Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3858/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ISAÍAS PÁDUA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO: NULIDADE DA SENTANÇA POR CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 11/25/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Área Temática: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Legislação Nacional: ART. S 660º E 668º C. P. C.
Sumário:
I- Só ocorrerá nulidade da sentença, por contradição entre os seus fundamentos e a decisão, quando os fundamentos invocados pelo juíz conduziriam não ao resultado expresso na decisão mas a um resultado oposto, ou seja, quando das permissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma oposta à que, logicamente, deveria ter extraído.
II- Por sua vez, haverá nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, sempre que a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, ou melhor, quando conheça de causas de pedir não invocadas ou de excepções não invocadas que estão na exclusiva disponibilidade das partes.
III- Pretendendo uma seguradora exercer o direito de regresso, pelas quantias que desembolsou, contra o responsável do veículo sinistrante, que tinha a inspecção periódica em falta, apenas terá de alegar e fazer prova (como factos constitutivos do seu direito): a) da ocorrência de um acidente envolvendo o veículo segurado; b) do pagamento das quantias indemnizatórias que teve de desembolsar por causa desse acidente, e em virtude do contrato do seguro a que então se encontrava vinculada; c) e, por fim, de, na altura do acidente, o veículo sinistrante ter em falta a inspecção periódica.
IV- Por sua vez, face à presunção legal de culpa que sobre si impende, o responsável pelo aludido veículo só poderá livrar-se de tal obrigação, de pagamento, se lograr provar ou demonstrar que o acidente não foi provocado ou sequer agravado pelo mau funcionamento do mesmo (facto impeditivo do direito da seguradora-autora).
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª sec. Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1- A autora, PFA, veio instaurar contra a ré, Empresa B...Lda, ambas com os demais sinais dos autos, a presente acção declarativa, com forma de processo ordinário, alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
A autora, no exercício da sua actividade de seguradora, celebrou com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice nº 58850, tendo por objecto um autocarro de passageiros, propriedade da última, de matrícula PS-32-58, e bem assim ainda um contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº 10/019145.
Autocarro esse que no dia 14/06/1992, foi alugado à ré por um grupo de excursionistas, para se deslocarem ao Senhor dos Caminhos.
Porém, nesse dia, por volta das 20h45m, no regresso de tal excursão, na EN 2, ao Km 137,8, no local de Ponte Pedrinha, entre Castro Daire e a Ponte do Rio Paiva, o dito autocarro sofreu um aparatoso acidente, após se ter despistado, do qual resultou a morte de 8 passageiros e ferimentos nos demais (num total de 54 que então ali se faziam transportar) e bem assim do próprio motorista.
Despiste esse que ficou a dever-se ao facto do motorista ter perdido o controle do autocarro em consequência de uma deficiência no sistema de travagem.
Por força dos aludidos contratos de seguro em causa, a autora pagou já, a título de indemnização às aludidas vítimas ou aos seus herdeiros, a importância de esc. 47.802 105$00, ao motorista a importância de esc. 3.523 982$00, havendo ainda feito uma reserva matemática no montante de esc. 2.320 168$00, por força da IPP com que o último ficou de 27,75%, num total de esc. 53.645.790$00 já então desembolsados.
Contudo, tal acidente só foi possível devido ao péssimo estado de manutenção em que se encontrava o dito veículo, e nomeadamente no que concerne ao seu sistema de travagem, que a ré, de forma negligente, não cuidou de arranjar, e para o qual contribuiu o facto de na altura ter deixado decorrido o prazo legal estipulado para o efeito sem que tivesse submetido o mesmo à inspecção periódica exigida por lei – tendo faltado à inspecção que esteve marcada para o mês de Março de 1992, sendo que a última, que datava de 25/03/1991, se encontrava já caducada
Pelo que, face ao exposto, e luz do disposto na al. f) da cláusula 26 das Condições Gerais da Apólice Uniforme do Ramo Automóvel e artº 19 al. f), do DL nº 522/85 de 31/12, vem exercer o direito regresso contra a ré, para desta receber as quantias que dispendeu e que ainda tenha que dispender, por causa do aludido acidente.
Pelo que terminou a autora pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia total de esc. 53.645 790$00, acrescida do que vier ainda a pagar por força do mesmo sinistro e que se vier apurar em execução de sentença, bem como dos juros vencidos a partir da citação (no que concerne àquele capital).

2- Citada para o efeito, veio a ré contestar, defendendo-se, em síntese, nos seguintes termos:
Ser verdade que, na altura do acidente, o veículo em causa não tinha a inspecção periódica regularizada, ou seja, em dia, tendo a falta à ultima, que fora marcada para o pretérito mês de Março desse ano, ficado apenas a dever-se a um lapso dos seus serviços administrativos. Porém, a falta à última inspecção do dito veículo não foi causal do referido acidente, já que o mesmo se encontrava, nomeadamente a nível dos orgãos vitais e mais particularmente do sistema de travagem, em boas condições de funcionamento, sendo que as pequenas anomalias mecânicas nele detectadas não foram causa adequada e necessária do sinistro.
Acidente esse que apenas se ficou a dever à conduta negligente e imprevidente do motorista do autocarro, em termos da condução que imprimiu ao mesmo, pelo que não se verificam os pressupostos legais para a autora vir exercer contra si o sobredito direito de regresso no que concerne às quantias indemnizatórias que pagou por força do mencionado sinistro.
Porém, no final, por alegado desconhecimento dos mesmos, impugnou os montantes indemnizatórios que autora alegou já ter efectuado e bem assim os critérios que presidiram à fixação desses montante.
Pelo que terminou pedindo a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

3- Mais tarde, respectivamente, a fls. 490/492 e a fls. 512/519, a autora veio ampliar, por duas vezes, o pedido, que actualizou para o montante global de esc. 72.066.050$00, invocando numa delas que, em transacção efectuada na acção n.º 62/94, do Tribunal Judicial de Castro Daire, indemnizou outras vítimas do aludido acidente, no montante de esc. 15.000 000$00, havendo ainda pago ao Centro Nacional de Pensões a importância de esc. 1.379 360$00, e que na acção n.º 80/95, do mesmo Tribunal, pagou, respectivamente, as importâncias indemnizatórias de esc. 2.000.000$00 e de esc. 40.900$00 a outros dois sinistrados com o dito acidente
Ampliações essas que foram depois, na sequência do despacho de fls. 521, admitidas.

