Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4267/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
IMPUGNAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PRÉDIO URBANO
Data do Acordão: 03/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 610º, 612º E 616º DO C. CIV. .
Sumário: I – A acção de impugnação pauliana, como uma das garantias gerais das obrigações previstas no C. Civ., consagra uma verdadeira causa de ineficácia do acto em relação ao impugnante, assumindo natureza pessoal ou obrigacional .
II – Procedendo a acção, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse e a praticar actos de conservação autorizados por lei, bem como tem o direito de executar os bens no património do obrigado à restituição – artº 616º do C. civ. .

III – Nos casos de arrendamento de longa duração, ainda que configure um meio de rentabilização do bem, a verdade é que o locador não dispõe da faculdade de fazer cessar a relação num curto período de tempo, e daí que a perda de disponibilidade da sua utilização possa provocar uma desvalorização, afectando o património a que se reporta , pelo que tal tipo de arrendamento pode considerar-se como um acto de administração extraordinária .

IV - Sendo o contrato de arrendamento feito pelo prazo de 20 anos, renovável, um acto de administração extraordinária, pode ser objecto de impugnação pauliana .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO

1.1. - A Autora – A... – instaurou na Comarca de Figueira de Castelo Rodrigo acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus:
1º) - B... e marido C...;
2º) - D...
Alegou, em resumo:
A Autora celebrou com os 1ºs Réus, em 30/12/88, 06/04/90, 20/08/90, 25/02/91 e 17/12/91, cinco contratos de empréstimo, e porque os mutuários deixaram de pagar as prestações em dívida, em 29/02/00, o montante total do crédito ascendia a 219.599.729$00.
Em 24/06/96, os 1ºs Réus mutuários fizeram entrar em juízo um processo de recuperação de empresa, que corre termos neste tribunal sob o nº 32/96, no qual constam os seus outros credores, com créditos globais superiores a 79.358.793$00.
O património dos 1ºs Réus é constituído, essencialmente, por um estabelecimento hoteleiro, incluindo o equipamento de cozinha restaurante e café e mobiliário dos quartos, instalado no prédio urbano situado no Largo Mateus de Castro, em Figueira de Castelo Rodrigo.
Todos os créditos da Autora gozam de hipoteca sobre o imóvel referido.
Os fiadores foram interpelados para pagarem e não o fizeram, e os únicos a quem são conhecidos bens foram declarados falidos.
Em Janeiro de 1995, os 1ºs Réus, conjuntamente com os filhos, constituíram a sociedade 2ª Ré, com sede no prédio onde funciona o estabelecimento hoteleiro, tendo por objecto social o exercício de actividades turísticas.
Por escritura pública de 24/03/95, os 1ºs Réus deram de arrendamento à 2ª Ré o estabelecimento hoteleiro, inicialmente pelo prazo de 5 anos renovável, posteriormente alterado para 20 anos, renovável por igual período, sendo a renda convencionada de 120.000$00/ mês.
A 2ª Ré explora o estabelecimento hoteleiro, onde trabalham os réus mutuários e todos os filhos, que por isso apelidam de empresa familiar.
Com o arrendamento, o estabelecimento hoteleiro ficou desvalorizado, pois antes dele o seu valor era de 150.000.000$00, passando a valer agora apenas 20.000.000$00.
O crédito da Autora é anterior ao arrendamento e este, a manter-se, impossibilitá-la-á de refaze-lo, sendo manifesta a má fé dos 1ºs Réus, pois o contrato de arrendamento envolve uma diminuição da garantia patrimonial, estando, assim, verificados os requisitos da impugnação pauliana ( arts.610 e 612 do CC ).
Por outro lado, o contrato de arrendamento é nulo por ter sido celebrado com abuso de direito já que o seu único fim foi causar dano à autora e perpetuar o uso do imóvel através da sociedade que dominam.
Pediu que seja impugnado o contrato de arrendamento e o mesmo julgado ineficaz de forma a que o estabelecimento possa ser alienado em execução ou na falência, livre do mesmo ou que seja o contrato de arrendamento declarado nulo por abuso de direito.
Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:
Invocaram a excepções da litispendência e do caso julgado ( acções nº23/00 e 64/98 ), da nulidade do processo e da prescrição.
A impugnação pauliana apenas se aplica aos actos de transmissão do direito de propriedade, não abrangendo o arrendamento, o qual nem sequer desvaloriza o estabelecimento hoteleiro, e muito menos se apresenta simulado, inexistindo abuso de direito.
Concluíram pela improcedência da acção e requereram a condenação da Autora como litigante de má fé, em multa e numa indemnização no valor de 5.000.000$00.
Replicou a Autora, contraditando a defesa por excepção.

