Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
156/92.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: ÓNUS DA PROVA
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Data do Acordão: 10/27/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ - 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 264.º DO CPC, ARTIGOS 334.º E 342.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1) As regras do ónus da prova só operam em toda a sua plenitude quando o juiz se depara com um “non liquet” nas questões de facto, caso em que terá de decidir contra a parte a quem cabe a respectiva prova;

2) A sua interpretação e aplicação está em estreita correlação com o direito substantivo inerente à resolução do litígio; nessa medida, o autor tem de provar os factos que integram a fonte da obrigação e o réu os factos que a podem paralisar.

3) O abuso do direito na modalidade do “venire contra factum proprium” pressupõe a destruição de uma relação de confiança criada pelo próprio abusador.

Decisão Texto Integral: I. Relatório:

            A…. com sede…., intentou acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra B…, viúva, doméstica, ….,  C….. e mulher, D…. , ele industrial e ela doméstica, residentes….., e E… e mulher, F…., ele industrial e ela doméstica, residentes na…., alegando, em resumo, que:

            Por declaração subscrita em 08.03.1984, os réus constituíram-se solidariamente como fiadores e principais pagadores de todas as importâncias que a sociedade  G… lhe devesse ou viesse a dever, bem como de quaisquer responsabilidades que tivesse ou viesse a ter perante ele.

            Em 26.03.1984, foi celebrado entre a sociedade G..... e diversas instituições de crédito, entre as quais o autor, um contrato de viabilização, ao abrigo do Decreto-lei n.º 124/77, de 1 de Abril, nos termos do qual o autor se obrigou a proceder à consolidação de 787.000$00 de créditos directos sobre a G...., resultantes de financiamentos anteriormente concedidos, obrigando-se a G.... a amortizar o passivo consolidado em prestações semestrais, vencendo-se a primeira em 31.12.1984 e a última em 31.12.1991, sendo os juros, contados dia a dia e pagos postecipada e semestralmente com o primeiro vencimento, à taxa máxima legal, ao tempo de 32,5%, acrescidos de uma sobretaxa de 2% em caso de mora.

            A G.... só liquidou as prestações vencidas até 30.06.1989, encontrando-se por liquidar 342.370$00 de passivo consolidado, 305.741$00 de juros moratórios e 27.517$00 de imposto de selo e, bem assim, 339.801$00 e 1.081.185$00 de passivo transformado (referente a primeira parcela à parte bonificada e a segunda à parte não bonificada), 1.268.960$00 de juros moratórios e 114.206$00 de imposto de selo.

            Concluiu pela condenação solidária dos réus no pagamento da importância total de 3.479.780$00.

            O autor veio a desistir da instância quanto à ré F...., que esta aceitou e que foi homologada por decisão judicial de 23.06.1993.

            Tendo falecido a ré B...., foram habilitados como seus herdeiros os réus C... e E....

            Os réus C... e mulher contestaram pela forma seguinte:

            Na cláusula 15.º do contrato de viabilização consignou-se dever a empresa apresentar uma proposta de revisão, cuja tramitação os bancos fariam seguir.

            Mas, apresentada a proposta, os bancos não lhe deram seguimento, pelo que lhes é imputável a falta de revisão do contrato.

            Por outro lado, no processo de recuperação de empresa que correu termos no Tribunal Judicial da Covilhã, sob o n.º 233/89, foi aprovada a viabilização da G...., com a aprovação e novação dos respectivos créditos, conforme deliberação da assembleia de credores, homologada por sentença transitada em julgado.

            O crédito do autor foi verificado e decidido que seria pago nas condições previstas e aprovadas pelos credores, sendo, por isso, os réus parte ilegítima.

            Acresce que prescreveram os juros vencidos há mais de cinco anos, sendo, ainda, certo que não são de contabilizar juros a taxa superior à legal.

            Terminaram pela improcedência da acção e pela condenação do autor em multa e indemnização como litigante de má fé ou, a não se entender assim, pela procedência da excepção de ilegitimidade, com a sua absolvição da instância, e, de qualquer modo, sempre procedente e provada a excepção da prescrição dos juros, além do ilegítimo anatocismo.