4- Entretanto foi proferido o despacho saneador – ainda à luz do CPC, anterior às reformas que lhe foram introduzidas pelos DLs nºs 329-A/95 de 12/12 e 180/96 de 25/09, já que a presente acção foi instaurada em 12/06/95 -, onde se afirmou a validade e a regularidade da lide
4-1 De seguida, elaborou-se a especificação e organizou-se o questionário, os quais vieram a ser corrigidos na sequência de reclamação oportunamente apresentada pela autora, e que mereceu total deferimento.

5- Após a instrução do processo, procedeu-se à realização do julgamento, com a gravação da audiência, e sem a ocorrência de qualquer incidente digno de registo.
5-1 A resposta aos quesitos teve lugar, sem que tivesse sido então objecto de qualquer censura das partes.

6- Seguiu-se, depois, a prolação de sentença, de fls. 764/765, na qual, nos termos e com os fundamentos aí aduzidos, se acabou por julgar a acção totalmente improcedente, com a consequente absolvição da ré do pedido.

7- Por não se conformar com tal sentença, a autora dela interpôs recurso, o qual foi admitido como apelação e com efeito suspensivo.
7-1 Nas suas alegações de recurso, apresentadas a fls. 799/814, autora-apelante acabou por concluir nos seguintes termos:
“...1- Conforme o acima exposto, e sob pena de violação do artº 369 do CC e, bem como, tendo em conta de que se trata de um documento não impugnado pelas partes, e uma vez que o tribunal a quo cometeu a falta de desprezar a força probatória do relatório da DGV, nos termos e para os efeitos do artº 712, nº 1, al. b), requer-se que se dignem alterar as respostas da matéria de facto, da forma como segue:
- quesito 7º para provado, com a explicação das deficiências encontradas, e descriminados, conforme o acima exposto no nosso ponto I, artº 7º;
- quesito 9º alterado para totalmente provado;
- quesito 12º para integralmente provado;
- quesito 13º para integralmente provado (retirando-se o respectivo esclarecimento);
- quesito 14º integralmente provado;
- quesito 15º apenas deverá ser dado como provado;
- quesito 16º para não provado;
- quesito 17º para não provado;
- quesito 18º a 20º para não provados;
- quesito 23º para não provado.
2- De acordo com o então explicado e alegado, e sob pena de violação ao artº 664 e 668, nº 1, al. d) do CPC, requer-se a V. Exªs. que se dignem considerar como não escrito todo o esclarecimento efectuado ao quesito 13º na respectiva resposta, uma vez que esse esclarecimento não se contem dentro da matéria alegada e articulada.
3- Mutatis mutandi, o mesmo se aplica à resposta do quesito 15º, do nosso nº I. Assim, e sob pena de nova violação ao artº 664 e 668, nº 1, al. d) do CPC, requer-se a V. Exªs. que se dignem considerar como não escrita, e na íntegra, tal resposta. Para uma pergunta muito específica, tal como: “nenhuma destas anomalias foi provocada pelo sinistro?”, o tribunal a quo respondeu que: “Provado apenas que as anomalias referidas nos quesitos 12ºA e 13º foram provocadas pela “utilização sistemática e descuidada do travão de serviço”.
Resposta essa, na modalidade de esclarecimento, que além de conter uma conclusão jurídica e um juízo de valor, extravasa claramente o âmbito da pergunta que se havia formulado.
4- Finalmente, é também a própria sentença que enferma de nulidade por violação do artº 668, nº 1, al. d) do CPC. Ou seja, e conforme o exposto no nosso 3º ponto, al. B), do nº I, uma vez que na decisão que agora se põe em crise o tribunal a quo pronuncia-se sobre questões que não lhe foram submetidas à apreciação.
É, nomeadamente, o que acontece quando afirma na respectiva fundamentação que, “os órgãos vitais do veículo em causa estavam conservados e funcionais”, ou dizendo que: “o sistema de travagem funcionou em pleno, fazendo tudo quanto lhe era exigível”.
Com efeito, sobre tais questões de facto, o tribunal a quo pura e simplesmente nunca se debruçou porque, pura e simplesmente, essas questões nunca foram alegadas.
5- Ou seja, sob pena da violação do artº 712 do CPC e 341 e ss do CC, das respostas negativas a alguns factos alegados pela A, nomeadamente quanto ao estado deplorável daquele veículo, não podia, pois, o tribunal a quo retirar conclusão inversa, como fez.
Aliás, como já referimos, e abundantemente tem sido decidido pelo STJ, das respostas negativas aos quesitos não pode deduzir-se o facto oposto ao considerado no mesmo quesito, ou noutros.
6- Conforme ainda resulta do que atrás dissemos, a decisão ora recorrida deverá ainda ser anulada, em consequência da decisão ora recorrida estar em contradição com a respectiva fundamentação, devendo ser anulada, nos termos e para os efeitos do artº 668, nº 1, al. d) do CPC.
7- Nos termos e para os efeitos do artº 712, nº 1, als. a) e b), e considerando que o tribunal a quo apenas possuia como meio de prova três depoimentos parciais e contraditórios entre si, e sendo que nenhum deles revelou conhecimento de facto sobre a matéria em causa, requer ainda a recorrente ainda que V. Exªs. alterem as respostas dadas a esses quesitos da base instrutória, substituindo-as, simplesmente, por respostas que digam: “não provados”.
8- Não tendo sido dado como provado o quesito 22º e, considerando que as respostas aos quesitos 15º, 16º, 17º e 18º, não são suficientemente esclarecedoras das circunstâncias em que se produziu o acidente, não se conseguindo estabelecer o nexo causal do mesmo, deverão V. Exªs. substituir esta decisão por outra, condenatória, em virtude da R. não ter conseguido inverter o ónus da prova que sobre si recaía.
9- Acresce a isto que nos termos e para os efeitos do artº 646, nº 4, do CPC, deverão V. Exªs. considerar como não escrita a resposta aos quesitos 17º, 18º, 19º e 20º da base instrutória, uma vez que os mesmos se limitam em si mesmos a expressar conclusões e juízos de valor e, portanto, não admissíveis.
10- Sem prejuízo do que acima ficou referido, e de acordo com o que expusemos no nosso ponto II, e uma vez que a decisão sobre a matéria de facto versada nos quesitos 16º, 21º, 23º, 26º, 27º e 28º, não encontra qualquer respaldo junto da prova produzida, deverão V. Exªs. alterar na íntegra a resposta a esses quesitos para não provados, sob pena de violação da al. f), do DL nº 522/85 de 31/12, Portaria 267/85, de 01/05, e do artº 36 do então C. Estrada, então em vigor e, mormente do artº 344, nºs. 1 e 2, do CC, 341 e ss do CC.
11- Assim, deverão V. Exªs. substituir a sentença ora recorrida, em virtude dos erros na apreciação da prova e, bem como de julgamento, por outra que leve à condenação da R., ora recorrida...”

