Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1792/04.3 PBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: CRIME DE RESISTÊNCIA
COACÇÃO A FUNCIONÁRIO
AGENTE DE POLICIA MUNICIPAL
ÂMBITO DE FISCALIZAÇÃO
LEGITIMIDADE DA ORDEM
DIREITO À RESISTÊNCIA
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
Data do Acordão: 05/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 347.º DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 68.º E 401.º, N.º 1, ALÍNEA B) DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; ARTIGO 250.º DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 3.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 14.º, Nº 2 DA LEI N.º 19/19/2004, DE 20.03; ARTIGOS 151.º E 152.º DO CÓDIGO DA ESTRADA.
Sumário: I. - O dever de identificação do responsável da infracção estradal decorrente do artº 151º do Código da Estrada tem como pressuposto a verificação imediata pelo funcionário autuante de quem foi o autor da conduta ilícita.
II. - Iniciado o procedimento contra-ordenacional através da elaboração de auto e aposição do respectivo duplicado no veículo, esgotou-se esse dever funcional.
III. - Os agentes das polícias municipais não integram as forças ou serviços de segurança.
IV. - Excede os respectivos poderes, constituindo ordem ilegítima, a conduta de agente de polícia municipal que ordena a cidadão a entrega dos documentos de identificação e documentos de veículo, sem ligação funcional à elaboração de auto ou acção de fiscalização e, subsequentemente, profere voz de detenção quando tal não acontece.
V. - Mostra-se justificada, porque no exercício de direito de resistência constitucionalmente consagrado contra ordem ilegítima atentatória da liberdade, a conduta de cidadão que recusa acatar tal ordem de detenção.
VI. - Essa resistência pode ser passiva ou activa mas, em ambos os casos, deve respeitar o princípio da proibição do excesso, nas suas três dimensões: adequação, necessidade e proporcionalidade.
VII. – O crime de desobediência tutela a autonomia intencional do Estado;
VIII. – Visando-se com a tutela contida no artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal um interesse exclusivamente público não tem legitimidade para recorrer o funcionário que no exercício das suas funções vê ser desobedecida uma ordem por si transmitida e comunicada.
Decisão Texto Integral: Nos autos com o nº 1792/04.3 PBAVR do 3º Juízo Criminal de Aveiro, o Ministério Público deduziu acusação contra AC.., ao qual imputou a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º, nº1, al. b), do CP; de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artºs 181º, nº1 e 184º, com referência ao art.º 132º, nº2, al. j) do CP; e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art.º 347º do CP. Submetido a julgamento, foi proferida sentença a absolver o arguido de todos os crimes.
Inconformada, veio a assistente AM interpor recurso, com a formulação das seguintes conclusões:

1ª - Não se pode a assistente conformar, com a absolvição do arguido pelo crime de injúria agravada por que vinha acusado, p. e p. pelos arts. 181.°, n.°1 e 184.°, por referência ao art.132.°, n.°2, al. j), todos do C.P., só porque não se provaram «ipsis verbis» a totalidade das expressões constantes da douta acusação pública, tendo sido reproduzidas expressões injuriosas parcial ou isoladamente coincidentes.

2ª - A douta sentença recorrida, deveria ter realizado uma alteração não substancial dos constantes da douta acusação, e em obediência ao princípio da legalidade condenar o arguido por esse crime, pelo que violou o art.358.°, n.°1 do C.P.P.. De facto, constava da douta acusação pública que o arguido proferiu as seguintes expressões: «Eu falo como eu quiser, vocês são uns palhaços, quem são vocês para me multarem» e «Não me vai deter, não entrego documentos, vocês não valem nada!».

3ª – [vem] referido na douta sentença recorrida, que a assistente reproduziu as já referidas expressões, e as testemunhas que presenciaram os factos, não as reproduzindo ipsis verbis, referiram que o arguido proferiu as seguintes expressões: uma delas - «Vocês não têm autoridade para me deter e algemar», «palhaços», outra - «Vocês não são autoridade» «palhaços», «vocês são uma merda», outra ainda - «Você não me põe isso»; e outra ainda - «vocês não valem nada». Ora, nenhuma das expressões reproduzidas diverge das imputadas ao arguido, todas têm o mesmo cariz intencional injurioso e depreciativo, e elas não são entre si incompatíveis, pelo que deveriam ter sido dadas como provadas, condenando-se o arguido.

4ª - O supra alegado resultará da análise do texto da decisão recorrida, conjugado com as regras da experiência comum, nos termos do art.410, n.°2 do C.P.P., o que se requer e donde se conclui: a) que passados cerca de dois anos e meio sobre os factos, as testemunhas não se recordam de forma perfeita de expressões proferidas; b) que a pessoa pessoalmente visada pelas expressões injuriosas se recordará mais vivamente das mesmas.

5ª - A douta sentença recorrida, absolveu o arguido dos crimes de desobediência (art.348.°, al. b) do C.P.) e de resistência e coacção sobre funcionário (art.348.° do C.P.), com base em errada fundamentação de direito, designadamente por ter mal-entendido que a ordem de apresentação de documentos de identificação não era legítima, nem emanada de autoridade competente.

6ª - A fundamentação da douta sentença recorrida, baseia-se em legislação que não refere os agentes da polícia municipal, pois é anterior à própria existência desses agentes (que surgiu com a Lei n.°140/99), existindo norma posterior que prevê directamente esta questão e contraria completamente o sentido da decisão, que sequer a refere, desde logo aplicando legislação revogada pela Lei n.°19/2004, de 20.03.2004, que procedeu à revisão do regime das polícias municipais.

7ª - Quer a Lei revogada, quer a vigente, prevêem no seu art.14.°, completamente ignorado, sob a epígrafe Poderes de autoridade, precisamente o contrário do decidido, ou seja que: 1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos que tenham sido regularmente comunicados e emanados do agente da polícia municipal será punido com a pena prevista para o crime de desobediência. 2 - Quando necessário ao exercício das suas funções de fiscalização ou para elaboração de autos para que são competentes, os agentes de polícia municipal podem identificar os infractores, bem como solicitar a apresentação de documentos de identificação necessários à acção de fiscalização, nos termos da lei.