            Entretanto, o autor apresentou requerimento de desistência da instância quanto ao réu E...., sobre o qual recaiu decisão de homologação, proferida a 18.06.2001.

            O autor replicou, dizendo não ter votado a medida de recuperação proposta e aprovada, razão pela qual lhe assiste a possibilidade de continuar a exercer os seus direitos em relação aos co-obrigados ou a terceiros garantes da obrigação, acrescentando que não foram contabilizados os juros anteriores a 01.07.1987 e que foi tida em conta a taxa de juro contratada.

            Findou pela improcedência das excepções.

            Foi proferido, então, despacho saneador-sentença que julgou improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade dos réus C... e mulher, declarou, no mais, a validade e a regularidade da lide, julgou improcedente a excepção peremptória da prescrição dos juros e, decidindo de mérito, julgou procedente a acção e condenou aqueles réus a pagar ao autor a quantia de 3.479.780$00, equivalente a € 17.357,07.

            Interposto recurso pelos réus, decidiu o Tribunal da Relação julgar válida a fiança, mas anular a decisão recorrida, a fim de os autos prosseguirem com a elaboração da especificação e questionário.

            Recorreu, então, o réu para o Supremo Tribunal de Justiça – no segmento, apenas, em que o acórdão do Tribunal da Relação julgou válida a fiança –, que negou a revista e confirmou o acórdão recorrido.

             Baixando os autos à 1.ª instância, foi elaborado o despacho de selecção da matéria de facto, que não sofreu reclamação.

            Realizada, subsequentemente, a audiência de discussão e julgamento e fixada, sem reparos, a matéria de facto, foi proferida sentença, que julgou a acção procedente e condenou os réus a pagar ao autor a quantia de € 17.357,07 (3.479.780$00).

            Inconformados, os réus interpuseram recurso – recebido como apelação, com efeito devolutivo –, alegaram e formularam as seguintes conclusões:

            a) Todas as partes que outorgaram o contrato de viabilização reconheceram que este não era para cumprir, mas sim para rever e alterar, conforme ressalta da alínea i) da matéria de facto provada;

            b) Os recorrentes só aprovaram o contrato de viabilização e subscreveram a declaração de fiança, datada de 08.03.1984, com base nesse pressuposto – alínea j) da matéria de facto provada;

            c) O recorrido tinha e tem perfeito conhecimento disso, bem sabendo, por outro lado, que, tal como, também, ficou provado, a G..... apresentou a proposta de revisão, como lhe competia, revisão essa que nunca chegou a operar;

            d) Assim sendo, a sua pretensão não pode ser acolhida, até porque constituiria um claro abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium;

            e) Esta é a questão essencial, que o ex.mo juiz não avaliou correctamente;

            f) É verdade que se não provou quando é que foi apresentada a proposta de revisão, mas isso não obstou à sua análise e decisão pelos bancos – alínea k) dos factos provados –, pelo que essa circunstância é totalmente irrelevante;

            g) Impendia sobre estes a obrigação de seguir a tramitação processual e respeitar os prazos previstos no Decreto-lei n.º 124/77, consoante o estipulado na cláusula 15.ª do contrato de viabilização;

            h) O autor não provou que a falta de cumprimento dessa obrigação não foi por culpa deles e, particularmente, por culpa sua, a qual se presume, em face do disposto no artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil;

            i) A sentença recorrida violou o preceituado nos artigos 334.º e 799.º, n.º 1, do Código Civil.

            O autor não respondeu à alegação dos réus.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Em conformidade com as conclusões da alegação dos recorrentes, são questões a requerer solução:

            1) O ónus da prova;

            2) O abuso do direito;

            II. Na sentença recorrida foram dados por provados os seguintes factos:

A) Por declaração subscrita em 08.03.1984, os réus C... e mulher, D... (e outros) constituíram-se solidariamente perante o autor como fiadores e principais pagadores de todas as importâncias que a sociedade G..... devesse ou viesse a dever ao banco A... autor.