8- Por sua vez, a fls. 820/824, a ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e pela consequente confirmação da decisão da 1ª instância.

9- Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir
***
II- Fundamentação de Facto
Pela primeira instância foram dados como assentes, por provados, os seguintes factos:
1- No dia 14 de Junho de 1992, pelas 20.45 horas, na E.N. n.º 2, ao Km 137,8, no local da Ponte de Pedrinha, entre Castro Daire e a Ponte do Rio Paiva, ocorreu um acidente de viação, em que foi interveniente o autocarro pesado de passageiros de marca Volvo, matrícula PS-32-58, propriedade da ré. (al. A. da especificação – e qual se referirão as demais alíneas a seguir indicadas).
2- Quando seguia na referida via o motorista do PS perdeu o controlo do autocarro que se despistou. (al. B.).
3- O veículo PS levava a respectiva lotação, em número de 54, e motorista, totalmente esgotada. (al. C.).
4- Em virtude desse acidente encontraram a morte 8 passageiros, tendo todos os demais, bem como o motorista, sofrido ferimentos. (al. D.).
5- A autora, no exercício da sua actividade de seguradora, celebrou com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º 58850, cujo objecto era um autocarro de marca Volvo, com a matrícula PS-32-58. (al. E.).
6- Também no exercício dessa actividade, celebrou a autora com a ré um contrato de Seguro de Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice n.° 10.019145. (al. F.).
7- A autora, ao abrigo do seguro de responsabilidade civil automóvel, tem vindo a indemnizar as pessoas sinistradas e os herdeiros daqueles que morreram no acidente, tendo- lhes pago a importância de 37.169 148$00. (al. G.).
8- Nos autos n.° 64/94, do Tribunal da Comarca de Castro Daire, instaurados devido ao acidente referido nos autos, em transacção, a autora obrigou-se a pagar a Maria do Céu Oliveira Carvalho, e outros, o montante de 15.000 000$00. (al. H.).
9- E a importância de 1.379 360$00 ao Centro Nacional de Pensões. (al. I.).
10- Também no Tribunal da Comarca de Castro Daire, e nos autos n.º 80/95, acção intentada por Emília da Rocha, por virtude do acidente em causa nos presentes autos, no dia 18/4/97, a autora, em transacção efectuada, comprometeu-se a pagar àquela a importância de 2.000 000$00. (al. J.).
11- Pagou ainda a autora, de tratamentos de fisioterapia ao sinistrado Custódio Cardoso, a importância de 40.900$00 (al. L.).
12- Tendo sido atribuída uma incapacidade permanente parcial ao motorista, foi a autora obrigada a constituir uma reserva matemática de 2.320 168$00, para fazer face à pensão vitalícia a que foi condenada por sentença do Tribunal de Trabalho de Coimbra (al. M.).
13- A inspecção levada a cabo ao veículo sinistrado pela Direcção Geral de Viação detectou a ausência de um amortecedor traseiro. (al. N.).
14- O veículo PS tinha inspecção periódica marcada para Março de 1992, no entanto, o proprietário não levou o veículo à inspecção. (al. P.).
15-Na descida que imediatamente antecedeu o local do acidente o motorista tentou engrenar as mudanças, com o que produziu ruídos (Quesito 2.º, do questionário, e ao qual pertencerão os demais a seguir indicados).
16- No próprio dia do acidente, na Sr.ª da Lapa, aproveitando uma paragem programada, o motorista sangrou o sistema de travagem, por notar os “travões fracos”, operação que efectuava duas/três vezes por semana. (Quesito 4.º).
17- As condutas de ar comprimido e os tirantes do travão de estacionamento não se apresentavam em bom estado de conservação. (Quesito 6.º).
18- Havia deficiências na manutenção do veículo. (Quesito 7.º).
19- O cavilhão frontal do feixe de molas traseiro esquerdo tinha a cabeça degolada. (Quesito 8.º).
20- Verificava-se a ausência do suporte superior do amortecedor traseiro. (Quesito 9.º).
21- Havia alguns tubos amarrados com cordas. (Quesito 10.º).
22- A bola da alavanca ainda indicava o posicionamento das velocidades da caixa original. (Quesito 12.º).
23- Foi também então verificado que as polies dos travões tinham desgaste na superfície de contacto com os calços, e que houve um forte aquecimento daquelas na mesma superfície, devido à insistência de travagem, assim como que os citados calços, embora com pouco desgaste, estavam bastante vidrados, também devido ao aquecimento produzido pela referida travagem, ao longo de toda a descida que imediatamente antecedeu o local do acidente. (Quesito 12.º-A.).
24- O estado dos travões referido no quesito 12.º-A.) anulou quase por completo o sistema de travagem, estado esse que foi produzido pela longa travagem então efectuada. (Quesito 13.º).
25- No interior da caixa do veículo havia bancos soltos, devido ao embate e, “provavelmente”, à sua deficiente fixação. (Quesito 14.º).
26- As anomalias referidas nos quesitos 12.º-A) e 13.º foram provocadas pela “utilização sistemática e descuidada do travão de serviço”. (Quesito 15.º).
27- O motorista, em vez de travar com o motor, recorreu sistematicamente ao uso dos travões. (Quesito 16.º).
28- Ao tentar reduzir, ou seja engrenar uma velocidade mais baixa, sem o ter conseguido, deixou o veículo em “roda livre”, obrigando o motorista a insistir no uso dos travões. (Quesito 17.º).
29- E, em “roda livre”, há uma deficiente produção do caudal de ar comprimido do sistema de travagem. (Quesito 18.º).
30-E, não havendo “injecção de ar”, os travões reduzem a sua eficiência, podendo ir ao seu “esgotamento”. (Quesito 19.º).

