das conclusões, pelo que, naturalmente, não podia o Sr. Juiz levar em conta essa argumentação.

Os recursos são um meio de impugnar decisões judiciais, visam a sua modificação e não o julgamento de questões novas – art. 676º, nº1 –, sob pena de se violar o princípio do duplo grau de jurisdição, a menos que se esteja perante matéria de conhecimento oficioso, o que não é o caso.

Improcedem as conclusões de recurso.

                                             *

Conclusão:

Considerando a finalidade da acção executiva – a reparação efectiva do direito violado, nos termos do art. 4º, nº3 do Cód. do Processo Civil – é inadmissível a suspensão da execução ao abrigo do artº 279º, nº1, 1ª parte do mesmo diploma (pendência de causa prejudicial).

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o agravo, mantendo o despacho recorrido.

Custa pelo agravante.

Notifique.

                                         Coimbra,  28-10-2008

Relator: Isabel Fonseca; Adjuntos: Des. Araújo Ferreira e Des. Távora Victor

[i] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, I, 3ª edição, Coimbra Editora, p. 384.

[ii] “A declaração ou acertamento (dum direito ou de outra situação jurídica; dum facto), que é o ponto de chegada da acção declarativa, constitui, na acção executiva, o ponto de partida”, Lebre de Freitas, in A acção executiva à luz do Código Revisto, 2ª edição, Coimbra Editora, , p.20. 

[iii] Como acontecia na situação objecto de análise no acórdão de 6 de Maio de 2003, proferido pelo TRL, cuja cópia o agravante juntou aos autos e que não encontramos registo de publicação.

[iv] Como se referiu no Ac. desta Relação de 07/07/2004, proferido no processo nº 2000/04 (Relator: Isaías Pádua) , acessível in www.dgsi.pt “não tendo o legislador definido o conceito de motivo justificado, será perante cada caso concreto que se terá de indagar se ocorre ou não motivo que justifique a suspensão da instância, com base em tal fundamento, sendo que, contudo, o mesmo não poderá ter nada a ver com a pendência de outra acção”.