            B) Bem como quaisquer responsabilidades que a mesma sociedade viesse a ter para com o autor, fosse de que origem fosse, designadamente as provenientes de desconto de letras, extractos de facturas ou livranças em que aqueles interviessem, em qualquer qualidade, fossem ou não protestadas e contivessem ou não cláusula “sem despesas”.

            C) Comprometeram-se, ainda, os referidos subscritores, na referida declaração de 08.03.1984 e na qualidade em que se constituíram, a reembolsar o banco A... autor, no prazo de oito dias, depois de para tal terem sido avisados por carta registada, de todas as importâncias que lhe fossem ou viessem a ser devidas de quaisquer responsabilidades e da importância de quaisquer letras, extractos de factura ou livranças aludidas em B).

            D) Mais declararam aqueles subscritores renunciar ao benefício de excussão ou a outro benefício ou direito que, de qualquer modo, pudesse limitar, restringir ou anular as obrigações por eles assumidas.

            E) Em 26.03.1984, foi celebrado entre a G.... e diversas instituições de crédito (entre as quais o banco A... autor) um contrato de viabilização ao abrigo do Decreto-lei n.º 124/77, de 1 de Abril.

            F) Nos termos da cláusula 2.ª deste contrato, o banco A... autor obrigou-se a proceder à consolidação de 787.000$00 de créditos directos sobre a G...., resultantes de financiamentos por ele anteriormente concedidos à mesma, devendo a amortização deste passivo processar-se em prestações semestrais e iguais dentro de cada ano, vencendo-se a primeira em 31.12.1984 e a última em 31.12.1991.

            G) Aquela sociedade liquidou as prestações vencidas até 30.06.1989.

            H) O autor dirigiu-se aos réus contestantes (e a outros) por carta registada, datada de 14.04.1992, avisando-os de que deveriam pagar a importância de 1.804.743$00 (referente a responsabilidades emergentes do contrato de viabilização), a que acresciam juros moratórios desde 31.12.1989.

            I) Na cláusula 15.ª do contrato de viabilização de 26.03.1984 estabeleceu-se o seguinte: “atendendo ao lapso de tempo (cerca de dois anos) já decorrido desde a data da homologação da proposta final da Parempresa, os outorgantes consideram que o presente contrato terá de ser, desde já, objecto de uma proposta de revisão que a empresa se compromete a apresentar, nas devidas condições, logo após o fecho das suas contas de 1983. Os bancos desenvolverão os esforços necessários para que a proposta de revisão, uma vez aceite pelo banco líder, siga a tramitação processual dentro do rigoroso cumprimento dos prazos previstos no DL 124/77 (novo texto)”.

            J) A aprovação do referido contrato de viabilização, de que faz parte a declaração referida em A), foi assinada e a declaração subscrita, tendo em conta, como cláusula essencial e fundamental, a 15.ª do contrato de viabilização.

            K) A G..... apresentou proposta de revisão, que não foi aceite pelos bancos.

            III. O direito:

           

            a) O ónus da prova

            O autor fundou a acção no incumprimento pela G....., cujas obrigações os réus afiançaram, de um contrato de viabilização celebrado ao abrigo do decreto-lei n.º 124/77, de 1 de Abril, na redacção que lhe foi dada pelo decreto-lei n.º 112/83, de 22 de Fevereiro.

            Os réus defenderam-se com a argumentação de que só prestaram a fiança na perspectiva de o contrato de viabilização ter de ser revisto, como deriva da sua cláusula 15.ª, e que a revisão só não aconteceu, porque o autor não deu seguimento à proposta de revisão apresentada pela G....; a responsabilidade pelo incumprimento caberia, pois, ao próprio autor e não àquela empresa, nem a eles, réus, dadas as circunstâncias em que emitiram a fiança.

             Na sentença considerou-se que o autor provou os factos em que radicava o seu direito – o contrato de viabilização, os créditos dele emergentes e a celebração da fiança – e que os réus não provaram os factos que arvoraram em extintivos do mesmo – a apresentação tempestiva da cláusula de revisão e a responsabilidade na sua não tramitação –, razão por que julgou a acção procedente.

