Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2498/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. TOMÁS BARATEIRO
Descritores: CONTRATO PROMESSA
INTERPRETAÇÃO E CONSEQUÂNCIA PELO RESPECTIVO INCUMPRIMENTO
Data do Acordão: 01/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 236.º N.º 1 E 2 E ART.º 442 DO CC
Sumário:

I – Na determinação do verdadeiro sentido do contrato celebrado pelas partes é lícito o recurso a diversos elementos de interpretação, tais como a letra do contrato, as circunstâncias que precederam a sua celebração ou as suas contemporâneas, a lei, os usos e os costumes .
II – Essa interpretação terá de ser efectuada na perspectiva de um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição de declaratário real, segundo a boa fé, tendo-se em conta o contexto em que foi elaborado o contrato, sem perder de vista a vontade real dos declarantes – artº 236º, nºs 1 e 2, do C. Civ. .
III – O sinal é um modo de determinação antecipada da indemnização devida pelo incumprimento de um contrato-promessa e visa garantir tal indemnização, independentemente da existência de danos, dispensando as partes da sua alegação e prova .
IV – Nos termos do artº 442º, nº 2, do C. Civ., se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou .
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
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I - A e mulher B intentaram a presente Acção Ordinária contra C e mulher D (todos melhor identificados nos autos).
1 – Os Autores alegam que, no dia 11-8-1999, celebraram com os Réus um contrato que designaram de “Contrato de Cessão de Chave de Estabelecimento, excepto o Recheio”.
Nesse contrato, os Réus prometeram ceder a chave do seu estabelecimento sito em Pombal, denominado E, pelo valor de Esc. 6.000.000$00, aos AA., valor que não inclui o recheio, nem duas viaturas que se encontram em nome da empresa.
Foi entregue pelos AA. aos RR., como sinal e princípio de pagamento, a quantia de Esc. 1.600.000$00;
Pouco tempo depois, os RR. comunicaram aos AA. que só estavam na disposição de fazer a escritura de cessão de quotas de E, o que foi rejeitado pelos Autores, que já haviam feito despesas em vista da exploração do mencionado estabelecimento comercial.
Os Autores pedem que, na procedência da acção, se condenem os Réus:
a) A reconhecer que entraram e se encontram em situação de incumprimento definitivo do contrato, o que lhes é exclusivamente imputável, ficando resolvido o contrato promessa celebrado, que é objecto dos presentes autos;
b) E a pagar-lhes a quantia de 3.200.000$00, que traduz a restituição em dobro da quantia entregue;
c) Subsidiariamente, para além da obrigação de restituírem aos Autores a quantia de 1.600.000$00, ainda a quantia que se vier a liquidar em ulterior execução de sentença, por culpa na formação do contrato (artº 227 do C.C.);
d) Caso nenhum destes pedidos colha, a devolver o que receberam em singelo, com base na nulidade do contrato, caso esta venha a ser declarada (artº 289 do C.C.);
e) Por último, subsidiariamente, caso nenhum dos pedidos formulados anteriormente proceda, devem os Réus ser condenados a pagar aos Autores a quantia de 1.600.000$00 com base em enriquecimento sem causa;
f) Sempre acrescida qualquer uma dessas quantias de juros à taxa legal, desde a citação até integral e efectivo pagamento.
2 – Na sua contestação, os Réus alegam que, no contrato-promessa em causa, prometeram ceder aos Autores as quotas que detinham na sociedade comercial E, da qual aqueles eram os únicos sócios.
Esta sociedade só tinha um estabelecimento comercial em Pombal, e os Autores nunca compareceram no estabelecimento comercial para ser avaliado o recheio, apesar de o mesmo ter sido encerrado a 31-10-1999, conforme acordado entre AA. e RR., para tal efeito.
Os Réus nunca marcaram a escritura por os Autores não terem comparecido para avaliação do recheio.
Com este incumprimento por parte dos AA. sofreram os RR. prejuízos que ascendem a 5.000.000$00.