31- A não possibilidade de engrenar uma velocidade produz barulhos perfeitamente audíveis. (Quesito 20.º).

32- O motorista Urano, que seguia noutro autocarro, ouviu esses barulhos e fez sinais luminosos para avisar o Baltazar. (Quesito 21.º).

33-E quando chegou ao entroncamento da E.N. 225 (por onde circulava), com a E.N. n.º 2, não virou à direita, no sentido Castro Daire, que era uma subida. (Quesitos 23.º e 24.º).

34-Passado o entroncamento da E.N., existia e existe um lameiro. (Quesito 25.º).

35- Preferiu o motorista “avançar” até à Ponte Pedrinha onde a descida se acentuava e do lado direito só há barreiras e muros, e do lado esquerdo precipícios. (Quesito 26.º).

36- Foi a marcha em “roda livre”, aliada ao usos que o motorista vinha fazendo dos travões, que originou que o ar comprimido se esgotasse, produzindo um aquecimento das polies e dos calços, e que, assim, o autocarro ficasse sem sistema de travagem. (Quesito 27.º).

37- A “sangria” do depósito de ar é um procedimento de rotina efectuado por todos os motoristas neste tipo de veículos, ainda de sistema de travagem antigo, nomeadamente quando em excursão, ou percorrida uma certa quilometragem. (Quesito 28.º).

38- Por força do acidente relatado nos autos, em despesas respeitantes a Hospitais, a autora pagou 6.463 530$00. (Quesito 29.º).

39- Com assistência clínica e médica aos sinistrados despendeu 2.187 386$00. (Quesito 30.º).

40- Em despesas de transportes dos sinistrados despendeu 1.427 753$00. (Quesito 31.º).

41- Com deslocações, peritagens e despesas com o processo de investigação levado a cabo pelos serviços da autora despendeu a quantia de 554.288$00. (Quesito 32.º).

42- A autora, ao abrigo do contrato de seguro de acidente de trabalho, procedeu ao pagamento de indemnização ao motorista do veículo sinistrado, no montante de 3.523 982$00. (Quesito 33.º).


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III- Fundamentação de direito

1- Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se que se define objecto e delimita o âmbito dos recursos, isto é, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitados pelas conclusões das alegações dos recorrentes, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. disposições conjugadas dos artºs 664, 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, todos do CPC, bem ainda, a esse propósito, entre muitos outros, Acs da RC de 5/11/2002; do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80, e da RP de 25/11/93, respectivamente, in “CJ, Ano XXVII, T5, pág 15; CJ, Acs. do STJ, Ano II, T3 – 77; Act. Jur. Ano III, nº 17, pag. 3; BMJ nº 359-522 e CJ, Ano XVIII, T5 –232).

Começaremos por dizer que dispôndo o nº 1 do artº 690 do CPC que as alegações de recurso devem terminar com umas conclusões sintécticas (contendo a indicação dos fundamentos pelos quais se pede a alteração ou a anulação da decisão recorrida), cremos, salvo o devido respeito, que não foi respeitado tal normativo, em termos de síntese, e sobretudo se tivermos em conta que tais conclusões de recurso se estendem ao longo de 4 páginas, englobando, inclusivé, citação de jurisprudência (já citada nas próprias alegações), o que, torna sempre mais difícil a percepção e apreensão dos assuntos ou questões objecto de recurso a apreciar.

2- Feito este breve reparo – sendo certo que os autos estiveram antes distribuídos a outro exmo colega que optou por não fazer uso da faculdade estatuída no nº 4 daquele preceito legal -, afigura-se-nos, tendo em conta o âmbito das conclusões do recurso interposto pela apelante, que serão, essencialmente, três as grandes questões que urge apreciar e decidir:
a) Saber se deverá, ou não, proceder a impugnação da matéria de facto decidida pelo tribunal da 1ª instância (nomeadamente no que concerne às respostas dadas aos quesitos 7º, 9º, 12º a 21º e 23º, 26º a 28º) e, em caso, afirmativo, no sentido propugnado pela apelante?
b) Se a sentença da 1ª instância enferma do vício de nulidade, quer por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão final (al. c) do nº 1 do artº 668 do CPC), quer por excesso de pronúncia, ou seja, por ter conhecido de questões cujo conhecimento lhe estava vedado (al. d) do nº 1 do artº 668 do CPC)?
c) E se a sentença aplicou incorrectamente o direito aos factos, por forma a alterar-se o sentido daquilo que deveria ser decisão final?