1.2. - No saneador foram julgadas improcedentes as excepções de litispendência, caso julgado e da prescrição, relegando-se para final a nulidade do processo.

1.3. - Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu:
Declarar ineficaz, em relação à Autora, o contrato de arrendamento celebrado entre os primeiros Réus e a Ré sociedade, tendo por objecto o prédio urbano sito no Largo Mateus de Castro, freguesia e concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Figueira de Castelo Rodrigo sob o nº 00345/101088, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1593, com a consequente possibilidade de o imóvel poder ser vendido em acção executiva movida pela autora, livre do ónus de tal arrendamento.

1.4. - Inconformados, os Réus recorreram de apelação, formulando, em resumo, as seguintes conclusões:
(…)
Contra-alegou a Autora, preconizando a improcedência do recurso.
II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
a) - Se estão verificados os pressupostos da impugnação pauliana;
b) – O abuso de direito.

2.2. - Os factos provados:
(…)
2.3. – 1ª QUESTÃO:
A acção de impugnação pauliana, como uma das garantias gerais das obrigações previstas no actual Código Civil, consagra uma verdadeira causa de ineficácia do acto em relação ao impugnante, assumindo natureza pessoal ou obrigacional ( cf. ANTUNES VARELA, RLJ ano 122, pág.254; HENRIQUE MESQUITA, RLJ ano 128, pág.254 ).
Com efeito, o credor impugnante logo que prove a existência dos pressupostos da pauliana, pode executar a garantia patrimonial do seu crédito sem anular o acto de alienação que a prejudicou. Na verdade, procedendo a acção, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do interesse, a praticar actos de conservação autorizados por lei e o direito de executar os bens no património do obrigado à restituição (art.616 C.C.).
São requisitos concorrentes da impugnação pauliana individual, no regime civilístico ( art.610 CC ):
a) - A existência de um crédito e anterioridade desse crédito em relação à celebração do acto, ou, sendo posterior, que o acto tenha sido realizado dolosamente com vista a impedir a satisfação do crédito;
b) - Resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito, atendendo-se à data do acto;
c) - Sendo o acto oneroso, acresce a exigência da má-fé tanto por parte do devedor como do terceiro ( art.612 CC ).
Como facto constitutivo do direito, incumbe ao credor a prova do montante das dívidas e da anterioridade do crédito, e ao devedor ou terceiro interessado a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor ( art.611 CC ).
A primeira questão suscitada no recurso consiste em saber se a impugnação pauliana abrange o contrato de arrendamento.
Segundo os apelantes a impugnação pauliana apenas incide sobre actos que envolvam a transmissão da propriedade ( actos de disposição ), ficando de fora os actos de mera administração, como o caso do arrendamento.
Para a lei, os actos impugnáveis são os “ que envolvam diminuição da garantia patrimonial do prédio e não sejam de natureza pessoal “ ( art.610 CC ).
Como requisito positivo, são todos os actos que impliquem diminuição dos valores patrimoniais que, nos termos do art.601 do CC, respondem pelo cumprimento da obrigação, podendo resultar da diminuição do activo, como no aumento do passivo. Como requisito negativo, actos que não sejam de natureza pessoal, por contraposição aos de natureza patrimonial.
O acto impugnado consubstancia-se no contrato de arrendamento de prédio urbano para o exercício do comércio, celebrado entre os 1ºs Réus e a 2ª Ré, pelo prazo de 20 anos, renovável, celebrado por escritura pública e registado.
Segundo o art.1024 nº1 do CC, a locação constitui para o locador um acto de administração ordinária, excepto quando celebrado por prazo superior a seis anos.
O arrendamento superior a seis anos, constitui para PINTO LOUREIRO um verdadeiro acto de oneração, pois “ a limitação de poderes dos administradores nasce da consideração de que um contrato ad longum tempus pode acarretar consigo uma quebra no valor venal dos bens administrados, ocasionando assim diminuição no valor do património, equivalendo a praticar actos de administração com consequências de acto de disposição” (Tratado de Locação, vol.1º, págs.277 e 278 ).
No Código Civil de Seabra era expressamente considerado um ónus real "o arrendamento por mais de um ano, havendo adiantamento de renda, ou por mais de quatro não havendo" ( art. 949, parágrafo 2 alínea e)).
Porém, entende-se hoje que o contrato de arrendamento celebrado por prazo superior a seis anos não se enquadra na noção de “ ónus real “, desde logo porque a sua constituição está sujeita ao princípio do numerus clausus ( cf. HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, págs. 399 a 465 ).