8ª - Resulta da Lei n.°19/2004, designadamente dos seus art.3.°, n.°2, al. e) e 3 e art.4.°, n.°1, al.s b), f) e g), a competência dos agentes da polícia municipal para a fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária e para o levantamento de auto ou desenvolvimento de inquérito por ilícito de mera ordenação social, de transgressão ou criminal, designadamente por elaboração de autos de notícia, autos de contra-ordenação ou transgressão por infracções às normas referidas. Assim, é óbvio que o arguido estava a cometer, em flagrante delito - tal como este é definido pelo art.256.° do C.P.P. - desde logo, o crime de desobediência, punido com pena de prisão até um ano.

9ª - De acordo com a lei-quadro vigente, como previsto pelo seu art.3.°, n.°4 e pelo seu art.4°, quando por efeito do exercício dos poderes de autoridade previstos, os órgãos de polícia municipal directamente verifiquem o cometimento de qualquer crime podem proceder: à identificação e revista dos suspeitos no local do cometimento do ilícito; à sua imediata condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente; à detenção de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal; à denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções e competente levantamento de auto, e à prática dos actos cautelares necessários e urgentes para acautelar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente.

10ª - Foi a assistente, agente da polícia municipal AM…, quem com formação exemplar, cumpriu toda a legislação em vigor, mesmo «sofrendo na pele» as pressões e humilhação resultantes dos humores do arguido, por não lhe «tirar a multa». Foi a personalidade do arguido, desconforme com o direito, a originadora dos factos, e não um pequeno grau de surdez que poderá ou não ter, pois nem isso dá qualquer direito a maltratar quem trabalha, nem as prisões estão cheias de surdos...

11ª - O arguido deve ser condenado pelos crimes de desobediência e resistência e coacção sobre funcionário, mas também pelo crime de ofensas à integridade física, pois estes dois últimos estão numa relação de concurso real efectivo, dada a diversidade dos bens jurídicos protegidos pelos crime - por unidade do sistema jurídico, na senda desde logo do A.U.J. n.°8/2000 do S.T.3., quanto aos crimes de burla e falsificação. Quanto aos crimes em causa, como decidiu o Ac. S.T.J. de 25.09.02, in C7, Tomo III, pg. 182: no tipo do art.347.° do C.P. não se protege o bem jurídico da integridade física do funcionário como bem pessoal dele, para mais se tal bem jurídico for entendido no sentido de que a qualidade de funcionário agrava a incriminação da ofensa. Por isso, a incriminação das ofensas à integridade física do funcionário que não possa considerar-se consumida, em termos de concurso aparente, pela incriminação pelo crime de resistência e coacção sobre funcionário, concorre com ela em termos de concurso efectivo.

12ª - A violência exigida pelo art.347.° do C.P., não precisa de consistir na agressão física, bastando-lhe a simples hostilidade, idónea a coagir, impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário (cf., Ac. R.P., in C.7., 1995, Tomo II, pg.232) pelo que, se a actuação do arguido, com exclusão das ofensas corporais, for suficiente para se julgar verificado o crime de resistência e coacção, aquelas terão que ser valoradas em sede de concurso real com o outro tipo-de-ilícito em causa. No caso, a actuação insistente do arguido, falando em tom muito alto, pressionando a assistente no sentido «de que lhe fosse retirada a multa» (cf., os factos provados n.°s 1 e 2) é só por si suficiente para o preenchimento do tipo previsto pelo art.347.° do C.P., pelo que existe concurso efectivo.

13ª — Em qualquer caso e subsidiariamente, dada a factualidade dada por provada na douta sentença recorrida, a ser absolvido do crime de resistência e coacção sobre funcionário, sempre o arguido teria e terá que ser condenado, por convolação, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, nos termos conjugados dos art.s 143.°, 146.°, n.°2, e 132.°, n.°2, todos do C.P., e 358.°, n.°3 do C.P.P..
Respondeu o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, dizendo que a decisão não padece de qualquer vício ou nulidade e que foram cumpridas as exigências de fundamentação da decisão de facto.
Respondeu ainda o arguido, formulando as seguintes conclusões:

Impugnando a matéria de facto de facto, tem o recorrente de dar cumprimento ao disposto no n4 3 do artigo 412° do C.P.P., e não cumprindo tal ónus, deverá o Tribunal convidar o recorrente a suprir as deficiências encontradas, com a cominação de rejeição do recurso caso não cumpra o disposto na lei." - (vide Ac. STJ de 13 de Novembro de 2002; proc. n.º 3176/02, 3ª).

Quanto ao crime de injúria agravada, da prova produzida em julgamento não resultou inequivocamente provado que tivessem sido proferidas pelo arguido as expressões constantes da acusação, bem como as que foram reproduzidas pelas testemunhas ao longo das sessões de julgamento.

Quanto ao recurso de direito, sendo os requisitos constantes do artigo 412°, n° 2 de verificação cumulativa, e não tendo sido dado cumprimento a todos eles, nomeadamente ao constante nas alíneas a) e b), deverá o presente recurso ser rejeitado por falta de cumprimento dos mesmos.

Quanto ao crime de desobediência, muito embora se possa considerar que a ordem emanada foi legítima, sempre poderia a mesma estar ferida de nulidade por falta de verificação dos pressupostos de validade da mesma nos termos do artigo 11, n.ºs 2 e 3 da Lei nº 5/95 de 21.02, na redacção dada pela Lei nº 49/98 de 11.08.