2-1 Apreciemos aquela primeira questão (relacionada com a impugnação, pela autora apelante, da decisão proferida, pelo srº juíz a quo, sobre a matéria de facto acima aludida).
Dispõe o artº 690-A do CPC que:
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida...”
Por sua vez, o artº 712, daquele mesmo diploma legal, prevê, além do mais, que:
“1. A decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outras provas;”
Como é sabido, a possibilidade de documentação da prova foi introduzida no nosso ordenamento jurídico através do DL nº 39/95 de 15/12, com a justificação de assegurar “a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”.
Calcorreando o preâmbulo desse mesmo diploma é possível ainda ler-se que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Dentro de tal contexto e do espirito do diploma atrás citado, e na sequência de um exercício de hermenêutica interpretativa, escreveu-se no acordão desta Relação (Ac. RC de 3/10/2000, in “CJ, Ano XXV, T4 – 28”) “...é preciso não esquecer que a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no artº 655 do CPC...E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova - seja audio, seja video -, por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência. Na formação da convicção do juíz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis...”
O que é necessário e imprescindível (como escreve Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág, 348”) é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
No mesmo sentido vai, aliás, o Tribunal da Relação do Porto, através do acordão de 19/09/2000 (in “CJ, Ano XXV, T4 – 186”), ao traçar os parâmetros balizadores dos poderes da Relação quanto à matéria de facto, e cuja síntese ficou exemplarmente no sumário que foi feito do mesmo e que aqui, com a devida vénia, transcrevemos:
“I- A reforma processual operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, dando nova redacção ao artº 712 do C. P. Civil, ampliou os poderes da Relação quanto à matéria de facto, mas não impõe a realização de novo e integral julgamento, nem admite recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto.
II- Porque se mantêm vigorantes os princípios de imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca, de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”.
Assim, nessa esteira, e dentro de tais princípios, tem dominantemente a nossa jurisprudência entendido que só quando os elementos dos autos levem inequivocamente a uma resposta diversa da dada na 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas dadas pela 1ª instância. Só perante tal situação é que haverá erro de julgamento. Situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estamos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal sindicar (artº 655 do CPC), e pelas razões já supra expandidas (vidé, por todos, Ac. RC de 17/02/2002 in “Rec. Apelação nº 3380/2002-3ªsec.).
Por último, não resistimos, a tal propósito, citar aqui um brilhante artigo do sr. conselheiro dr. Pires da Rosa - na altura ainda juíz desembargador nesta Relação (publicado no Jornal “Comunicar Justiça”, Ano II, nº 1, Janeiro 2003, pag. 13”), onde defende que “como actividade humana que é, feita por homens e mulheres concretos e normais, susceptíveis de errar, a Justiça é ainda e sempre uma questão de fé”, sendo que “em algum momento é preciso acreditar em alguém”. E, mais à frente, ao referir que há um momento em que é preciso assumir um juízo de convicção, escreveu “esse juízo é (...) não a assunção pelo tribunal da 2ª instância de uma nova convicção probatória – a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação da prova inscrito no artº 655, nº 1, do CPCivil – mas tão só a procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem um suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos dos autos, naturalmente) pode exibir perante si”. Para terminar, acrescenta “mesmo, se bem pensarmos, não pode o tribunal da 2ª instância substituir uma razoabilidade, qual seja a afirmada por si próprio. O que ao tribunal de recurso está reservado é apenas substituir uma desrazoabilidade por uma razoabilidade”. Aliás, sempre na esteira do pensamento e do exercício de hermenêutica interpretativa sobre a temática que vimos abordando, veja-se ainda, entre outros, Acs. da RL de 27/03/2001 e de 13/11/2001, in “CJ, Ano XXVI, T2 – 86 e T2 – 85”, e Ac. RC de 17/12/2002 in “Rec. Apelação nº 3168/2002.”
Posto isto, dado que houve gravação da prova e atento o disposto artº 712, nº 1, do CPC, nada obstará a que, em princípio, se reaprecie a matéria de facto e, se for caso disso, se altere a decisão da 1ª instância.
Mas será que no caso em apreço, e tendo sempre presentes as considerações teóricas acabadas de expôr, se impõe tal alteração da matéria de facto?
Começaremos por dizer que nos casos em que é impugnada a matéria de facto constante das respostas dadas a diversos quesitos, e tal como vem sendo defendido dominantemente pelos tribunais superiores, não se impõe ao Tribunal da Relação que dilucide, ponto por ponto, ou seja, individualmente, cada uma das aludidas respostas, se a decisão final, sobre todas elas, for coincidente (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.)
Assim, a questão que agora cumpre analisar é se o srº. juíz do tribunal a quo apreciou ou não de forma correcta ou válida tal prova, e nomeadamente nos concerne aos pontos concretos em que a decisão da matéria de facto foi impugnada?
Começaremos por dizer que não existem elementos probatórios (nomeadamente de índole documental) juntos autos que só por si impusessem, no que concerne a tais factos, um decisão diversa ou então que destruíssem a prova em que assentou a decisão (cfr. als. b) e c) do citado artº 712 do CPC).
Sendo assim o que a este tribunal, de 2ª jurisdição, compete é, então, apurar da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau de jurisdição face aos elementos probatórios carreados para os autos.
Antes de mais relembraremos ainda que tendo-se iniciado estes autos antes da entrada em vigor actual versão do CPC de 95, não existe obrigação de fundamentação das resposta negativas dadas aos quesitos (artºs 16 do DL nº 329-A/ 95 de 12/12 e 653, nº2, da versão anterior do CPC), muito embora se nos afigure que, pelo sistema metodológico seguido na referida decisão, se fez, de forma global, uma análise critica da de toda a prova produzida, e que mereceu os diversos tipos de respostas, com a especificação dos fundamentos que foram decisivos para o referido julgador.
Como resulta do atrás já expresso, este tribunal (de 2ª jurisdição) não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova) mas sim à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.
Ora compulsando a decisão proferida sobre matéria de facto (cfr. fls. 737 a 741), e na qual se encontram envolvidas as respostas dadas aos diversos quesitos sobre os factos em questão, verifica-se que a mesma se encontra devidamente fundamentada, em termos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. Fundamentação essa que nos permitimos aqui reproduzir algumas passagens, que julgamos mais relevantes:
“ A convicção do tribunal alcançada pelo tribunal para a factualidade ponderada alicerçou-se, essencialmente, “no Relatório do Acidente” elaborado pela Direcção Geral de Viação, constante de fls. 600, sgts, corroborado pelo depoimento prestado em julgamento por um dos técnicos que o subscreveu (de nome António José Gomes Amaral, técnico superior da D.G.V. de Viseu – esta parte e sublinhado foi por nós escrita), havendo-se nele concluído como causa do acidente: “o condutor não terá utilizado os meios ao seu alcance, especialmente uma correcta utilização da caixa de velocidades, na descida da EN 225, próximo do entroncamento com a EN 2, pressupondo-se ainda que tivesse recorrido ao uso da redutoras, não aconselhável, deixando o veículo em marcha em roda livre; a utilização sistemática e descuidada do travão de serviço, provocando um aquecimento excessivo no conjunto polie/calço, permitindo perda de eficiência na travagem”. “Concluindo-se ainda – referindo-se ao dito relatório – que, pese embora houvesse carências notórias a nível de manutenção do veículo, certo é que os seus orgãos vitais estavam conservados e funcionais”.
Depois, na referida decisão fundamentadora, o sr. juíz passou ainda a fazer uma análise crítica - em termos cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido - do depoimento das testemunhas ouvidas, engº Marc Pacheco de Gordi (o qual terá feito, mais tarde, uma vistoria a autocarro acidentado, a pedido da autora), do sobredito engº António José Gomes Amaral, Baltazar Teixeira (condutor do autocarro), David Pereira Pinto (que na altura do acidente circulava no veículo, como passageiro), Arnaldo Coutinho (acompanhante daquela 1ª testemunha na vistoria acima referida), José António Martins Ribeiro (funcionária da autora, e gestora do processo), Alberto Almeida e David Pinto (igualmente passageiros do autocarro, na altura do seu despiste), escrevendo, por exemplo, a propósito do depoimento da sobredita testemunha David Pereira Pinto, que “também reconheceu que naquele dia haviam percorrido troços de via “muito piores que aquele onde ocorreu o acidente, sem que algo de anormal tivesse notado no veículo”.
Depois da análise crítica de tais depoimentos, escreveu que “todas estas testemunhas denotando directo conhecimento dos factos, depuseram com aparente isenção e objectividade, havendo assim contribuído para a formação da convicção do tribunal”.
E, por fim, rematou deixando ainda exarado que “relevantes foram ainda os documentos de fls. 107 a 488, o Relatório do acidente da DGV de fls. 600 a 687, e as fotografias de fls. 719 a 731”.
Ora tal só por si - e tendo em conta as considerações atrás expostas sobre as limitações da sindicância que este tribunal de recurso tem sobre a decisão da matéria de facto do juíz da 1ª instância e bem assim o princípio da liberdade do tribunal (do julgador) na apreciação das provas (que aprecia segundo a sua livre convicção), consignado no citado artº 655 - seria bastante para julgar improcedente o recurso na parte da questão que vimos apreciando, sendo certo que matéria factual dos quesitos cuja resposta foi objecto de impugnação (na apreciação da prova) não está sujeita a qualquer limitação de prova, tendo ainda o tribunal da 1ª instância indicado, no exercício da sua livre convicção, os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se pudesse controlar a razoabilidade daquela sua convicção.
Todavia, adiantamos ainda que calcorreando e conjugando os diversos elementos probatórios juntos aos autos, quer os documentais, quer os testemunhais (em que houve gravação da prova que foi produzida em audiência de julgamento, e cujas transcrições foram juntas aos autos), podemos constatar que nenhum desvio, em termos de razoabilidade (antes pelo contrário), foi feito quanto à prova ali produzida, ou seja, não se vislumbra nenhuma flagrante desconformidade entre os elementos de prova produzidos e aquela decisão proferida, e nomeadamente no que concerne aos concretos pontos questionados ou impugnados da matéria de facto.