Os Réus concluem pela improcedência da acção e, em reconvenção, pedem a condenação dos Autores:
a) a reconhecer que entraram e se encontram em situação de incumprimento definitivo do contrato de promessa de cessão de quotas, a que se refere o documento nº1 junto com a petição inicial, por causa que lhes é exclusivamente imputável, ficando resolvido tal contrato;
b) a reconhecerem que, face a tal incumprimento, assiste aos ora RR. o direito de fazer sua a quantia de 1.600.000$00, que receberam dos AA. a título de sinal e princípio de pagamento;
c) a pagarem aos RR. a quantia de 5.000.000$00, correspondente aos prejuízos que sofreram em consequência daquele incumprimento do contrato, acrescida de juros à taxa legal de 10% ao ano, desde a data da notificação do pedido reconvencional até integral pagamento.
3 – Na réplica, os Autores referem que não houve promessa de cessão de quotas e que os RR. alegam ter tido prejuízos que sabem nunca ter sofrido.
Concluem pela procedência da acção e improcedência da reconvenção, além de terem requerido a condenação dos RR. como litigantes de má-fé no pagamento de multa e indemnização, não inferior a Esc. 300.000$00, a favor dos AA..
4 - Os Réus responderam à invocada litigância de má-fé, dizendo que não devem ser penalizados com qualquer multa nem indemnização.
5 – Realizou-se uma Audiência Preliminar, tendo sido proferido Despacho Saneador e seleccionados os Factos já Assentes e os que passaram a integrar a Base Instrutória.
6 – Procedeu-se à audiência de julgamento, respondendo-se à matéria de facto integrante da Base Instrutória pela forma constante de fls. 156 a 158.
Por sentença de 25/6/02
A) Julgando procedente e provada esta acção:
1 - Condenaram-se os RR. a reconhecer que entraram em situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa;
2 - Declarou-se resolvido o contrato-promessa que AA. e RR., entre si celebraram, no dia 11-8-1999, e está junto a estes autos;
3 - Condenaram-se os RR. a pagar aos AA. a quantia de quinze mil, novecentos sessenta um euros, cinquenta e três cêntimos, acrescida de juros de mora, à taxa legal conforme se forem vencendo, desde a citação até integral pagamento;
B) Julgando improcedente e não provado o pedido reconvencional, deste se absolveram os AA..
C) Condenaram-se os RR., como litigantes de má-fé, a pagar a multa de duas UCs e a indemnização que vier a ser fixada nos termos do artigo 457º, 2, do C. P. Civil.
II – Desta sentença recorreram os Réus, que concluem nas suas alegações:
1ª - O contrato junto a fls. 20 e 20vº dos autos é um contrato de promessa.
2ª - Mas não é forçoso que se trate de contrato de promessa de trespasse.
3ª - É, outrossim e na perspectiva dos recorrentes/apelantes, um contrato de promessa de cessão de quotas.
4ª - Fora já por cessão de quotas que os apelantes entraram na exploração do estabelecimento de venda a retalho de artigos de desporto e campismo referenciado nos autos.
5ª - Os AA./Apelantes, ao subscreverem o contrato de fls. 20 e 20vº, pretendiam adquirir onerosamente o negócio que os “RR” levavam a efeito.
- Nem sabiam sequer o que significava trespasse de estabelecimento.
7ª - Sem prescindir, nunca teria a natureza de trespasse o negócio referido nesse “escrito” de fls 20 e 20vº.
- Porque o recheio do estabelecimento não acompanhava necessariamente a sua transmissão.
9ª - Por acordo das partes, o recheio era avaliado e pago pelos AA. à parte.
10ª - Se não houvesse acordo sobre o valor do recheio não haveria recheio, nem negócio, nem escritura subsequente...
11ª - AA. e RR. subordinaram a produção de efeitos jurídicos “inter partes” do contrato à verificação dessa condição suspensiva.
12ª - O A. marido, no depoimento de parte que prestou, gravado na cassete n°1 (única) Lado A, a instâncias do M. Juiz “a quo”, confirma que o valor do recheio era condição suspensiva da celebração do negócio.
13ª - Os AA./apelados nunca se disponibilizaram para, com o RR., procederem à contagem e avaliação do recheio.
14ª - Os apelados entraram em mora, quanto a essa obrigação de contagem e avaliação prévias do recheio.
15ª - A mora dos apelados no seu concurso para a verificação ou não verificação da condição suspensiva, impediu os apelantes de cumprir com a prestação.
16ª - Por isso, era absolutamente despropositado, estar a discutir se o negócio era de “trespasse” ou de “cessão de quotas” enquanto os apelados/AA. não fizessem cessar a mora.
