Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2801/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
Data do Acordão: 11/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA EM PARTE
Legislação Nacional: ART. S 10° E 77° DA L.U.L.L.
Sumário:
I - De acordo com o disposto nos artigos 10° e 77° da L.U.L.L., é admissível a emissão de uma livrança em branco e o seu preenchimento só poderá ser considerado abusivo se não respeitar os acordos realizados.
II - Por isso, não é de considerar abusivo o preenchimento de uma livrança se os embargantes celebraram com o embargado um acordo, que assinaram, mediante o qual subscreveram a livrança dada à execução, em branco, declarando autorizar o seu preenchimento pelo Banco se e quando este considerar oportuno, pelo montante que compreenderá o saldo em dívida. comissões, juros remuneratórios e de mora.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

Maria Celeste ... e marido, Nelson ..., deduziram, em 08/02/2000, embargos de executado no processo de execução ordinária nº 29/99, a correr termos no Tribunal da comarca de Almeida, em que é exequente Banco E..., S.A., e executados os embargantes, com o fundamento de que não têm obrigação de pagar a quantia exequenda, uma vez que, a partir de Dezembro de 1996, devido a doença da embargante, deixaram de ter possibilidades económicas para efectuarem os pagamentos ao banco exequente e estavam convictos que o seguro celebrado com a Companhia de Seguros ... iria pagar a quantia em débito em virtude da doença da executada, que deve ser considerada em estado de incapacidade total, a que acresce o facto de a livrança ajuizada ter sido preenchida abusivamente pelo exequente.
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O embargado contestou, pugnando pela rejeição dos embargos, em virtude de estar autorizado expressamente pelos embargantes a proceder ao preenchimento da livrança pelo montante em dívida e de a seguradora ter informado que a apólice só é accionada em caso de morte.
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Foi proferido o despacho saneador e seleccionados os factos considerados assentes e os que constituem a base instrutória, sem reclamações.
Efectuado o julgamento, com gravação da prova, e decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou os embargos improcedentes.
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Inconformados, interpuseram os embargantes recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1º- Os recorrentes subscreveram a livrança ajuizada em branco e onde o funcionário do banco indicou;
2º- O seu preenchimento, designadamente montante e data de vencimento, foi feito sem que o banco embargado tivesse dado conhecimento aos embargantes;
3º- O montante em dívida era de 3.500.000$00 e o banco preencheu a livrança com o valor de 4.374.203$00;
4º- O vencimento era em 7/12/1999 e o banco preencheu a livrança com vencimento em 7/1/97;
5º- Os recorrentes não deram qualquer autorização ao banco relativamente ao preenchimento efectuado;
6º- Ao tempo da concessão do empréstimo os recorrentes subscreveram um contrato de seguro junto da Cª Seguros Tranquilidade, sendo o capital seguro de 5.500.000$00, garantido os casos de morte ou doença;
7º- Este seguro não foi accionado, pese embora à recorrente tenha sido fixada uma incapacidade de 80%, em virtude de lhe ter sido diagnosticado cancro da mama, e em consequência submetida a uma mastectomia bilateral;
8º- Muito embora para tanto interpelada a Cª de Seguros não juntou aos autos cópia do contrato celebrado nem as condições da apólice, cujas cópias os embargantes nunca tiveram;
9º- O preenchimento do título ajuizado configura uma falsidade material determinante da perda da eficácia probatória deste documento;
10º- A nulidade do negócio jurídico é invocável a todo o tempo por qualquer interessado, pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal e impede a produção dos efeitos jurídicos;
11º- O Tribunal recorrido fez incorrecta interpretação e aplicação do Direito, designadamente e além do mais dos artºs 285º e 286º do CC., 511º, 523º, 646º e 668º do C.P.C. e 10º, 75º, 76º e 77º da L.U.L.L.