            A tese sustentada no recurso é a de que, assente, que está, a apresentação da proposta de revisão, cumpriria ao autor provar, o que não fez, que lhe deu andamento ou que a falta deste não procede de culpa sua.

            Vejamos:

            Não está em causa o contrato de viabilização nem o seu incumprimento; a G...., em contrapartida da consolidação de uma sua dívida, obrigou-se a pagar a um consórcio bancário, do qual o ora autor era o banco líder, uma determinada quantia, em prestações semestrais, com início em 31.12.1984 e termo em 31.12. 1991, mas só liquidou os montantes devidos até 30.06.1989.

            O problema começa na cláusula 15.ª do contrato de viabilização, a que foi dada a seguinte redacção:

            “Atendendo ao lapso de tempo (cerca de dois anos) já decorrido desde a data da homologação da proposta final da Parempresa, os outorgantes consideram que o presente contrato terá de ser, desde já, objecto de uma proposta de revisão que a empresa se compromete a apresentar, nas devidas condições, logo após o fecho das suas contas de 1983. Os bancos desenvolverão os esforços necessários para que a proposta de revisão, uma vez aceite pelo banco líder, siga a tramitação processual dentro do rigoroso cumprimento dos prazos previstos no DL 124/77 (novo texto)”.

            A figura do contrato de viabilização foi instituída pelo decreto-lei n.º 124/77, de 1 de Abril, como forma de salvar, designadamente da falência, empresas privadas em dificuldades, mas consideradas viáveis e úteis à economia nacional; em termos práticos, recebiam financiamento e determinados benefícios (fiscais, sociais e laborais), em troca do compromisso de uma linha de rumo, traduzida em metas e objectivos definidos (equilíbrio financeiro, correcção de assimetrias estruturais, parâmetros de exploração, etc.) que permitisse a sua recuperação.

            O seu processamento é o seguinte (resenha abreviada dos artigos 7.º a 12.º do referido diploma, na redacção que lhe foi dada pelo decreto-lei n.º 112/83, de 22 de Fevereiro):

            A empresa apresentava a pretensão à instituição de crédito que fosse a sua maior credora, acompanhada de documentação diversa que incluía, entre outra de cariz mais formal (pacto social, relação dos sócios e suas participações, corpos gerentes, prova dos poderes de negociação e da audição da comissão de trabalhadores), um estudo económico e financeiro, planos de saneamento financeiro e de investimentos, orçamentos de exploração e indicação dos benefícios pretendidos, de que era remetida cópia à Parempresa.

            A instituição maior credora enviava à Parempresa e às restantes instituições de crédito um parecer técnico, com a proposta do contrato a celebrar.

            As demais instituições de crédito envolvidas no processo enviavam o seu consenso à Parempresa, que apreciava a propositura e elaborava proposta final.

            No caso de não haver consenso, mas desde que o maior credor não classificasse a empresa como inviável, a Parempresa convocava uma reunião de credores bancários, com vista à obtenção de consenso, que se considerava conseguido, quando 75% deles votassem favoravelmente o parecer técnico do maior credor.

            Não se conseguindo tal percentagem, o banco rejeitante com maior volume de créditos apresentava proposta alternativa à da Parempresa, que convocava de imediato nova reunião de credores bancários. 

            Rejeitada a proposta, a instituição maior credora requeria a falência da empresa, se verificados os respectivos pressupostos.

            De qualquer modo, a homologação final das propostas competia ao Fundo de Compensação, a funcionar junto da Parempresa; sendo a decisão favorável, o contrato tinha de ser concluído no prazo de 15 dias; não o sendo, o banco maior credor deveria requerer a falência, nos termos sobreditos.

            A revisão dos contratos de viabilização rege-se pela mesma tramitação processual, consoante o preceituado no artigo 13.º, n.º 1, do falado diploma, o que quer dizer que, subsequentemente à apresentação da proposta de revisão pela empresa, cuja cópia teria de ser remetida por esta à Parempresa, recairia sobre o banco líder o dever de elaborar o parecer técnico e de o enviar à Parempresa e às demais instituições de crédito envolvidas, cabendo, depois, àquela a tarefa de procurar reunir o consenso.