Pretende ainda a apelante que se dê como não escritas, à luz do disposto no artº 646, nº 4, do CPC (embora se nos afigure, que se deveria referir aqui o nº 3 da versão anterior a presente reforma, pelas mesmas razões de facto e direito já atrás referidas, muito embora isso não interfira na solução final, dado ser idêntico o teor das redacções de tais números, em qualquer das versões), e como tal eliminadas, as respostas dadas aos quesitos 13, 15, 17, 18, 19 e 20 por conterem em si matéria de direito e/ou juízos de valor ou estarem fora da matéria alegada (sobretudos no que concerne aos dois primeiros quesitos) ou ainda por conterem em si ou expressarem meras conclusões ou juízos de valor (no que concerne, sobretudo, aos últimos 4 quesitos).
Começaremos por afirmar que as reclamações apresentadas, então oportunamente, pela autora-apelante à elaboração da especificação e à organização do questionário obtiveram, todas elas, deferimento integral (cfr. reqto de fls. 536/537 e desp. de fls. 543) e que nenhuma reclamação foi apresentada pelas partes aquando da resposta aos quesitos.
Posto isto, diremos o seguinte:
É sabido que manda a boa técnica que da condensação ou selecção da matéria de facto só devam constar, em bom rigor, simples factos materiais, e o mesmo sucedendo das respostas dadas aos quesitos, e tendo como âmbito ou baliza os factos que foram alegados pelas partes.
Porém, é também sabido, que infelizmente essa boa técnica nem sempre é observada, quer por parte de quem alega, quer, muitas vezes, por parte de quem tem a responsabilidade de organizar tais peças processuais.
É também sabido que vem gerando grandes dificuldades (sobretudo no domínio da anterior versão do CPC, já que actualmente - e muito embora tais regras sejam de manter e seguir – as mesmas têm vindo a ser ultrapassadas, com maior ou menor dificuldade, dada a nova filosofia da actual versão, na qual se aposta claramente na busca da verdade material e nas decisões de mérito em detrimento da verdade formal e das decisões de forma) estarmos num domínio em que, por vezes, o conceito normativo enunciado na lei é igual ou idêntico ao conceito empírico, ou seja, há palavras de uso tão generalizado que, apesar de conterem conceitos de direito, envolvem, por aquilo mesmo, um certo conhecido conceito de facto. Por isso mesmo, devido a tais dificuldades, vem cada vez mais se defendendo, muito embora, repete-se, tal não seja a solução ideal, que podem ser levadas à especificação e ao questionário (antes da actual reforma do CPC) ou à selecção da matéria de facto (após a actual reforma de tal diploma) palavras susceptíveis de um duplo sentido, jurídico e corrente. Aliás, sendo, como se disse, muitas vezes controvertida e difícil a distinção entre o que é “direito” e o que é “facto”, vem doutrinária e jurisprudencialmente sendo entendimento dominante que a matéria de facto se estende a todo o domínio das coisas e fenómenos naturais, incluindo os actos e factos humanos, e que, por exclusão, a matéria de direito abarca tudo o mais (vidé, a propósito desta matéria que vimos abordando, entre outros, Barbosa de Magalhães, in “Rev. Ord. Adv., nº 8 – 340”; Castro Mendes, in “Conceito de Prova, pág. 570”; Ac. RP de 24/10/81, in “BMJ 252 – 198”; Ac. RE de 17/4/74, in “BMJ 236 – 200” e Ac. RP de 17/7/74 in “BMJ 239 – 259”).
Por fim, diremos ainda que hoje constitui entendimento, praticamente pacífico, que é legalmente possível dar respostas aos quesitos de forma ampliativa ou restritiva, desde que se situam dentro do âmbito matéria alegada pelas partes e do objecto da acção, e com vista a que os factos a dar ou não como assentes correspondam, o mais possível, àquilo que, na realidade, se passou ou aconteceu.
Postas estas considerações, que julgamos de alguma utilidade, e debruçando-nos sobre as questões concretas acima colocadas, para a sua apreciação e resolução diremos, o seguinte:
No que concerne à resposta dada ao quesito 13º, afigura-se-nos que o esclarecimento nela prestado se insere dentro do contexto global da matéria factual alegada e em discussão nestes autos, e numa perespectiva de uma maior aproximação da forma como, realisticamente, ocorreram os factos, e, consequentemente, da descoberta da verdade material.
Não vemos, pois, que tal resposta se situe clara e manifestamente fora do âmbito do quesito e, sobretudo, da matéria global alegada e aqui em discussão (pois não nos podemos esquecer que está aqui também em causa a descrição de toda uma dinâmica do acidente em análise).
No que concerne à resposta dada ao quesito 15º, não vislumbramos, salvo o devido respeito, que estejamos na presença de um puro conceito jurídico e/ou juízo de valor e bem assim de um claro extravasamento do âmbito do quesito. Tal resposta situa-se, a nosso ver, dentro do estilo de justificação que já foi dada para o quesito 13º.
No que concerne, por fim, às resposta dadas ao quesito 17º, 18º, 19º e 20º, afigura-se-nos igualmente que nenhuma delas expressa ou contem em si pura matéria conclusiva ou exclusivos juízos de valor.
Posto isto, e por tudo o que atrás foi dito, não se vislumbram razões (de direito) para este tribunal alterar a matéria de facto, nomeadamente aquela acima referida, que foi decidida pelo tribunal da 1ª instância, razão essa por que o recurso concernente à parte daquela 1ª questão terá de naufragar.