17ª - Por incumprimento culposo por parte dos AA./apelados, devia o M.mo Juiz ter julgado a acção improcedente.
18ª - Devendo a reconvenção ter sido julgada procedente, declarando-se a resolução do contrato, por incumprimento culposo do mesmo, imputável exclusivamente aos AA., e que os RR. têm o direito de fazer sua a quantia recebida dos AA. a título de sinal e princípio de pagamento.
19ª - Foi feita incorrecta aplicação dos artigos 236°, 442° nº2, 406° n°1, 762° e 804° do C. Civil.
20ª - Foi mesmo violada a norma do artigo 442° n° 2 do C. Civil.
21ª - Deveria ter sido aplicado o artigo 442, n°2 (1ª parte), bem como os artigos 270° e seguintes e 813° todos do C. Civil e ainda o artigo 115°, n°2, b) do R.A.U..
Não houve contra alegações.
III – Na primeira instância, consideraram-se provados os seguintes factos (que se assinalam, na parte final de cada número, com as letras da Matéria Assente e os números da Base Instrutória, respectivamente):
1 - No dia 11 de Agosto de 1999, os AA. celebraram com os RR. o contrato que se encontra junto a fls. 20 e vº, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, que os intervenientes denominaram de “Contrato de Sessão de Chave de Estabelecimento, excepto o Recheio”, do qual consta, essencialmente e com as devidas correcções ortográficas e de escrita em itálico: “C e D ..., como promitentes vendedores, prometem ceder a chave do seu estabelecimento em Pombal, Largo ..., com o nome E, com actividade de venda a retalho de artigos de desporto e campismo, pelo valor de 6.000.000$00 (seis milhões de escudos) ao Sr. A ... e F ... como promitentes compradores.
Este valor não inclui o recheio do estabelecimento, nem as duas viaturas que se encontram em nome desta empresa.
O valor do recheio será encontrado por ambas as partes e pago separadamente à data da escritura pública.
Também declaramos que recebemos como sinal e princípio de pagamento, relacionado com a chave, excluindo o recheio, 1.600.000$00 (um milhão e seiscentos mil escudos) faltando pagar 4.400.000$00 (quatro milhões e quatrocentos mil escudos) mais o recheio do estabelecimento, sendo o valor deste encontrado no acto de entrega do estabelecimento a partir de um de Novembro de 1999.
A escritura pública terá lugar assim que se reunam todos os documentos necessários para o efeito.
Também se acorda entre os promitentes vendedores e compradores que o sinal recebido de 1.600.000$00 (um milhão e seiscentos mil escudos) será pago a dobrar, tanto pela parte vendedora como pela compradora se houver anulação deste mesmo contrato” ( A)).
2 - Os AA. entregaram aos RR., efectivamente, os 1.600.000$00 mencionados no dito contrato, entrega que ocorreu no acto da sua outorga ( B)).
3 - Com data de 3-11-1999, os RR. endereçaram aos AA., que a receberam, a carta que se encontra junta a fls. 21, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os legais efeitos, da qual consta, essencialmente e com as devidas correcções ortográficas e de escrita em itálico: “Para darmos cumprimento ao contrato de Cessão de Quotas da firma E, com sede no Largo ..., realizado entre nós no dia 11 de Agosto de 1999, estamos à vossa disposição para se proceder à contagem de todo o recheio conforme contrato acima mencionado.
Por se encontrarem reunidos os documentos necessários para a escritura pública de cessão das respectivas quotas têm os Senhores, a partir da data da recepção desta carta, trinta dias para oficializarmos essa escritura.
Caso não compareçam ou se façam representar a essa escritura no prazo estipulado, é porque não pretendem cumprir o nosso contrato. Estando conscientes de ter perdido o sinal entregue de 1.600.000$00 (um milhão e seiscentos mil escudos) e pagar uma indemnização do mesmo valor aos actuais sócios da firma E, conforme foi acordado entre nós no nosso contrato inicial, dando assim como nulo o respectivo contrato” ( C)).
4 - O estabelecimento comercial referido na alª A) é bem localizado, no Largo do ... ( D)).
5 - A renda paga pelo local, no dizer dos RR., era equilibrada, 37.000$00 mensais ( E)).
6 - AA. e RR. ainda são familiares ( F)).