            A participação da empresa no processo queda-se, assim, pela apresentação da proposta; a partir daí cessa a sua intervenção, tirando algum esclarecimento que, eventualmente, lhe possa ser pedido.

            Assente que a empresa (a G....), apresentou proposta de revisão, tida, aliás, por essencial, tanto para aprovação do contrato de viabilização, como para a assunção da fiança por parte dos réus, o problema que se coloca é o de saber se cabia a estes, como decidiu a 1.ª instância, a prova de que a apresentaram tempestivamente e de que não tiveram culpa de a mesma não prosseguir, ou se incumbia ao autor, como sustentam os réus, provar que a não aprovação da revisão lhe não é imputável.

            O ónus da prova tem diferentes alcances, consoante o sistema processual em que se insere seja inteiramente dominado pelo princípio dispositivo ou seja temperado pelo princípio do inquisitório.

            Na sua pureza, o princípio dispositivo significa que o tribunal só pode atender aos factos alegados e provados pelas partes; já quando permeado pelo inquisitório, mantém-se a necessidade da alegação, mas aceita-se que a prova seja feita por qualquer das partes, mesmo por aquela a quem a verificação do facto prejudica, podendo o juiz tomar medidas tendentes ao esclarecimento da verdade (Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, páginas 448/449).

            No nosso sistema jurídico, o princípio dispositivo só vale plenamente quanto à alegação dos factos, pois que, quanto à prova em si, o juiz dispõe de amplos poderes para ordenar as diligências que julgue aconselháveis (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, páginas 183/184).  

            Num sistema híbrido como este, não se pode falar verdadeiramente num ónus da prova, no sentido rigoroso da expressão, pois que a eventual inacção da parte pode ser suprida pela contraparte ou pela iniciativa do próprio tribunal (artigo 264.º do CPC), sem esquecer que o juiz dispõe de liberdade na apreciação das provas (Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, página 192).

            O ónus da prova adquire, neste âmbito, um sentido marcadamente objectivo, de tal modo que o seu significado não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto, como em determinar como deve o tribunal decidir no caso de se não fazer prova do facto (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, comentário ao artigo 342.º).

            As regras do ónus da prova ganham relevância quando o juiz é colocado perante um “non liquet” nas questões de facto, caso em que terá de decidir contra a parte a quem cabe a respectiva prova (acórdão do STJ, de 04.11.2003, CJ/STJ, Ano XI, Tomo III, página 136).

            Precisado, de acordo com a opinião, absolutamente pacífica, como se vê, da doutrina e da jurisprudência, o significado do ónus da prova, há que esclarecer o modo da sua repartição entre os litigantes.

            O princípio geral consta do artigo 342.º do Código Civil: àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo (n.º 1); a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (n.º 2).

            A regra é sempre a mesma, quer o facto seja positivo, quer seja negativo (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume III, páginas 354 e 355; Antunes Varela, ob. cit., página 452; acórdão do STJ, de 17.02.1998, CJ/STJ, Ano VI, Tomo I, página 88).

            O critério proposto por aquele preceito aproxima-se, como advertem Pires de Lima e Antunes Varela, do critério da normalidade (obra e local citados); quem invoca um direito tem de provar os factos que normalmente o integram (os seus elementos constitutivos), ficando para a parte contrária a prova dos que hajam impedido ou excluído a eficácia daqueles, modificado o conteúdo do direito invocado ou provocado a sua extinção.

Por isso é que a interpretação e aplicação do critério não pode separar-se, no plano do direito substantivo, das normas aplicáveis à resolução da lide. “As leis substantivas, ao preverem e regularem em termos gerais e abstractos as diversas ocorrências da vida real, começam por tratar das situações que constituem a regra, focando apenas os elementos que normalmente as integram. Num outro plano, separadamente, cuidam das anomalias que podem ocorrer”. Deste modo, cada uma das partes terá de alegar e provar os factos que constituem os pressupostos da norma que lhe é favorável, os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua excepção (Antunes Varela, ob. cit., páginas 454/455).