2-2 Apreciação da 2ª questão acima enunciada.
a) Da alegada nulidade da sentença por alegada contradição entre os seus fundamentos e a decisão (artº 668, nº 1 al. c), do CPC).
Só ocorrerá esta causa de nulidade quando a construção da sentença é viciosa, isto é, quando «os fundamentos invocados pelo juíz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto” (conf. Prof. Alb. dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141”). Ou melhor, quando das permissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma oposta à que logicamente deveria ter extraído (vidé ainda , Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.).
Ora calcorreando a decisão em apreço afigura-se-nos que todas essas permissas e dados factuais e jurídicos, bem como o discurso lógico-discursivo e decisório correspondente, se encontram clara e inequivocamente enunciados e externos.
Não existem nem contradição nem ilogicidade alguma. A decisão, depois de analisar, indagar e juridicamente balizar o “thema decidendum”, extraiu em conformidade o seu juízo jurídico-subsuntivo. Na elaboração do correspondente silogismo judiciário, não se detecta, pois, a nosso ver, qualquer oposição ou contradição.
Torna-se patente que a apelante não concorda com o sentido decisório a final extraído, mas o que não pode é apontar qualquer vício ou erro de raciocínio no desenvolvimento daquele silogismo.
Não se pode confundir a motivação da sentença (artº 659 do CPC) com a fundamentação a que se reporta o artº 653, nº 2, do mesmo diploma legal.
Aquela – a que ora interessa – desdobra-se em fundamentação de facto e fundamentação de direito, consubstanciada esta na interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes aos factos dados como assentes.
Assim, a sentença da 1ª instância, posta em crise, limitou-se, a nosso ver, a analisar criticamente a factualidade dada como assente.
Toda a fundamentação acolhida e aduzida apontava logicamente no sentido da improcedência da acção, sentido esse que veio a ser acolhido na decisão em causa.
Ou seja, a tribunal a quo disse o que na realidade queria dizer e o que disse expressou-o claramente em termos perfeitamente coerentes e inequívocos, pelo que se terá de concluir que, a esse propósito, não ocorreu qualquer construção viciosa da sentença.

b) Da invocada nulidade da sentença, por excesso de pronúncia (artº 668, nº 1 al. d), do CPC).
É sabido que esta causa de nulidade ou se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no nº 2 do artº 660 do CPC, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, ou então por, na sentença, ter havido excesso de pronúncia, ou seja, por o julgador conhecer de questões cujo conhecimento lhe estava vedado.
Também, vem sendo dominantemente entendido, que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir. Tal vício só ocorre quando o juíz deixe de se pronunciar sobre as “questões” pelas partes submetidas aos seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir e não os simples argumentos, opiniões, motivos, razões pareceres ou doutrinas expendidos pelas partes no esgrimir das teses em presença (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec – cujo pensamento temos vindo a seguir -, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.)
Como no início de deixou expresso, a nulidade invocada, no caso em apreço, é por ter havido, na sentença recorrida, excesso de pronúncia por parte do srº juíz que a proferiu.
Ora haverá excesso de pronúncia, nos termos da 2ª parte daquele normativo legal, sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido (Cfr. o prof. Alb. dos Reis in “ Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 49 e ss”, o prof. Antunes Varela in “Manual de Processo Civil, págs. 672/673”, o prof. Anselmo de Castro in “Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, pág. 143” e Ac. do STJ de 06/02/1992, in “BMJ, 414 – 415”). Ou então ainda, no dizer do prof. Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 670”), quando o juíz conheça de causas de pedir não invocadas ou de excepções na exclusiva disponibilidade das partes.
Ora calcorreando, mais uma vez, a sentença recorrida não vislumbramos, salvo o respeito, o referido vício anulatório, ou seja, não vemos que o sr. juíz do tribunal a quo tenha conhecido e julgado questões não identificadas com a causa de pedir ou o pedido desta acção. Ou melhor ainda, não vislumbramos que o mesmo se tenha, na sentença final, excedido na pronúncia, isto é, decidido questões cujo conhecimento lhe estava vedado por lei.
Assim, não padecendo a sentença recorrida do vício apontado, de excesso de pronúncia, gerador da sua nulidade, também quanto a essa parte terá o recurso de improceder.