7 - Por escritura pública de 9-10-1987, outorgada no Cartório Notarial de Pombal, os RR. adquiriram as quotas da sociedade por quotas denominada por E ( G)).
8 - Os AA. nunca entraram na posse do estabelecimento mencionado (1º).
9 - Os RR. vivem em Portugal (5º).
10 - Os AA. estiveram emigrados em França, durante vários anos, tendo regressado a Portugal em Agosto de 1999 (6º).
11 - Os AA. regressaram e pretenderam dedicar-se a actividade comercial (8º).
12 - AA. e RR. entabularam negociações que culminaram com a outorga do contrato de fls. 20 e 20vº (9º e 10º).
13 - O Largo ...l fica no centro da cidade de Pombal, nele se situando o edifício da Câmara Municipal e vários estabelecimentos comerciais (11º).
14 - Foi intentada esta acção (13º).
15 - O negócio em causa trouxe desgosto à A., o que fez com que a mesma tivesse ficado deprimida (19º, 20º e 21º).
16 - Dá-se aqui por transcrito o documento de fls. 42 a 47 (22º e 23º).
17 – Tal loja é a única que a E possui na cidade de Pombal ou em qualquer outro sítio do país ou estrangeiro (24º).
18 - No contrato em apreço, junto a fls. 20 e 20vº, consta o seguinte: “Este valor, não inclui o recheio do estabelecimento, nem as duas viaturas que se encontram no nome desta empresa” (28º).
19 - Do contrato escrito junto a fls. 20 e 20vº consta: “O valor do recheio será encontrado por ambas as partes e pago separadamente à data da escritura pública”; “... faltando pagar 4.400.000$00 ... mais o recheio do estabelecimento, sendo o valor deste encontrado no acto da entrega do estabelecimento a partir de um de Novembro de 1999” (29º).
20 - Os AA. não compareceram no estabelecimento em causa no dia 31-10-1999, nem posteriormente (30º).
21 - Os AA., além de não terem comparecido, nada disseram aos RR. (31º).
22 - Os AA. não deram qualquer resposta à carta referida na alínea C) -32º.
23 - Após tal carta nunca mais houve qualquer contacto escrito ou verbal entre AA. e RR. (33º).
24 - Não foi feita a escritura referida no contrato de fls. 20 e 20vº, nem avaliado o recheio também neste contrato referido (34º).
25 - O A. tem-se dedicado ao comércio de viaturas usadas e a A. vendeu roupa, em França, durante seis meses (36º).
26 - O A. tirou medidas para instalação de um toldo naquele estabelecimento e contactou G, que trabalha na construção civil, para remodelação do estabelecimento em causa (40º).
27 - O estabelecimento comercial referido no contrato de fls. 20 e 20vº esteve fechado, cerca de dois ou três dias, em fim de Outubro de 1999 (43º e 44º).
28 - O contrato prometido no doc. de fls. 20 e 20vº não se chegou a concretizar (45º).
IV - Deverá ter-se presente que a decisão recorrida só poderá ser alterada na parte impugnada pelo recurso, e o âmbito deste se determina em face das conclusões das alegações dos recorrentes, abrangendo as questões aí contidas (artigos 684-nº3 e 690-nº1 do C.P.C.).
1 – Os Réus não põem em causa que o contrato referido nestes autos (a que se reporta a A) dos factos assentes) é um contrato-promessa, como expressamente o afirmam na conclusão 1ª das suas alegações de recurso.
E, como tal, foi qualificado na sentença recorrida, onde se afirmou que as partes concordam que entre elas foi celebrado um contrato-promessa, no qual intervieram os RR. como promitentes alienantes e os AA. como promitentes adquirentes, tendo estes pago, a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 1.600.000$00.
Assim, não vem posto em causa que, entre as partes foi celebrado um contrato e que esse negócio jurídico constitui um contrato-promessa (a convenção pela qual alguém se obriga a futuramente celebrar um outro contrato, a emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido).
A principal divergência das partes quanto ao negócio, está no contrato que prometeram realizar; para os Autores, o contrato prometido foi de “trespasse do estabelecimento comercial”, e, para os Réus, foi de “cessão de quotas”.
2 – Há, assim, que determinar o verdadeiro sentido do contrato celebrado pelas partes, sendo lícito o recurso a diversos elementos, como a letra do negócio, reduzido a escrito, as circunstâncias que precederam a sua celebração, ou as suas contemporâneas, a lei, os usos e costumes.