Sintetizando, “do autor apenas se exige a prova dos factos essenciais que integram a fonte da obrigação, sendo ao devedor que incumbe alegar e provar os factos extintivos da obrigação (…) ou os factos impeditivos do direito do autor…” (Antunes Varela, RLJ, Ano 116.º, página 342).

No caso que ora nos ocupa, a fonte da obrigação é um contrato de viabilização (nos termos do qual o autor se obrigou a consolidar o passivo da G.... e esta se obrigou a pagar ao autor uma certa importância em prestações semestrais).

À luz do proclamado critério da normalidade, ao autor cabia, apenas, como na sentença se decidiu, a prova da existência da obrigação a cargo da G...., a qual define os contornos do seu próprio direito; e essa prova foi, obviamente, feita, como emerge da matéria de facto assente.

Tudo o que, por qualquer forma, pudesse arredar a eficácia do direito, mormente a revisão do contrato de viabilização, que, a ser aprovada, iria modificar a obrigação do mesmo decorrente e, consequentemente, o direito do autor, inscreve-se no complexo factual a provar pelos réus.

Sustentam, no entanto, estes que a simples apresentação de proposta de revisão do contrato, teria paralisado a eficácia do direito do autor, porque, competindo ao banco dar andamento à proposta de revisão, nos termos do DL 124/77, a ele caberia fazer a prova de que se seguiu a tramitação adequada ou de que ela não teve lugar por razões a que é alheio, até porque a sua culpa se presume, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil.

Mas não é assim, desde logo, porque a tramitação da revisão não era forçosa; ela só teria seguimento se fosse aceite pelo autor, como claramente resulta da segunda parte da cláusula 15.ª, que os réus chamaram à colação: “os bancos desenvolverão os esforços necessários para que a proposta de revisão, uma vez aceite pelo banco líder, siga a tramitação processual dentro do rigoroso cumprimento dos prazos previstos no DL 124/77 (novo texto)”.

Ora, o que os factos provados dizem é que a proposta de revisão apresentada pela G.... não foi aceite; e não só pelo banco líder; mas por todos os bancos. Neste conspecto, é evidente que o autor não tinha de dar seguimento à tramitação legalmente prevista, que, no que lhe dizia respeito, se limitava à elaboração de parecer técnico a enviar à Parempresa e aos restantes bancos integrados no consórcio.

Não é verdade, portanto, que o autor tenha incumprido obrigação que, no caso concreto, lhe estivesse cometida.

A revisão estava prevista no próprio contrato de viabilização, é certo, mas sujeita a determinado condicionalismo. Cabia, naturalmente, aos réus a alegação e a prova da verificação desse condicionalismo (ou a de que o autor a impediu) e não a este a prova do contrário.

É o que, com toda a clareza, resulta das regras do ónus da prova já explanadas.

Desconhecem-se os motivos que levaram os bancos, entre eles o autor, a rejeitar a proposta de revisão; mero capricho ou inviabilidade da proposta, o “non liquet” é absoluto; pela liminar razão, até, de que os réus nem sequer se esforçaram por carrear factos capazes de explicar a situação.

O vazio assim criado terá de ser resolvido contra eles, que são a parte a quem os factos, se alegados, poderiam ter aproveitado.

Em resumo, o autor provou os factos constitutivos do direito a que se arrogou, os réus não provaram o que quer que fosse que o pudesse paralisar, logo, o recurso não procede por esta via. 

b) O abuso do direito

 

A invocação do abuso do direito tem por suporte a seguinte argumentação:

Resultou provado que todas as partes que outorgaram o contrato de viabilização reconheceram que o mesmo não era para cumprir, mas, sim, para rever e alterar – alínea I) dos factos assentes.

Provou-se, ainda, que os recorrentes só aprovaram o contrato de viabilização e subscreveram a declaração de fiança devido a esse pressuposto – alínea J) da matéria de facto.

Os recorrentes jamais teriam assumido as obrigações que assumiram, se não tivesse sido acordada a revisão do contrato, pelas razões aduzidas na cláusula 15.ª.

O recorrido tinha e tem perfeito conhecimento disso, sendo certo, por outro lado, que a G.... apresentou a proposta de revisão, como lhe competia.