Pelo que se deverá manter a douta sentença recorrida
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer, considerando que, não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre matéria de facto, deverá ter-se esta por fixada, e que não se verifica qualquer dos vícios enumerados no artº 410º, nº2, do CPP. Perante essa decisão de facto, manifesta concordância com a decisão de absolvição, considerando que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela assistente.
Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do CPP, veio o arguido responder, salientando que funda o recurso exclusivamente no plano do direito.
Cumpridos os vistos, procedeu-se a audiência.
Fundamentação
Âmbito do recurso
É pacífica a doutrina e jurisprudência[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[2]. As questões suscitadas prendem-se com a violação do disposto no artº 358º, nº1, do CPP; com a presença de vício contemplado no artº 410º, nº2, do CPP; e com o preenchimento dos elementos típicos do crime de ofensa à integridade física qualificada, em concurso efectivo com o crime de resistência e coacção sobre funcionário. Adicionalmente, vem a assistente impugnar a decisão de absolvição quanto ao crime de desobediência, o que deve ser desde já apreciado, em sede de questão prévia, por ilegitimidade da recorrente.
Questão prévia: Ilegitimidade da assistente
Veio a assistente abranger no recurso a absolvição do arguido relativamente crime de desobediência p. e p. pelo artº 348º, nº1, al. b), do CP.
Nos termos do artº 68º, nº1 do CP, podem constituir-se assistentes, entre outras situações, inaplicáveis a estes autos, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. O advérbio especialmente significa que a nossa lei acolhe o conceito restrito de ofendido[3] para efeito da determinação das pessoas legitimadas a intervir no processo penal, exigindo-se, então, que o interesse de quem pretende constituir-se assistente esteja compreendido no círculo imediato de protecção, segundo o critério que se retira do tipo legal preenchido pela conduta criminosa.
Ora, o crime de desobediência tutela a autonomia intencional do Estado[4], emergindo a protecção de interesse exclusivamente público, em que o funcionário desobedecido não é titular do interesse especialmente protegido por aquele tipo penal[5].
Assim, AM não tem intervenção como assistente nessa dimensão do objecto do processo, pelo que não lhe assiste legitimidade para recorrer, de acordo com o disposto no artº 401º, nº1, al. b) do CPP.
Pelo exposto, não será conhecido o recurso nessa parte.
Da decisão recorrida
Vejamos, antes de mais, a decisão recorrida:
II— FUNDAMENTOS.
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
No dia 13 de Setembro de 2004, cerca das 17h30, quando A…M, agente da Polícia Municipal de Aveiro, se encontrava em exercício de funções, devidamente uniformizada, no arruamento junto ao Cais do Côjo, área deste concelho e comarca de Aveiro, foi abordada pelo arguido, o qual lhe solicitou que lhe retirasse a "multa" do seu veículo, pretendendo com tal proposição que a referida agente desse sem efeito um aviso de levantamento de auto de contra ordenação que momentos antes havia sido colocado por aquela no veículo do arguido, que se encontrava naquelas imediações.
A agente AM… respondeu negativamente, ao mesmo tempo que solicitava ao arguido que falasse mais baixo - dado que o mesmo lhe falava em tom muito alto - e lhe solicitava, ainda, que lhe exibisse os seus documentos, bem como os do veículo em causa, ao que o mesmo respondeu negativamente.
Perante tal postura, a agente insistiu no sentido de o arguido lhe exibir os ditos documentos, tendo-lhe feito a advertência de que, não o fazendo, incorreria na prática de crime de desobediência.
Porém, o arguido não exibiu os documentos à agente policial em causa.
Acto seguido, a agente AM… deu voz de detenção ao arguido, o qual, de imediato, se foi afastando do local.
A fim de efectivar a detenção, a agente AM … tentou agarrar o arguido por um braço, altura em que o mesmo reagiu esbracejando com o intuito de evitar ser agarrado pela agente.
Perante tal situação, a ofendida solicitou a presença dos agentes da Polícia de Segurança Pública de Aveiro, ao mesmo tempo que continuou no encalço do arguido até ao interior das Galerias do Vestuário.
Quando o arguido já se encontrava no interior das referidas galerias, a agente tentou agarrá-lo, mas o arguido continuou a esbracejar impedindo-a de o fazer.
Já com a ajuda de um segurança do Centro Comercial Forum, que se encontrava naquelas imediações, a ofendida AM … propôs-se, então, algemar o arguido, ao que este tentou impedir, mais uma vez, esbracejando.
Como consequência directa e necessária da reacção do arguido à tentativa da agente AM …  de o agarrar e algemar, esta sofreu dores nas regiões do corpo atingidas e ainda as lesões melhor descritas nos relatórios médicos juntos aos autos, designadamente traumatismo do 3º dedo da mão esquerda e escoriações bilaterais nos antebraços, lesões essas que demandaram 5 (cinco) dias para tratamento, todos sem incapacidade para o trabalho.
O arguido não ignorava que a ofendida era agente da polícia municipal e se encontrava em exercício de funções, até porque estava uniformizada em conformidade.
Por outro lado, levando a cabo aquela conduta, designadamente esbracejando e afastando-se daquela agente policial, visou o arguido opor-se a que a mesma o detivesse, actuando de modo livre, deliberado e consciente.
O arguido não tem antecedentes criminais.
O arguido é técnico das Finanças e aufere mensalmente um vencimento líquido de € 830,00. É casado, a esposa não exerce actividade remunerada e o casal tem a cargo dois filhos menores de idade, pagando a título de prestação de empréstimo bancário contraído para aquisição de casa a quantia mensal de € 600,00.
Factos Não Provados.
Não se provaram outros factos da acusação e da contestação diversos dos acima enunciados e que tivessem relevo para a decisão da causa.
Não se provou, nomeadamente:
— Que quando a agente AM… solicitou ao arguido que falasse mais baixo o tivesse feito por o arguido estar a falar em tom muito exaltado.
— Que o arguido tenha dito, dirigindo-se à agente AM …: "Eu falo como eu quiser, vocês são uns palhaços, quem são vocês para me multarem ".
— Que o arguido soubesse que a ordem dada pela agente para se identificar era legítima, que o fosse efectivamente, que tenha sido dada por autoridade competente, que tenha sido regularmente comunicada e que o arguido lhe devesse obediência.
Que quando a agente AM … deu voz de detenção ao arguido, este tenha tentado entrar no seu veículo e que, ao mesmo tempo tenha afirmado: "Não me vai deter, não entrego documentos, vocês não valem nada".
— Que quando a agente AM … tentou agarrar o arguido por um braço, o mesmo lhe tenha dado um forte empurrão e a tenha arranhado nos braços e nas mãos.