2-3 Terceira e última questão; inadequada ou incorrecta subsunção do direito aos factos.
Também aí, e salvo o devido respeito, mais uma vez não vemos que assista razão à apelante, e nomeadamente que possa alterar-se o sentido da decisão da 1ª instância, e, essencialmente, pelo seguinte:
Com a presente acção visava, em síntese, a autora, ora apelante, exercer o direito de regresso contra a ré, proprietária do autocarro acima identificado, e receber dela as quantias indemnizatórias que teve de pagar, ou que ainda tenha de vir a fazê-lo, às diversas vítimas, ou aos seus herdeiros, envolvidas no acidente em causa, por força do contrato de seguro que na altura tinha celebrado com a mesma, e que envolvia, da sua parte, a obrigação, perante a última, da assunção da responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo aludido veículo. E para isso fundamentou tal pedido no facto de na altura do acidente aquele veículo ter caducada a inspecção periódica a que estava legalmente obrigada, ou seja, não se ter apresentado, nesse ano, à inspecção periódica que estava legalmente obrigada, sendo que a produção do referido acidente ficou exclusivamente a dever-se ao mau estado de funcionamento do dito veículo (e particularmente a deficiências no seu sistema de travagem).
Da matéria factual dada como assente resultou efectivamente provado – facto esse que, aliás, nunca se mostrou controvertido – que o referido veículo pesado (autocarro de passageiros) tinha a sua inspecção periódica marcada para o mês de Março do ano de 1992 (sendo que o acidente em causa ocorreu no dia 14 de Junho desse mesmo), sem que no entanto a ré, sua proprietária, o tivesse levado ou apresentado à referida inspecção (cfr. al. P) da especificação e nº 14 do ponto II deste acordão).
E sendo assim é inolvidável que a ré tinha violado o disposto nas disposições conjugadas do artº 36, nº 2, do C. da Estrada, aprovado pelo DL nº 39 672 de 20/05/1954, da Portaria nº 267/85 de 9/5 e do DL nº 154/85 de 9/5 – diplomas esses então em vigor, e que regulavam aquela matéria das inspecções periódicas dos veículos.
Ora dispõe a al. f) do artº 19 do DL nº 522/85 de 31/12, que satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso – para além dos casos assinalados nas anteriores alíneas -, “contra o responsável pela apresentação do veículo a inspecção periódica que não tenha cumprido a obrigação decorrente do disposto no nº 2 do artº 36 do Código da Estrada e diplomas que o regulamentem, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo” (sublinhado nosso).
Resulta, assim, antes mais, de tal normativo, com o emprego ou inserção do advérbio “apenas” (ao contrário do que sucedia com o anterior diploma, o DL nº 408/79 de 25/9) que só nos casos ali expressamente referidos é que existe um direito de regresso a favor das seguradoras, sendo que um desses casos tem precisamente a ver com as situações da falta de apresentação, pelo responsável, do veículo a inspecção periódica.
Depois resulta ainda de tal normativo que em tais situações, de não apresentação de um veículo a inspecção periódica, se estabelece um espécie de presunção “iuris tantum” de culpabilidade contra o responsável do veículo, interveniente no acidente (de viação), que na altura estava em falta na sua apresentação a inspecção periódica, conferindo, nesses casos, às seguradoras automaticamente, por via do instituto do direito de regresso, o direito de serem reembolsadas das quantias indemnizatórias que tiveram de dispender em virtude do acidente de viação em que foi interveniente o veículo em causa. Ou seja, presume-se, desde logo, para aquele efeito, que o acidente terá sido causado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo e que aquele não se teria verificado se o último tivesse sido atempadamente submetido à inspecção periódica a que estáva legalmente vinculado. Só assim não será se o responsável do veículo, na inversão do ónus que lhe foi imposto, lograr demonstrar ou fazer prova de que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo.
Resulta, assim, de tal normativo, que em tais situações, e como facto constitutivo do seu direito (de regresso) ao reembolso das quantias despendidas, as seguradoras apenas terão de alegar e fazer prova da existência de um acidente envolvendo o veículo segurado; do pagamento das quantias indemnizatórias despendidas por causa desse acidente, em virtude do contrato de seguro a que se encontravam vinculadas, e, por fim, de na altura do acidente o veículo sinistrante não ter sido apresentado à competente inspecção periódica a que legalmente estava sujeito (cfr. ainda artº 342, nº 1, do CC).
Por sua vez, o responsável pelo aludido veículo só poderá livrar-se de tal obrigação se lograr provar ou demonstrar que o acidente não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do mesmo (facto impeditivo do direito do autor - cfr. artº 342, nº 2, do CC).
Ora posto isso, e debruçando-nos, mais de perto, sobre o caso em apreço nestes autos e calcorreando toda a matéria factual acima descrita, verifica-se que muito embora a autora tenha, em princípio, logrado fazer prova daqueles factos constitutivos do seu direito (e a que acima nos referimos), todavia, a ré também logrou fazer prova daquele facto impeditivo do aludido direito que autora pretendia fazer valer nesta acção contra si. Ou seja, calcorreando toda a matéria factual dada como assente, facilmente, a nosso ver, se conclui que a ré logrou provar que o acidente em causa não só não foi provocado ou agravado devido ao mau funcionamento daquele seu autocarro (nomeadamente no que concerne às alegadas deficiências do seu sistema de travagem), como inclusivé conseguiu ainda provar que esse acidente se deveu à conduta culposa (negligente e imprevidente) do condutor ou motorista que então tripulava o mesmo. As (pequenas) anomalias de funcionamento que o veículo então apresentava não só não foram causais (em termos de adequação) do referido acidente como, inclusivé, não contribuíram para o agravamento do sinistro.
Por tudo o exposto, afigura-se-nos, assim, que bem andou o srº Juíz do tribunal a quo quando concluiu pela improcedência total da acção, absolvendo a ré do pedido, pelo que, também nessa parte, improcede o recurso.
***
IV- Decisão
Assim, por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pela autora-apelante, PFA, confirmando-se a sentença da 1ª instância.
Custas pela autora-apelante.