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O embargado contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
I - Os embargantes celebraram em 06/12/1995 um contrato com o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, S.A., ora embargado, pelo qual se obriga a entregar àqueles o montante de 5.500.000$00 pelo prazo de 48 meses e com as demais condições previstas no documento junto a fls. 15, constante do mesmo que “para garantia e segurança do cumprimento das responsabilidades ora assumidas o(s) beneficiário(s) – e cônjuge e avalistas – subscrevem uma livrança em branco, declarando, desde já, e por esta via, autorizar o seu preenchimento pelo Banco se e quando este considerar oportuno, pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora.
Todos os intervenientes dão o seu assentimento à entrega desta livrança, nos termos e condições em que a mesma é feita, pelo que assinam, conjuntamente com o beneficiário(s), esta autorização – al. A) dos factos Assentes.
II - O documento referido em A) foi subscrito pelos embargantes – al. B).
III - Os embargantes subscreveram a livrança em branco aludida em A) e onde o funcionário da embargada indicou – al. C).
IV - Ao tempo da concessão do empréstimo referido em A), os embargantes subscreveram junto da Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., um contrato de seguro titulado pela apólice nº 03/543/150883, da qual consta, como segurada Maria Celeste Ferreira Santos Pinheiro e tomador do seguro o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, S.A., sendo o capital seguro de 5.500.000$00, garantindo os casos de morte ou invalidez absoluta e definitiva, com início em 07/12/1995 e termo em 06/12/1999 – resp.quesito 1º da Base Instrutória.
V - Em Dezembro de 1996 foi detectado à embargante um cancro na mama, tendo a mesma sido submetida em 16/01/97 a uma mastectomia bilateral – ques. 2º.
VI - O pagamento da prestação mensal relativa ao empréstimo aludido em A) foi efectuado até à data mencionada em 2º - ques. 3º.
VII - Os embargantes estavam convencidos que o seguro aludido na resposta ao quesito1º iria ser accionado e pelo mesmo paga a quantia então em dívida – ques. 5º.
VIII - A embargante foi submetida a uma junta médica que lhe atribuiu, desde Janeiro de 1997, uma incapacidade permanente global de 80% - ques. 6º.
IX - A incapacidade referida na resposta ao quesito 6º torna muito penosa para a embargante a realização de qualquer actividade – ques. 7º.
X - O preenchimento da livrança referida em C), designadamente o montante e data do vencimento, foi feito sem que a embargada, previamente, tenha dado conhecimento de tal montante e data aos embargantes – ques. 9º.
Pode ainda dar-se como provado, nos termos do artº 659º, nº 3, do Código de Processo Civil, o seguinte:
XI - A Companhia de Seguros Tranquilidade juntou a fls. 30 um certificado individual referente ao contrato de seguro aludido na resposta ao quesito 1º.
XII - Notificados os embargantes da junção de tal documento, tomaram eles a seguinte posição (fls. 32): “O documento junto comprova o seguro existente de 5.500.000$00, para garantia do empréstimo efectuado em caso de morte ou invalidez absoluta e definitiva, e que tendo sido anulado pela Companhia de Seguros, se encontrava válido ao tempo da propositura da acção que deu entrada neste Tribunal em 1/2/1999”.
XIII – A mesma seguradora juntou a fls. 45 nova fotocópia do certificado individual referido em XI, acompanhado de um glossário (fls. 46 e 47).
XIV – Neste explica-se que “se entende por Invalidez Total e Permanente sempre que o Segurado/Pessoa Segura, em consequência de doença ou acidente, se encontre totalmente incapaz de exercer a sua principal profissão ou qualquer outra actividade lucrativa de acordo com as suas aptidões e conhecimentos. Se a incapacidade resultar de acidente será considerada como total desde que o grau de incapacidade fisiológica atinja 75%, sendo este grau determinado de acordo com a “Tabela Nacional de Incapacidade por acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, oficialmente em vigor no momento do acidente” e que “se entende por Invalidez Absoluta e Definitiva, quando por consequência de doença ou acidente, o Segurado/Pessoa Segura fique total ou definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada, e dependente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente”.