— Que no interior das galerias, a agente tenha sido fortemente empurrada pelo arguido contra o vidro de uma das montras ali existentes.
— Que ao recusar a exibição dos documentos, o arguido tenha agido com o propósito alcançado de desobedecer à ordem que a agente policial lhe dava, bem sabendo que à mesma devia obediência.
— Que o arguido soubesse que as afirmações que dirigia à ofendida eram susceptíveis de ofender a sua honra e consideração, que tenha querido. tal resultado e que o tenha logrado atingir.
— Que o arguido tenha empurrando e agredindo aquela agente policial.
— Que o arguido soubesse que toda a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Indicação Probatória.
O tribunal, num juízo crítico da prova produzida, formou a sua convicção da forma que segue:
Factos provados.
No que se refere aos factos descritos em 1. a 9. e que são relativos à descrição da forma como o arguido e a assistente actuaram nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, o Tribunal teve em consideração as descrições que dos mesmos são feitas pelo arguido e pela assistente nas declarações que prestaram em audiência e também as que resultaram dos depoimentos das testemunhas TP (agente da Polícia Municipal que na altura fazia equipa com a assistente e que se encontrava no local), FS (Segurança do Centro Comercial Fórum que a certa altura foi solicitado pela assistente para a ajudar a imobilizar o arguido), AF (advogado que, à época exercia funções de coordenação da Polícia Municipal de Aveiro e que esteve presente no local desde que a equipa da qual fazia parte a assistente iniciou a acção de fiscalização até ao momento em que o arguido foi detido e entregue à PSP), AP, HM e RS (todos colegas de trabalho do arguido e que encontrando-se nas instalações das Finanças existentes no local em causa, presenciaram, primeiro através das janelas e, depois, no local, grande parte dos factos).
Além de todos estes testemunhos, o Tribunal teve em consideração o teor do auto de notícia de fls. 3 a 5, do auto de entrega de fls. 6 e da cópia do auto de contra-ordenação de fls. 155.
Que, em virtude dos factos, a assistente sofreu as dores e lesões descritas no ponto 10. resultou provado em face das declarações prestadas pela mesma, conjugadas com o teor dos relatórios periciais de fls. 48/51 e 100/101 e ficha clínica de fls. 61/62 e com as regras da experiência comum que nos permitem concluir ser razoável que em virtude da força exercida pela assistente para manietar o arguido com vista a algemá-lo e as pancadas que terá recebido por o arguido reagir a tal propósito, a assistente tenha sofrido o tipo de lesões leves descritas naqueles relatórios periciais.
A restante matéria de facto resultou provada com base nas declarações prestadas em audiência pelo arguido e CRC de fis. 159.
Quanto aos factos dados como não provados não foi feita prova segura consistente ou convincente dos mesmos por forma a que, pela positiva, pudessem ser tidos como assentes.
Pormenorizando.
Quanto ao facto de o arguido usar um tom de voz exaltado quando, numa fase inicial, abordou a assistente para lhe falar das razões do estacionamento irregular do seu carro, tal não ficou demonstrado. O que se demonstrou foi que o arguido é surdo e, por isso e por ser pessoa um pouco obstinada, usa frequentemente um tom de voz elevado, mesmo quando se encontra a trabalhar e, por isso, em condições normais. Foi isso que disseram os seus colegas de trabalho A, H e R, não resultando da restante prova produzida a infirmação de tal facto. Com efeito, as testemunhas T e AF disseram que a determinada altura quer o arguido quer a assistente se exaltaram e falaram alto. Finalmente, o Tribunal pôde verificar durante as sessões do julgamento que, efectivamente, o arguido não ouve bem, fala alto e, por vezes de forma demasiado inflamada.
Relativamente às expressões descritas nas alíneas b) e d) e que constavam da acusação como expressões injuriosas dirigidas pelo arguido à assistente, não resultaram provadas em obediência ao princípio de prova "in dubio pro reo".
Com efeito, resultou de toda a prova produzida que existiu uma altercação entre o arguido e a assistente, tendo ambos ficado exaltados e proferido expressões variadas, de tal forma que se juntou muita gente a apreciar a situação como, aliás, é habitual.
O arguido nega ter proferido tais expressões e a assistente, por seu turno, reproduz "ipsis verbis" as expressões constantes da acusação afirmando que o arguido as proferiu.
Os depoimentos testemunhais, não foram de molde a ultrapassar estas dúvidas, razão pela qual tais factos foram considerados não provados. Com efeito, a testemunha Tânia disse ter ouvido as expressões "Vocês não têm autoridade para me deter e algemar", "palhaços", a testemunha F as expressões "Vocês não são autoridade", "palhaços", "Vocês são uma merda", a testemunha AF afirmou não ter ouvido nenhuma das expressões que constam da acusação nem quaisquer outras que considere injuriosas, a testemunha A diz ter ouvido a expressão "Você não me põe isso" afirmando que não ouviu nunca o arguido proferir as expressões descritas na acusação e a testemunha R disse não se lembrar de ter ouvido qualquer destas expressões mas admite que o arguido possa ter dito algo semelhante a "Vocês não valem nada".
Quanto ao que vem descrito em d) e g), trata-se de matéria de direito, na sua grande parte e não de factos e, por isso, tal matéria será objecto de apreciação na decisão infra. Contudo, sempre se dirá que o arguido afirmou em audiência que não se recusou a fornecer a sua identificação e a do veículo, tanto mais que a tinha consigo numa carteira que fez questão de mostrar ao Tribunal e, de qualquer forma estava e ainda está convencido de que não era obrigado a fazê-lo.
Os factos descritos em e), f) e i) não resultaram igualmente provados, na medida em que, à excepção da assistente e da testemunha F todos os restantes presentes no local e que prestaram depoimento afirmaram não ter visto nunca o arguido empurrar, agredir ou arranhar a assistente. Descreveram, todos eles, a actuação do arguido dizendo que o mesmo esbracejou, virou as costas à assistente e afastava-se de cada vez que a mesma fazia menção de o agarrar e algemar.
Finalmente, as alíneas h) e j) não resultaram provadas na medida em que não se provou ter o arguido proferido as expressões descritas na acusação nem, como se verá, praticou o mesmo qualquer conduta ilícita de que tivesse que ter consciência.
Apreciação
2.4.1. Da violação do disposto no artº 358º, nº1, do CPP
A primeira questão a apreciar prende-se com a evocação de violação do disposto no artº 358º, nº1, do CPP, compreendendo-se das motivações que o recorrente sustenta ter ficado demonstrada no decurso da audiência alteração não substancial dos factos descritos na acusação.
Dispõe o artº 358º, nº1, do CPP:

Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Acontece que o mesmo recorrente deixou claro que o recurso não envolvia a impugnação alargada da decisão de facto, apenas incidia sobre o direito.
Ora, a apreciação da verificação de prova produzida em audiência conducente a uma alteração desse tipo[6] passa pelo conhecimento do acervo probatório ao dispor do tribunal a quo, o que só pode acontecer em sede de recurso sobre a matéria de facto, nos termos das disposições conjugadas dos artºs. 412º, nº3 e 431º, al. b) do CPP.
É certo que o recorrente alude às referências efectuadas na sentença ao que foi referido pelo arguido, assistente e testemunhas e a al. a) do artº 431º do CPP consente a modificação da decisão quando «do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base». Simplesmente, esse normativo refere-se aos elementos de prova directamente apreensíveis pelo tribunal de recurso através da consulta do processo, como acontece com a prova documental ou pericial e ainda com as provas cuja leitura é permitida nos termos dos artsº 356º e 357º do CPP, constantes de autos do processo. As provas referida no recurso em apreço não têm enquadramento nessa previsão.
Observe-se, porém, que, ao invés do que refere o recorrente, o tribunal não considerou provado qualquer segmento das expressões referidas na acusação. Na realidade, a decisão motiva a remessa da totalidade dessas expressões para o elenco dos factos não provados na presença de dúvida razoável e inultrapassável sobre o que foi efectivamente dito, por aplicação do princípio in dubio pro reo.
Assim, tendo o tribunal considerado que as provas não suportavam descrição dos factos distinta da narrada na acusação, não poderia ter desencadeado, como não desencadeou, a comunicação estipulada no artº 358º, nº1 do CPP.
Concomitantemente, porque a decisão em matéria de facto da 1ª instância não pode ser modificada por este tribunal de recurso, inexiste fundamento para afirmar a presença de alteração não substancial dos factos narrados na acusação.
Falece, então, razão à recorrente nesta questão.
2.4.2. Dos vícios do artº 410º, nº2, do CPP
Na continuação dos argumentos avançados sobre a questão precedente, evoca o recorrente o disposto no artº 410º, nº2, do CPP (sem especificar a alínea), e apela à análise do texto da decisão recorrida para que se conclua que, passados dois anos e meio sobre os factos, as testemunhas não se recordam de forma perfeita de expressões proferidas e que a pessoa visada pelas expressões injuriosas recordará mais vivamente as mesmas. Considerando os três vícios da decisão de facto contemplados nas alíneas do referido preceito – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; erro notório na apreciação da prova – é notório que essa argumentação não merece enquadramento nos dois primeiros, pois não se reclama de lacuna no apuramento de factos indispensáveis para a decisão de direito ou de incompatibilidade lógica ou inconciliabilidade no julgamento de facto. Resta o erro notório na apreciação da prova.
Como refere o STJ, «’erro notório na apreciação da prova’ constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da ‘experiência comum’. Na dimensão valorativa das ‘regras da experiência comum’ situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta»[7].
Nas motivações, o recorrente alude à decisão como se esta indicasse que o factor prevalecente para a remessa das expressões indicadas na acusação para o elenco dos factos não provados fossem pequenas divergências literais no relato das testemunhas. Na realidade, a sentença indica a formulação em audiência de dois relatos completamente antagónicos, formulados pelo arguido e assistente, compreendendo-se da motivação que nenhum deles mereceu credibilidade acrescida, gerando situação de dúvida. Dúvida essa que não foi de molde a ser ultrapassada com os contributos probatórios das testemunhas, na medida em que uns referiram expressões próximas mas outros já não as ouviram ou não as recordaram.
Como tem sistematicamente sido evidenciado pela jurisprudência, o vício de erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a da própria recorrente, mormente através da valoração prevalecente do relato dela própria, mas sim, e apenas, acontece quando do texto da decisão recorrida resulta evidente conclusão contrária àquela a que se chegou. Numa situação em que, como reconhece a recorrente, o arguido nega a conduta e as testemunhas não se recordam de forma perfeita das expressões proferidas, a livre apreciação da prova comporta perfeitamente, sem entorse às regras da experiência comum, a decisão negativa de prova.
Assim, não se vislumbra no juízo de facto formulado e na aplicação do princípio in dubio pro reo qualquer incongruência lógica ou afastamento das regras da experiência comum, susceptível de fundar a afirmação de erro notório na apreciação da prova. Improcede o recurso também nesta parte.
2.4.3. Do crime de resistência e coacção sobre funcionário
Insurge-se a recorrente relativamente à absolvição do arguido do crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo artº 347º do CP e argumenta que a assistente tinha competência para proferir a ordem de identificação e para deter quem lhe desobedeceu.
A decisão recorrida fundamentou a decisão de absolvição na consideração de que a ordem de detenção era ilegal e, inerentemente, que o arguido tinha o direito de lhe resistir. Refere-se ainda que «embora não tenha ficado provado que o arguido usou da força agredindo a mesma agente, a verdade é que resistiu à sua detenção, nomeadamente, esbracejando e afastando-se da agente».
Vejamos.
De acordo com o artº 347º do CP, quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até cinco anos. O bem jurídico protegido pela norma «é a autonomia intencional do Estado, protegida de ataques vindos do exterior da Administração pública. Pretende evitar-se que não-funcionários ponham entraves à livre execução das "intenções" estaduais, tornando-as ineficazes.
Se simultaneamente se protege a pessoa do funcionário incumbido de desempenhar determinada tarefa, a sua liberdade individual, essa protecção é tão só funcional ou reflexa. A liberdade do funcionário importa na estrita medida em que representa a liberdade do Estado. Na outra dimensão - na privada, na que possui como pessoa e como cidadão - não encontra resguardo neste tipo legal. Por outras palavras: acautela-se a liberdade de acção pública do funcionário, não a sua liberdade de acção privada»[8].
No caso em presença, provou-se que a assistente, agente da Polícia Municipal de Aveiro, dirigiu ao arguido voz de detenção e que este não a acatou, opondo-se activamente à sua imobilização de forma tal que causou àquela traumatismo do 3º dedo da mão esquerda e escoriações bilaterais nos antebraços. Sobre as razões que determinaram a detenção, indica a sentença que a assistente lavrou auto de contra-ordenação relativo a veículo conduzido pelo arguido e que, mais tarde, quando este pretendeu que esse auto fosse «retirado», ordenou-lhe a entrega dos seus documento e do veículo, o que o arguido se negou a fazer. Temos, então, uma cadeia de eventos, a apreciar desde o seu início.
De acordo com o disposto no artº 151º do CE[9], quando qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das suas funções de fiscalização, presenciar contra-ordenação, levanta ou manda levantar auto de notícia, deve mencionar os factos que constituem a infracção, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou e tudo o que puder averiguar acerca da identificação dos agentes da infracção e, quando possível, de, pelo menos, uma testemunha que possa depor sobre os factos.
Resulta, assim, desse normativo o dever do agente autuante de identificar o responsável pela infracção, o que implica, correspondentemente, o dever do agente da mesma de fornecer tais elementos de identificação.