Atento tal circunstancialismo, a conduta do recorrido configura abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.

Qual a validade desta argumentação?

            Dispõe o artigo 334.º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

            Já no direito anterior ao actual Código Civil a figura era admitida, apesar de não expressamente prevista.

            A concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito conferido; basta que sejam atingidos. Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou na sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., anotação ao referido preceito).

            A mesma é a posição de Manuel de Andrade e de Vaz Serra, quando falam em direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” e em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante” (Teoria Geral das Obrigações, página 63, e BMJ 85, página 253, respectivamente).

            Segundo, ainda, Antunes Varela, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito. Com a fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pelo fim económico ou social do direito tem o artigo 334.º especialmente em vista os casos de exercício reprovável daqueles direitos que são muito marcados pela sua função social. A fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum proprium. São os casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando uma determinada causa de nulidade, anulação, resolução ou denúncia, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato (Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, 537/538).

            Na jurisprudência, que é abundantíssima, podem ver-se, em coincidência de opiniões, e como exemplos mais recentes, os acórdãos do STJ de 04.04.2006, 24.01.2008, 07.02.2008 e 28.02.2008 (CJ do Supremo, Ano XIV, Tomo II, página 33, e Ano XVI, Tomo I, páginas 62, 77 e 122, respectivamente).

            A lei não enuncia as consequências do abuso do direito, tendo vindo a entender-se que a sanção varia consoante os casos, podendo compreender a indemnização, a nulidade do negócio, a validade do acto nulo ou a ineficácia da conduta; os efeitos, diz Antunes Varela, serão os correspondentes à forma de actuação do titular (obra e local citados).

            Com base nele, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito (Pires de Lima e Antunes Varela, último local citado).

            Refira-se, finalmente, que os tribunais, mesmo na fase de recurso, podem conhecer oficiosamente o abuso do direito (acórdãos do STJ de 21.01.1993 e 21.09.1993, in BMJ 423, página 422, e CJ do Supremo, Ano I, Tomo III, página 19, e, bem assim, o acórdão do mesmo Tribunal de 04.04.06, acima mencionado).

            Vista a matéria de facto dada por assente (ou a sua insuficiência), não se vê como perfilhar a posição dos réus.

            O contrato de viabilização era para rever, já se disse, mas só no caso de o banco líder, ora autor, aceitar a proposta apresentada pelos réus, o que não sucedeu.

            A questão, muito simplesmente, é que se ignoram as razões da não aceitação da proposta.

            O abuso do direito na modalidade do “venire contra factum proprium”, que os recorrentes entendem ocorrer, postula uma tomada de posição contrária (e, por isso, inesperada) ao que a conduta anterior da parte faria pressupor; ou, seja, cria-se na contraparte a ideia de que se vai fazer uma coisa, mas, depois, faz-se outra, lesiva dos seus interesses; incute-se confiança que, depois, se destrói.

            Não sendo líquidas as razões que levaram o autor e as demais instituições bancárias que integravam o consórcio a recusar a proposta de revisão, não se pode dizer que tenham traído a confiança da empresa ( G....) nem, consequentemente, a dos réus, que afiançaram as respectivas obrigações.

            E se de alguém os réus se podem queixar é de si mesmos, por não terem alegado a matéria necessária à caracterização da má fé, que é pressuposto do “venire contra factum proprium”.

            Com este fundamento não pode, também, o recurso ser atendido.

            IV. Síntese final:

            1) As regras do ónus da prova só operam em toda a sua plenitude quando o juiz se depara com um “non liquet” nas questões de facto, caso em que terá de decidir contra a parte a quem cabe a respectiva prova;

            2) A sua interpretação e aplicação está em estreita correlação com o direito substantivo inerente à resolução do litígio; nessa medida, o autor tem de provar os factos que integram a fonte da obrigação e o réu os factos que a podem paralisar.

            3) O abuso do direito na modalidade do “venire contra factum proprium” pressupõe a destruição de uma relação de confiança criada pelo próprio abusador.

            V. Decisão:

            Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, por via disso, em confirmar a sentença recorrida.

            Custas pelos recorrentes.