A interpretação do contrato junto a folhas 20 e vº (referido na A) dos factos assentes) terá de ser efectuada na perspectiva de um declaratário normal (medianamente instruído e diligente), colocado na posição do declaratário real, segundo a boa fé, tendo-se em conta o contexto em que foi elaborado, sem perder de vista a vontade real dos declarantes (artigo 236 nºs 1 e 2 do Código Civil).
No Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação a este artigo, diz-se que a regra é a de que “o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal”, exceptuando “os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº2)”; que, em tese geral, o objectivo legal é “o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir”.
Para interpretação do contexto do documento, que formaliza o contrato dos autos, poder-se-ia recorrer a outros elementos, designadamente prova testemunhal (artigo 393-nº3 do C.C.).
Das respostas a alguns quesitos, relacionados com tal interpretação (designadamente, os quesitos 3º, 10º, 12º, 14º, 15º, 22º a 28º, 34º e 41º), não resultou provada a tese dos Autores nem a dos Réus, quanto ao negócio prometido.
Quanto ao contrato em apreço (constante de folhas 20 e vº), como se diz na sentença recorrida, não havendo nos autos outras circunstâncias atendíveis para a sua interpretação, só dele nos podemos servir para a aquela actividade.
Na mesma sentença diz-se que da sua leitura constata-se que dele não consta qualquer referência a “quota ou participação em capital de qualquer sociedade comercial”; que não é indicado o valor de qualquer participação social, nem é feita qualquer referência a intervenção dos RR. como “sócios” de qualquer sociedade comercial; que as declarações negociais de AA. e RR. nunca se referiram a qualquer “quota ou quotas sociais”; que elas não podem valer com o sentido de “cedência de quota ou quotas de sociedade”, já que um declaratário normal, nos termos já atrás referidos em que deve ser entendido, colocado na posição real dos AA. nunca poderia deduzir do comportamento dos RR. que estes pretendiam negociar, estavam a prometer vender (ceder) quota ou quotas de uma sociedade comercial. Referiu-se ainda que Autores e Réus denominaram o contrato de “Contrato de Cessão de Chave de Estabelecimento, excepto o Recheio”, nunca tal denominação ou qualificação podendo dizer respeito a quota ou quotas de sociedade.
Como ali também se diz, a única eventual referência que no contrato encontramos a uma possível sociedade será feita onde se lê “prometem ceder a chave do seu estabelecimento em Pombal, Largo ..., com o nome E, com actividade de venda a retalho de artigos de desporto e campismo”.
Mas daqui não podemos concluir que a vontade real dos RR. tenha sido de cedência de quota ou quotas ou que dessas referências um declaratário normal, colocado na posição real em que se encontravam os AA., pudesse deduzir que esse era o sentido das declarações de vontade dos RR..
Na mesma sentença referiu-se ainda que não pode ter qualquer relevância o facto de por escritura pública de 9-10-1987, outorgada no Cartório Notarial de Pombal, os RR. terem adquirido as quotas da sociedade por quotas denominada E (alínea G) dos factos assentes).
De facto, há que ter presente que é válida a promessa de alienação de coisa alheia (Ac. R.P. de 17/6/96 – Col. 1996-III, página 218).
Por outro lado, se os Réus podiam ceder as quotas daquela Sociedade, também podiam transmitir, através de trespasse, apenas o estabelecimento comercial pertencente a tal Sociedade.
Os termos do contrato escrito não podem fazer concluir que os Réus não pudessem razoavelmente contar com a interpretação de que o contrato em apreço nada tinha a ver com a cessão de quota ou quotas.
Antes dele se deduz que o contrato prometido respeita à transmissão do estabelecimento comercial, como empresa ou organização económica, com carácter definitivo, dependendo da vontade das partes a enumeração dos elementos a transmitir, estando sempre abrangidos os que são indispensáveis à caracterização daquele como entidade autónoma.
Ao contrário do afirmado pelos apelantes, nem consta do contrato que o recheio do estabelecimento não acompanhasse a transmissão, mas apenas que o valor de 6.000.000$00 não incluía tal recheio, sendo o valor deste determinado posteriormente.
Aliás, a exclusão do recheio e de duas viaturas daquele preço não têm qualquer significado, a favor da tese dos Réus, podendo até considerar-se que apontam mais no sentido de que não se pretendia uma cessão das quotas.