Simplesmente, esse dever de identificação do responsável tem como pressuposto a verificação imediata de quem é agente da infracção, ou seja, impende sobre o funcionário autuante quando presenciar a conduta que constitui objecto do auto. Quando tal não acontece, estipula o artigo seguinte (artº 152º) que a responsabilidade recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do veículo, sendo instaurado contra ele o correspondente processo. Nessas situações, tem o proprietário que não for o possuidor o prazo de 20 dias subsequentes a notificação específica que lhe será endereçada para identificar o possuidor ou locatário (artº 152º, nº7, do CE).
Por outro lado, não sofre dúvida, face ao artº 4º, nº1, al. b) da Lei 19/2004, de 20/3, que a assistente, no exercício de funções de polícia municipal, podia lavrar auto de notícia por contra-ordenação estradal pelo que, tendo elaborado o mesmo e aposto duplicado no veículo, iniciou-se o procedimento contra-ordenacional.
Acontece que, nos termos provados, o arguido dirigiu-se à assistente em termos exaltados e solicitou-lhe que desse sem efeito o auto levantado. Seguidamente, a assistente disse-lhe para falar mais baixo e ordenou-lhe a entrega dos seus documentos e do veículo. Ora, essa ordem foi ilegítima.
Como vimos, o auto fora já lavrado e a autuante não presenciara a infracção, encontrando-se o procedimento contra-ordenacional devidamente instaurado e tornando desnecessária a identificação do condutor do veículo. É que, com a elaboração do auto e aposição do respectivo duplicado, esgotou-se o dever funcional exercido ao abrigo dos artºs 151º e 152º do CE.
Assim, a ordem de identificação já não encontra justificação na fiscalização estradal e, inerentemente, escapa à competência funcional estipulada nos artsº 3º, nº1, al. b) e 14º, nº2 da Lei 19/2004, de 20/3[10].
Mas, afastada a legitimação contra-ordenacional, pode tal ordem enquadrar-se no regime geral de identificação dos cidadãos?
O regime cautelar de identificação de cidadãos encontra-se no artº 250º do CPP e na Lei 5/95, de 21/02[11].
Diz o artº 250º, nº1 do CPP que os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeitos a vigilância policial, sempre que sobre ela recaíam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção.
De forma patente, a actuação da assistente escapa igualmente ao enquadramento nessa medida cautelar, pois nenhuma conexão encontra com a suspeita de crime, pendência de processo contra estrangeiro ou execução de mandado de detenção. Aliás, importa sublinhar que, nos termos do nº2 do artº 250º do CPP, antes de procederem à identificação ao abrigo daquele normativo, os órgãos de polícia criminal devem comunicar ao suspeito as circunstâncias que fundamentam a obrigação de identificação e indicar os meios por que este se pode identificar.
Diz ainda a Lei 5/95, de 21/2, no seu artº 1º que os agentes de forças ou serviços de segurança a que se refere a Lei 20/97, de 12/6, e a polícia marítima no âmbito das suas competências, podem exigir a identificação de qualquer pessoa que se encontre ou circule em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre a mesma pessoa existam fundadas suspeitas da prática de crimes contra a vida e a integridade das pessoas, a paz e a Humanidade, a ordem democrática, os valores e interesses da vida em sociedade e o Estado ou tenha penetrado e permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual penda processo de extradição ou de expulsão.
Avulta desse normativo que o legislador teve o cuidado de definir com precisão o âmbito dos agentes autorizados a exigir a identificação dos cidadãos e, ainda, de formular como pressuposto a existência de fundadas suspeitas da prática de crimes de catálogo ou de infracção de regime de estrangeiros. Não existe no direito português o poder discricionário de ordenar a apresentação de documento de identificação, como resulta nítido dos nºs 2 e 3 do artº 1º da citada Lei: a identificação deve ser precedida da exibição de prova da qualidade funcional do agente da força, serviço de segurança ou polícia marítima, não bastando a simples uniformização, bem como da comunicação, sob pena de nulidade da ordem, das circunstâncias concretas que fundam a obrigação de identificação e os vários meios por que se pode identificar.
Ora, e como salienta a decisão recorrida, os agentes das polícias municipais não constituem agentes de forças ou serviços de segurança contemplados na Lei 20/97, de 12/6, o que significa que nunca poderia a assistente exercer os poderes previstos na Lei 5/95, de 21/2. Acrescente-se que não colhe o argumento de que o diploma que define as competências das polícias municipais é posterior àquelas Leis, na medida em que o legislador poderia ter procedido à sua alteração ou à inscrição na Lei 19/2004, de 20/5, da equiparação às forças ou serviços de segurança elencados na Lei 20/97, de 12/6. Se não o fez, foi porque quis excluir do seu âmbito de aplicação os agentes das polícias municipais.
E, mesmo que essa capacidade tivesse sido conferida aos agentes das polícias municipais, ainda assim encontrava-se ausente qualquer suspeita criminal ou de infracção ao regime de estrangeiros.
Face ao exposto, cumpre concluir que a assistente excedeu os poderes funcionais conferidos aos polícias municipais quando ordenou ao arguido que, sem ligação funcional à elaboração de auto ou a acção de fiscalização, lhe entregasse os seus documentos de identificação e os documentos do veículo.
Assim, porque confrontado com ordem ilegítima, a recusa do arguido não encontra tipificação nas disposições conjugadas dos artsº 348º, nº1, al. a) e 14º, nº1, da Lei 19/2004, de 20/5.
Concomitantemente, porque a ordem de detenção teve como fundamento a prática de crime de desobediência, que não se verificava, então também ela foi ilegitima, como ilegítimos foram, face ao artº 16º da Lei 19/2004, de 20/5, os meios coercivos empregues para atingir a imobilização do arguido.
Feita esta apreciação, estamos agora em condições de apreciar a conduta que o recorrente pretende ver subsumida ao crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo artº 347º do CP.
Considerou a decisão recorrida que o arguido tinha o direito de resistir contra ordem ilegítima, porque conferido pelo artº 21º da CRP, e que, assim a sua conduta não era punível, de acordo com o disposto no artº 31º, nº2, al. b), do CP, em virtude da ilicitude encontrar-se excluída.
Dispõe o artº 21º da CRP, com a epígrafe direito de resistência que «Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não se possível recorrer à autoridade pública». Essa norma legitima constitucionalmente a resistência a ordem ilegítima atentatória da liberdade, podendo traduzir-se numa abstenção (resistência passiva) ou numa acção (resistência activa). Neste último caso, como alertam Gomes Canotilho e Vital Moreira[12], deve entender-se valerem os princípios exigidos para as causas de justificação em direito penal, mormente o princípio da proibição do excesso, nas suas três dimensões: adequação, necessidade e proporcionalidade.
Nos termos referidos, o arguido foi confrontado com ordem de detenção patentemente ilegítima e desconforme com as funções exercidas pela assistente, enquanto agente de polícia municipal, pelo que a sua oposição não pode deixar de considerar-se compatível com a «legalidade administrativa» e isenta de lesão do bem jurídico tutelado pelo tipo do artº 347º do CP.
Como salienta Cristina Monteiro[13], a circunstância do legislador de 95 ter eliminado do tipo a exigência de legitimidade do acto funcional não significa o acolhimento do princípio da autoridade, obrigando ao acatamento de qualquer ordem emanada de autoridade pública, legítima ou ilegítima. Antes representa o reconhecimento de que uma interpretação do tipo à luz do bem jurídico protegido e conforme à Constituição impõe a justificação da resistência a ordem manifestamente ilegítima.