Nos casos de arrendamento de longa duração, ainda que configure um meio de rentabilização do bem, a verdade é que o locador não dispõe da faculdade de cessar a relação num curto período de tempo, e daí que a perda de disponibilidade da sua utilização possa provocar uma desvalorização, o que significa que atendendo ao “critério económico” pode afectar o património a que se reporta ( ( cf. PINTO FURTADO, Manual do Arrendamento Urbano, pág.294 ).
Também para a lei italiana ( art.1572 do Códice Civile ) são actos de administração extraordinária as locações excedentes a nove anos, e as aquelas cuja antecipação do pagamento do aluguer seja superior a um ano.
Ora, os actos de administração extraordinária, na falta de regime especial, estão sujeitos ao regime dos actos de disposição, e nesta medida ficam abrangidos pela pauliana ( cf. neste sentido, JOÃO CURA MARIANO, Impugnação Pauliana, pág.125 e 126 ).
Por isso, sendo o contrato de arrendamento feito pelo prazo de vinte anos, renovável, um acto de administração extraordinária, pode ser objecto de impugnação pauliana.
No caso concreto, não foi sequer posto em causa o crédito da Autora, derivado dos cinco contratos de empréstimo, que em finais de Fevereiro de 2000 ascendia a cerca de 219.599.000$00.
É certo que o art.611 C.C. impõe ao credor o ónus de provar o montante das dívidas e não apenas da dívida de que é titular, mas tal só sucede quando se suscita a existência de outras dívidas e outros credores (cf.Ac STJ de 15/6/94, C.J. ano II, tomo II, pág.142).
Por outro lado, também se mostra inquestionável a anterioridade do crédito em relação ao acto.
Verdadeiramente, o dissídio dos apelantes reporta-se à impossibilidade da satisfação do crédito resultante do contrato de arrendamento e ao requisito da má-fé.
A impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito:
É requisito essencial da acção de impugnação pauliana que o acto praticado pelo devedor tenha sido causa da impossibilidade do pagamento, ou agravamento dessa impossibilidade, isto é, impossibilidade prática da satisfação do crédito.
Ao confrontar a actual redacção da alinea c) do art.610 com o texto do art.1033 do C.Civil de 1867, ANTUNES VARELA conclui que "o Código de 1966, através da nova formulação do requisito, pretendeu deliberadamente colocar ao alcance da pauliana os actos deste tipo, que, não provocando embora, em bom rigor, a insolvência do devedor, podem criar para o credor a impossibilidade de facto (real, efectiva) de satisfazer integralmente o seu crédito, através da execução forçada" (Das Obrigações em Geral, Vol.II, pág.437).
Por seu turno, é à data do acto impugnado que se deve atender para determinar esta impossibilidade e, por isso, se nessa data o obrigado ainda possuía bens de valor bastante superior ao do crédito, a impugnação deve ser julgada improcedente.
Há que ter presente, no entanto, a regra do art.611 C.C., que impõe ao devedor ou ao terceiro interessado a prova do activo, ou seja, da existência de outros bens penhoráveis.
A sentença recorrida considerou verificado este requisito legal, porquanto a existência do contrato de arrendamento deu origem a uma desvalorização do imóvel – considerando-se apenas este ou, juntamente, com o equipamento do estabelecimento – em € 29.180, ou seja, uma diminuição da garantia patrimonial, já que por via dele ocorreu um agravamento da impossibilidade de satisfação do crédito.
Em contrapartida, os apelantes sustentam não estar provado esta desvalorização do prédio, visto que apenas foi avaliado o estabelecimento comercial, que é realidade distinta.
Sucede que, como resulta do relatório pericial ( fls.666 a 671 ), os peritos não procederam à avaliação do estabelecimento comercial, entendido como uma “ unidade jurídica objectiva “, cuja organização versa “ sobre um conjunto de bens de variada natureza: coisas corpóreas, móveis e imóveis - dinheiro, títulos de crédito, mercadorias, máquinas mobiliário, prédios – e incorpóreas ou imateriais(…) “ ( cf., por ex., FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial, vol.1º, 1973, pág.201 e segs.; BARBOSA DE MAGALHÃES, Do Estabelecimento Comercial, pág.122 e segs. ), mas tão só ao imóvel e equipamento.
Note-se estar comprovado que do património dos 1ºs Réus faz parte, para além do prédio urbano, também equipamento da unidade hoteleira ( cf. alínea F/ e resposta ao quesito 8º ).
Para se aferir, no caso concreto, da diminuição da garantia patrimonial importa saber qual o valor do imóvel antes da celebração do contrato de arrendamento e depois, pois só assim se conseguirá aquilatar da desvalorização económica.