XV – Notificados os embargantes da junção destes documentos, tomaram eles a seguinte posição (fls. 49): “Os documentos ora juntos provam inequivocamente a falta de razão que assiste ao banco exequente, aqui embargado, e à actuação da Companhia de Seguros tranquilidade, companhia ligada ao Banco Espírito Santo, documentos que não foram assinados pelos aqui embargantes. O seguro de vida, deveria garantir o pagamento do empréstimo efectuado em caso de morte ou de incapacidade permanente, facto que incompreensivelmente não aconteceu, pese embora o coeficiente de incapacidade da executada de 80%, permanente e global, conforme documentos já juntos aos autos, muito superior aos 75% constantes do documento junto pela Cª Seguros”.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).

I – Começam os recorrentes por alegar que subscreveram a livrança em branco e que o seu preenchimento, designadamente montante e data de vencimento, foi feito sem que o banco tivesse dado conhecimento aos embargantes, tendo preenchido a livrança com o valor de 4.374.203$00 e o vencimento em 07/01/1997, quando o montante da dívida era de 3.500.000$00 e o vencimento em 07/12/1999, sendo certo que os recorrentes não deram qualquer autorização ao banco relativamente ao preenchimento efectuado.
Com tal argumentação pretendem os recorrentes, sem dúvida, invocar a excepção do preenchimento abusivo da livrança.
Conforme se vê dos artºs 10º e 77º da L.U.L.L. é admissível a emissão de uma livrança em branco e o seu preenchimento só poderá ser considerado abusivo se não respeitar os acordos realizados.
Ora, no presente caso, resulta dos factos dados como provados (als.A), B) e C) dos Factos Assentes) que os embargantes celebraram com o embargado um acordo, que assinaram, mediante o qual subscreveram a livrança dada à execução, em branco, declarando autorizar o seu preenchimento pelo Banco se e quando este considerar oportuno, pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora.
Assim sendo, não se compreende como podem vir agora alegar que não deram autorização para o preenchimento da livrança e insurgir-se contra o montante e a data de vencimento, parecendo-nos que, só por má fé, vêm invocar o preenchimento abusivo da mesma.
Note-se que os embargantes não fizeram, na petição de embargos, qualquer referência à discrepância entre o montante e a data do vencimento reais e os constantes da livrança, limitando-se a dizer, em relação ao montante, que a dívida ao Banco era de 3.500.000$00, sem, no entanto, indicarem como chegaram a esse valor, e nenhuma referência fazendo relativamente à data do vencimento da livrança.
Trata-se, portanto, de uma questão nova, que não foi levada ao conhecimento do Tribunal de 1ª instância, o qual, naturalmente, dela não conheceu – aliás, consta da sentença (fls. 167) que os embargantes não questionaram o montante que foi aposto na livrança.
Ora, as questões novas apresentadas em via de recurso não podem aqui ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem as finalidades do mesmo, destinado a reapreciar a questão controvertida e não aquelas – cfr. Ac. do S.T.J. de 26/09/1999, BMJ 459-498.

Por outro lado, e como também se refere na sentença recorrida, o embargado não estava obrigado, face ao pacto de preenchimento entre eles celebrado, a dar conhecimento prévio aos embargantes do montante e data de vencimento.

Conclui-se, assim, pela improcedência da excepção do preenchimento abusivo da livrança e, consequentemente, das conclusões 1ª a 5ª da alegação dos recorrentes.
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II – Afirmam, depois, os recorrentes que, ao tempo da concessão do empréstimo, subscreveram um contrato de seguro junto da Cª de Seguros Tranquilidade, garantindo os casos de morte ou doença e que este seguro não foi accionado, não obstante ter sido fixada à recorrente uma incapacidade de 80%, e que, embora interpelada, a seguradora não juntou aos autos cópia do contrato celebrado nem as condições da apólice.