Assim, a decisão recorrida não merece censura na absolvição do arguido relativamente ao crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo artº 347º do CP.
Porém, afastada essa tipicidade, emerge a necessidade de apreciar se a resistência exercida pelo arguido respeitou o princípio da proibição do excesso, ou, ao invés, incorreu por algum momento em retorsão, o que conduz à apreciação da última questão colocada no recurso.
2.4.3. Do crime de ofensa à integridade física
Evocando situação de concurso efectivo entre os crimes tipificados nos artºs 347º e 143º do CP, pretende a assistente a condenação do arguido por este último crime. Convoca, em apoio dessa posição jurídica, aresto do STJ de 25/09/2002[14].
Concluindo-se, como se concluiu, pela inverificação do crime de resistência e coacção sobre funcionário, a questão colocada não passa já pela presença de concurso aparente ou efectivo mas sim pela verificação do crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo artº 143º do CP, na medida que ficou apurado que Ana Filipa Matos Silva sofreu traumatismo do 3º dedo da mão esquerda e escoriações bilaterais nos antebraços.
Nos termos provados, logo após a voz de detenção, o arguido procurou afastar-se do local, ou seja, escolheu a resistência passiva. Só quando a assistente tentou agarrá-lo por um braço, esbracejou e, depreende-se da sequência de factos, logrou evitar a sua imobilização. Seguiu-se nova tentativa de agarrar, com a mesma oposição, culminando com a tentativa de colocação de algemas. Também então, veio o arguido a opor-se, esbracejando.
Perante esta sequência, emerge a questão: quando e de que forma, foram provocadas as lesões na assistente? A esta questão, a decisão não fornece resposta completa e comporta indicações contraditórias.
Com efeito, a sentença refere nos factos provados que essas lesões aconteceram como consequência directa e necessária de acção do arguido mas não esclarece de que tipo. Numa primeira leitura, confinada aos factos provados, depara-se com a indicação de que o arguido esbracejou sempre que a assistente se aproximou de si mas o significado corrente do verbo não ultrapassa a acção de abrir os braços[15], ficando por afirmar de que forma atingiu o corpo da assistente.
Por outro lado, encontra-se nos factos não provados que o arguido empurrou e agrediu a assistente. O verbo agredir comporta vários significado, entre os quais precisamente o de atingir voluntariamente o corpo de outrem, causando-lhe lesões. Mas, então, e novamente, qual a acção que provocou as lesões, para mais nos dois antebraços? 
A imperceptibilidade da decisão quanto a este aspecto aumenta quando se pondera a fundamentação avançada para tal juízo. Justificou-se a indicação das lesões «com as regras da experiência comum que nos permitem concluir ser razoável que em virtude da força exercida pela assistente para manietar o arguido com vista a algemá-lo e as pancadas que terá recebido por o arguido reagir a tal propósito, a assistente tenha sofrido o tipo de lesões leves descritas naqueles relatórios periciais». Não se compreende qual a relação da «força exercida pela assistente para manietar o arguido» e as lesões quando é referido nos factos provados que estas ocorreram como «consequência directa e necessária de conduta do arguido» e não por efeito reflexo da força exercida. E, sobretudo, não se compreende como, tendo o julgador formado a convicção de que o arguido foi responsável por «pancadas», é ao mesmo tempo afirmado que apenas «esbracejou». Por outro lado, salientou-se o depoimento de testemunhas na referência a que o arguido «esbracejou, virou as costas à assistente e afastava-se de cada vez que a mesma fazia menção de o agarrar e algemar», o que fundou o juízo de não provado relativamente à «agressão», sem que se encontre compatibilidade com a indicação de que a etiologia das lesões foram «pancadas».
Nos termos do artº 32º do CP, constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. E, de acordo com o artº 33º do CP, se existir excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada.
Ora, sem a completa e coerente determinação das circunstâncias em que ocorreram as lesões da assistente, não é possível concluir se o arguido usou apenas dos meios necessários para repelir a pretendida privação da liberdade ou, ao invés, usou de excesso ou mesmo de retorsão. Nesta perspectiva, importa ainda saber em que se concretizou a «ajuda» de um segurança do Centro Comercial Forum.
Com efeito, encontra enquadramento jurídico distinto a situação de quem, confrontado com ordem ilegítima, desfere pancadas sucessivas no autor da mesma ou, ao invés, abre os braços para impedir a colocação de algemas ou impedir a sua imobilização, atingindo o corpo de outrem apenas na medida do estritamente necessário a impedir tais desideratos. Estas duas condutas hipotéticas, dentre as muitas que podem ter acontecido, são comportadas pela propósito indicado na sentença - reacção do arguido à tentativa da agente Ana Filipa Matos Silva de o agarrar e algemarmas a primeira emerge como exercício de retorsão e não de defesa. Note-se que a sentença não esclarece se a assistente alguma vez chegou a consumar, mesmo que por instantes, o propósito de agarrar o arguido e colocar-lhe algemas, dizendo-se tão somente que «tentou agarrar» (nºs 6 e 8 dos factos provados) e «propôs-se algemá-lo» (nº9 dos factos provados).
Face ao exposto, mostra-se incontornável concluir que a decisão deixou um hiato factual por preencher, o que redunda numa omissão de pronúncia sobre dimensão do objecto do processo relevante para a decisão, na vertente atinente à etiologia das lesões da assistente indicadas na acusação e afirmadas nos factos provados, bem como quanto às circunstâncias envolventes, vício da decisão que integra a previsão da al. a) do nº2 do art.º 410º do CPP: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Paralelamente, a indicação de que a convicção do Tribunal formou-se no sentido de que o arguido não empurrou, agrediu ou arranhou a assistente, limitando-se a esbracejar, virar as costas à assistente e afastar-se de cada vez que a mesma fazia menção de o agarrar e algemar, ao mesmo tempo que se afirma que as lesões foram provocadas por pancadas desferidas pelo arguido, configura contradição insanável da fundamentação, por colisão entre os elementos de ponderação apontados, o que configura o vício referido na al. b) do nº2 do mesmo art.º 410.
Atento o disposto no art.º 426º, nº1 do CPP, e porque não existem condições para a ultrapassagem neste Tribunal da Relação dos apontados vícios, cumpre determinar o reenvio, o qual é delimitado às questões supra referidas e ao conhecimento do crime de ofensa à integridade física, sem prejuízo do devido cumprimento do disposto no art.º 358º, nº3, do CPP.
Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
Por ilegitimidade, não conhecer do recurso interposto pela assistente relativamente à decisão de absolvição do crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º, nº1, al. b), do CP;
Julgar improcedente o recurso interposto pela assistente e confirmar a decisão recorrida relativamente à absolvição do arguido dos crimes de injúria agravada, p. e p. pelos artºs 181º, nº1 e 184º, com referência ao artº 132º, nº2, al. j) do CP e de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artº 347º do CP;
Determinar o reenvio do processo relativamente ao crime de ofensa à integridade física na pessoa de AM com vista a apurar em que circunstâncias, de que forma e com que intenção o arguido causou naquela traumatismo do 3º dedo da mão esquerda e escoriações bilaterais nos antebraços;