É certo que na formulação dos quesitos 13º e 14º se alude ao “ valor da unidade hoteleira “, mas baseando-se as respostas no relatório pericial de fls.666 a 671 ( segunda perícia ), conforme expressamente se justificou na fundamentação ( fls.761 ), onde se refere valor de mercado do imóvel, sem arrendamento e com arrendamento, o sentido útil das respostas reportam-se ao valor do imóvel, que é o relevante para o efeito.
Sendo assim, como se demonstrou na sentença, a oneração do imóvel com o contrato de arrendamento deu causa a uma diminuição da garantia patrimonial de € 29.180,00.
O requisito da má fé:
Tratando-se de um contrato oneroso, só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má-fé, definindo-a o legislador como “ a consciência do prejuízo que o acto causa para o credor “ ( art.612 CC ).
Consubstancia-se aqui a má fé subjectiva ou em sentido subjectivo, também designada em sentido psicológico ( ANTUNES VARELA, Das Obrigações II, pág.450, MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, vol.I, pág.492 e segs., Ac STJ de 12/2/81, BMJ 304, pág.358 ).
Para tanto, basta a mera representação, o conhecimento negligente da possibilidade da produção do resultado (o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor) em consequência da conduta do agente (cfr. Ac do STJ, de 10/11/98, CJ, ano VI, tomo III, pág.106 e de 15/2/2000, C.J. ano VIII, tomo I, pag. 91).
Como se evidenciou na sentença recorrida, ao constituírem a sociedade Ré conjuntamente com os filhos e outorgarem com ela o contrato de arrendamento pelo prazo de vinte anos, renovável, os 1ºs Réus pretenderam prolongar a fruição do imóvel, afecto à hotelaria.
Por outro lado, comprovou-se que os 1ºs Réus e o então sócio gerente da Ré, José Calado Ferreira, tinham conhecimento de que a celebração do contrato de arrendamento poderia afectar, desvalorizando-o, o valor de mercado do imóvel referido, o mesmo sucedendo com a sócia e gerente, Maria da Conceição Calado Ferreira Flores, quando foi alterado o prazo do arrendamento ( cf. respostas aos quesitos 21º, 22º e 23º ).
Neste contexto, está demonstrada a má fé bilateral e comprovados que estão que estão os pressupostos da acção pauliana, a sua procedência confere ao credor a possibilidade de executar o bem onerado livre do encargo constituído.
2.4. - 2ª QUESTÃO:
Alegam os apelantes que a Autora ao propor a acção agiu com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, dado que não aceitou no processo de recuperação o pagamento das prestações em dívida.
O art.334 do CC diz que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Aceitando o legislador a concepção objectiva, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido.
O instituto do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e a jurisprudência tem exigido que o exercício do direito se apresente em termos clamorosamente ofensivos da justiça.
Esta variante do abuso de direito equivale a dar o dito por não dito e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira ( factum proprium ) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.
O Prof. BAPTISTA MACHADO ( Obra Dispersa, vol.1º, pág.415 a 419 ), depois de afirmar que a ideia imanente na proibição do venire contra factum proprium é a do “ dolus praesens “, pelo que é sobre a conduta presente que incide a valoração negativa, sendo a conduta anterior apenas o ponto de referência para se ajuizar da legitimidade da conduta actual, enuncia três pressupostos que caracterizam o instituto:
a) – uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.
“ O ponto de partida é, pois, uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira. Pode tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico – negocial, que por qualquer razão seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico “.
b) - Investimento na confiança – o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada.
c) - A boa fé da contraparte que confiou – a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.
No mesmo sentido, também PAULO MOTA PINTO, “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório”, BFDUC, Volume Comemorativo, 2003, pág.269 e segs., com referências doutrinárias e jurisprudenciais mais actualizadas.
Pois bem, os pressupostos em que os apelantes erigiram o pretenso abuso de direito, na acepção descrita, não têm qualquer suporte factual na matéria provada.
A apelada reconheceu nas contra-alegações não haver aceite a proposta de pagamento, traduzida no depósito mensal de €417,50, quando o agravamento diário era de € 26.487,00, e a ser assim é por demais evidente a ausência de abuso de direito.
Porque a sentença recorrida não violou por erro de interpretação/aplicação as norma jurídicas indicadas, improcede a apelação.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar os apelantes nas custas.
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Coimbra, 8 de Março de 2006.