Para a resolução desta questão importa recordar que se deu como provado que, ao tempo da celebração do empréstimo referido na al. A) dos factos Assentes, os embargantes subscreveram junto da Companhia de Seguros Tranquilidade um contrato de seguro titulado pela apólice nº 03/543/150883, da qual consta como segurada a embargante e tomador do seguro o Banco embargado, garantindo os casos de morte ou invalidez absoluta e definitiva, com início em 07/12/1995 e termo em 06/12/1999; Em Dezembro de 1996 foi detectado à embargante um cancro na mama, tendo a mesma sido submetida, em 16/01/1997, a uma mastectomia bilateral; A embargante foi submetida a uma junta médica que lhe atribuiu, desde Janeiro de 1997, uma incapacidade permanente global de 80%, a qual torna muito penosa para a embargante a realização de qualquer actividade.

Como também se apurou, consta do glossário junto com o certificado individual do seguro em questão que se entende que existe invalidez absoluta e definitiva quando, por consequência de doença ou acidente, o segurado/pessoa segura fique total ou definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada, e dependente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente.
Assim, o seguro só poderia e deveria ser accionado se a embargante tivesse ficado, em consequência da doença que a afectou, com invalidez absoluta e definitiva, entendida esta no sentido supra descrito.
Ora, a incapacidade permanente global de 80% atribuída à embargante não se enquadra na aludida invalidez absoluta e definitiva exigida no contrato de seguro, uma vez que, embora torne muita penosa a realização de qualquer actividade, não se pode, no entanto, levar-nos à conclusão que a embargante tenha ficado totalmente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada, assim como também não se provou que a mesma esteja dependente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente.
Por isso, tem de se concluir, como se fez na sentença, que a seguradora não está obrigada a efectuar o pagamento da quantia ainda em dívida, garantida pelo contrato de seguro, improcedendo, assim, as conclusões 6ª e 7ª.

E improcede também a conclusão 8ª, na qual os recorrentes dizem que a companhia de seguros, muito embora para tanto interpelada, não juntou cópia do contrato celebrado nem as condições da apólice, cujas cópias os embargantes nunca tiveram.
Com efeito, conforme se deu como provado, a seguradora juntou o certificado individual do contrato de seguro e o glossário a ele anexo, não tendo os ora recorrentes impugnado, por qualquer forma, tal documento, afirmando, até, que o mesmo comprovava o contrato de seguro existente, que se encontrava válido à data da propositura da acção.
É, por isso, extemporânea a invocação de tal falta, apenas em via de recurso.
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III – Nas conclusões 9ª e 10ª alegam os recorrentes que o preenchimento do título ajuizado configura uma falsidade material determinante da perda da eficácia probatória deste documento, impedindo a nulidade a produção de efeitos jurídicos.
Pelo que já se disse em I, improcede, também, esta pretensão dos recorrentes, visto não ter havido preenchimento abusivo da livrança, por esta ter sido preenchida em conformidade com o acordo celebrado entre as partes.
Não há, assim, qualquer falsidade do título, nem a nulidade do negócio jurídico invocadas pelos recorrentes.
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IV – Finalmente, na conclusão 11ª invocam os recorrentes a incorrecta interpretação e aplicação de diversas normas do Código Civil, Código de Processo Civil e Lei Uniforme S/ Letras e Livranças, deficiências essas que, no entanto, pelo que atrás se disse em I, II e III, não se verificam.
Convém apenas esclarecer que, entre essas normas, citam os recorrentes o artº 668º do Código de Processo Civil que, como se sabe, diz respeito à nulidade da sentença.
Contudo, não é possível conhecer tal questão, uma vez que os recorrentes não invocam, quer na alegação, quer nas conclusões, qualquer nulidade, não indicando, sequer, a alínea do nº 1 do aludido artigo em que integram a nulidade.
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Improcedem, assim, todas as conclusões da alegação dos recorrentes e, consequentemente, o recurso.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.