Também não resulta do referido documento, nem de qualquer dos factos provados que o negócio dependesse de qualquer condição suspensiva, relacionada com o valor do recheio. Aliás, nem é seguro que este seja sempre um elemento essencial na negociação do estabelecimento, embora seja habitual a sua inclusão na transmissão de estabelecimento.
Devemos concluir, como se fez na sentença recorrida, que as partes se vincularam a celebrar um contrato de trespasse ou de transmissão do estabelecimento comercial sito no largo do ..., nunca resultando das declarações negociais em apreço que se vinculassem a transmitir quotas de sociedade comercial.
Improcede o que em contrário se pretende com as conclusões 2ª a 12ª das alegações dos apelantes.
3 – Como resulta dos autos, os Autores pagaram aos Réus 1.600.000$00 “como sinal e princípio de pagamento”, no acto da outorga do respectivo contrato, acordando que “o sinal recebido de 1.600.000$00 (um milhão e seiscentos mil escudos) será pago a dobrar, tanto pela parte vendedora como pela compradora se houver anulação deste mesmo contrato” (alíneas A) e B) dos factos assentes e documento de folhas 20 e vº).
O sinal é um modo de determinação antecipada da indemnização devida pelo incumprimento do contrato, e visa garantir tal indemnização independentemente da existência de danos, dispensando as partes da sua alegação e prova.
Nos termos do artigo 442-nº2, do Código Civil, “se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou...”.
Como se diz na sentença recorrida, a perda ou o pagamento ao outro do dobro supõe a violação de uma obrigação, ou seja, um comportamento ilícito, e nenhum dos promitentes tem o direito de desfazer o contrato, de o revogar, por sua livre e unilateral vontade.
Na mesma sentença, entendeu-se também que para aplicação do regime do artigo 442-nº2 do Código Civil, quanto ao sinal, é necessário o incumprimento definitivo.
Também consideramos que o incumprimento definitivo, imputável a uma das partes, continua a ser pressuposto exigido por esta disposição legal. Neste sentido, pode ver-se o Ac.S.T.J. de 26/5/98 (Col. 1998-S-II, página 100).
Aliás, os apelantes não põem em causa tal entendimento, mas apenas que lhes seja imputável o incumprimento do contrato, cuja responsabilidade atribuem aos Autores.
No entanto, dos factos provados não resulta que os Autores tenham tido culpa no não cumprimento do contrato, que alguma vez se tenham recusado a celebrar o “contrato de trespasse ou de transmissão do estabelecimento comercial”, que entendemos ser o contrato prometido (como se referiu supra nº2).
Pelo contrário, como se vê da C) dos factos assentes, os Réus endereçaram aos Autores uma carta, datada de 3/11/99 (junta a folhas 21), donde resulta que não pretendem realizar o negócio prometido, mas um diferente (Cessão de Quotas da firma E), afirmando mesmo que, caso os AA. não compareçam ou se façam representar na escritura pública de cessão de quotas, é porque não pretendem cumprir o contrato, estando conscientes ter perdido o sinal.
Com tal carta, manifestaram os Réus, inequivocamente, que não pretendiam cumprir o referido “contrato-promessa de trespasse ou de transmissão do estabelecimento comercial”, o que equivale a incumprimento definitivo a estes imputável.
Neste sentido pode ver-se o Ac.R.L. de 18/1/96 (Col.1996-I, página 94), em cujo sumário se diz: - “Resultando da matéria de facto prova de que o Réu, promitente vendedor, comunicou ao credor, de forma categórica e definitiva a sua intenção de não cumprir, aquele, sem necessidade de qualquer diligência por parte do promitente comprador, v.g., interpelação ou fixação de prazo para cumprir, fica na situação de incumprimento definitivo”.
Perante a atitude dos Réus de não pretenderem realizar o negócio prometido, mas um diferente, é irrelevante que tenha sido ou não feita a avaliação do recheio, ou que os Autores se tenham ou não disponibilizado para tal avaliação.
Assim, tinham os Autores direito à resolução do contrato e restituição do sinal em dobro, improcedendo o que em contrário se pretende com as restantes conclusões (13ª a 21ª) das alegações dos apelantes.
V – Em função do exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos Réus (ora apelantes).
Coimbra, 20/1/04