[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.
[2] Artsº 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.
[3] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º Vol, Coimbra Ed., 1981, pág. 506, em termos transponíveis para o ordenamento actual.
[4] Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, tomo III, pág. 350.
[5] Sobre a conformidade constitucional desse entendimento, cfr. o Ac. do T. C. nº647/98, de 17/11.
[6] Para a caracterização dos conceitos de alteração substancial e de alteração não substancial, cfr. Ac. do STJ de 21/03/2007, Pº 07P024, relator Henriques Gaspar, www.dgsi.pt.
[7] Ac. do STJ de 3/10/2007, Pº07P1779, relator Henriques Gaspar, ww.dgsi.pt.
[8] Cristina Libâno Monteiro, Comentário Conimbricense, Tomo III, Coimbra Ed., 2001, pág. 339. Neste sentido, cfr. a maioria da jurisprudência, designadamente os  Acs. do STJ de 25/09/2002, CJ (STJ), ano X, tº3, pág. 182, de 12/02/2004, CJ (STJ), ano XII, tº1, pág. 200, de 18/02/2004, CJ(STJ), ano X, tº1, pág. 205 e de 04/01/2007, Pº06P1708, relator Cons. Soreto de Barros, www.dgsi. Em sentido diverso, afirmando preponderância da protecção do funcionário, posiciona-se o Ac. do STJ de 07/03/07, Pº06P4596, relator Cons. Santos Monteiro.
[9] Na redacção em vigor à data dos factos, decorrente do D.L. 265-A/2001, 28/9.
[10] Diz esse preceito: Quando necessário ao exercício das suas funções de fiscalização ou para a elaboração de autos para que são competentes, os agentes de polícia municipal podem identificar os infractores, bem como solicitar a apresentação de documentos de identificação necessários à acção de fiscalização, nos termos da lei.
[11] Alterada pela Lei 49/98, de 11/8.
[12] Constituição da República Portuguesa, Coimbra Ed., 3ª ed., pág. 166.
[13] Ob. cit. Pgs.342 e 343.
[14] CJ (STJ), ano X, Tº3, pág.182. Cfr. no mesmo sentido e com o mesmo relator, o Ac. de 28/04/99, CJ (STJ), tº2, pág. 193.
[15] Cfr. Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Ed., 2006.